Cosmopolitismo e eurocentrismo.pdf

June 1, 2017 | Autor: Marion Brepohl | Categoria: Post-Colonialism, Imigration
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Cosmopolitismo e eurocentrismo; em torno da discussão sobre a colonialidade Marion Brepohl, maio de 2015 Prosseguindo com o debate sobre pluralismo e subjetividade, e levando em conta o desafio de descolonizar os saberes, quero trazer à reflexão a experiência do estranhamento, ou, como prefere o autor que conduzirá nossa reflexão, a condição estrangeira, expressão de Bernhard Waldenfels, em seu livro Topographie de l ‘etranger. Para entender a relação entre nativo e estrangeiro, o autor designa o termo Fremdheit, que traduzo como a “condição estrangeira”. Segundo o autor, o termo estrangeiro do ponto de vista filosófico, referese a um fenômeno que impregna com uma marca específica tudo o que encontramos1. Esta condição, ou Fremdheit (seria estrangeirice, estranheza?) nos toca em diversas experiências: estranhamos o idioma do outro, seus hábitos alimentares, um lugar, ... estranhamos até o nosso passado, aquele com o qual não nos identificamos mais. A casa dos nossos pais, por exemplo, quando visitada e não mais utilizada como lar, parece nos ser estranha, não cabemos mais lá dentro, a hora de regressar à verdadeira casa por vezes tarda. Em especial nos dias atuais, em que quase tudo é fugaz, nós só encontramos episódios do passado nos incidentes da memória (atos falhos) ou nos souvenirs – em suportes da memória que nossos smart-phones insistem em colecionar, como se fôssemos um dia re-ver tantas imagens. Até elas nós estranharemos. E o exótico, além de distante, é ele meu passado? Esta pergunta intrigou muitos homens de letras no século XIX. Eram eles primitivos, pré-históricos, pós-históricos, inferiores, selvagens, atrasados, bons, brutais?

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WALDENFELS, B. Topographie de l ´étranger. Tradução de Frederico Gregorio. Paris: Van Diere Editeur, 2009. p. 9

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Então, quem é estrangeiro e o que é estrangeiro? É aquilo ou aquele que não conhecemos mais ou ainda não, ou de quem e do que não conhecemos nada; é também um sem lugar.2 Em língua alemã, o prefixo é muito sugestivo: Fremdsprache Fremdkultur Fremdgruppe Fremderfahrung Fremd ich Fremdheit O fato é que o sentimento em face ao estrangeiro porta algo de enigmático que nos afeta e ou nos infecta. A condição estrangeira parece ser contagiosa como a doença. Mesmo assim nos atrai, como o amor ou o ódio nos atrai. Penso que não por acaso, a gente tem ataque de riso, um riso nervoso, quando erra uma palavra estrangeira ou ouve um estrangeiro errando ao falar em nossa língua. Mas é algo que nos atrai, pelo menos a atenção. Não há portanto um mundo onde qualquer pessoa se sinta totalmente em casa e não há pessoa que seja totalmente mestra em sua casa3. As demarcações, os cruzamentos, as fronteiras, as distâncias e aproximações são instáveis, móveis, moles, intercambiáveis e estão, no final das contas, dentro de nós. Com respeito ao confronto entre uma sociedade estranha ao pensamento ocidental, e que foi traduzida por Claude Levi Strauss como o confronto entre o pensamento científico e o pensamento selvagem; e, por Michel Foucault, como o ordenado e o não ordenado, Waldenfels se vale da expressão estar entre o cão e o lobo.4 Claro, menção ao lobo, floresta, remete ao selvagem, mas leiamos mais uma vez, e eu tomo esta narrativa da wikipedia, não seo é final ao original, alguém a colocou ali como síntese da fábula de Esopo (63-20-650 a. C), que foi recriada por La Fontaine. É mais ou menos assim: 2

                                                                                                                       

Idem, p. 25 e ss. 3 Idem, p. 17 4 Idem, p. 11.

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Certa noite o lobo encontrou o cachorro todo elegante, com o pelo tratado e uma linda coleira no pescoço. “Invejo você”, disse o lobo. “Tão saudável e gordo, enquanto eu estou

aqui

magro

e

faminto.”

“Se você fizer o que eu faço, também vai engordar”, respondeu o cão. “Meu dono me trata muito bem, não falta comida e meu único trabalho é latir à noite quando pressinto a presença de algum ladrão por perto. Se você quiser, pode vir comigo e vai receber o mesmo

tratamento.”

O lobo gostou da ideia. Afinal, levava um dia-a-dia muito cansativo, porque tinha de caçar a sua própria comida na floresta. Aceitou a proposta. Mas, enquanto caminhavam, notou que o cachorro estava com o pescoço todo esfolado, em carne viva. “O

que



com

o

seu

pescoço?”,

perguntou

o

lobo.

