Cosmopolitismo na Rede: urbanidade nos relatos de viagem do século XXI

August 24, 2017 | Autor: Lilia Abadia | Categoria: Portuguese Studies, Postcolonial Studies, Brazilian Studies, Cosmopolitanism
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Livro de Atas do 1.o Congresso da Associação Internacional das Ciências Sociais e Humanas em Língua Portuguesa | 2531

Cosmopolitismo na rede: urbanidade nos relatos de viagem do século xxI Gianlluca Simi1 Lilia Abadia2

Resumo: Os discursos sobre as cidades e o modo de vida urbano são frequentemente construídos em oposição às ideias de ruralidade e exotismo. A cidade, assim, reflete uma lógica desenvolvimentista, centrada no imaginário “cosmopolita” e reproduzindo uma visão do mundo binária e eurocêntrica. Nesta comunicação, avaliamos os relatos de viagem publicados em blogues e em redes sociais (Facebook e Instragram) por falantes da língua portuguesa, a fim de analisar as representações visuais e textuais de espaços urbanos e rurais. Dessa forma, Pretendemos: identificar os discursos que circulam nos blogues de viagem e redes sociais; perceber de que forma as viagens se relacionam com um exercício de aquisição de “capital cultural”; entender como o uso de novas tecnologias pode reforçar ideias hegemônicas sobre o mundo (especialmente entre ‘campo’ e ‘cidade’); e finalmente,verificar se essas mesmas plataformas podem se tornar veículos de contra-discursos. Palavras-chave: Relatos de Viagem; Novas Tecnologias; Cosmopolitismo; Eurocentrismo

Introdução No presente artigo, examinamos a imagem de cidades e de espaços rurais em relatos de viagem do século XXI. Para tal, focar-nos-emos em blogues de viagem de língua portuguesa e suas respectivas ressonâncias imagética em redes sociais, nomeadamente: Facebook e Instagram. Pretende-se entender de que forma a viagem é usada como uma maneira de se criarem distinções entre as pessoas de acordo com o histórico de contato que se tenha com terras estrangeiras em especial. Ademais, preocupamo-nos em entender a relação entre o desenvolvimento das cidades e dos grandes centros urbanos com o a interpretação atual que é atribuída ao conceito de cosmopolitismo. Isto é, analisam-se as oposições ainda presentes entre cidade e campo: aquela como representante do desenvolvimento e como espaço de interação virtualmente infinita e aparentemente livre entre culturas; este como representante do atraso e como espaço intelectualmente entediante, onde o forte apego às raízes e às tradições impede que haja, portanto, cosmopolismo. De início, é necessário que se disserte sobre a origem dos relatos de viagem no sentido de serem tentativas de se traduzirem culturas distantes para públicos próximos. Entram aí questões como a expansão colonial e os paradigmas de civilização e de desenvolvimento. Então, faz-se importante dar centralidade às discussões acerca do próprio conceito de cosmopolitismo, com um breve apanhado de seu significado original grego, que já apresentava contradições inerentes à sociedade da época, até o rearranjo de sentido promovido pelo Iluminismo. A partir daí, o cosmopolitismo se torna um conceito ligado à erudição e ao histórico de contato com povos distantes.

1 Gianlluca Simi é mestre em Teoria Crítica e Estudos Culturais pela Universidade de Nottingham, onde atualmente faz doutorado na mesma área (CAPES). Sua pesquisa se ocupa do estudo das fronteiras internacionais, em especial aquelas entre Argentina, Brasil e Uruguai. Interessa-se por estudos de fronteira, teoria pós-colonial, estudos urbanos e de migração e integração regional. É bolsista da CAPES - Processo BEX 0937/14-2. Universidade de Nottingham, CAPES. ajxgs@ nottingham.ac.uk 2 Lilia Abadia é mestre em Ciências da Cultura pela Universidade de Lisboa. Foi investigadora bolseira em projetos no Instituto de Geograia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa ( 0 0- 0 ), e no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho (2012-2013). Atualmente cursa o doutorado em Teoria Crítica e Estudos Culturais na Universidade de Nottingham. É bolsista CAPES - Processo BEX 0925/13-6. Universidade de Nottingham, CAPES. [email protected]

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Com isso, parte-se para os percursos metodológicos deste trabalho, já a introduzir alguns dos dados e algumas das conclusões, desenvolvidas com mais cuidado na parte final. Pode-se adiantar, no entanto, que, mesmo quando as tecnologias de informação e comunicação (TICs) pareçam, por si só, promissoras no sentido de, em princípio, permitirem que mais vozes se somem a construção de sentidos, os blogues dedicados a viagens e as redes sociais por eles utilizadas (Facebook e Instagram) mostram poucos indícios de mudança dos paradigmas existentes. Ou seja, os relatos de viagens publicados em blogues de viagem são basicamente atualizações de plataformas técnicas para representações textuais e visuais de centros urbanos e espaços rurais que continuam a alimentar a antiga lógica colonialista, binária e eurocêntrica do mundo.

