Criação de repertório de música contemporânea com técnicas estendidas para o ensino da flauta transversal a crianças iniciantes

July 4, 2017 | Autor: Valentina Daldegan | Categoria: Composição Musical, Flauta, Técnicas Estendidas
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a mente e a produção das artes musicais 168

Criação de repertório de música contemporânea com técnicas estendidas para o ensino da flauta transversal a crianças iniciantes Valentina Daldegan [email protected] Universidade Federal do Paraná — PPGMúsica

Resumo Apesar da aparente abertura das crianças à música que envolva novas sonoridades, e do número crescente de flautistas e educadores que pregam o uso de música contemporânea e técnicas estendidas com iniciantes, não se encontram trabalhos que, voltados a crianças iniciantes, introduzam ao mesmo tempo o uso de técnicas estendidas e de música contemporânea — mesmo peças fáceis que envolvam estas técnicas são raras. Muitas vezes, a maior dificuldade não está na produção dos efeitos sonoros, mas no virtuosismo exigido. Daí a necessidade de desenvolver-se material apropriado. Para contemplar a diversidade estilística da música contemporânea, foram procurados colegas compositores que, dispostos a colaborar com este trabalho, compusessem peças simples. Para delimitar o material e o nível de dificuldade das peças, foi elaborada uma lista de possibilidades técnicas e sonoras, que serviu de ponto de partida para as composições. Como o material era limitado a restritas possibilidades rítmicas, intervalares e de registro, mas ao mesmo tempo com efeitos sonoros não-usuais, as peças resultaram do choque entre as idéias trazidas pelo material sonoro e as restrições de um trabalho voltado a iniciantes, dentro do estilo individual. Para os compositores, a experiência foi um desafio diferente do que estavam acostumados, pois o processo da composição está ligado à submeter as idéias ao material disponível. Esta necessidade de adequação representou para os compositores um ganho cognitivo. Num trabalho conjunto com cada compositor as peças foram revistas e alteradas, quando necessário. A discussão sobre por que, e de que modo foram feitas estas alterações são parte deste artigo. Deste contato com os compositores, notou-se a importância da relação compositor – intérprete – professor, no sentido de integrar o trabalho dos três. Esta integração, sugerida por Charles Rosen, há mais de 40 anos, mostra-se ainda hoje um caminho possível e desejável no ensino de música.

Palavras-chave Música contemporânea para crianças — flauta transversal — técnicas estendidas.

Introdução e Fundamentação teórica De acordo com Boal Palheiros et alii (2006) — numa pesquisa que investigou respostas de crianças brasileiras e portuguesas à música de arte do século XX — há evidências de que as crianças mais novas são mais abertas a novos repertórios. Estas foram confirmadas por Daldegan (2008) em trabalho realizado com crianças entre oito e treze anos. Apesar da idéia de alguns educadores de que a música contemporânea não é apropriada para ser trabalhada com crianças (Dallabella et alii 2001, p. B9) um projeto de pesquisa com aplicação prática direta na educação musical como o “Contemporary Music Project”, entre outros, demonstra precisamente o contrário (Mark 1996, p. 28-34). O projeto, que aconteceu nos Estados Unidos na década de sessenta, visava integrar compositores e programas de educação musical em escolas públicas e pagava para jovens artistas trabalharem como compositores em residência nestas escolas. Estes descobriram que a maioria dos educadores musicais não tinha preparo para lidar com música contemporânea, por conseqüência tampouco seus alunos. Apesar disso, tanto alunos quanto professores participantes mostraram-se receptivos à música nova em sua experiência com os compositores em residência; os professores observaram que o crescimento musical das crianças e as atitudes com relação à música contemporânea foram muito positivas. Algumas outras conclusões a partir do projeto foram que a “música contemporânea é apropriada e interessante para crianças de qualquer idade,” especialmente antes de serem capazes de intelectualizá-la; e que “seleções adicionais contemporâneas, que sejam curtas em duração e simples em estrutura, precisam ser localizadas ou compostas, de modo que possam ser incorporadas em um programa maior de educação musical” (Mark 1996, p. 31-32). Mesmo com essa aparente abertura das crianças à música que envolva novas sonoridades, e com o número crescente de flautistas e educadores que pregam o uso de música contemporânea e técnicas estendidas com iniciantes, não se encontram trabalhos que, voltados a crianças iniciantes, introduzam ao mesmo tempo o uso de técnicas estendidas e de música contemporânea — mesmo peças fáceis que envolvam estas técnicas são raras. Muitas vezes, a maior dificuldade não está na produção dos efeitos sonoros, mas no virtuosismo exigido. O objetivo deste artigo é apresentar parte de minha pesquisa de mestrado, “Técnicas Estendidas no Ensino