“Não há nada. É que meu dono me prende a uma corda durante o dia para evitar que eu morda as pessoas da casa. Eu tento escapar, a coleira esfola o meu pescoço e às vezes perco um pouco de sangue. Mas à noite, quando há ninguém por perto, eu fico solto.” O lobo assustou-se com o relato e imediatamente desistiu da ideia de morar com o cachorro. “Obrigado, prefiro morar na floresta e trabalhar para conseguir minha comida em liberdade.”

O ditado, “estar entre o lobo e o cão “, parece que datado do século XIII, também simbolizava a noite e a sombra (o lobo) e o dia e a claridade/clareza (?) (o cão). Talvez, em algum momento, a cidade e a floresta. Assim adquire sentido a aventura europeia e a elaboração de seus tantos outros: este pode ser detratado ou idealizado, detalhado ou superficialmente descrito, alvo de humilhação ou exaltação, mas quase sempre é subsumido como selvagem. Um outro que eu não consigo dominar por completo. Deixe-me citar só um pequeno exemplo, a meu ver, que chega à capilaridade desta relação: se formos observar no detalhe, a tese de Gobineau sobre a desigualdade das raças, vamos ver que, segundo sua teoria particular e sem documentação praticamente alguma, embora fossem os arianos que criaram as civilizações e dominassem os não brancos (na Europa, na civilização asteca, China, Grécia, Roma, etc), são eles mesmos os responsáveis pela

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miscigenação – são os homens claros que desejam e possuem as escuras.5 Na imaginação de Gobineau, a volúpia dos brancos pelas nativas levou à miscigenação, e esta à degeneração das raças. Este é um exemplo apenas, poderíamos percorrer outros que descrevem os desejos, o gosto pelo exótico de que até mesmo Gobineau não se livrou. Assim, seja num ou noutro sentido, seja um acontecimento do nosso cotidiano ou fruto de uma viagem para um lugar distante, seja entre o citadino e o bosquímano, o encontro é, via de regra, confronto, (mesmo que daí resulte, posteriormente, a amizade), e deste confronto, o medo pela eventual ameaça que o estranho representa. Por isso também, prossegue

Waldenfels, o estrangeiro é ou está no

limiar da hostilidade. Sim, porque é um hóspede bem-vindo até o momento em que perturbe as regras (ou a ordem, ou a economia afetiva) do próprio, provisoriamente anfitrião, mas seguramente hóspede de um outro. Segundo Waldenfels, L‘expérience de l ´étranger se produit à travers une inclusion et une exclusion. Quelque chose surgit comme étranger en tant qu´il échappe à notre prise en débordant les limites du propre6. Com isso quero afirmar que a condição estrangeira pode ser tratada como um fenômeno cotidiano: da criança e o mundo dos pais, os diferentes idiomas, os locais e nossa memória, ou, numa relação com o extraordinário, que se dá, dentre outras, pela viagem rumo a uma região desconhecida. Seja na escala que for, implica mudanças em nossas maneiras de ver, de pensar e de sentir. Se o estrangeiro é um hóspede virtualmente hostil, um familiar virtualmente estranho, então o sentimento de inquietude está ali onde nos confrontamos com ele. Por isso, a nossa tendência é a de apropriar-se dele. Num extremo, pela política da amizade. A amizade é apresentada por Derrida desde Aristóteles, mas eu queria lembrar também da “douceur democratique”, expressão que define o respeito e a

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YOUNG, Robert. A fantasia da raça, do sexo e da desigualdade. (Desejo colonial) 6 Idem, p. 171

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deferência que devemos ter nas sociabilidades públicas que se pretendem democráticas; políticas, eu diria. Então, a amizade como política, ou amizade política desenha um cenário de apropriação, mas podemos deixar este tema para outra ocasião. A outra apropriação, em outro extremo, deriva da violência, seja ela menos ou mais explícita. O momento de mais intensa alteridade, neste tocante, foi, segundo minha compreensão, o racismo a partir da descoberta do continente negro. 7 Segundo o jurista Carl Schmitt, o contrário de amizade, em política, não é a inimizade, mas a hostilidade. 8 Pequeno parêntesis: penso que Schmitt merece uma releitura a partir da perspectiva pós-colonial. Não conheço nenhum autor que tenha feito isto, mas sabemos, em “O nomos da Terra”, a importância que Schmitt deu à perda das colônias alemãs em África. Primeira conseqüência: o inimigo político não seria forçosamente inamistoso, não alimentaria necessariamente sentimento de inimizade contra o outro. De resto, o sentimento não desempenharia qualquer papel, tampouco a paixão. “Eis uma experiência do amigo-inimigo em sua essência política, totalmente pura de todo afeto, ao menos de todo afeto pessoal, a supor que haja outro. Se o inimigo é o estrangeiro, a guerra que lhe faço deveria permanecer, no essencial, sem ódio, sem xenofobia. E o político começaria por esta purificação, pelo cálculo desta purificação conceitual. Posso também fazer a guerra a meu amigo, uma guerra em sentido próprio, uma guerra própria e sem piedade. Mas sem ódio”.9 7