Relatos de viagem: o cosmopolitismo no imaginário da cidade Os relatos de viagens são importantes fontes históricas e literárias, sendo geralmente classificados como «literatura de informação» (vide Schneider, 2005). Eles contêm muito além de informações sobre os lugares visitados. A complexidade desse gênero literário reside, entre outras coisas, na variedade de formas em que se manifesta. De acordo com Schneider, os relatos de viagem podem ser «cartas, tratados, diários, crônicas, depoimentos» (2005: 49). Já Almeida defende que os relatos podem consistir em notícias sobre as expedições, informes políticos, econômicos, descrições geográficas - enfim, um vasto campo de textos produzidos pelo aparato técnico do Estado –, além de discursos, como os dos conquistadores do Novo Mundo que oscilam entre a exposição burocrática dos fatos da conquista e a auto-apresentação como heróis da coroa (Schneider, 2005: 85). Assim como o tempo dedicado à feitura do relato, o tempo de permanência e imersão em terras estrangeiras também pode variar. Sendo, portanto, um gênero misto, no qual os documentos muitas vezes encontram-se entre o jornalismo e a literatura. Resta-nos então o questionamento: o que permite que textos tão diversos sejam classificados sob o mesmo rótulo? Esse gênero literário encontra uma grande abrangência temporal e geográfica, constando como fonte da exploração árabe do al-Ândalus, por volta do século X (Carrizo, 1997; Almeida, 2005), dos ditos ‘descobrimentos’ europeus a partir do século XV e das respectivas colonizações que encetaram (Zubaran, 1999, Schneider, 2005; Franco, 2011), bem como das aventuras dos viajantes latino-americanos do século XX (Tôrres, 2012). Tendo em vista uma definição que englobe a diversidade de formatos, profundidade e dimensão dos relatos, podemos pensá-los a partir de duas características fundamentais: (i) o propósito da narrativa - relatar experiências de viagem que não são mediadas e, sim, relatadas em primeira mão - e (ii) seu cunho descritivo3. Nesse sentido, ponderando acerca dos relatos de viajantes do século XXI, podemos considerar os blogues de viagem como fontes essenciais para a (re)produção de ideais sobre as cidades, a arquitetura e os monumentos que devem ser apreciados; as atividades que devem ser feitas e formas de comportamento nestes ‘outros’ espaços. Em outras palavras, os blogues de viagem fornecem as representações sobre as melhores formas de ‘apropriação’ das cidades. Da mesma forma, eles constroem imaginários sobre os espaços rurais, centrando-se em atividades de aventura, contemplação, exotismo e bucolismo. Assim como outros tipos de relatos de viagem, os blogues de viagem fornecem relatos que «participaram do desenho do mundo tal como o conhecemos hoje» (Almeida, 2005: 83). Isso quer dizer que os artigos dos blogues de viagem consolidam nossas referências sobre espaços rurais e urbanos, reforçando e completando os imaginários que circulam em um mundo cada vez mais globalizado. Sendo assim, faz-se importante refletir sobre o caráter paradoxal dessas fontes documentais, uma vez que, ao mesmo tempo em que reproduzem visões de mundo dos seus produtores, difundem outras formas de sociabilidade. Essa é de fato uma questão bastante debatida entre os estudiosos dos relatos de viagem. Alguns

Para uma discussão mais detalhada sobre a classiicação de textos como relatos de viagem vide Carrizo,

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autores afirmam que essas fontes documentais não dizem mais do que sobre quem os escreveu, tratando-se de um documento mais sobre o autor do que sobre o espaço visitado (Paul Bowles apud Almeida, 2005: 84). No entanto, cabe lembrar que os relatos de viagem são também «produtos de um contexto histórico» (Schneider, 2005: 50). Ao descreverem os espaços visitados, suas características morfológicas, sociais, culturais e políticas, os viajantes estão reificando certas visões de mundo, que, em certa medida, já definiram previamente o olhar dos viajantes. Essas visões não são produtos de um entendimento unicamente individual do mundo, são também construídas socialmente. Os relatos não se tratam portanto de ‘descobertas’, mas, sim, de processos de negociação entre imaginários e experiências. De acordo com Burke, a importância dos relatos de viagem como fontes para a história cultural reside no fato de esses documentos se centrarem nos «encontros culturais entre culturas distantes e desconhecidas, revelando tanto a percepção da distância cultural como a tentativa de ‘traduzir’ a cultura desconhecida em algo familiar» (Peter Burke apud Zubaran, 1999: 18). Isso quer dizer que a decodificação dos relatos de viagem exige um processo de cuidadosa desconstrução das relações de poder que formam as imagens sobre os lugares relatados. Sendo este um estudo exploratório, não nos voltaremos para o exame das circunstâncias materiais das viagens, o tempo de duração da viagem, seus propósitos, financiamentos nem tampouco para a biografia dos seus produtores. O nosso foco consiste no discurso sobre espaços rurais e urbanos e as representações visuais dos mesmos, bem como as suas possíveis repercussões. Nosso objetivo é, portanto, refletir sobre a forma como o imaginário cosmopolita reinventa e/ou cristaliza as relações com o espaço a partir de discursos e imagens. Resta-nos saber: ‘o que significa ser cosmopolita?’ Cosmopolitismo é uma palavra elusiva. Em geral, refere-se a um tipo de presença global: o livre movimento entre países, a falar diferentes idiomas, experienciando diferentes culturas em primeira mão. Nessa perspectiva, o cosmopolitismo beira a mera «consciência de classe de frequentes viajantes» (Calhoun, 2008: 106), não podendo, assim, ser visto como uma categoria simples e direta só porque parece se referir a uma certa universalidade. De acordo com Rao, há duas maneiras principais de se entender o cosmopolitismo. Em primeiro lugar, como «universalidade ou qualidade de ser abrangente» (Rao, 2007: 3). Além disso, pode significar «uma aspiração moral de se pertencer a uma comunidade política imaginada que considere todos os seres humanos como membros iguais de um sistema universal» (Rao, 2007: 3). Dessa forma, o cosmopolitismo se refere a cidadania global, ou seja, ao reconhecimento das pessoas como cidadãs cujo sentimento de pertencimento seja com uma humanidade ubíqua, englobando e, ao mesmo tempo, transcendendo todas as divisões em nacionalidades, religiões, idiomas etc. Ademais, cidadão global é o significado literal de cosmopolita. Trata-se de uma justaposição das palavras gregas para ‘mundo’ (kosmos) e ‘cidadão’ (polítis). O termo resultante kosmopolítis, no entanto, implica uma série de amplas interpretações. Kosmos, por exemplo, pode referir-se tanto ao universo como a um único povo. Polítis, por sua vez, refere-se simultaneamente a um membro da sociedade e a uma pessoa livre. No contexto original da Grécia Antiga, poder-se-ia dizer que um cosmopolita é uma pessoa que atendeu a certos critérios para ser considerada como uma pessoa livre em uma sociedade que potencialmente via-se como a epítome do universo. Foram os modernos rearranjos de sentido, no entanto, que deram origem à ideia usual que se tem, até hoje, de cosmopolitismo. No Iluminismo - movimento cultural da elite europeia que se baseava na razão, na capacidade do pensamento, da articulação lógica -, surge a imagem do cosmopolita - ou, como se dizia inicialmente, le cosmopolite. Esse era «o tipo familiar nas ‘guerras eruditas’ da época, um indivíduo geralmente descrito nos termos daquilo que eu», escreve Ingram, «chamo de definição anódina: em casa em qualquer lugar, tolerante, liberal» (2013: 34). Foi nessa época em que emergiram as ideias do cosmopolitismo como a qualidade de alguém viajado, falante de vários idiomas, apreciador da diferença e, sobretudo, como a qualidade de alguém que fizesse tudo isso com destreza. O Iluminismo, portanto, trouxe a ideia do cosmopolitismo como uma abertura ao mundo, visto como uma grande coleção de curiosidades provindas de lugares exóticos. A partir dessa rearticulação, o cosmopolitismo deixa de se referir à cidadania e à participação nos processos políticos e passa a quase exclusivamente se referir ao consumo da diferença. O cosmopolita se torna a pessoa que tem acesso à variedade das expressões humanas. Ao cosmopolitismo, como conceito, atribui-se o sentido de viagem, exploração e contato com diferentes culturas, ainda que seja de forma superficial, isto é, ainda que não se trate,

