Costa Pinheiro. 2008a. Traduzindo Mundos, Inventando um Império: Experiências coloniais Européias e a conquista de um espaço epistemológico na Índia. In: Macagno, Lorenzo et allii (Org.). Histórias Conectadas: África, Ásia e Caribe séculos XIX e XX. Curitiba: Fundação Araucária, pp. 51-73
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Histórias conectadas e dinâmicas pós‐coloniais Lorenzo Macagno Fernando Rosa Ribeiro Patrícia Santos Schermann (orgs.) Universidade Federal do Paraná Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes Departamento de Antropologia e Programa de Pós‐Graduação em Antropologia Social Apoio: Fundação Araucária Curitiba, 2008
Catalogação na publicação Sirlei R.Gdulla – CRB 9ª/985 Biblioteca de Ciências Humanas e Educação ‐ UFPR Histórias conectadas e dinâmicas pós‐coloniais / H673 Lorenzo Macagno; Fernando Rosa Ribeiro; Patrícia Santos Schermann. – Curitiba: Fundação Araucária, 2007. 306 p. ISBN: 978‐85‐99229‐05‐7 1. Colonialismo. 2. Ásia. 3. África. 4. Caribe. 5. Estado nacional. 6. Pós‐colonialismo. I.Macagno, L. II. Ribeiro, F.R. III. Schermann, Patrícia S. I. Título. CDD 321.05 CDU 321.013 Projeto gráfico: Fernando Alves da Silva Desenho da capa: Bruna Garmatter Foto da capa: Lorenzo Macagno, minarete (Qutb Minbar) da Mesquita Central da Ilha de Moçambique, outubro de 2000. Revisão: Angela Lazagna Impressão e acabamento: Artes gráficas Renascer Ltda.
INDICE APRESENTAÇÃO 7 PARTE I: (DES) CONEXÕES 15 Capítulo 1 Histórias conectadas: uma proposta teórica e metodológica a partir da Índia Fernando Rosa Ribeiro 51 Capitulo 2 Traduzindo mundos, inventando impérios: Experiências coloniais Européias e a conquista de espaços epistemológicos na Índia Cláudio Costa Pinheiro Capítulo 3 75 As conexões entre o Império do Brasil e o Império Otomano no século XIX e a utilização de fontes para além do espaço da eurofonia Paulo Daniel Elias Farah Capítulo 4 95 Destino: Brasil. Os goeses de São Paulo, 1961‐2005 Luísa Pinto Teixeira PARTE II: OUTROS ORIENTALISMOS Capítulo 5 125 O “neo‐hinduísmo” de Calcutá e a orientalização do Ocidente: notas a respeito da dinâmica histórica de trânsitos religiosos contemporâneos. Marcos Silva da Silveira Capitulo 6 163 O Orientalismo e o Japão Elisa Massae Sasaki
PARTE III: (PÓS) COLONIALISMO E PODER Capítulo 7 As práticas anti‐escravistas no contexto da expansão colonial ‐ o caso das colônias anti‐escravistas cristãs em Gezira (1885‐1900) Patricia Santos Schermann Capítulo 8 Moçambique entre Ásia e África : dinâmicas etno‐religiosas e identidades muçulmanas Lorenzo Macagno Capítulo 9 O Islã e os Poderes Políticos: Das Administrações Francesa ao Senegal Pós‐Colonial Alain Pascal Kaly
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Capítulo 2 Traduzindo mundos, inventando impérios Experiências coloniais Européias e a conquista de espaços epistemológicos na Índia Cláudio Costa Pinheiro Universidade Estadual de Campinas Cuando bien comigo pienso mui esclarecida Reina: i pongo delante los ojos el antigüedad de todas las cosas: que para nuestra recordación e memoria quedaron escriptas: una cosa hallo e saco por conclusión mui cierta: que siempre la lengua fue compañera del imperio: e de tal manera lo siguió: que junta mente començaron. crecieron. e florecieron. Antonio Nebrija (1513 [1492]). Dedicatória a Rainha Isabel de Castilla (grifo meu).
Em 1498, a expedição de Vasco da Gama desembarcou em Calicut, finalizando uma viagem de 11 meses e concretizando investi‐ mentos do Estado Português na empresa de descobrir rotas marítimas para as “Índias” – obsessão que durou, praticamente, todo o século XV. Entre os tripulantes destas embarcações modernas, estavam profissio‐ nais extremamente capacitados: cartógrafos, navegadores, pilotos, além de dezessete especialistas em línguas – quatro africanos peritos em línguas da costa ocidental africana, três portugueses falantes de Banto e Árabe, e outros dez “degredados” (convicts), usados como intérpretes1. A viagem de Da Gama pressupunha um projeto de longo termo do
Correntemente usados pelo Estado Português para o aprendizado de línguas contatadas, tanto na rota para o “Oriente”, como na América do Sul (Hein, 1993:41).