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de Flauta Transversal para Crianças Iniciantes,” que também envolveu um estudo de campo com quatro alunos que, paralelamente ao repertório tradicional, trabalharam com repertório contemporâneo e técnicas estendidas. 170

Especificamente com relação ao ensino de flauta transversal, temos a afirmação de Olson, que defende a idéia de que as crianças identificam-se mais com a música escrita recentemente do que com o repertório tradicional. Segundo a autora, aprender como introduzir a música contemporânea, suas questões técnicas e estéticas, é um dos principais deveres dos professores de instrumento” (Olson 1998, p.2). “Novas idéias musicais são capturadas nas formas, estilos e materiais da música contemporânea; conseqüentemente, a música contemporânea pode satisfazer o “gosto pelo novo” expresso por instrumentistas mais jovens (e outros que com o passar dos anos não se tornaram “mufles”). Aquilo que faz a música contemporânea atrativa e fascinante para muitos — suas sonoridades novas e muitas vezes estranhas, suas estruturas não-usuais, suas tentativas de forjar outras formas de interação entre os músicos, sua abertura à improvisação, o atrito com idéias pré-concebidas do que é música, sua batalha por e ocasionais manifestações de independência da história da música européia ocidental — torna-a ideal para ser usada com crianças e jovens músicos que tenham pouco conhecimento dos desenvolvimentos do repertório tradicional. Acima de tudo, jovens identificam-se mais prontamente com a música de seu próprio tempo, seja ela popular ou de arte: em sua busca por novas formas de expressão pode ser visto um reflexo de sua própria busca pela identidade e de adequação ao mundo contemporâneo. Eu argumentaria que a falha para integrar a nova música em todos os níveis de instrução instrumental, e particularmente a falha para apresentar coisas novas e interessantes a jovens instrumentistas, representa uma falha em sustentar um interesse duradouro em novas idéias.” (Olson 1998, p. 6)

Como introduzir a música contemporânea aproveitando o momento em que as crianças estão mais abertas a novos repertórios se normalmente elas ainda não têm o desenvolvimento técnico-cognitivo para suportar as demandas de virtuosismo por esta exigido é um problema para quem ensina. Uma solução possível é a criação de repertório adequado. Diferentemente do séculos anteriores, a partir do século XX, o material da composição musical não é mais compartilhado socialmente. A escolha de materiais é feita segundo critérios estabelecidos pelo próprio compositor, o que acarretou a explosão de diversidade do último século. Segundo Ernst Krenek (apud Dahlhaus

1987, p. 276), “a música como arte é baseada primeiramente em axiomas que não são propostos nem pela natureza nem pela história, mas pelos compositores, cujas intenções estéticas decidem o que deve ser visto como significativo num senso técnico-composicional.” Dahlhaus (ibidem) explica que cabe aos compositores selecionar os axiomas da técnica composicional que correspondem às suas idéias estéticas. Não é intenção aqui teorizar sobre os processos composicionais da música nova, pois foge ao escopo deste trabalho. O fato é que o último século é o da pluralidade musical, marcado pela busca do novo. Para tentar contemplar esta diversidade estilística, foram procurados colegas compositores que estivessem dispostos a colaborar com este trabalho, compondo peças simples. Para delimitar o material e o nível de dificuldade das peças, elaborou-se uma lista de possibilidades técnicas e sonoras — a qual chamei “Orientação para compositores” — que servisse de ponto de partida para as composições. Com alguns compositores houve uma conversa individual, pois alguns não tinham idéia de como soariam os efeitos, e foi necessário tocá-los e em alguns casos gravá-los para que pudessem compreender e trabalhar com o material. As peças foram revistas e alteradas, quando necessário. Além disso, a fim de familiarizar os alunos com a notação e a linguagem, compus alguns estudos preparatórios que servissem de introdução às técnicas mais comuns às composições. Este artigo visa relatar como se deu o desenvolvimento deste repertório. Com relação à composição, é possível afirmar que o ganho cognitivo para os compositores vem a partir da necessidade de trabalhar com o material proposto dentro dos limites impostos pelas restrições ao escrever para iniciantes. Há a dicotomia entre o trabalho com um material de vanguarda, não-tradicional, e a escrita de peças extremamente simples. Quatorze peças de sete diferentes compositores fazem parte deste estudo, das quais exemplificaremos alguns trechos.