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digamos, de um trabalho longo e complexo como o de um antropólogo, mas o contato efêmero do turista ou do viajante. O que conta, portanto, é ter tido a experiência com o ‘diferente’, é ter podido, de alguma forma, ver, sentir - em suma, consumir a vida do outro. Assistir à vida do outro de uma posição externa que não carrega as obrigações, as relações nem as estruturas de quem, por exemplo, torna-se o ‘nativo’ ou a pessoa ‘local’ - este que assume um duplo papel. Por um lado, o nativo pode ser compreendido através de uma das seguintes posições. Ou, em lugares que são historicamente vistos como menos desenvolvidos, caóticos, indesejáveis a não ser como objeto de observação, o nativo é visto com um certa condescendência, pois está naquele lugar, ou seja, parece estar preso ao lugar que o identifica, sempre em relação aquilo que lhe falta, ao contrário do visitante, que está a transcender os limites da sua localidade, a corajosamente explorar os rincões outros do mundo. Ou, naqueles lugares a que geralmente se aspira, os tais centros do mundo, organizados, pacíficos, desenvolvidos, o nativo é visto como um modelo, de quem se inveja a chance de viver ali. Enquanto ao primeiro tipo de nativo se procura auxiliar, da forma que for, mesmo que seja só pelos recursos levados com o turismo, do segundo tipo se procura aprender lições que serão então levadas consigo. Por outro lado, porém, o nativo é justamente aquele que possibilita a experiência do cosmopolita. Não é este ou aquele indivíduo nativo que o faz, mas, como já mencionado, é o consumo da vida que o nativo parece levar naquele cenário e naquelas condições que possibilita que o cosmopolita de fato o seja. Sem ele, não haveria o cotidiano exótico ou desejado que se consome e se transforma numa espécie de eruditismo global. Pode-se, portanto, afirmar que o cosmopolitismo se relaciona, em primeiro lugar, com viagens, com turismo, com o deslocamento para além do lugar a que se chamaria de ‘casa’ ou que portaria aquelas características dentro de cuja abrangência um indivíduo seria identificado como ‘local’. Em segundo lugar, infere-se que haja, no cerne da relação entre cosmopolitismo e viagem, uma pulsão distintiva - isto é, algo que diferencie as pessoas entre si com base no histórico de contato com o distante, o exótico, o diferente. Entende-se que exista, então, o que Snee chama de «capital cosmopolita», ou seja, «um subgrupo do capital cultural, usado pela classe média para se distanciar daqueles que não têm o bom gosto de consumir ‘diferenças étnicas’» (2013: 146). Com o avanço inaudito das tecnologias de informação e comunicação (TICs), em especial a fotografia, o capital cosmopolita se reifica: não é só a jornada real em si que caracteriza o bom gosto ou, neste caso, o ser ou não-ser cosmopolita. Souza e De Angelo (2008), por exemplo, argumentam que, logo após a criação da primeira máquina fotográfica, pela Kodak em 1888, houve um crescimento na reprodução de imagens, em pouco tempo, fotógrafos e pequenos empresários começaram a investir na produção e comercialização de vistas de paisagem, de cenas da vida rural e urbana, de monumentos históricos e de lugares que iam se tornando, cada vez mais, objetos de desejo das viagens de lazer da burguesia da Belle Époque (Souza e De Angelo, 2008: 163). Aliam-se, portanto, dois avanços. Não foi só o avanço das tecnologias de reprodução de imagens, como a máquina fotográfica, que impulsionaram o interesse pelas paisagens. Foram criadas, também à época, novas formas de se locomover em massa, mais rápidas e mais acessíveis, como o motor a vapor de trens e navios assim como o automóvel. Ou seja, a expansão das indústrias e de uma mentalidade ainda influenciada pela razão iluminista parecem prometer o encolhimento do mundo, a possibilidade de se ter acesso a partes que, antes, pareciam tão remotas — se não através da jornada física, ao menos através do fato de que começam a surgir as grandes metrópoles, compostas de fragmentos de inúmeras partes do mundo. Assim, o consumo da diferença se torna um marcador de bom gosto, de refinamento, de se estar em sintonia com os desenvolvimentos do mundo moderno. A viagem e os discursos produzidos sobre ela se tornaram muito comuns. As paisagens distantes se tornam, metaforicamente, a nova obra de arte a ser colecionada e exposta. Dessa forma, o turismo passou a ser mais uma das expressões do desenvolvimento tecnológico, impulsionado pela revolução industrial e embasada em ideais iluministas, ao ponto de criar hoje aquilo que Ahmad chama de «apropriação onívora» (2012: 490). Isto é, o cosmopolitismo moderno se apropria de todas e quaisquer expressões: não há diferenciação clara entre alta e baixa culturas, entre popular e erudito; tudo que é ‘estrangeiro’