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Estado português em técnicas e instrumentos de navegação, constru‐ ção de navios, profissionais da marinharia e ações de uma empresa colonial que começava a se conformar durante o século XV, a partir da invasão e conquista de Ceuta (1415), no norte africano. Além destes aspectos, havia ainda o investimento pesado que se fez em técnicas de comunicação, sem as quais toda a ação expansionista e colonial não seria possível. Como remarca Bernard Cohn (1996:4) ao tratar do caso do colonialismo britânico na Índia, o aprendizado das línguas locais é condição fundamental para a viabilidade da empresa colonial (os contatos e a administração). A conquista do périplo africano pressupôs o domínio de uma territorialidade, o conhecimento de populações costeiras e suas línguas. No fim do século XV, os portugueses já haviam desenvolvido um estreito programa para o enfrentamento e tratamento sistemático das línguas que iam sendo contatadas. Muitas das viagens à África não tinham como objetivo (específico ou único) o estabelecimento de relações comerciais ou a obtenção de escravos como força de trabalho, mas de intérpretes que viabilizassem, em um segundo momento, a continuidade do empreendimento expansionista‐colonial. Em sua terceira viagem ao Cabo Bojador, em 1436, Gil Eanes Zurara recebia exatamente esta instrução do Rei de Portugal (Infante D. Henrique): (...) é minha tenção de vos enviar lá outra vez em aquele mesmo barinel [embarcação], e assim, por me fazerdes serviço como por acrescentamento de vossa honra, vos encomendo que vades o mais avante que poderdes e que vos trabalheis de haver língua [nesse caso um intérprete] dessa gente, filhando algum, por que o certamente possaes saber; (...) (Zurara: 1994 [1452‐53]:57).
A política expansionista portuguesa na África seguiu um modus operandi bastante definido durante o século XV: trazer nativos do ponto mais extremo alcançado, levar a Portugal, batizá‐los, ensiná‐
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los a língua portuguesa2 – na verdade um pidgin3, ou português simplificado – para, depois, retornar a sua terra natal, onde serviriam de intérpretes. Tanto nativos africanos, quanto os “degredados” portugueses que eram deixados em pontos da costa africana, experi‐ mentavam esse método de imersão na língua do “outro”. Estas circuns‐ tâncias contribuíram para a consolidação do português (“pidginizado”) como língua franca de boa parte da costa africana e, mais especial‐ mente, em um vasto território do Índico (africano e asiático) e sudeste asiático4. A questão da comunicação com os grupos populacionais contatados é fundamental para a exploração, o comércio e as atividades de missionação que acompanharam o processo de expansão imperial dos Estados modernos europeus. Segundo Jeanne Hein (1993:42‐50), toda a política expansionista do Rei D. Henrique (1394‐1460), que enfatizava a prioridade de obtenção de africanos que servissem de intérpretes, construiu um método (e um projeto) de ação colonial que fez com que os portugueses fossem compreendidos em toda a costa africana. Neste quadro, os línguas (intérpretes) eram valorizadíssimos no estabelecimento de relações comerciais e na compreensão dos costumes
Em Portugal, um dos destinos destes nativos africanos eram escolas dedicadas ao ensino do português, ou o colégio da congregação de Santo Elói, como aponta o gramático João de Barros em 1539‐40. 3 Apenas em linhas muito gerais, e sem descer às tecnicalidades lingüísticas, um pidgin “é uma língua auxiliar que surge quando falantes de diversas línguas mutuamente ininteligíveis entram em contato estreito” (Bickerton, 1984:173), já um crioulo (uma língua crioula) surge quando crianças adquirem um pidgin como sua língua nativa, tendo‐o enquanto base lexical (Couto, 1996:15). É de se ressaltar ainda que alguns lingüistas compreendem que a construção/surgimento de um pidgin pressuponha ainda que sua estrutura gramatical e seu vocabulário sejam “drasticamente reduzidos” (Hall, 1966:xii). 4 David Lopes (1936), mostra como o português foi usado, até o século XX, como língua franca de contato, comunicação e, em alguns casos, administração colonial pelos Impérios coloniais europeus em Ásia. Menciona uma longa lista de livros de catequese e bíblias Inglesas, Dinamarquesas e Holandesas, empregadas em vários pontos do oriente, publicadas em português. Johannes Fabian (1987:7) também men‐ ciona a dependência de missionários britânicos de tradutores de Umbundo e Portu‐ guês nas atividades catequéticas no oeste africano da última década do século XIX. 2
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de povos com quem os portugueses estabeleciam relações. Hein (1993:50) chega a afirmar que eles foram mais importantes do que os canhões na costa africana e, de resto, em toda a empresa expansionista portuguesa. Quinze anos antes da chegada de Da Gama a Calicut, os portugueses já tinham um domínio considerável das rotas marítimas e do universo lingüístico do Índico, especialmente a partir das rotas e da língua árabe. O enfrentamento sistemático (e sistematizado) do proble‐ ma da comunicação e traduções e o desenvolvimento de uma “política efetiva” de tradutibilidade foram usados por três gerações no projeto expansionista português rumo à Índia. Tais conhecimentos e o modus operandi que os caracterizavam também foram recursos de outros Estados europeus modernos, durante a conquista e povoamento de diversas regiões no Globo e viriam a ser usados e aprofundados pela Igreja católica na atividade catequética5. POVOS E LÍNGUAS: DOMINAÇÃO, CIVILIZAÇÃO E DOMESTICAÇÃO Os séculos seguintes ao XV assistem a consolidação do processo de expansão imperialista dos Estados europeus pelas demais partes do Globo. Os portugueses, por sua vez, estabelecem colônias, fortificações, entrepostos comerciais e religiosos em quase todos os continentes. Neste quadro, projetos políticos de Estado sobre a comunicação com as populações contatadas e o aprendizado de suas línguas ganham dimensões globais. Num sentido, a utilização de nativos e degredados como intérpretes continua a ser uma prática usual dos Estados colonialistas europeus, mas de outro, as técnicas coloniais de comunicação se modificam nos séculos XV e XVI, acompanhando um fenômeno que Silvian Auroux (1992) chamou de “revolução da gramatização”.
Para o processo semelhante ocorrido nas colônias francesas do atual Canadá e América do Sul e espanholas nas Américas, ver Daher (2003).