Metodologia Para a realização desta pesquisa, a metodologia adotada precisaria ser flexível o suficiente para contemplar as possíveis adaptações necessárias num estudo longitudinal em que o pesquisador também é o agente da pesquisa. De acordo com as diferentes respostas individuais e coletivas, os processos precisariam ser revistos. Segundo o psicólogo australiano Bob Dick, a pesquisa-ação valoriza justamente a necessidade de respostas imediatas à situação. O paradigma aqui adotado é, mais especificamente, o da “pesquisa-ação participativa”, porque neste tipo de pesquisa o pesquisador é também seu agente, e esta é integrada a suas atividades regulares

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(Schmuck 2006, p. 28). Como conseqüência, tem o potencial de aumentar o quanto se aprende conscientemente com sua experiência. Dick afirma também que “se você consegue fazer uma pesquisa-ação sem ter que modificá-la durante o curso, provavelmente esta não é a escolha de paradigma apropriada.” Na pesquisaação, intenção ou planejamento precedem a ação, e crítica ou revisão a seguem, num processo cíclico (B. Dick 1993). Segundo Liora Bresler, neste tipo de abordagem, relação entre teoria e prática tem a ver com a melhora das situações e práticas educacionais, portanto uma diferença importante entre a pesquisa-ação e outras abordagens qualitativas é sua ênfase pragmática, direcionada para a prática como uma motivação primária para a pesquisa (Bresler 1995). Deste modo, o estudo de campo deu-se da seguinte maneira: a Identificação do problema De que modo seria possível integrar o ensino de técnicas estendidas e música contemporânea no ensino da flauta desde o início do aprendizado, aproveitando o período em que as crianças são mais abertas a novos repertórios, se o material disponível não é apropriado ao nível técnico e cognitivo das crianças iniciantes? b Desenvolvimento de repertório Foram criados para este trabalho pequenos estudos, bem simples, com o intuito de auxiliar no desenvolvimento das técnicas. Desenvolveu-se também, junto a colegas compositores, um repertório apropriado ao nível de habilidade dos recém iniciantes, que incluísse as técnicas estendidas a serem aprendidas. O objetivo era a diversidade estilística, e deste trabalho resultou uma série de duos e solos para flauta. Neste caso, foi importante orientar os compositores quanto às possibilidades técnicas do instrumento e o nível de dificuldade acessível. Preparou-se, então, uma “lista de possibilidades sonoras e técnicas” que foi utilizada pelos colegas na composição de suas peças. As peças foram revistas e alteradas, quando necessário. c Prática No decorrer de quatro meses, durante suas aulas semanais e paralelamente ao repertório tradicional de flauta transversal, quatro de meus alunos iniciantes — de oito a treze anos de idade — trabalhavam também com técnicas estendidas envolvendo a produção de novas sonoridades, através dos pequenos estudos musicais e da prática de repertório contemporâneo, aprendendo algumas daquelas peças e estudos compostos especialmente para este projeto.

d Nova revisão do repertório e sugestão para futuras composições A partir da prática com os alunos e o trabalho com os compositores, identificouse a necessidade de revisão de algumas peças e estudos, além da re-elaboração da lista inicial de orientação ara compositores, para novamente retornar à prática.

O trabalho referente ao desenvolvimento de repertório e sua re-elaboração — justamente a parte da criação de subsídios para tentar contornar o problema delimitado no estudo — é relatado a seguir.

Preparação e revisão da lista “Orientação para compositores” Como comentado anteriormente, muito da dificuldade das obras contemporâneas vêm do virtuosismo técnico exigido, mais do que das técnicas estendidas em si. Por outro lado, mesmo instrumentistas bastante ágeis tecnicamente muitas vezes afastam-se da música contemporânea em conseqüência da aparência complicada decorrente da escrita que envolve técnicas estendidas. A idéia de elaborar-se uma “lista” veio da necessidade não só de delimitar o material, para que cada compositor tivesse uma gama de possibilidades sonoras à escolha, mas de relacionar também as restrições por tratarem-se de composições voltadas a iniciantes. A lista foi elaborada empiricamente, ou seja, com base na experiência e observação. O primeiro passo foi testar a execução de algumas possibilidades sonoras com os alunos, para verificar se as sugestões pretendidas estariam mesmo dentro de sua capacidade técnica e cognitiva. Esta lista foi sendo re-elaborada à medida em que surgiam dúvidas por parte dos compositores e informações novas eram coletadas a partir de novas referências bibliográficas encontradas. A lista inicial foi dividida em 1) orientações quanto a divisões rítmicas; 2) orientações quanto à extensão possível no instrumento; 3) orientações quanto às técnicas estendidas possíveis; e 4) observações finais (ver Figura 1).

