Cotidianos em devir

June 5, 2017 | Autor: Eduardo Simonini | Categoria: University, Cotidiano, Becoming, Devir
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Cotidianos em devir Resumo: O presente artigo pretende fazer uma provocação metodológica, no momento em que propõe que se entenda o “cotidiano” não como um objeto conceitual, mas sim como um processo que, em seu fluir, instaura diferentes regimes de verdade nas práticas de convívio. Nesse sentido, este trabalho sustenta a perspectiva de que as pesquisas – e as metodologias de pesquisa – com os cotidianos devam levar em consideração o problema do devir; devir este entendido enquanto movimento na composição de alianças e agenciamentos contínuos. Portanto, este artigo convida os pesquisadores a se aproximarem das investigações nos/dos/com os cotidianos enquanto propostas que não se limitam a re-apresentar uma suposta realidade estática, mas sim a acompanhar a diversidade movente nas redes (relacionais, semióticas, políticas, midiáticas, etc) e processos que, em devir, compõem diferentes e legítimas realidades no convívio.

Cotidianos em devir1 Eduardo Simonini2 Cristiane Roque Pereira Botelho3 Graziele Corrêa Amorim4 Só os pensamentos que surgem em movimento têm valor (NIETZSCHE, 2000, p.14).

Transgredindo as gramáticas, consideramos que “cotidiano” é um verbo e não um substantivo. Se o verbo de uma frase designa ações e implementa um movimento na sentença, também por cotidiano entendemos uma ação, um movimento e não um morto e dissecável “objeto conceitual”. O que, por sua vez, não impede que as dinâmicas que atualizam diferentes cotidianos estabilizem também diversos espaços de convívio, oportunizando constâncias e repetições relacionais. Contudo, concebemos estes fenômenos como sendo efeitos de movimentos – ou desacelerações desses movimentos – não reduzindo a vida cotidiana a um estado em separado dos processos em engendramento. Portanto, pesquisar nos/com cotidianos envolve, antes de tudo, colocar em questão o problema do movimento; do devir. Principalmente porque, se assumirmos as origens etimológicas da palavra “devir”, temos que esta deriva do latim “devenire”, que vem a significar “tornar-se, passar de um estado para outro” (CUNHA, 2010, p. 214). Assim, o conceito de devir carrega consigo a proposta de um deslocamento, de uma transformação e de um processo. Abordar, pois, a problemática do devir não se restringe a apenas pensar as transformações da natureza e dos seres, mas igualmente assumir diversas trajetórias de pensamento que trabalharam tal conceito na elaboração de diferentes políticas de realidade. Estas políticas, em sua diversidade, opõem em confronto, por exemplo, as concepções de realidade propostas em Platão e aquelas cultivadas no pensamento de 1

SIMONINI, Eduardo; BOTELHO, Cristiane Roque Pereira; AMORIM, Graziele Corrêa. In: GARCIA, Alexandra; OLIVEIRA, Inês Barbosa (Orgs.). Aventuras de conhecimento: utopias vivenciadas nas pesquisas em educação. Rio de Janeiro: DPetAlii, 2014, p. 217-228 2

Psicólogo, Mestre em Psicologia Social, Doutor em Educação, professor adjunto do departamento de Educação da Universidade Federal de Viçosa/MG. 3 Estudante de Pedagogia pela Universidade Federal de Viçosa, bolsista de Iniciação Científica (CNPq). 4 Estudante de Pedagogia pela Universidade Federal de Viçosa, bolsista de Iniciação Científica (Fapemig).

Nietzsche. As consequências de se pensar o movimento na perspectiva de Platão ou na de Nietzsche repercutem nos modos como praticamos e intervimos nos cotidianos nos quais existimos. Isto porque muito da filosofia de Platão se envolve na discussão sobre a existência de uma dimensão ideal de essências puras; formas perfeitas que, estando fora do tempo, nunca se encontram em devir. Tais essências mantêm uma relação de semelhança com nosso mundo, o qual foi criado por um demiurgo5 que se utilizou dessas formas perfeitas como modelo quando “artesanou” a nossa realidade. E Platão acrescenta que o demiurgo – sendo um deus bom, de onde só poderia provir beleza – apropriou-se de tudo quanto havia de visível e que se movia de maneira desordenada e irregular e o conduziu a uma ordem, a um fechamento estável e harmônico por considerá-lo melhor do que o movimento caótico. Segundo Platão (2011, p. 93-94): (...) o demiurgo põe os olhos no que é imutável e que utiliza como arquétipo, quando dá a forma e as propriedades ao que cria. É inevitável que tudo aquilo que perfaz deste modo seja belo. Se, pelo contrário, pusesse os olhos no que devém e tomasse como arquétipo algo deveniente, a sua obra não seria bela (grifo nosso).