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A partir do Renascimento europeu, acontecem transformações em larga escala destas técnicas de comunicação. Esse é um período em que várias línguas européias (a quase totalidade delas) passam por um mesmo processo de normatização e redução a regras e padrões gramaticais “universais” – já que todas, indistintamente, baseadas no latim6. A intensificação da produção de gramáticas e dicionários (a partir de uma base greco‐latina) inicia‐se pelos vernáculos (línguas) euro‐peus, mas não se restringe a estes. Num curto período expande‐se a quase todas as línguas conhecidas e contatadas do mundo. Como afirma Auroux (1992:8), esse processo transforma profunda e definitiva‐ mente a “ecologia da comunicação humana”, dando ao ocidente meios “de conhecimento/dominação” sobre outras culturas do planeta7. O problema da comunicação com os nativos/colonizados se redefine nas mesmas bases, ou seja, não era mais possível depender exclusivamente de intermediadores, intérpretes e parcas listas de palavras. Afinal, não se tratava apenas de compreender e ser compreendido, mas de criar aparatos (institucionais, mas também lingüísticos) de administração colonial (laica e religiosa) e gestão da diversidade (de territórios e populações). Era necessária uma compre‐ ensão mais apurada das línguas e das formas de comunicação. A isso se associa o espírito moderno profundamente empenhado em um ideal de normatização (Buescu, 1992:30) e, a partir do século XVI, verifica‐se a materialização de uma extensa gama de publicações, dando conta desta necessidade de classificar e “civilizar” a língua do “outro”.
Apenas para mencionar algumas, temos a Ein Teustche Grammatica, de V. Ickelsamer (1534), do alemão; do inglês Pamphlet for Grammar, de W. Bullokar (1586); do dinamarquês a Grammatica Danica, de E. Pontoppidan (1668); do francês Donait François, de J. Barton (1409), do espanhol a Grammatica de la lengua castellana, Antonio Nebrija (1492); do italiano, a Regole della língua fiorentina, de L.B.Alberti (c.1437). As exceções são para o islandês, o irlandês e o provençal, que tiveram processos de gramatização bem anteriores e não baseados no latim (Auroux, 1992). 7 “Trata‐se propriamente de uma revolução tecnológica que não exito em considerar tão importante para a história da humanidade quanto a revolução agrária do Neolítico ou a Revolução Industrial do século XIX” (Aroux, 1992:8). 6
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Este universo de publicações – as chamadas artes da língua, gramáticas, ortografias, cartilhas, sermões, listas de palavras, elucidários, voca‐ bulários, bestiários, dicionários e, posteriormente, as enciclopédias – consa‐ gra‐se no período, também seguindo a lógica de partir dos vernáculos europeus, para as línguas/culturas contatadas no processo de expansão colonial, num movimento extremamente dinâmico. Se considerarmos, por exemplo, que a primeira gramática da língua portuguesa é editada em 1536 – “Grammatica da lingoagem portuguesa” de Fernão de Oliveira, seguida da famosa “Grammatica da língua portuguesa, Cartinha, Grammática e Diálogo em louvor da nossa linguagem e Diálogo da viciosa vergonha” de João de Barros, editada em 1539‐40 – vemos que o intervalo para o desenvolvimento de gramáticas das “línguas exóticas” é de pouco mais de dez anos. Em 1548, é escrita a primeira “Grammatica” da língua malabar, pelo Frei Henrique Henriques; em 1554, a “Cartilha Tamul impressa em português” (Tamul); em 1556, a “Grammatica hebrea” (Hebraico) de Francisco Távora; em 1595, a “Arte da língua mais usada na costa do Brasil”, de José de Anchieta e, em 1620, a “Arte da lingoa Japoa...”, de João Rodrigues (Japonês) etc, apenas para mencionar alguns exemplos8. Como diziam o próprio João de Barros (1539‐40) e Fernão de Oliveira (1536), respectivamente: Certo é que não há glória que se possa comparar a quando meninos etíopes, persas, hindus d’aquem e d’alem Ganges, em suas próprias terras, na força de seus templos e pagodes onde nunca se ouviu o nome romano: por esta nossa arte apreenderam a nossa linguagem, com que possam ser doutrinados em os preceitos da nossa fé, que nela são escritos (Barros, [1539‐40] 1971:171) (...)tornaremos sobre nós agora que é tempo e que somos senhores, porque melhor é que ensinemos a Guiné que sejamos ensinados por Roma, ainda que ela agora tivera toda sua valia e preço (Oliveira, [1536] 1975:42).
8 Curiosamente, segundo Carvalhão Buescu (1992: 13), a África é o primeiro conti‐ nente a ser abordado pelos portugueses e o último sobre o qual uma aprendizagem e sistematização da língua ocorreram.