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Figura 1 — A “Orientação para compositores”, versão inicial.

1. Divisão rítmica A precisa divisão rítmica é uma dificuldade para a maioria das crianças no estágio inicial, especialmente para aquelas que não tiveram treinamento prático musical anterior. Portanto, as peças deveriam incluir ritmos muito simples, com subdivisões de semínimas em colcheias e semicolcheias ocasionais. A expressão “como no começo do Pozzoli” veio de uma pergunta de um dos compositores, quando comentei informalmente sobre o projeto, e pareceu-me bastante elucidativa. Faltou

incluir no texto para que se evitassem síncopes e contratempos seguidos, pois são extremamente difíceis para os iniciantes, apesar de ser possível escrevê-los subdividindo semínimas em colcheias. A falta desta explicação causou alguns problemas nas composições, como veremos mais tarde. Já a notação proporcional, apesar de geralmente não ser familiar aos iniciantes, parece não causar estranhamento ou maior dificuldade uma vez que se explique como funciona. Os acelerandos são possíveis, porém a afirmação de que deveriam ser com notas repetidas deveria ser enfatizada, pois algumas composições resultaram difíceis por utilizarem-nos com notas diferentes. 2. Extensão A extensão não inclui o dó grave, por ser de difícil emissão, ou notas agudas, por envolverem posições de forquilha (por isso poderiam ser alcançadas por harmônicos, mas não na posição normal). Saltos extremos também podem muitas vezes causar dificuldades. Além disso, faltou a restrição do uso de muitos acidentes seguidos, especialmente da mistura de sustenidos e bemóis na mesma célula melódica. 3. Técnicas estendidas possíveis Os trilos tonais, que a princípio estariam restritos a movimentos de um só dedo, podem ser utilizados também quando o movimento é de mais de um dedo, desde que não envolvam as duas mãos ou posições de forquilha. Para whisper tones, havia a restrição de que só seria possível a “varredura de freqüências”. Isto foi explicado e demonstrado individualmente a cada compositor. Com relação aos sons de vento, ou wind tones, faltou delimitar a extensão (sugerida por Artaud, e confirmada experimentalmente), do mi grave ao si b médio. A palavra “desafinação” foi substituída por “glissando”. No item percussão de chaves, faltou deixar claro que o flautista necessita de tempo para o movimento do dedo que é usado para percutir a chave, a não ser que o efeito desejado seja apenas pianíssimo, sem altura definida, e então pode-se percutir várias chaves ao mesmo tempo, aleatória e rapidamente. Há uma confusão de termos no item “slap tongue”, pois este nome é usado por diferentes compositores para determinar diferentes técnicas. A técnica específica abordada aqui é determinada por “tongue ram”. É também muito importante orientar os compositores sobre a necessidade de preparação para a execução do tongue ram, pois esta demanda algum tempo para que o flautista posicione a flauta

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de maneira a encobrir o bocal e ainda tempo para o movimento da língua, que é diferente do tradicional. 176

Com relação ao jet whistle, faltou constar da lista que cada um não poderia ser excessivamente longo, pois esta técnica demanda muito ar. Quanto ao trêmolo com efeito glissando, notou-se que para as crianças é muito difícil trinar alternadamente as chaves de ré e ré #, além do movimento de notas na mão esquerda. Orienta-se portanto para o uso de apenas uma das chaves, a de ré, quando há movimento da mão esquerda. Para notas longas, como a mão esquerda fica parada, é possível fazer o trêmolo com ré e ré # . 4. Observações Por fim, nas observações, deve ser incluída uma nota sobre dinâmica, alertando sobre a dificuldade de produzir na flauta notas piano no agudo e notas fortes no grave.