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ou ‘exótico’, ou seja, tudo aquilo a que se tem acesso através da viagem (real ou virtual) pode ser consumido e usado como construtor de capital porque justamente não interessa tanto o que se consume como o fato de ter-se-lo consumido. Isso não implica dizer, entretanto, que não existam desigualdades entre as origens daquilo que se consome da/ na viagem. Os destinos não são todos equiparáveis: quedam-se discursos que pré-moldam a escolha e a atenção do turista. «Os turistas leem as paisagens à procura de signos, adquiridos de discursos de viagem, de noções pré-estabelecidas dos lugares a fim de compará-los com o cotidiano e de ter prazer em estarem em algum lugar fora do comum» (John Urry, 2002 apud Snee, 2013: 149). Assim, o próprio consumo onívoro de relatos de viagem, de fotos e cartões postais, de programas e documentários sobre terras e povos distantes entre tantas outras formas pelas quais o capital cosmopolita pode ser incrementado - todas são influenciadas pela tessitura acumulada de todos os textos, no sentido amplo da palavra, já produzidos ou não-produzidos sobre os destinos. Igualmente, os próprios relatos de viagem, entendidos como resultados da experiência em primeira mão e não como consumo mediado pelas experiências de outrem, são «frequentemente baseados nas representações prévias do destino em questão, ou seja, os textos dos viajantes são sobre textos anteriores tanto quanto sobre o destino em si» (Jenkins, 2003: 307). Assim, pode-se afirmar que o cosmopolitismo inspirado pelas viagens e pelo consumo da diferença está muito mais condicionado do que se poderia acreditar primeiramente. Isto é, o deslocamento em si, o turismo, a viagem não forçosamente geram contato significativo com a cultura ou com a história locais. Nesse sentido, o cosmopolitismo corre o risco de ser um mero consumo de imagens e representações já estabelecidas. Finalmente, não parece haver imagem mais cosmopolita do que a imagem da cidade. Impulsionada pelos mesmos avanços tecnológicos que facilitaram o deslocamento a lugares antes distantes e a reprodução de discursos sobre esses lugares, a cidade se confunde com o cosmopolitismo. De um lado, o espaço rural, o campo, é associado com noções idílicas de simplicidade, resumidas ao estado da natureza. De outro, o espaço urbano, a cidade, é associado com worldliness, com a sofisticação cosmopolita do consumo da diferença, com o contato frenético com os avanços da tecnologia (vide Williams, 1973) — entre elas, pois, aquelas que facilitam o deslocamento e o consumo de representações sobre outros lugares (incluindo, obviamente, os relatos de viagem). Em outras palavras, «o cosmopolita é essencialmente uma figura ‘mega-urbana’: alguém alheio a uma afiliação demasiadamente forte com raízes e, consequentemente, aberto a todas as formas de alteridade» (Hage, 2000: 201 apud Johansen, 2008: 2). O rural é o espaço do obsoleto, do antiquado e do subdesenvolvido - o atrasado ou o deficiente. Já a cidade é vista como vibrante, movimentada, inclusiva e em sintonia com o futuro. O desenvolvimento, portanto, como ideia central da industrialização e da consequente urbanização inaudita de grande parte do planeta, torna-se a força motriz da cidade, onde caberiam virtualmente todas as culturas, todos os povos, todas as diferenças. No campo, está o passado, o que deve ser superado, aperfeiçoado ou, ocasionalmente, aproveitado para o descanso das férias e dos fins de semana ou para o contato com a história ou com ‘o eu interior, natural e inocente’.

Percurso metodológico Os relatos de viagem selecionados inserem-se numa complexa rede de produção de sentido, conhecimento e representações sobre a totalidade do mundo, da qual se destaca a indústria do turismo. Todos os blogues selecionados possuem postagens nas quais dão informações específicas sobre hotéis, passagens e, em alguns casos, informações sobre os documentos de viagem necessários e procedimentos para solicitá-los. Ou seja, os blogues contêm em si mais do que relatos de viagem, apresentam também publicações sobre aspectos logísticos da viagem. O exame dos blogues foi realizado seguindo o modelo de análise temática proposto por Braun e Clarke (2006). Esse modelo analítico permite uma maior flexibilidade para a condução de uma pesquisa qualitativa e, ao mesmo tempo, fornece ferramentas para a condução de uma análise com rigor científico, que, por sua vez, é conseguido a partir de uma detalhada descrição dos procedimentos realizados. Sendo assim, iniciaremos a descrição com a seleção daqueles que comporiam o corpus de análise, realizada após uma exploração aberta

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de blogues de viagem. Para tal, procuraram-se por blogues de viagem que atendessem a dez critérios, a saber: (1) língua portuguesa como idioma principal; (2) organização de um roteiro explícito com os destinos visitados e/ou mencionados; (3) textos sobre viagens e/ou aspectos relativos; (4) fotografias ilustrativas dos destinos; (5) abrangência geográfica de, no mínimo, três dos 6 continentes (África, América, Ásia, Antártida, Europa e Oceania); (6) equilíbrio entre autores portugueses e brasileiros (não foram encontrados blogues de viagem de autores dos outros países lusófonos); (7) equilíbrio de gênero (dois homens, um brasileiro e um português, e duas mulheres, uma brasileira e uma portuguesa); (8) blogue ativo, isto é, com publicações feitas no ano de 2014; (9) no mínimo uma das duas redes sociais consideradas: Facebook e/ou Instagram e (10) não se tratar de um blogue diretamente vinculado a uma agência de turismo. Um dos problemas enfrentados nesta etapa foi o fato de que não foram encontrados blogues de viagem de outros países lusófonos além do Brasil e de Portugal. Supõe-se que, além do fato de os outros países representarem porções menores do uso da internet em língua portuguesa, o principal impedimento aqui tenha sido a própria falta de contato que nós, como pesquisadores, temos com outras culturas lusófonas além das já citadas. Assim, foi importante manter essa limitação em mente durante todo o processo para se evitarem generalizações sobre todos os blogues de viagem que possam existir em língua portuguesa já que o nosso próprio recorte em si já assinala preponderância das experiências em viagens de indivíduos inseridos nos contextos brasileiro e português. A próxima etapa consistiu em usar os roteiros apresentados pelos blogues como base para a compilação de destinos tratados em suas publicações a fim de se estabelecer a distribuição geográfica das viagens e/ou das postagens. Supôs-se que a existência de um roteiro organizado pelos próprios autores contivesse todos os destinos já tratados até o momento. Organizaram-se os dados da seguinte maneira: as publicações eram classificadas em relação ao continente, ao país e à cidade centrais ao texto. Houve casos em que o sítio descrito não se tratava de uma cidade, mas perpassava várias delas ou, então, referia-se a um estado ou a uma província inteiros ou até mesmo ao país como um todo. Nesses casos, não se categorizava a postagem com relação à cidade, mas incluía-se na lista o nome da localidade, como, por exemplo, é o caso do Parque Yosemite, nos Estados Unidos, que atravessa vários municípios, que não são eles mesmos a atração, mas, sim, o parque.