Esta passagem é indicativa do quanto, na perspectiva platônica, as mudanças e transformações são tomadas como indesejáveis, sendo que se fixar no que se movimenta significa não se ater ao que é realmente importante: a verdade inerte e imutável da qual tudo provém. Por essa perspectiva, a bela realidade é aquela que existe em perene verdade, para além das ilusões e impermanências dos nossos sentidos. O que faz com que o mundo que conhecemos seja apenas uma re-apresentação irregular das ideias verdadeiras; nele tudo são cópias imperfeitas, sendo necessário àquele que ama a verdade se desvencilhar das formas enganadoras a fim de conseguir admirar a “bela essência”. Dessa maneira, em Platão, pensar nunca é inventar ou criar; pensar é, antes de tudo, um comprometimento na ação de se subtrair das ilusões e enganos no intuito de descobrir a verdade eterna que a tudo organizou. O que faz com que a própria dinâmica da vida cotidiana seja apreendida como experiência enganosa, uma vez que é nela que os seres humanos se perderiam na cacofonia do seu dia a dia, não conseguindo, assim, atingir a beleza das melodiosas verdades que se situariam para além dos problemas, das disputas e incertezas mundanas. Contudo, é Nietzsche quem desfere, de maneira aberta e ruidosa, um grande ataque à perspectiva platônica da existência. Para Nietzsche (2000, p.113): 5

Demiurgo vem a significar um artífice, ou, na cosmogonia platônica, um artesão divino.

Platão é entediante. – Por fim, minha desconfiança junto a Platão vai até o fundo: eu o considero tão desviado de todos os instintos fundamentais dos helenos6, tão moralizado, tão preexistentemente cristão – ele tinha o conceito “bom” enquanto o conceito supremo –, que gostaria de utilizar em relação a todo o fenômeno Platão antes a dura expressão “o mais alto embuste”, ou, se se preferir escutar, mais do que qualquer outra palavra, o mais alto Idealismo.

Nietzsche considera que, ao rejeitar o que é do mundo a fim de buscar a imutabilidade da Ideia Pura, Platão empreendeu a negação da própria vida. O que faz com que Nietzsche assuma, em contrapartida, que só existe um único mundo: este nosso, considerado por Platão como sendo de aparências, e que construímos vivendo juntos. O mundo, portanto, não seria “algo que se torna”, mas “algo que passa” em um fluir sem finalidade específica, pois “o devir não tem condição final, nem tende ao ‘ser’; o devir não é uma condição aparente; talvez o mundo do ser seja apenas aparência” (NIETZSCHE, 1966, p.368). Nesta perspectiva, Nietzsche também ataca todos os caçadores de verdades imutáveis quando argumenta que: Tudo o que os filósofos tiveram nas mãos nos últimos milênios foram múmias conceituais; nada de efetivamente vital veio de suas mãos. Eles matam, eles empalham, quando adoram, esses senhores idólatras de conceitos. Eles trazem um risco de vida para todos, quando adoram. A morte, a mudança, a idade, do mesmo modo que a geração e o crescimento são para eles objeções – e até refutações. O que é não vem-a-ser, o que vem-a-ser não é... Agora, eles acreditam todos, mesmo com desespero, no Ser. No entanto, visto que não conseguem se apoderar deste, eles buscam os fundamentos pelos quais ele se lhes oculta (NIETZSCHE, 2000, p. 25).

Seguindo a linha nietzschiana de contestação, Deleuze considera que a principal problema para Platão não é necessariamente o dualismo entre cópia e modelo; a aparência e a essência. As cópias, enquanto mimetizam o modelo, criam com ele uma relação de identidade, espelhando, assim, o fulgor da Verdade. O que, pois, incomoda Platão não é a cópia, mas o simulacro. Este é concebido como aquilo que parece uma cópia, mas não o é; como aquilo que simula representar um modelo, mas não o representa. Desenvolvendo um pouco mais essa temática, Deleuze apresenta que: A cópia é uma imagem dotada de semelhança, o simulacro, uma imagem sem semelhança. (...) O simulacro é construído sobre uma disparidade, sobre uma diferença, ele interioriza uma dissimilitude. (...) O simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução (DELEUZE, 1998, p. 263-267).