As composições A arregimentação dos compositores deu-se em grande parte através do contato com os colegas do curso de mestrado e também por e-mail a compositores de meu conhecimento que talvez se dispusessem a colaborar com o projeto. Treze compositores mostraram-se interessados, dos quais oito compuseram uma ou mais peças. Foram utilizadas efetivamente peças de seis destes compositores. O retorno de cada um dos compositores foi muito diverso. Alguns já haviam trabalhado com técnicas estendidas, mas para outros este foi um campo bastante novo, também por serem peças para iniciantes. Aqui apresentaremos as peças de três compositores, juntamente com a discussão do processo. Foram escolhidos como exemplos pela variedade de seus estilos composicionais. 1. Gilson Fukushima Foi o primeiro a entregar as peças. Muito eclético, o compositor tem experiência com diversos gêneros, do rock à música de vanguarda. Já havia trabalhado antes com técnicas estendidas para flauta, e suas peças foram bastante acessíveis ao nível proposto. Escreveu um duo, Pára de atrapalhar minha Música e uma peça para flauta e piano, A cobra encantada. Pára de atrapalhar minha música é descrita em sua bula como uma “brincadeira” na qual um flautista tenta tocar e o outro o atrapalha, a música segue até que os

dois finalmente tocam juntos, entrando em acordo. Neste duo o compositor usa multifônicos, jet whistles, e tongue ram em um só momento. 177

Figura 2a — Fukushima, Pára de atrapalhar minha música, versão inicial, compas-

sos 17-19

Figura 2b — Fukushima, Pára de atrapalhar minha música, versão final, compassos

17-19

A grande dificuldade técnica encontrada — após a experimentação com os alunos — foi a seqüência de contra-tempos no final da peça, que foi modificada na sua versão final repetindo as notas dos contratempos no lugar das pausas (Figuras 2a e 2b). Os elementos cênicos podem causar certa dificuldade, especialmente se tratando de crianças mais velhas, que muitas vezes sentem-se tímidas com relação a “atuar” no palco. O próprio compositor, porém, advertiu que a parte cênica “não é essencial, apesar de dar um tempero especial à peça”. O uso dos jet whistles também causou certa dificuldade, pois, como demandam muito ar, é difícil segurá-los longamente, como sugerido na peça, nos compassos 9 a 11 (Figura 3a). O mesmo aconteceu em A cobra encantada, nos compassos 12 a 14. Para adaptá-las, a sugestão é que se execute os jet whistles nas direções indicadas, mas que entre cada um deles haja pausas, até a entrada seguinte (Figura 3b). Nesta segunda peça, A cobra encantada, o pianista toca dentro do piano, fazendo glissandos e percutindo a corda lá0 num ostinato rítmico, portanto o piano também é utilizado de maneira não-tradicional. A parte da flauta é bastante acessível para iniciantes, e além dos jet whistles inclui também glissandos para baixo e assoprar dentro do instrumento.

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Figura 3a — Fukushima, Pára de atrapalhar minha música, versão inicial,

compassos 9 -11

Figura 3b — Fukushima, Pára de atrapalhar minha música, versão final,

compassos 9 -11

2. Débora Opolski Compositora ligada à música popular brasileira e à música de cinema, nunca havia trabalhado com técnicas estendidas antes, mas mostrou-se encantada com a nova possibilidade. A princípio compôs um duo — Rosa Manca — para flautas no qual, com relação a técnicas estendidas, incluiu apenas alguns jet whistles no início e no meio. Como não tinha intimidade com o uso de técnicas estendidas, mostroume o que seria um esboço do duo para que decidíssemos juntas exatamente o que incluir, ou que mudanças deveriam ser feitas. A primeira mudança foi com relação a re-arranjar as vozes, de modo que tivéssemos pelo menos uma delas bem simples, (no caso, a primeira, como mostram a figuras figuras 4a e 4b), e re-editar as notas de modo que não houvesse problemas de enarmonia. O segundo passo foi incluir as técnicas estendidas de maneira que fizessem sentido musical, pois a melodia não havia sido construída a partir deste material — a compositora havia somente colocado alguns sinais (“) sobre as notas que pensou que pudessem ser de alguma maneira “transformadas” em técnicas estendidas. Optouse então pelo uso de glissandos para baixo permeando toda a peça e duas intervenções de percussão de chaves, estas em momentos nos quais a outra voz estivesse em pianíssimo, para que fosse possível ouvir este efeito, que é muito sutil. Em cer-

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Figura 4a — Opolski, O Mistério da Rosa Manca, versão inicial, compassos 1 - 12

Figura 4b — Opolski, O Mistério da Rosa Manca, versão final, compassos 1 - 12

tos momentos foi necessário ainda suprimir algumas notas, para que a realização dos efeitos fosse possível para um iniciante, como por exemplo nos compassos 33 e 34 (figura 5a e 5b), pois é necessário que haja tempo para re-posicionar a flauta e atacar a nota seguinte na afinação correta. Mais tarde, em conjunto com alunos, decidiu-se por omitir o compasso final da peça para criar um efeito de suspensão. O nome da peça também foi complementado por sugestão das crianças: O Mistério da Rosa Manca.