BLOGUE 1

BLOGUE 2

BLOGUE 3

BLOGUE 4

(em %)

ÁFRICA

0

2.6

0

17.9

AMÉRICA

25.9

2.6

81.8

0

ÁSIA

0

2.6

5.5

23.4

EUROPA

74.1

92.2

12.7

58.7

OCEANIA

0

0

0

0

Tabela 1: Proporção de relatos dos blogues por continente habitado. Foi necessária ainda a distinção entre relatos e menções. À medida que os textos eram categorizados, percebeu-se que o fato de uma localidade ser citada pelo blogue não necessariamente implicasse um relato sobre ela. Isto é, poder-se-iam citar sítios por razões logísticas ou para indicar visitas a atrações sem que forçosamente já lá estivessem estado os autores - logo, eram somente menções. Em contrapartida, os relatos são as publicações que tratam de narrativas dos autores sobre viagens que eles tenham feito, ou seja, sobre a sua experiência própria durante a viagem. Essa distinção pareceu-nos mister já que estávamos interessados em saber o que dizem os autores sobre os lugares a que foram - mesmo que nos pareça igualmente interessante analisar o que se escreve justamente sobre aqueles lugares que não foram visitados a fim de se perceber a construção de realidades distantes através de mediações. Verificou-se em todos os blogues um maior número de menções do que relatos, do que se infere que os blogues de viagem já extrapolaram a função de diários, passando a oferecer

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outros tipos de informação sobre viagem aos quais os relatos são somados quase como ilustrações que serviriam para inspirar ou auxiliar o leitor nas suas próprias jornadas. Percebeu-se também através dessa distinção entre relatos e menções que o Blogue 1 na verdade não atende ao critério número (5), pois o autor só esteve de fato em dois continentes, América e Europa.

BLOGUE 1

BLOGUE 2

BLOGUE 3

BLOGUE 4

1:1.14

1:1.06

1:3.62

1:1.44

Tabela 2: Relação entre textos-relato e textos-menção publicados nos blogues. Foram considerados, para a próxima etapa, somente os relatos de viagem. Calculou-se, dessa forma, a distribuição geográfica das viagens dos autores e, consequentemente, a importância dada a cada destino de acordo com o número de publicações sobre cada um. Ficou clara a preponderância de relatos sobre a Europa, que, em média, era tópico de 59.4% dos relatos, com pontuação significativa em todos os blogues, chegando a constituir 92.2% dos relatos do Blogue 2, por exemplo. A ela, seguiram a América, com 27.6% dos relatos; a Ásia com 7.9% e a África com 5.1% dos relatos. Nem a Antártida nem a Oceania pontuaram nesta etapa. No entanto, cabem duas observações: a média de relatos sobre a América se deveu especialmente ao grande volume de relatos publicados no Blogue 3, onde o continente contou por nada menos do que 81.8% dos relatos. Da mesma forma que se conjetura que uma média hipotética geral de relatos sobre a África seja, de fato, menor do que aquela apresentada aqui. Dois dos blogues, por exemplo, não publicaram nenhum relato sobre o continente africano; um deles publicou 2.6% enquanto o Blogue 4, sozinho, publicou 17.9% de seus relatos sobre a região. Isto é, conclui-se que a Europa ainda seja o grande destino de viagem, mesmo em tempos em que os próprios blogues de viagem prezam os desenvolvimentos de tecnologias a expandir as possibilidades de se conhecerem outras partes do mundo. Uma última ressalva metodológica diz respeito à identidade dos autores. Em nenhum momento pretendeu-se tirar conclusões analíticas sobre os indivíduos que escrevem os blogues. Além disso, alguns deles faziam menções explícitas aos direitos reservados do blogue, o que impediria a reprodução de trechos e imagens lá publicados. Portanto, preferiu-se manter a identidade dos autores e o nome dos blogues em anonimato, referindo-se a eles simplesmente pelos códigos Blogue 1, Blogue 2, Blogue 3 e Blogue 4. Por fim, analisaram-se os textos e as imagens publicados nos blogues e as imagens nas redes sociais sobre os destinos a fim de se perceberem elementos em comum no que diz respeito às representações de campo e cidade, de espaços rurais e urbanos, isto é, em relação aos ideais cosmopolitas supracitados. Destacou-se o volume que algumas cidades, ou localidades específicas, tiveram em cada blogue: verificou-se, por razões de concisão, as cinco cidades (ou lugares) sobre as quais havia maior número de relatos e, então, fez-se uma segunda análise a fim de se compreender porque aqueles lugares se destacavam. Através dessa análise foram definidos os três temas principais: desenvolvimento/subdesenvolvimento, belo/feio, Interações e Negociações Culturais. Antes de discorrermos sobre cada um deles, vamos dar a conhecer os blogues analisados. Blogue 1 Trata-se de um blogue escrito por um brasileiro que iniciou os seus relatos em linha quando fez a sua primeira grande viagem internacional em 2012. A maior parte dos seus relatos incide sobre cidades européias, abrangendo 74.1% das postagens totais do blogue. As cidades (e lugares) com maior número postagens são: Londres, Paris, Lisboa, Praga, Roma e Salar de Uyuni (que abrange diversas cidades e outros espaços que não são urbanos). Ao contrário dos outros blogues analisados, não há muitas postagens sobre o seu país de origem. Em termos de relatos de viagem na América do Sul, destacam-se os do Chile e da Bolívia, onde foi fazer ‘turismo de aventura’. Ainda não realizou sua viagem à Ásia, mas possui uma postagem com os planos para conhecer alguns países nesse continente em 2015.