É importante se perceber que, seguindo a reflexão acima, o simulacro deixa de ser compreendido como erro ou mentira (como considerado nos diálogos platônicos) e passa a ser abordado como diferença e produção: produção inventiva de uma nova

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Helenos são os gregos.

maneira de expressão que não foi anteriormente pensada ou planejada. Há, no simulacro, o movimento de outras possibilidades de compor um mundo; outras formas de produzir universos de expressão. Mas, ao mesmo tempo, o simulacro incomoda porque é aquilo que “não funciona” dentro dos códigos conhecidos, fugindo à ordem do Belo, do Ideal, do Absoluto e de suas consequentes representações. E é especialmente no seu trabalho junto a Félix Guattari que Deleuze explora as dimensões em devir como dinâmicas em simulacro e não como movimentos em direção ao Ideal. Assim, para Deleuze e Guattari (1997), o que está em devir não se orienta a uma semelhança, uma igualdade, uma coerência, um programa ou a um progresso. Estar em devir, diferentemente de “se tornar algo” ou “se aperfeiçoar”, vem a ser compreendido como um compor-se em intensificações que não legitimam modelos prévios, identitários e/ou teleológicos, mas misturas, mestiçagens, contágios e proliferações que não necessariamente remetem a identidades ou afinidades. Ou seja: Um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco é ele uma semelhança, uma imitação e, em última instância, uma identificação. (...) Devir é sempre de uma ordem outra que a da filiação. Ele é da ordem da aliança (DELEUZE;GUATTARI, 1997, p.18,19).

Quando, pois, nos atentamos às conexões múltiplas que tramam a vida cotidiana, temos que esta deixa de ser apreendida como sendo uma “re-apresentação” deturpada de uma Ideia, para ser pensada como intensidades em devir. Assim, assumir os cotidianos como dimensões em devir não é paralisar o pensamento na pretensão de auscultar verdades estanques em suas certezas, mas acompanhar movimentos produtores de (e produzidos em) existências que em nada espelham qualquer Felicidade, Belo ou Pureza ausentes de transformações.

Habitando uma universidade Contudo, a urgência por garantias que estabilizem regimes de verdade faz brotar a todo o momento movimentos de enraizamento que pretendem parar os fluxos em seus devires e reatualizar o antigo mito platônico de um plano de essências, onde todos os movimentos cessariam frente às verdades transcendentes. Chatêlet (apud DELEUZE, 1999, p. 23-24) denuncia os perigos e igualmente a contemporaneidade de tais dinâmicas quando argumenta que: No nosso jargão de filósofos, chamamos de transcendência um princípio estabelecido, ao mesmo tempo, como fonte de toda e qualquer explicação e como realidade superior. A palavra é bonita, e eu a acho prática. Os presunçosos, grandes ou pequenos, do líder de um grupelho ao presidente dos

Estados Unidos, do psiquiatra ao presidente da empresa, funcionam movidos a transcendências (...). O Deus medieval se dispersou, sem, contudo, ter perdido a sua força e sua unidade formal profunda: a Ciência, a Classe Operária, a Pátria, o Progresso, a Saúde, a Previdência, a Democracia, o Socialismo – a lista seria longa – são alguns de seus avatares. Essas transcendências tomaram o lugar dele (não seria exagero dizer que ele ainda está lá, onipresente) e exercem, com uma ferocidade exacerbada, suas funções de organização e de extermínio.