Figura 5a — Opolski, O Mistério da Rosa Manca, versão inicial, compassos 31-35

180 Figura 5b — Opolski, O Mistério da Rosa Manca, versão final, compassos 31-35.

3. Sólon Mendes Flautista, o compositor tem idéias claras das possibilidades e dificuldades do instrumento, apesar de nunca ter escrito para crianças anteriormente. Escreveu um duo e um trio de flautas. No duo explorou jet whistles, percussão de chaves e trêmolos com efeito glissando; alternou escrita métrica e notação proporcional, numa estrutura A-B-A muito clara e acessível. Esta peça sofreu apenas algumas modificações rítmicas na segunda voz, acrescentando-se, após alguns contra-tempos, notas no tempo em substituição a pausas, a fim de facilitar a contagem e também as entradas da primeira voz (Figuras 6a e 6b, por exemplo). O nome Duo foi substituído por outro, mais sugestivo — Cronocosmos a Jato — numa alusão à técnica usada e à outra peça do compositor. Em seu trio, Cronocosmos nº9, tongue rams e trêmolos com as chaves de ré e ré# permeiam toda a peça, e jet whistles marcam o seu final. Não houve mudanças necessárias para a realização desta peça, que foi composta após as mudanças rítmicas na anterior haverem sido sugeridas.

Figura 6a — Mendes, Cronocosmos a Jato, versão inicial, compasso 1

Figura 6b — Mendes, Cronocosmos a Jato, versão final, compasso 1

Comentários Finais Para os compositores, a experiência foi um desafio diferente daqueles aos que estavam acostumados, pois o processo da composição está ligado à submeter as idéias ao material disponível, e como no caso o material era aquele possível aos iniciantes — limitado a restritas possibilidades rítmicas, intervalares e de tessitura, mas ao mesmo tempo com efeitos sonoros não-usuais — as peças resultaram do choque entre as idéias trazidas pelo material sonoro e as restrições impostas pelas limitações técnicas dos pequenos intérpretes, dentro do estilo individual de cada compositor. Há quase cinqüenta anos, Charles Rosen, descrevendo a difícil situação da música contemporânea, afirmava que o problema é que estamos tão conscientes de que a responsabilidade é de todos, que esperamos que os outros demonstrem uma mudança de vontade e comecem a fazer algo para repará-lo. (. . .) Os compositores, sabendo que uma obra, de qualquer dificuldade, será raramente executada, tornam-na ainda mais difícil, tanto para o público quanto para o intérprete, e agora estão se voltando para o campo da eletrônica, do qual o intérprete, e provavelmente o público, serão banidos em definitivo (Rosen 1962, p. 80).

Deste modo, para os compositores, o ganho cognitivo deu-se exatamente pelo esforço de adequação; em um refinamento na percepção da realidade, pela busca da capacidade técnica de amoldar-se às diferentes realidades, pois que existem outras além da sua própria. Notou-se que, em alguns casos, se o estilo pessoal é muito conservador, é mais difícil assumir as técnicas estendidas e usá-las com interesse. Por outro lado, o estilo mais conservador faz a ponte mais rápido com o que as crianças já conhecem: esta é a contrapartida. Portanto, não se pode desconsiderar o compositor que não é de vanguarda, e para o próprio compositor é um ganho, pois vê-se obrigado a usar materiais que não usaria. O trabalho junto aos compositores e o resultado obtido com as crianças também interferiu no meu próprio trabalho, de maneira que foi revista e alterada a “lista de orientações para compositores” para um futuro uso didático deste material. A partir deste contato com os compositores, ficou evidente a importância da relação compositor — intérprete — professor, no sentido de integrar o trabalho dos três. O compositor entendendo melhor as dificuldades do intérprete, o intérprete compreendendo o processo do compositor, e enquanto professor desmistificando a idéia de que o compositor seria uma figura distante e inalcançável. Esta integra-

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ção — sugerida naquele artigo de Rosen — mostra-se um caminho possível e desejável no ensino de música. 182

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