                                                                                                                       

BREPOHL DE MAGALHÃES, M. Os pangermanistas na África: inclusão e exclusão dos nativos nos planos expansionistas do império; 1896-1914in: Revista Brasileira de História. Dezembro, 2013, vol 33, n. 66, ISSN 0102 – 0188.

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SCHMITT, C. Sobre o conceito do politico.

ALBORNOZ, Suzana. Políticas de amizade em Derrida. In:

http://www.celpcyro.org.br/joomla/index.php?option=com_content&id=834:politicas-daamizade-de-jacques-derrida-1

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Para Schmitt, a hostilidade define a dinâmica amigo/inimigo, inimigo na fronteira (aqui caberia juntar, fronteira entre os países e em seus territórios de ultramar). Historicamente, Schmitt “resolve” sua premissa naturalizando o imperialismo, ainda que não explicitado desta forma, afirmando que “a força” e não “o pacto” explica a lei. Desde o início, os territórios conquistados tinham que ser, por via de conseqüência, governados pela força, tanto como era a força quem definia as fronteiras. Por isto, segundo ele, já em sua origem, o Direito se relacionava à apropriação. Desde a Roma Antiga, o Direito sugere a fronteira, entre um espaço de governo e um espaço ingovernado, onde ficam os banidos/ abandonados, os não cidadãos, os fora da lei. Situação que se reedita no mundo Moderno, pois, conforme o autor, com as primeiras conquistas ultramarinas10, qualquer território não europeu foi considerado um espaço vazio de direito. Por essa razão, o outro não podia ser considerado amigo ou ao menos vizinho, mas um sujeito hostil a ser desapossado. Segundo Battistella, esta é a razão pela qual Schmitt não emprega a noção de lei, demasiado abstrato e universalista, mas a expressão nomos, que significa lugar de habitação, cantão, pastoreio11. Assim sendo, a própria ordem moderna coincide com um determinado espaço, restrito ao continente europeu, onde se firma a lei para definir, somente ali, direitos e deveres em espaços interestatais. Fora destas fronteiras, o que valia era a força e a apropriação. Esse movimento de “longa duração” se reflete na história do Direito. Para Schmitt, o Direito não é um conjunto de leis que respondem às demandas por direitos, nem a objetivação de valores, regras morais e tradição de um povo, mas um momento secundário na história, via de regra, um conjunto de normas resultante da força daqueles que se tornaram amigos entre si, e, sendo vitoriosos, constituíram um mundo político segundo o que decidiram: assim sendo, afirma ele, a conquista territorial externa (em face a outros povos) e interna (à                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             10 11

SCHMITT, C. O nomos da terra BATISTELLA, Le  Nomos  de  la  terre  dans  le  droit  des  gens  du  jus  publicum  europaeum., 2001, p. 424

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lei de propriedade no interior de um território) é o tipo primevo de um processo legal constitucional.12 Especificamente, em minha opinião, mais do que em quaisquer outras relações que conheço, a apropriação como forma de controle do outro – que é também a de si, é uma experiência europeia, derivada do ethos da conquista, tão bem descrito pelo filósofo argentino Enrique Dussel.13 E tal experiência torna-se um “universal “da Modernidade ou nas Modernidades Múltiplas, não adianta, a gente vê que este universal percorre também as regiões de passado colonial. Parêntesis: De um jeito ou de outro; poderíamos perseguir aqui as teses de Fanon sobre o colonizado, e talvez chegássemos numa pista para entender a corrupção, mas não vou fazer isto hoje. Só mencionar que corrupção é apropriação daquilo que é do outro, um outro virtualmente des-materializado ou des – individualizado. A tendência à apropriação do estranho/ estrangeiro é a tônica, o que para Waldenfels é um modo de auto-proteção, podendo se dar por três formas de centração: o egocentrismo, onde tudo se reduz à esfera do eu, o etnocentrismo, um nós coletivo (que se compreende como o preferido) e o logocentrismo, que não nega o estrangeiro, respeitando-o e dele se apropriando em suas diferenças. Nos dois primeiros casos, o estrangeiro é reduzido ao próprio, no último, o estrangeiro e o próprio se integram. Eu arriscaria ainda mais um: o nacionalismo, quando a apropriação se torna desapropriação, um etnocentrismo que se imagina altruísta. É arriscado, sim, ter um estrangeiro diante de si, mas é o preço a pagar para a intersubjetividade, momento em que a experiência nasce. Segundo o autor, 12

                                                                                                                       

Apud KORF, Benedikt & SCHETTER, Conrad. Carl Schmitts Raumphilosophie, Frontiers und Ungoverned Territories in: PERIPHERIE (30.08.2012) http://www.linksnet.de/de/artikel/27861, pesquisa realizada em abril de 2013.