Quando, pois, voltamos a nossa atenção para a vida que construímos nos mais diferentes

convívios,

vemos

reatualizadas

várias

propostas

que

anseiam

à

transcendência: como as diversas noções de “mundo melhor”; as propostas por igualdade, harmonia e pelo fim das diferenças; as concepções idealizadas sobre “o” professor, “o” aluno e “a” escola; os manuais de autoajuda que convidativamente ensinam como chegar a uma felicidade perene, dentre alguns poucos exemplos. E quando nos voltamos para a própria instituição de ensino onde trabalhamos, a Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, percebemos que ela – seja em suas origens ou no tempo presente – não fugiu também à cartilha de construir transcendências utilizando, para esse fim, de poderosos conceitos “universais” como Pátria, Progresso, Ciência, Homem e Moral. A história da UFV teve seu princípio assinalado no final dos anos de 1920 – quando a instituição ainda se chamava Escola Superior de Agricultura e Veterinária (ESAV) – e possuía como seu foco principal a construção de uma agricultura científica e livre do “empirismo ingênuo” que imperava no meio rural brasileiro. Contudo, tão importante quanto desenvolver tecnologias para preparar os grãos e arar a terra, fazia-se necessário também formar seres humanos imbuídos nos ideais de progresso, patriotismo e amor à ESAV. Nesse sentido, aquela Escola de Agricultura também promoveu o desenvolvimento de um internato rural para seus estudantes, onde se cultivava um modo de existir denominado de “espírito esaviano”. Pretendia-se, pelo fomento desse “espírito” que convocava à excelência, à disciplina, à responsabilidade pessoal, ao patriotismo e ao progresso agrícola, fabricar mentalidades que preparassem jovens “ignorantes” para serem líderes nacionais. Em 1949 a ESAV foi elevada a Universidade Rural do Estado de Minas Gerais (UREMG), sendo federalizada vinte anos depois. Atualmente, a Universidade Federal de Viçosa (abrangendo três campi: Viçosa, Florestal e Rio Paranaíba) oferece 67 cursos de graduação, 40 cursos de pós-graduação e possui aproximadamente 14.000 estudantes matriculados. Destes, cerca de mil e quinhentos residem em seis alojamentos (três

masculinos e três femininos) que se encontram distribuídos no interior do campus Viçosa. Nos alojamentos – não mais organizados como internatos de tempo integral, mas sim como moradias estudantis – os discentes constroem as mais diferentes configurações de convívio e práticas sociais que não necessariamente são do conhecimento e do controle das instâncias administrativas da UFV. Assim, se os convívios no alojamento estudantil nas décadas de 1920 a 1950 eram regulados, com maior ou menos intensidade, por um modelo transcendente de conduta humana apresentado no “espírito esaviano”, a partir da década de 1960 – com um grande aumento do número de discentes e ampliação dos alojamentos – tal regulação de condutas nas moradias tendeu a ficar a cargo das urgências dos próprios estudantes, que cultivavam hábitos singulares na privacidade dos quartos. E cada quarto, por sua vez, passou, a secretar (e segredar) suas próprias exigências identitárias, tendendo a expulsar do convívio tudo o que fosse diferente do sujeito ideal esperado para cada experiência de habitação. Mas, mesmo se compondo num campo de tensões, encontros e conflitos, os alojamentos universitários da UFV são um grande chamariz para aqueles discentes que vêm de famílias de baixa renda. Isso porque, enquanto residências gratuitas, os alojamentos só são acessíveis àqueles estudantes que comprovem, via documentação, uma carência econômica que os qualifique a concorrer a uma bolsa denominada de “auxílio moradia”. De posse da autorização institucional para habitar uma vaga, geralmente o estudante se submete a entrevistas com moradores de diferentes quartos de alojamento a fim de ser (ou não) escolhido para ocupar uma das vagas. E o cortejo de entrevistas pode, muitas vezes, ser penoso para aqueles alunos que não se encaixem dentro de um modelo identitário esperado na circunstância de cada quarto. Assim, de acordo com Cláudio7, estudante do curso de Agronomia: Se for calouro, negro, nordestino, fazer curso de Humanas...e se for veado ainda..., não precisa nem esperar achar vaga no alojamento. São preconceitos, são discriminações reais, assim, que não são ditas, que não são escritas, que várias pessoas têm medo de falar sobre elas porque isso não pega bem, entende?!

Foi nesse contexto de busca de um espaço para si em um alojamento estudantil que Luís adentrou nas tramas da Universidade Federal de Viçosa. E, pensando na 7

Todos os nomes de estudantes apresentados neste trabalho são fictícios, a fim de preservar a privacidade dos entrevistados.

discussão a respeito da relação entre cotidianos e devires, compreendemos que, ao narrar brevemente a trajetória deste discente pelos alojamentos, podemos também acompanhar algumas intensificações, movimentos e alianças que fizeram a materialidade de seu cotidiano estudantil. Isto porque acreditamos, como anunciado por Deleuze (1999, p. 43), que: Um indivíduo, mesmo insignificante, é um grande campo de singularidades que só recebe seu nome próprio das operações que ele empreende sobre si mesmo e a sua volta, para tirar daí uma configuração que possa ser prolongada.