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A expansão e colonização realizadas pelos modernos Estados imperialistas europeus não resultou apenas um processo de domínio e civilização dos grupos sociais contatados, mas também o domínio e civilização – domesticação, talvez seja o termo mais apropriado – das línguas destes. Na verdade, devem ser vistas como démarches indis‐ sociáveis, lembrando a sentença do gramático espanhol Antonio Nebrija que abre este artigo: “A língua é companheira do Império”. Assim, não apenas os portugueses, mas os espanhóis e holandeses, num primeiro momento e franceses, ingleses, dinamarqueses, russos, etc, a seguir, mapearam, romanizaram (recodificaram a representação gráfica dessas línguas em caracteres romanos), gramaticalizaram, dicionarizaram e traduziram uma vastidão de línguas9. Não à toa, surge de maneira contundente aquilo que resolvi denominar provisoriamente de livros de tradução, como um gênero marcadamente Moderno10. Dadas a natureza, características e idiossincrasias de estilo, publicações podem ser compreendidas enquanto um gênero literário. Num sentido, tanto os textos lexicográficos (dicionários, enciclopédias, vocabulários e afins), quanto para‐lexicográficos (gramáticas, ortogra‐ fias, cartilhas, artes etc) tinham a pretensão de servirem de referências para a língua. Por outro lado, destinam‐se a construir e sedimentar sentidos e leituras do mundo conhecido e daquele que estava em processo de conhecimento. Tomar estes livros em conjunto e na longue durée, ajuda a compreendê‐los a enquanto um gênero que se consagra nesta empreitada – também à medida que consagra esta própria empreitada – e neste período – também à medida que consagra este
Apenas para mencionar o caso da América hispânica, até o fim do século XVI haviam 33 línguas conhecidas, até o fim do século XVII, 96 e ao fim do XVIII, já eram 158 as línguas conhecidas (Auroux, 1992:37). 10 Assim, uma das grandes obras do período moderno foram os dicionários multi‐ lingües, que chegaram a ter entre oito e doze línguas, como o de Ambrosio Callepino (1502). Este dicionário em particular sofre dezenas de reedições ao longo do século XVI, contando com dezoito entre 1542 e 1592. A cada nova edição, foram sendo adi‐ cionadas línguas à edição original em Latim. Na edição de 1590 já eram onze línguas. 9
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próprio período11. Como um gênero, pode ser compreendido a partir de uma combinação de vários motivadores e necessidades: a) de catego‐ rizar as experiências; b) de criar traduções (tradutibilidade) de sentidos; c) de registrar as conquistas do ultramar, do exótico, da diversidade: humana, natural (fauna‐flora), de experiências, de relações sociais, etc; d) de transmissão (ensino‐aprendizagem) – e, em grande medida, do esforço catequético da Igreja; e de e) imposição de sentidos nos quadros de um império com uma política centralizadora de administração. É importante ter clareza sobre o processo de confecção dos livros de tradução, dentro dos quadros da expansão imperialista colonial européia. Quando começaram a ser compostos nos séculos XV e XVI, os dicionários portugueses empregavam coleções de léxicos tiradas de modelos latinos (de coleções vocabulares, de referenciais sociolinguís‐ ticos e de instituições). Desta forma, partindo do latim, foram impostas regras de gramática e formas de ordenação de léxicos que depois iriam fundamentar as coleções de palavras dos dicionários e, em última instância, servir de referenciais para além desses livros de tradução, sendo também associados à produção de discursos e práticas coloniais. Por um lado, é possível imaginarmos todo um pesado processo de imposição de regras lingüísticas que se faz aos dicionários portugueses, traduzindo coleções de palavras latinas que, em grande medida, não eram equivalentes aos léxicos (categorias e palavras) lusófonos, mas foram “tornadas” equivalentes no processo de tradução. Deste modo, o fato de as listas e coleções de vocábulos que compõe os dicionários portugueses (o que é extensível à maioria das línguas européias) provirem do Latim Romano implica em que categorias ligadas ao universo do exercício do poder, por exemplo, sejam profundamente devedoras de tradições, reflexões e acúmulos da antiguidade clássica.
As experiências antigas e medievais (européias) e mesmo a expansão islâmica não tiveram a mesma dimensão e impacto a nível global. No caso do islã, chama a atenção Auroux (1992:37), houve um interesse menor pela descrição de outras línguas e culturas contatadas, o que acabou por não constituir um “fenômeno técnico‐linguístico” semelhante ao que fez brotar o renascimento ocidental. 11
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Tomando o conceito de escravo, vemos que a raiz etimológica selecionada como gênesis à categoria, bem como a bibliografia usada para abonar (ilustrar e justificar) e exemplificá‐la (tiradas de Cícero, Plauto, Plínio, Horácio, Ulpiano, etc) são romanas. Muitas categorias latinas ligadas ao exercício do poder na antiguidade – captivus, famulus, mancipium, servum, servitium, etc – acabaram sendo genérica, neste sentido, e vulgarmente traduzidas por escravo em português. Em grande medida, os Impérios colonialistas europeus do período moderno constróem a própria idéia de Império a partir dos Impérios clássicos, especialmente o Romano12. Anthony Pagden (1987; 1995) ressalta o quanto essa característica não é apenas um mero detalhe, mas um ponto fundamental quando se está pensando nas formas burocrá‐ ticas de administração destes Impérios coloniais da era moderna. A natureza destes livros não era apenas a de criar tradutibili‐ dades e aproximações (lingüísticas e culturais), mas também, através disso, cristalizar noções e dar a elas a marca do universal e do atemporal. Os dicionários devem ser compreendidos, desta forma, como meios de subsunção de diversidades locais em função de categorias etnocêntricas de compreensão do mundo. Se o movimento de civilização das línguas, de seus léxicos e com isso, da redução de categorias culturais iniciou‐se dentro da própria Europa, foi quase concomitantemente estendido as colônias. O fluxo, a dinâmica e a extensão deste processo marcaram os da Idade Moderna. Nesta démarche, os dicionários de tradução13, caracterizam‐se como um dos maiores (e mais eficientes) meios de imposição de significados em escala global para grupos e tradições culturais/lingüísticas distintas. Havia mesmo uma leitura intensa de clássicos greco‐romanos sobre processos de civilização ligados a discussão de agronomia, por exemplo. A própria idéia de império, aliás, estava também presente em várias sociedades fora do mundo europeu moderno, como ressalta Subrahmaniam (1997) em Impérios do sudeste asiático, África e alguns pontos da Américas. 13 É interessante registrar que os dicionários bilíngües antecedem aos monolíngües na Era moderna. Ou seja, terá sido imprescindível compreender e investir no contato com o “outro” do que dar forma a coleções vocabulares da própria língua. Ao fim e ao cabo, os dois movimentos são, em larga medida, praticamente concomitantes. 12