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Em geral, parece fazer grandes viagens concentradas, que rendem bastantes postagens. Dá ênfase às suas experiências e impressões dos lugares visitados, relacionando-as com as coisas que ouviu dizer sobre os lugares em questão. Possui 11523 curtidas no Facebook e 2172 seguidores no Instagram. Não possui imagens no Facebook que atendam aos critérios desta pesquisa, isto é, que sejam ilustrações de destinos. Já no Instagram, foram publicadas 104 fotografias ilustrativas. Blogue 2 É escrito por uma portuguesa que se assume como encantada pelo seu país de origem. Seus relatos de viagens concentram-se maciçamente no continente europeu, com 92.2% dos totais das postagens. Contudo, visitou países nos continentes africano, americano e asiático. Os lugares com maiores números de postagens são espaços urbanos, sendo eles: Lisboa, Edimburgo, Segóvia, Lyon e Penafiel. Portugal é, sem dúvida, o país com maior concentração de postagens. A autora parece aproveitar pequenos passeios para postar relatos sobre aldeias e cidades no seu país de origem. Demonstra apreço por vestígios arqueológicos, museus, monumentos e fatos históricos e, sobretudo, por sítios classificados como ‘patrimônio da humanidade’. Possui muitas postagens de espaços específicos em cidades e arredores como, por exemplo, museus, pastelarias, vinhas etc. Sua narrativa, muitas vezes, esconde a pessoa do discurso, mencionando informações genéricas sobre os locais visitados e atrações a serem apreciadas. Há, contudo, alguns episódios pessoais que narra e muitas fotografias que ilustram os espaços relatados. Possui 773 curtidas no Facebook, sem imagens válidas, e não possui Instagram. Blogue 3 Escrito por uma brasileira, este blogue trata a viagem como um exercício em busca de saciedade para a curiosidade. Uma das maneiras com que a autora descreve seu interesse por viagens é com o verbo ‘surpreender-se’. É mantido desde 2008 e, dentre os blogues aqui analisados, é o que possui a maior diferença entre o número de relatos e menções: para cada relato, isto é, para cada publicação que trata de experiência própria da autora, há 3.62 outras menções, ou seja, publicações que se ocupam de outros aspectos de viagens, como promoções de bilhetes aéreos, dicas sobre vistos e imigração, textos de terceiros etc. Vale destacar que existem ainda, nesse conjunto de textos que não lidam com a experiência direta da autora, muitas publicações sobre atrações ou aspectos de cidades que a autora de fato não visitou, mas que são apresentadas num tom impessoal, que, de pronto, não permite saber se ela lá esteve ou não. Essa distinção só era possível de ser feita, pois a autora credita as imagens usadas, permitindo verificarem-se, assim, quais destinos foram visitados. É possível afirmar que este blogue, apesar de ter sido criado para sustentar o interesse da própria autora, agora funciona como uma espécie de portal de informações e notícias sobre possíveis destinos, intercaladas com relatos de experiências em primeira mão. Há uma forte concentração de relatos na América graças à própria origem da autora e a um grande volume de relatos de viagens nos Estados Unidos. Este continente porta 81.8% dos relatos. Os lugares mais relatados são respectivamente: Nova Iorque, Barcelona, Istambul, São Paulo e Miami. Possui 6012 curtidas no Facebook e 1284 seguidores no Instagram. No Facebook, publicou 110 fotos que atendem aos critérios desta pesquisa e, no Instagram, 257 imagens, sendo que, como é comum a todos os blogues, muitas delas se repetem. Blogue 4 Escrito por um português, quando se trata de apresentar seu trabalho, o autor simplesmente menciona que aquele é um local para partilhar e divulgar viagens feitas por ele. Não há preocupação em explicarem-se as razões da viagem nem as suas consequências. O blogue tem a segunda relação mais alta entre relatos e menções: para cada texto que se refere a uma experiência própria do autor, existe 1.44 menção a outros aspectos de viagem, em especial informações sobre sítios que não puderam ser visitados quando o autor esteve na região. Isso o diferencia do Blogue 3, com a maior desigualdade entre relatos e menções, pois, enquanto lá as menções eram impessoais e, assim, não se poderia dizer se a autora lá estivera ou não, aqui o autor não se preocupa em passar a impressão de ter estado em um lugar onde não esteve. Na verdade, pode-se dizer que seja até mesmo uma indicação concorrente à tentativa de acumular capital cosmopolita do Blogue 3, por exemplo,

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já que a maioria das menções se relacionam justamente a sítios que, de certa forma, o autor deixou de visitar. Há forte preferência de imagens a textos neste blogue, sendo que muitos dos relatos são publicações exclusivamente fotográficas. Outro fato interessante é que, devido a uma viagem em que se transcorreu o continente africano, 17.9% dos relatos são sobre este continente - uma cifra extremamente discrepante dos outros blogues: 0% de relatos sobre a África nos Blogues 1 e 3 e parcos 2.6% no Blogue 2. Ademais, o autor deste blogue parece manter um interesse especial em sítios históricos e arqueológicos, relatos ou menções sobre os quais permeiam basicamente todos os destinos apresentados. Nota-se também que o Blogue 4 parece ser aquele em que há maior equilíbrio na distribuição geográfica dos relatos mesmo que a América, por exemplo, não figure entre os destinos: 23.4% dos relatos são sobre a Ásia e 58.7%, sobre a Europa. As cidades, ou lugares, mais relatadas são respectivamente: Marraquexe, Jerusalém, Guiné-Bissau, Barcelona e Istambul. Houve cá duas particularidades. Em primeiro lugar, a cidade de Jerusalém, mesmo que sob controle de Israel, é uma cidade disputada entre dois Estados (Israel e Palestina); logo, foi classificada sem referência a país, mas somente a continente (Ásia). Em segundo lugar, a maioria dos relatos de viagens feitas em Guiné-Bissau dizem respeito ao país como um todo, sem referências a cidades específicas. Isso se reflete em todos os relatos sobre a África publicados no Blogue 4: mesmo que haja uma forte presença do continente, são os países africanos que são relatados, não as cidades. O Blogue 4 tem 6326 curtidas no Facebook, onde estão publicadas 1450 fotos de viagem. Já o Instagram tem pouca importância, pois tem 101 seguidores e somente 18 fotos de viagem.