Ao seguirmos, pois, as configurações de vida de Luís e os consequentes cotidianos que tanto interferiram quanto foram inventados em seu trajeto pela UFV, encontramo-nos com o fato de que ele chegou à universidade vindo de uma pequena cidade no interior de Minas Gerais, onde levava uma vida simples na casa de seus pais. Era um jovem pacato, ordeiro e temente a Deus, sendo igualmente membro da Congregação Cristã do Brasil, uma religião8 diante da qual o estudante referendava fielmente suas condutas sociais e morais. No ano de 2006, ele conseguiu ingressar na Universidade Federal de Viçosa, conquistando a aprovação para o curso de Gestão de Cooperativas depois de dois anos de consecutivos insucessos no vestibular para Geografia. Como seus pais encontraram dificuldades para mantê-lo financeiramente na cidade de Viçosa, ele conseguiu uma vaga em um dos alojamentos disponibilizados pela UFV. Apesar de ter vindo de uma cidade pequena e abrigar em si uma orientação religiosa mais rígida, Luís pensava a universidade como sendo uma oportunidade de abertura a novas experiências e, permeabilizando-se a devires mais do que a seguranças identitárias, optou por realizar entrevistas em quartos onde não residissem pessoas de sua cidade, pois esperava conhecer “diferentes mundos” e não repetir sua antiga rotina. Assim, a entrada de Luís no quarto de alojamento intensificou as possibilidades de o mesmo ter contato com outros regimes de verdade, nutridos em orientações e conhecimentos que, aos poucos, fizeram com que aquele estudante se (re)inventasse de uma maneira muito diferente daquela na qual ele se produzia quando adentrou pela primeira vez a UFV. Isso porque, no convívio na instituição, ele se deparou com indivíduos de diferentes religiões, movimentos políticos, pensamentos, cursos e atividades, sendo-lhe apresentado, por meio de seus encontros no alojamento e no 8

Segundo Luís, a religião que seguia era “bem rígida em alguns comportamentos. Então, é um pouco machista; o homem emprega e a mulher tem que acompanhar o homem”.

campus, o Núcleo de Estudos de Gênero (NIEG), Movimentos Sociais (como o Movimento dos Sem Terra e o Movimento dos Atingidos por Barragens) e o Diretório Central dos Estudantes (DCE), que se constitui como um centro de referência na organização política estudantil na universidade. Diante da construção dessas novas práticas cotidianas de convívio e dos agenciamentos e composições com as quais se viu envolto, Luís passou inclusive a questionar o conceito de Deus e a utilidade das religiões – temas estes tão caros à sua vida quando em sua terra natal – e a considerar que: (...) muita coisa a gente deixa de acreditar, assim, pelo envolvimento que você tem. Você faz um conjunto de disciplinas para formação acadêmica, mas a gente tem uma formação também, pessoal, nesse processo. Uma formação em termos de análise do mundo, de compreensão do mundo, de uma perspectiva do outro ser humano e das outras possibilidades que a pessoas podem ter: seja religiosa, seja politica, seja... enfim, o que de diversidade as pessoas podem ter que foge daquele mundinho vivenciado, totalmente tradicional. Então, quando consegui compreender essas outras possiblidades sem ser totalmente segregador, mudei nas coisas que eu acreditava, por exemplo, a religião.