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O historiador Sanjay Subrahmaniam (1997) chama a atenção para o fato de que a era Moderna – mais especificamente aquilo que ele nomeia de early modernity, que iria de meados do século XIV a meados do XVIII – é bastante marcada pelo aparecimento de conceitos universais e universalistas. Conceitos cunhados com o tom etnocêntrico europeu moderno e que, além de esmagar as diversidades locais e regionais (de crenças, conceitos e mesmo dos significados contextuais de categorias), acabam servindo ao expediente do controle e gestão de populações. IMPÉRIOS: COLONIALISMO E ADMINISTRAÇÃO DE DIVERSIDADES Um dos dilemas cruciais colocados aos impérios coloniais (antigos, modernos ou contemporâneos) é exatamente este de adminis‐ trar diversidades locais. Como frisou Verena Stolke (2001:2) a colonização da Iberoamerica (o que pode ser considerado para outras situações coloniais) esteve diante da imensa tarefa de administração de “diversida‐ des” (sociais, políticas e culturais). Na mesma démarche, Souza Lima (2002:155) – estando especialmente atento ao governo de povos indíge‐ nas – ressalta o fato de que é necessário observar‐se como foram pensa‐ das as “tradições de conhecimento para a gestão da desigualdade”, em larga medida, desenvolvidas por este aparelho administrativo do Ultramar português diante destas variadas experiências de colonização. Diversidade e desigualdade devem ser, neste quadro, tomadas numa perspectiva ampla. Talvez sejam imagens mais visíveis desde o ponto de vista das “culturas”, regiões, etnicidade, ou populações; mas é igualmente importante considerarmos o cruzamento destes fatores a partir da língua (de colonizador e colonizado). Ou seja, como considerar diversidades populacionais desconhecidas a partir das categorias lingüísticas conhecidas? Como traduzir estas “diversidades” em léxicos (e categorias de pensamento) ocidentais, que são, ulteriormente, catego‐ rias latinas do mundo antigo? É exatamente diante de um dilema destes que se coloca Raphael Bluteau, que publica um dos dicionários de maior referência
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na língua portuguesa, em princípios do século XVIII – o Vocabulário Português e Latino, 1712‐21. Entre as muitas categorias advindas das colônias que ele dicionariza estão as espécies naturais: JACA. Jáca. Árvore grande, que se cria no Malabar e algumas ilhas da Índia e nas margens dos rios. Dá um fruto comprido, maior que a Abóbara, coberto de uma casca verde escura toda cercada de bicos, a modo de pontas de diamante, rematadas com uns espinhos verdes, cuja ponta é negra. Sai este fruto imediatamente do tronco, ou dos ramos mais grossos; é branco por dentro e sua carne divide‐se em casinhas cheias de uma espécie de castanhas alguma coisa maiores e mais compridas que tâmaras, e todas cercadas de uma carne amarela e viscosa que se parece com a do Durião, e quando madura é mui gostosa principalmente a do Jâca, a que chamam Barca; porque o Jaca chamado Papa ou Girasal, tem a carne mais mole e menos gostosa; Jaca ou Jaqua, ae. Fem. Linscoth. Ludovico Roman lhe chama Jaceros in Calecut. Durioens e Jacas, vianda assas golosa a quem começa de a gostar. Barros, 3. Década. Fol. 135, col. 4.
A tradução, lembra Cohn (1996:4), é o caminho de conversão de mundos desconhecidos e estranhos em conhecidos. Daí toda a sorte de aproximações e analogias a que é obrigado a recorrer no sentido de conferir sentido aquilo que é virtualmente desconhecido e inimagina‐ do até o momento. A leitura da “realidade” colonial visível se faz a partir de um gradiente limitado de categorias sóciolinguísticas etnocêntricas (européias, mas de origem latina e indo‐européias) de compreensão. Isto está relacionado ao movimento de criar inteligibili‐ dades sobre o “outro” a partir de analogias, movimento tão distintivo da modernidade, como ressalta Buescu (1991; 1992). O recurso à analogia permite assim reduzir “variações assimétricas incômodas”, eliminar “anomalias”, possibilitando estabelecer “similitudes” entre fatos, situa‐ ções ou fenômenos conhecidos e outros desconhecidos, refletindo uma “abertura em direção a um conceito novo, o conceito de modelo
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universal”14. As analogias se estruturam em diversos campos das relações hierárquicas e de situações sociais ou no campo lingüístico, por exemplo – aonde se originam as locuções comuns entre os autores da época: “que quer dizer”, “que em nossa língua quer dizer” (Buescu, 1991:18). De fato, estes livros ligados à tarefa da tradução relacionam‐se com dilemas cruciais do contato, inerentes ao processo de expansão colonial e da fé. Neste sentido, é importante lembrar o quanto as categorias lidam com as subjetividades do mundo, ou por outra, com a tentativa de encarcerar e domesticar a subjetividade das experiências do mundo. Não apenas os dicionários devem ser vistos como mecanis‐ mos de subordinação de diversidades, mas o próprio processo de subsumir diversidades é visível a partir da dicionarização das línguas. Neste jogo de adaptações de idéias, os léxicos reduzem a amplitude dos sentidos. A tradução não lida apenas de uma questão lingüística, acima ressaltava Buescu, mas cultural; da adaptação de conceitos abstratos (categorias) a representações simbólicas (palavras). Trata também da criação ou resignificação de palavras que vão sendo gradativa e indissociavelmente agregadas a categorias (sociais, culturais, de instituições, etc)15. Traduzir é, neste contexto, transformar “conquistas” (territó‐ rios) em “colônias”. A tradução está intrinsecamente ligada à tarefa de construir impérios – estes entendidos como contextos que associavam metrópoles e colônias em totalidades indivisíveis, como salientam
14A analogia inventa um modelo de coerências e solidariedades intralingüísticas. Corresponde a tecnologização do discurso teórico, um passo para a “formação de uma ars (arte), com tudo o que esse conceito implica, de doutrinação, reflexão e também de aplicabilidade, potenciando a forma metalingüística do discurso” (Buescu, 1992:15). 15 Importante sinalizar que as palavras (ou a linguagem) não são as categorias em si, mas representam apenas uma parte da subjetividade a que esta se remete (Goodenough, 2001). Há outras formas de representação simbólica desta subjetividade (iconográfica, por exemplo). A associação entre palavra e categoria fica, certamente, mais marcada dado que muito do processo cognitivo envolve diretamente a linguagem como um meio essencial.