‘A cidade ou nada’: eurocentrismo e a apreciação binária de espaços urbanos e rurais Como mencionamos anteriormente, as relações de poder são expressas nos imaginários de espaços rurais e cidades formados a partir de oposições duais, nas quais um pólo dessa equação representa algo positivo - pensado sempre como o ponto normativo - e o outro pólo representa algo negativo - o que foge à norma, não tendo ainda alcançado o ‘nível’ desejado. Nesse sentido, selecionamos três temas que representam a dualidade entre os espaços relatados e o imaginário cosmopolita. Desenvolvido/Subdesenvolvido Um dos mais proeminentes binômios que sustenta a ideia de cosmopolitismo é a oposição desenvolvido/ subdesenvolvido. Neste ponto, os modelos europeus de cidade, tanto o do início da industrialização quanto o atual paradigma ‘sustentável’, surgem como modelo de urbanidade, pertencentes ao pólo positivo do binômio, representando, pois, o nível que as cidades de outras partes do mundo devem aspirar. O Blogue 4, por exemplo, deixa claro que a imagem que se tem da África é de um continente completamente refém de seu eterno estado silvestre. Predominam imagens de animais, de paisagens naturais e de parcas estruturas urbanas. São coisas bastante sutis por vezes, como, por exemplo, ao citar que a precariedade da delegacia de polícia no Zimbabwe, onde a escrivã anotava os relatos à mão sobre uma mesa de plástico. Em outras cidades africanas e asiáticas já mais conhecidas, predominam as representações já existentes. Em Istambul, por exemplo, queda-se a imagem da cidade quasi-europeia, da mistura entre Ocidente e Oriente e do peso da tradições - tudo isso ao mesmo tempo em que a cidade se mostra como um pólo cosmopolita justamente por estar em processo de crescimento aos moldes ditos ocidentais. O blogueiro brasileiro deixa claro esse pensamento quando escreve sobre o metropolitano em Paris, defendendo a sua eficácia em relação a críticas sobre o seu mau cheiro, segurança e plasticidade. Para o autor do Blogue 1, o Brasil nunca atingirá o mesmo nível de desenvolvimento da França (e mais especificamente de Paris). O blogueiro até sugere que a única solução possível poderia ser a total destruição do Brasil e sua reconstrução a partir da estaca zero. Essa é uma afirmação bastante explícita da forma como a ideia de desenvolvimento estrutura a apreciação cosmopolita sobre o espaço urbano. Há, contudo, formas mais sutis de servir-se dessa dualidade para reforçar os imaginários sobre desenvolvimento. A sutileza da preponderância do desenvolvimento no imaginário urbano consiste no fato de considerá-lo como um elemento ‘neutro’, ou seja, a norma, impossibilitando outros imaginários sobre o urbano. Isso não quer dizer que outros imaginários sobre o modo de vida urbano não existam. Eles existem, mas geralmente representam o que se está aquém da norma.

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Sendo assim, observamos como cidades em países ‘periféricos’ do ‘Sul Global’ adquirem uma conotação de atrasadas e subdesenvolvidas, ainda que alimentando uma ideia romântica sobre subdesenvolvimento como, por exemplo, a ideia de poder-se ‘voltar no tempo’. San Pedro de Atacama, no Chile, exemplifica essa visão. A cidade é retratada no Blogue 1 como um lugar exótico, como que ‘parada no tempo’. O blogueiro mostra-se surpreso com a paisagem que encontrou na cidade e a compara a um filme de faroeste antigo e a uma «viagem no tempo». Essa concepção remonta ao entendimento colonialista sobre o ‘Novo Mundo’, onde se poderia apreciar o ‘primitivo’, o mundo na sua forma ‘original’, ao contrário da Europa, berço do desenvolvimento e da ‘civilidade’. De uma forma semelhante, o Blogue 2 deixa evidente as ‘deficiências’ de Havana, em Cuba, em termos de estética (descuido com a aparência dos prédios), dificuldade de relação com as pessoas (baseada sobretudo em interesses econômicos), falta de ‘liberdades individuais’ (como se as injustiças sociais apenas dependessem do sistema político do país). Em relação aos automóveis antigos que circulam pela cidade, a autora escreve que esses refletem o país, um lugar parado no tempo, que necessita de «um empurrão para começar a andar». Um dos aspectos sutis da ideia de desenvolvimento consiste na associação que se faz a esse conceito e ao de ‘cultura’. Nos blogues analisados, a ideia de cultura se manifesta na arquitetura, nos monumentos, nos museus, nas livrarias, na gastronomia. Essas categorias são por excelência atributos europeus e urbanos, uma vez que, mesmo nas cidades do Sul Global, esses atributos são resquícios do processo de colonização - ou concedidos pelos europeus ou fruto do processo de hibridização entre os ‘nativos’ e os europeus. Belo/feio No mesmo sentido, as ideias de belo e feio, pensadas como uma questão de gosto e, portanto, símbolos da individualidade, são na verdade parte de um amplo repertório de imaginários que não escapam às relações de poder. Em relação à arquitetura no Blogue 2, em Lyon, França, a autora considera a Basílica de Notre-Dame de Fourviére um dos espaços religiosos mas bonitos que já viu e a compara à Capela Sistina, no Vaticano, dizendo que sabe que a basílica «não é a Capela Sistina» e, mesmo assim, considera-a um dos espaços religiosos mais bonitos que já visitou. A grandiosidade da arquitetura é, então, ressaltada como elemento de supremacia cultural, uma beleza capaz de encher os olhos. Da mesma forma com que a arquitetura é estimada como elemento de valor cultural adicionado ao espaço urbano, as pessoas que habitam a cidade também são avaliadas em termos estéticos. Para o autor do Blogue 1, Paris representa o apanágio de beleza. Esse autor escreve que, para além da beleza da cidade, ficou encantado com os habitantes de Paris, que na sua opinião são «pessoas lindas». As pessoas que não atingem as suas expectativas de beleza são «geralmente imigrantes e alguns turistas». Evidentemente essa ideia de beleza enfatiza a essencialização racial, que o próprio autor reforça, na mesma postagem, ao dizer que: (i) os homens parisienses possuem geralmente cabelos escuros e olhos azuis e (ii) que os negros em Paris têm mais estilo do que os negros de que tem como referência, ou seja, possivelmente os negros brasileiros. Ainda que exista a preponderância de um ideal estético voltado para a arquitetura, arte, moda e pessoas europeias, as fotografias que compõem o quadro de representações visuais dos blogues esmeram-se para alcançar o belo (mesmo que seja o ‘belo do feio’). A fotografia parece ser um meio de distinção dos blogueiros, com o qual adquirem o reconhecimento pelo ‘capital cultural’ adquirido com as viagens. Interações e negociações culturais ‘Saber estar’ é dos pontos que destacamos anteriormente no que toca a ideia de cosmopolitismo. Consiste na percepção de ser-se adaptável e competente na negociação das diferenças culturais. Contudo, essa visão de si mesmo falha em observar que as concepções individuais de mundo são também formadas socialmente. Ademais, a própria noção de que existem pessoas mais capazes de negociar as diferenças do que outras é fruto de um imaginário eurocêntrico sobre o mundo, herdeiro da compreensão Iluminista de ‘civilidade’. O Blogue 2 fornece um exemplo sutil desta capacidade, no relato de uma dificuldade encontrada na viagem a Lyon, quando o mau funcionamento do comboio (trem) resultou na necessidade de apanhar um táxi. A autora relata que foi auxiliada por uma portuguesa, residente na cidade, que traduziu a informação do não-funciona-