E se engendrando nesses diferentes cotidianos compostos em outros movimentos, Luís também se assumiu mais politizado no DCE; ampliou o repertório de músicas que escutava; vivenciou alterações nos modos como se trajava e, em termos religiosos, acolheu uma postura ateísta. Contudo, apesar de mudar suas trajetórias de vida e de pensamento, acreditamos que isso não ocorreu pelo fato de ele ter atingido uma suposta verdade excelsa que, revelando-se ao estudante, retirou-o de uma condição alienada. Entendemos que o que aconteceu foi que ele compôs outras redes de convívio e estas, por sua vez, tornaram insustentável a manutenção de sua antiga estabilidade de vida, forçando-o a vivenciar outros regimes de verdade. E o próprio Luís reconhece a transitoriedade de suas certezas, mesmo as atualmente conquistadas, quando afirma que: você sai daquela rotina da tradição [de sua cidade natal], do vicio de fazer sempre as mesmas coisas, para estar em um ambiente em que você tem várias coisas. Independente de estar no seu quarto [de alojamento], você está [matriculado] em uma disciplina que tem pessoas de vários cursos. Você ocupa várias áreas da universidade; ocupa vários grupos com ideias diferentes, e isso potencializa para a sua reflexão: reflexão sobre a sua prática de se vestir, de se alimentar, de música que você ouve, o discurso que você faz, como você se apresenta para o mundo, sobre o que você apreende sobre tudo o que você faz. Então, o quarto [de alojamento] ajudou, assim, no sentido de potencializar mais uma orientação. Então, por exemplo, se eu estivesse em um quarto que teriam os tipos agroboys 9, acho que eu teria informação de música sertaneja, de andar com um berrante na universidade. Enfim eu acho que, não exagerando muito, influencia porque você convive 9

“Agroboys” é um termo utilizados para qualificar os discentes voltados tanto para o fomento de festas (onde tocam do sertanejo universitário ao funk), quanto para o agronegócio.

muito tempo com aquele tipo de pessoas, então você absorve muita coisa, assim, porque é o ambiente de convívio; não é só um ambiente em que você tem informação que entra e pode sair com pouco tempo.

Ao abandonar sua antiga maneira de compor uma realidade, Luís sofreu um processo de quebra de suas garantias de universo, no mesmo movimento em que se viu a construir novas referências de mundo. Não se furtou, contudo, ao entendimento de que esse novo mundo no qual reorganizou suas perspectivas era apenas uma maneira possível de viver em meio aos vários cotidianos enredados na universidade. Nesses novos mundos a se configurarem no próprio ato de serem vividos, mudanças podem acontecer na experiência de cada estudante, podendo ocorrer desmanchamentos e reordenações contínuas nos/dos convívios à medida que os quartos se transformam em relações potentes e/ou empobrecidas em encontros e possibilidades. Considerando que tais relações são produtoras de (e produzidas em) realidades moventes, não operamos com os cotidianos dos quartos e dos alojamentos como se estes fossem uma repetição ritual ou um invariante funcional a responder a leis gerais de uma sociedade complexa. Se utilizamos do conceito de cotidiano, fazemo-lo a partir do entendimento de que ele é uma dimensão em devir, só existindo em agenciamentos, composições, misturas que, se em alguns momentos podem estabilizar relações e construir constâncias, em outros podem se acelerar em ritmações singulares, às vezes enlouquecidas, que forçam a inauguração de outras inéditas – e tantas vezes incômodas em seu ineditismo – trajetórias de mundo. Nas pesquisas com os cotidianos, não estamos, portanto, à caça de um “mundoverdade” que imponha um ponto final às dinâmicas em devir: sejam aquelas a se tramarem nos alojamentos, nas salas de aula, nos movimentos sociais ou mesmo nos mais belos projetos de revolução coletiva. Assim, concordamos com Luís quando – assumindo a potência dos devires-agenciamentos mais do que a estagnação que viceja silenciosa na busca por pureza em “mundos-verdade” – declarou que, na produção de seu cotidiano universitário, o que fez a diferença foi o convívio. Consideramos, dessa maneira, que não existe um plano de garantias perenes, sendo que nossos próprios regimes de verdade podem se transformar quando atravessados por diferentes devires-agenciamentos a se atualizarem nos convívios diários. Aqueles têm a potência de, num de repente, retirar-nos de estados de segurança identitária, forçando a emergência de novas percepções, sensações e maneiras de pensar que nem sempre nos são confortáveis, pois estranhas e anômalas. Porém, muitas vezes,

esses desconfortos são indicadores da emergência de novidades e/ou de novos possíveis fecundados em devires que tanto intensificam experimentações, quanto fazem do cotidiano uma invenção ativa; um movimento; um verbo.

Referências CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon, 4ª. ed., 2010. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998. ______. Péricles e Verdi. Rio de Janeiro: Pazulin, 1999. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. São Paulo: ed. 34, v.4, 1997. PLATÃO. Timeu-Crítias. Coimbra/Portugal: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2011. NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência. Rio de Janeiro: Ediouro, 1966. ______. Crepúsculo dos ídolos (ou como filosofar com o martelo). Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000.

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