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John Elliott (1989:4) e Anthony Pagden (1989). A expansão colonial confronta territórios e culturas, redimensionando a constituição de alteridades. Este é um processo que fica visivelmente gravado na língua e, de maneira especial, nos léxicos que passam a constituir os vocabulários lingüísticos de colonizadores e colonizados, impressos nos dicionários. ESCRAVOS: CATEGORIAS, LÉXICOS E PALAVRAS Disso já tinham clareza os próprios gramáticos e dicionaristas do século XVI. Fernão de Oliveira lembrava que “o costume novo traz à terra novos vocábulos” (1975[1536]:85). Muitos grupos populacionais passam a existir enquanto realidades empíricas mais amplas deste mundo moderno a partir mesmo de um referencial lingüístico, como é o caso dos índios. Como demonstra Raul Reisnner (1980), o conceito léxico “índio” surge no universo semântico ocidental após a Idade Moderna e a descoberta de terras e gentes nas “Índias Orientais” e “Ocidentais”. A palavra não existia dicionarizada até 1492, sendo empregada desde o descobrimento da América para designar todos os seus habitantes. O vocábulo índio não se restringe a um conceito léxico, mas também a um conceito ideológico, salienta Reissner (1980:19‐24), passando a nomear uma categoria que tinha menos a ver com o espaço geográfico que ocupava, do que com a função política, econômica e ideológica que este nativo desempenha. O termo passa a designar um “objeto”, com um substantivo que dá conta de conhecimentos e crenças adquiridas a partir do século XV. É importante frisar que os conhecimentos gerados sobre esta categoria social e lingüística foram conformando um discurso que justifica o objeto designado como índio e que fundamenta as práticas que com ele se estabelecem. É, no fundo, um conceito cunhado com base nas condições concretas de conhecimen‐ to e realidade e como respostas a necessidades ideológicas, de classe e poder.
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Fundamental é a reflexão de que a empresa colonial dos Estados imperialistas modernos pressupunha, não apenas, a conquista de territórios ou o exercício de poder sobre populações e suas culturas, mas também a conquista de um “espaço epistemológico” (Cohn, 1996:4). Um espaço aberto não só pela empreitada colonialista em si, mas também associado e compreendido dentro deste contexto mais amplo das conseqüências da “revolução da gramaticalização”, de que chamamos a atenção mais acima. A classificação dos grupos contatados na expansão colônia‐lista foi bastante corrente. Viajantes, missionários, funcionários da adminis‐ tração colonial, entre tantos, estiveram entre os que escreveram várias modalidades de discurso (entre elas os livros de tradução), dando conta da diversidade de populações enfrentadas. Algumas destas passam a fazer parte do universo lexical, ideológico e de represen‐ tações ocidental somente a partir da colonização, como os índios. Muitos dos “grupos” populacionais confrontados pela ação expansio‐ nista são (quer sejam da metrópole ou nas colônias), destarte, produtos da imaginação política de Estados Imperiais que, diante da tarefa de administrar territórios e pessoas, desenvolveram projetos e discursos de ação que viabilizassem o êxito da empresa colonialista. Como parte deste processo – faces diferentes de uma mesma moeda – pari e passu ao desenvolvimento deste aparato administrativo, inventaram‐se comunida‐ des. Como chama a atenção Anthony Pagden – a partir da leitura de Benedict Anderson (1983) – estamos lidando aqui com um processo de invenção de comunidades imaginadas: “comunidades que não existiam enquanto realidades percebidas, mas com parte da imaginação cultural ou política dos indivíduos” (Pagden, 1987:271). O império colonial português foi especialmente habilidoso nesta tarefa de lidar com uma grande diversidade de populações nativas e “inventaram”, diria Anderson (1983), outros tantos grupos populacionais enquanto artifícios de Estado na tarefa de gestão colonial – degradados, órfãos e órfãs, casados, soldados, índios, etc (vide Coates, 2002; Thomaz, 1994 e Domingues, 2000). Este movimento de invenção de populações é aparente a partir da legislação, das resoluções e
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comunicação da administração colonial, ou até da produção iconográ‐ fica. De certo, também é visível na dimensão lingüística, observada a partir dos léxicos cristalizados pelos dicionários. Como salienta Johannes Fabian, as “ilusões de políticos e gramáticos são comparáveis e, muitas vezes, aliadas – como a influência recíproca entre políticas coloniais e descrições lingüísticas” (1986:8). Ao contrário de índio, escravo não é um léxico e uma categoria social surgida no período moderno a partir da captura e escravização de negros africanos. Como ressalta Emile Benveniste (1995), é uma categoria (e uma instituição) com origem muito mais remota e ligada a raízes indo‐européias. A palavra escravo e aquilo que ela designa possuem uma variância muito maior do que o termo índio, dado o fato que ocorre, enquanto conceito léxico, em vários idiomas e, enquanto categoria social, em várias culturas e tempos. Segundo Benveniste (1995:349), é uma noção que não comporta uma definição única, nem no conjunto das línguas européias, nem dentro de grupos de dialetos. A importância da escravidão nos contextos imperiais modernos é indiscutível. Como diz Pagden (2003:101), “todos os impérios da história, até princípios do século XIX foram sociedades escravocratas”. A idéia de escravidão opera, em grande medida, enquanto um indexador, como um horizonte, para as relações sociais e o mundo do trabalho em vários contextos sociais. Desde o início do processo de expansão colonialista portuguesa, império e escravidão operaram quase como sinônimos. “De fato, os nativos africanos tornaram‐se figura comum tanto na sociedade ocidental, quanto na oriental” (Pinto, 1992:50). Ao longo deste largo período da early modernity, um sentido e uma compreensão universal de escravidão foram tomando o lugar de uma ampla variedade de exercícios e vivências de formas de dominação, tanto nas metrópoles européias, como em contextos coloniais. Se quisermos recuperar um pouco desta diversidade de experi‐ências de formas de dominação, não podemos nos ater exclusivamente a consultar os verbetes escravo (ou escravidão)