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mento do trem e sugeriu a solução: ir de táxi até a próxima estação. A autora conta que seguiu as indicações da outra portuguesa e que dividiu o táxi com dois guineenses que já moravam em Lyon há algum tempo, mas não falavam francês. Quando observamos nessa postagem os atores ativos no relato, notamos que foram as portuguesas as que conseguiram desvencilhar-se do problema (a portuguesa que forneceu a informação e a autora do blogue), enquanto os guineenses fizeram um «ruído de fundo», apenas conversando entre si em crioulo. Os problemas da interação entre viajantes e ‘locais’ não resulta apenas de dificuldades linguísticas. Há também a questão dos ‘perigos’ em ser-se originário de uma terra estrangeira, sobretudo quando essa é considerada mais desenvolvida do que o local visitado. Nos relatos do Blogue 2, esses ‘perigos’ são a importunação dos ‘locais’ que pretendem tirar vantagens dos turistas, não aceitando o «não como resposta». Outro exemplo disso é a constante publicação de textos, no Blogue 4, sobre suas experiências com a polícia nos países africanos. Em comparação, não existem, neste blogue, menções a experiências com a polícia em países europeus, por exemplo. Cabe aos países africanos carregar o estereótipo da polícia corrupta e ineficaz. No entanto, isso não significa que o discurso seja de todo inconsciente: o autor do Blogue 4 relata como a polícia do Zimbabwe de fato resolve seu problema quando ele pensava que já não havia nada mais a ser feito. É interessante a comparação que ele faz, ao final do texto, com seu país de origem, Portugal, ao indagar-se retoricamente se lá haveriam resolvido seu problema, dando a entender que não o teriam feito. Ou seja, poderíamos supor que haja tantos assaltos em uma grande capital europeia quanto em uma grande capital africana; não se pode sabê-lo estatiscamente somente através dos relatos de viagem, mas o que predomina são justamente os relatos da violência, da insegurança e da pobreza na África e não na Europa. Da mesma forma que a África nunca é exemplo de urbanização ou de socialização. A Europa exporta os avanços urbanísticos e sociais; é lá que se desenvolvem as soluções criativas para os problemas que, em grande parte, resultaram de processos iniciados também pela/na Europa e amplamente impostos sobre o resto do mundo. As interações relatadas pelo Blogue 1 são geralmente com outros turistas ou viajantes brasileiros. Nalgumas das postagens, essas interações produzem comparações entre o Brasil e alguns países europeus. O resultado da comparação é sempre desfavorável para o Brasil, considerado incipiente e sem perspectivas de futuro, ressaltando a ideia de desenvolvimento que já discutimos.

Considerações Finais O presente artigo pretendeu fornecer uma análise exploratória da forma como os relatos de viagem do século XXI consolidam imaginários eurocêntricos e dicotômicos sobre o mundo. Para tal, realizamos uma releitura da literatura sobre relatos de viagem e do conceito de cosmopolitismo. A nossa releitura baseou-se na premissa de que a forma como entendemos e experienciamos os espaços urbanos e rurais são determinadas por uma série de discursos (textuais e visuais) que formam o nosso imaginário. Evidentemente que esses imaginários não são fixos, são antes ‘mapas culturais’ que se articulam de forma complexa. Contudo, os discursos predominantes sobre as cidades evidenciam as relações de poder entre ‘centro’ e ‘periferia’, ressaltando uma lógica ainda colonial sobre o mundo. Quando dizemos que as concepções hegemônicas sobre o mundo reforçam uma lógica colonial, referimo-nos a reprodução de ideias de desenvolvimento, cultura, belo, ‘saber estar’. Todas essas características são valorizadas e entendidas ora como positivas, ora como neutras, ou seja, sendo o ideal a se aspirar ou simplesmente ‘a norma’. Como se trata de um binômio, essas características são geralmente contrastadas como o que ficou aquém da ‘norma’: o subdesenvolvido, o sem cultura, o feio, o que não consegue negociar as diferenças ou não sabe se adaptar. Além da discussão teórica, procuramos uma abordagem metodológica que permitisse a análise qualitativa de relatos de viagem publicados em blogues selecionadas. Optamos então por um modelo analítico flexível, que permitisse simultaneamente uma compreensão holística dos blogues e o aprofundamento nos temas definidos como principais. Sendo assim, a nossa análise pretendeu, primeiramente, reconhecer os discursos que circulam sobre as cidades, relacioná-los com o exercício de aquisição de ‘capital cultural’ e de reforço a ideias hegemônicas sobre o mundo. Sendo assim, definimos três temas principais para a discussão: dois deles centrados

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nos binômios positivo/negativo - ‘desenvolvimento/subdesenvolvimento’, e ‘belo/feio’ - e outro centrado na auto-percepção dos blogueiros e dos seus respectivos ‘universos cosmopolita’. A importância dessas ideias na forma como ‘lemos’ e vivenciamos as cidades reside no fato de que elas conduzem o nosso olhar, levam-nos a ver e procurar aquilo que já conhecemos; o que não significa que a nossa visão e forma de interação com a cidade sejam estáticas. Pelo contrário, achamos que o modo como ‘ocupamos’ os espaços e reinventamos a cidade, seja a partir de discursos, seja a partir de uma experiência ‘em primeira mão’, é bastante dinâmico. Não obstante, embora haja lugar para ambiguidades e contra-discursos, há uma maior força das ideias consolidadas sobre o que deve ser um espaços urbano e rural, o que são lugares exóticos e seus opostos, os lugares desenvolvidos. Por essa razão, faz-se necessário questionar as relações duais que se apresentam como ‘naturais’ e ponderar sobre a forma como a apreciação pelo estilo de vida cosmopolita resulta na consolidação desses binômios.

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