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DUSSEL, Enrique. 1492; o encobrimento do outro

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Là ou les nouvelles pensées naissent, elles n ´appartiennent ni à moi ni à l ´autre. Elles naissent entre nous. Sans ce entre-deux, Il n ´y aurait aucune inter-subjectivité et aucune inter-culturalité qui méritent leur nom. Il ne resterait que la simple extension ou démultiplication du propre, et l ´étranger aurait toujours déjà été reduit au silence.14

Experiência do estrangeiro na história: Hospitalidade para com ele; Xenofobia; Expulsão; Direito ao asilo; A ignorância em relação a ele (abandono); O estrangeiro que se apropria do outro (invasão de diversas formas) Ou, Quando a pessoa se sente fora do domínio próprio Externum Extraneum Peregrinum Os lugares do estrangeiro na experiência vai depender do modo de acessibilidade ao próprio. Se ele está distante tão somente do ponto de vista geográfico, ele nem é, não faz parte do grupo. Mas se está perto, ele se confunde com o inimigo.15 Zonas de estranheza (etrangerté) coletiva: Depende das diferentes gradações de acessibilidade: língua 14

                                                                                                                       

Idem, p. 67 15 Ver o filme O Terminal, de Spielberg, com Tom Hanks, 2008

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cor da pele confissão religiosa condições jurídicas facilitadoras ou não ocorrência de catástrofes naturais, etc. E depende também da natureza e intensidade da centração. A conclusão do autor nos é muito sugestiva: a confrontação com o estrangeiro, este que eu assimilo ou não assimilo, este que se deixa ou não se deixa assimilar, ter, enfim, este estrangeiro em face,

é condição para a

intersubjetividade, que é a única que leva à intra-subjetividade. Em Freud, temos este olhar: o estrangeiro como unheimlich; quem são os meus (eus) quem são os outros, os estranhos; talvez, como na fábula O cão e o lobo – o cão seria o ego, o lobo, o inconsciente. Daí que o estrangeiro radical – é o meu eu selvagem que não consigo encarar. Fronteiras interiores como a maré do mar – a sexualidade, o sofrimento, o passado, a falta e a memória desta falta, etc.    

Mas para refletir do ponto de vista das estruturas afetivas que atingem ou podem atingir uma comunidade inteira: o estrangeiro, para Waldenfels, é um hóspede no limite da hostilidade. Quando chega, ele deve aprender, sob a condição de não ser aceito, as regras da casa. Talvez, também prometer, falsamente, que vai ficar pouco. O livro de Waldenfels tem como motivação primeira, a meu ver, a busca de entendimento da situação dos imigrantes “com ou sem papeis” da Europa. Pessoas que respondem por mais ou menos 20% da mão de obra não qualificada, com direitos precarizados ou sem direitos, mas eles estão lá. Sua origem são as ex-colônias.     Aceitá-lo não é uma opção, é a condição para o cosmopolitismo, que aceita o outro como outro (Levinas), projeto ético, mais do que político. Mas o cosmopolitismo sobrevive às identidades particulares reivindicadas, por vezes,

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pelo próprio imigrante? Como este imigrante reage à generosa afirmação “a cor de sua pele não tem a menor importância para mim” quando ela foi a definidora (involuntária, para ele), de sua história e se formos atentar, ainda o é?       Bibliografia   BREPOHL  DE  MAGALHÃES,  M.  Os  pangermanistas  na  África:  inclusão  e  exclusão  dos  nativos   nos  planos  expansionistas  do  império;  1896-­‐1914in:  Revista  Brasileira  de  História.  Dezembro,   2013,  vol  33,  n.  66.  

 

WALDENFELS,  B.  Topographie  de  l  ´etranger   SAID,  E.  Freud  e  os  não  europeus   KRISTEVA.  Étrangers  à  nous  mêmes   LEVINAS.  Le  temps    et  l  ´autre   DERRIDA.  Políticas  de  amizade   SCHMIDT,  Carl.  O  nomos  da  terra   SCHMIDT,  Carl.  Sobre  o  conceito  de  político.     YOUNG,  Robert.  Desejo  colonial   AGAMBEM,  La  amistad.   Francisco  Ortega.  Amizade  e  estética  da  existência  em  Michel  Foucault  

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