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nos dicionários, mas outras categorias de “subalternidade”16 (id est cativo, criado, doméstico, mouro, negro, preto, servo, trabalhador, vadio, etc). Observando apenas um pequeno grupo de dicionários, podemos ver como algumas destas categorias podem ser percebidas em suas variações ao longo do tempo e das línguas. No “Dictionarium Lusitanico Latinum ...” de Agostinho Barbosa (1611), a categoria escravo (em português) corresponde a três referentes distintos em latim (servus, mancipium, servitium), o que poderia denotar que o mundo romano antigo tivesse um gradiente de experiências das formas de cativeiro maiores do que as expressões lexicais portuguesas pudessem reconhecer. De outro lado, o termo servo (também em português) apresenta uma entrada interessante no dicionário [“Servo, escravo. Lat. servus, servulus”]. Além de designar como significado latino duas das mesmas palavras usadas para traduzir a idéia (ocidental moderna) de escravo, é apresentado como sinônimo de escravo em português. Tais tipos de reducionismos, se é que podem ser classificados assim, vão limitando a expressão da diversidade de formas de exercício do poder nestes contextos. Da mesma forma, esta lógica da subsunção de características locais e regionais em função de modelos universais, avança entre as colônias, a partir da tradução de léxicos. Se observarmos o “Dictionarium Latino‐Lusitanicum et Japonicum...” de 1595, que é dividido internamente em três colunas (latim, português e japonês, respectivamente), vemos que há apenas a confecção de uma lista voca‐ bular, já que a palavra latina “seruus”, correspondendo ao português “escravo” e ao japonês “yatçuco”. Já no “Dicionário Português, Tamul e Cingalês” (línguas do sul da atual Índia e Sri‐Lanka), manuscrito anônimo do século XVIII, igualmente confeccionado em três colunas (indexadas desde o português), a palavra escravo possui cinco entradas em tamul e quatro em cingalês e cativo (duas em tamul e três em cingalês). Já servo aparece 16 Remeto‐me aqui ao conceito de “subalternidade”, tal como usado pelos historia‐ dores indianos dos subaltern studies, dos anos 1980, fortemente influenciados pela perspectiva gramsciana nesta categoria. Cf. Subrahmanyam (2004).
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mais uma vez como sinônimo em português de escravo [Servo, escravo, servidor: (...)]. Mesmo sem investirmos numa análise pormenorizada dos significados destas categorias, a percepção desta variabilidade classifi‐ catória é uma dimensão muito significativa. Afinal, quantas formas diferentes de vivência da escravidão e de liberdade o governo de territórios e populações haveria criado e/ou subsumido? A codificação das línguas em escala global, “dignificada” por sua gramaticalização e dicionarização visava não apenas a difusão das mesmas – como ocorreu nos colégios religiosos das colônias portuguesas da Ásia, por exemplo – mas com ela, a transmissão e cristalização de “padrões normativos de comportamento” (Buescu, 1992:34‐5). Fundamental marcar que muitos destes contextos que se transformaram em “coloniais”, escravo e escravidão, tal como compreendidos a partir das experiências Modernas do escravismo, simplesmente não existiam. É certo que existiam uma série de outras formas de catividade e subalternidade que foram, eventualmente classificadas como escravidão a partir do olhar colonial. Assim, tanto nos dicionários de tradução, como posteriormente nos dicionários monolíngües (sinonímicos), muitas das categorias ligadas ao exercício do poder interpessoal apresentam confusão de combinações entre os idiomas, nublando fronteiras entre idéias de cativo, criado, escravo, servo e demais catego‐ rias de subalternidade. Portanto, a percepção da existência de diferentes formas de vivência das relações de dominação – sob a rubrica da escravidão – neste “mundo português” não deveria nos demandar o desenvolvimento de conceitos teóricos mais amplos e refinados, que englobassem esta diversidade? Um aspecto interessante é que a Idade Moderna vai, paulati‐ namente, impondo uma moralização cristã às categorias antigas romanas. Embora estejamos lidando com as mesmas palavras que, remeteriam, aparentemente, as mesmas categorias, tratam‐se de instituições bastante diversas, a escravidão antiga e a moderna. Como ressalta Moses Finley (1980), ao contrário da escravidão Moderna, a Antiga, enquanto instituição, não opera como um desabono moral para
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os atuais descendentes de cativos, por exemplo. Não existem males sociais, políticos ou econômicos atuais (nem talvez uma memória social), cuja culpa recaia sobre a escravidão antiga. Ao contrário, no mundo moderno sobrepõe‐se determinados conteúdos estigmatizantes que vão sendo agregados a idéia de escravo, juntamente com este processo de moralização da categoria sócio‐lingüística, hierarquização e racialização do mundo. No final do Vocabulário Português e Latino, Bluteau apresenta um suplemento anexo com um “Vocabulário de sinônimos e frases portuguesas, para facilitar composições em prosa e em versos”. Novamente a palavra escravo registra uma entrada: “ESCRAVO. Cativo. Negro. Moleque. Subdito. Vassalo. Tributário”. CONCLUSÕES Tomar os livros de tradução pelo que eles simbolizam é tão interessante quanto é importante ter atenção ao que eles dizem e como o fazem. A superfície de seus “prólogos”, “dedicatórias” e “advertências aos leitores” são ricas em informações sobre o contexto plural17 que caracterizam os alvores da modernidade. No seu interior, o conjunto de léxicos escolhidos para serem traduzidos para as outras línguas, reflete muito sobre a história dos contextos coloniais multifacetados produzi‐ dos pelos Impérios modernos. Os livros de tradução não podem ser vistos apenas a partir da necessidade de criar tradutibilidades, compreensão sobre mundos novos ou de normatizar a língua do outro. Isto já é bastante, mas não é tudo ao que se destinavam. Tanto quanto outros tipos de discurso produzidos a reboque da empreitada colonialista, visaram também o conhecimento destes novos contextos (geo‐sociais) contatados. Se Plural quanto ao registro do descobrimento de terras, na diversidade de espécies animais e vegetais, tipos de gentes, suas línguas e de suas formas de estabelecimento de sociabilidades. Afinal, são livros escritos por homens que, em grande parte, estão envolvidos com a administração das colônias e suas populações.
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pensarmos na circunstância de que como muitos destes gramáticos e dicionaristas estavam diretamente envolvidos na empreitada colonial e que estas obras espelham o contato com estas novas realidades, podemos considerar este gênero dos livros de tradução como aquilo que alguns autores dos “colonial studies” chamaram de: “modalidades investigativas” num projeto colonial mais amplo (Cohn, 1996: 5) ou “modalidades reflexivas ocidentais” (Said, 1978). Da mesma maneira que o Império britânico utilizaria a partir do século XVIII: censos, estatísticas, etnologia, cartografia, lingüística, etc, para mapear, classi‐ ficar e reordenar a vida nas colônias, os livros de tradução permitiram a estruturação deste mundo desconhecido em torno de léxicos (palavras e categorias) conhecidos. Tanto quanto os censos demográficos criavam, objetivavam e substancializavam diferenças culturais, sociais e lingüísticas na Índia do século XIX, os dicionários e vocabulários contribuíram para definir e cristalizar categorias de percepção e ordenamento no contexto do império português moderno. Isto não é afirmar que os dicionários por si só, tivessem criado realidades empíricas visíveis na prática colonial. Como diria Pierre Bourdieu (1982) são discursos produzidos e produtores de realidades. Descrevem e prescrevem. São, nesta lógica, livros que podem nos informar sobre as “pré‐condições do exercício do poder” entre grupos populacionais contatados. Operam, como mencionou Johannes Fabian (1986:2), para o caso dos dicionários coloniais na África do século XIX‐ XX, como “instrumentos de governo” já que se prestaram a construir uma aparente ordem para uma multidão atordoante de línguas. Com isso colaboraram não apenas para criar um “arcabouço para políticas lingüísticas”, como disse Fabian, mas para instituir normas e práticas de gestão colonial de populações. São instrumentos de ação e ideologia colonizadora dominante e sínteses discursivas das mesmas. Como ressalta Bourdieu em outro momento (1986), classificar também é governar. O desenvolvimento de formas de discriminação (e classificação) construiu maneiras particulares de racionalizar a dominação política (Stolcke, 2001:7).
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Como tais, devem ser compreendidos dentro dos quadros mais amplos de projetos coloniais de Estado imperiais que lidam e administram uma diversidade e desigualdade ampla de contextos e culturas, submetidas, no entanto, a lógicas centralizadoras de governamentali‐ dade. Enquanto projetos devem ser lidos a partir da idéia fundamental da descontinuidade, da dispersão (Tilly, 2000; Fabian, 1986:9). Ainda que tratando da imaginação política de grupos e que este processo pressu‐ ponha um acúmulo e intercâmbio de discursos (conhecimentos e práti‐ cas), seu projeto dificilmente é percebido a partir de uma linearidade. BIBLIOGRAFIA LIVROS DE TRADUÇÃO: ANÔNIMO (1595). Dictionarium Latino‐Lusitanicum et Japonicum, ex Ambrosio Calepini. Amacusa [Amakusa]: Colégio da Companhia. ANÔNIMO (Séc. XVIII). Dicionário Português, Tamul e Cingalês. Manuscrito (Arquivo Histórico Ultramarino). BARROS, João de ([1539‐40] 1971). Grammatica da língua portuguesa, cartinha, gramática, diálogo em louvor da nossa linguagem e diálogo da viciosa vergonha. Reprodução facsimilada, leitura, introdução e anotações de Maria Leonor Carvalhão Buescu. Lisboa: Imprensa de Coimbra. BLUTEAU, D. Rafael (sac.) (1712‐21). Vocabulário Português e Latino. Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus. NEBRIJA, Antonio (1513 [1492]). Gramática castellana. Lion: Impressa Lugduni. OLIVEIRA, Fernão de ([1536] 1975). Gramática da Linguagem Portuguesa. 4a ed. Introdução de Maria Leonor Carvalhão Buescu. Lisboa: INCM.
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