Criação e comércio: a “cultura do dancehall” comparada ao funk e ao tecnobrega

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Criação e comércio: a “cultura do dancehall” comparada ao funk e ao tecnobrega1 Bruno Barboza Muniz Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSAUFRJ) Introdução Pretendo realizar um estudo comparativo das práticas musicais e empresariais do funk carioca e do tecnobrega paraense com aquelas existentes na Jamaica, a partir do que Norman Stolzoff (2000) denominou a “cultura do dancehall”. Estas manifestações se constituíram a margem do sistema hegemônico das grandes gravadoras, ignorando a existência da propriedade intelectual e criando seus próprios esquemas de comercialização informais e regulação das trocas criativas. Em todos estes casos, o reaproveitamento de um mesmo material sonoro é um procedimento corriqueiro, seja no uso de samplers, na remixagem de outras faixas ou até na criação de versões totalmente novas de outras músicas. Algo muito relevante é o fato destas manifestações terem surgido em um contexto de escasso capital, o que estimulou o desenvolvimento de uma estética baseada no reaproveitamento de fonogramas (VEAL, 2007). Contudo, a redução de custos não pode ser considerada o único fator explicativo. Trata-se de um determinismo econômico rasteiro desconsiderar outros fatores como, por exemplo, a existência de uma cultura oral, onde as trocas criativas são realizadas de maneira diferente daquela estabelecida pelo direito autoral. Este, aplicado na música inicialmente para defender a autoria de obras que circulavam no formato de partituras, em um momento histórico europeu que prezava fortemente a unidade da obra e a individualidade do autor. Atentar para o formato utilizado na circulação da música pode nos ajudar a compreender não apenas aspectos mais comerciais e econômicos, mas também características estilísticas. No caso jamaicano a música é vendida nos chamados “dub plates”, onde de um lado existe a versão com voz e do outro a versão dub. Já no funk e no tecnobrega existe uma predominância de coletâneas com a participação de vários artistas. A comercialização não 1

Trabalho apresentado em 2009 na VIII Reunião de Antropologia do Mercosul no Grupo de trabalho “Etnografias de Práticas Econômicas, Reflexões sobre Fronteiras Sociais”.

segue um padrão pautado em álbuns, como na indústria tradicional, o que pode mudar em breve. Apesar de ainda representar uma parte pequena da receita das gravadoras, a venda avulsa de músicas vem crescendo e pode se tornar um padrão caso a venda pela Internet vingue. O afastamento do formato álbum revela um padrão de consumo e produção onde ambas as práticas se misturam através da fragmentação, esta tendência chega ao extremo das colagens realizadas por Djs, que não respeitam unidades básicas para o consumidor mais tradicional, como a canção, por exemplo. As características musicais podem ser interessantes do ponto de vista estritamente musicológico ou etnomusicológico, enquanto a organização produtiva e de comercialização poderia ser estudada separadamente como um fenômeno econômico. Contudo, nesta separação, perdemos de vista a relação entre as práticas comerciais e criativas, que neste caso podem ser extremamente esclarecedoras de outras manifestações como o tecnobrega paraense, o funk carioca e até o hip-hop norte-americano. Percebe-se uma recorrência simultaneamente musical, produtiva e comercial em todos estes casos, nos quais verifica-se uma criatividade musical acontecendo ao longo da cadeia produtiva, através da intervenção de engenheiros de som, deejays, toasters, programadores de batidas, cantores. Neste sentido, busco justapor práticas de comercialização e criatividade, demonstrando como as indústrias geradas em todos os casos considerados se afastam do modelo das grandes gravadoras, que se prende de todas as maneiras possíveis em uma defesa intransigente dos direitos autorais. Não que não existam conflitos com relação à autoria, mas eles podem ser resolvidos, ou não, de outras maneiras. Dinheiro e arte são vistos como opostos dentro da estética européia. Para Bourdieu (2005), por exemplo, esta oposição é fundamental nos julgamentos do que é arte ou não, na teoria dos campos o autor pressupõe uma autonomia relativa do campo da arte. Contudo, esta autonomia tem sido alvo de críticas por diversos antropólogos, para Marcus e Myer (1995), por exemplo, se tornou impossível falar de arte sem se falar em dinheiro. Eles desenvolvem em cima deste tema afirmando que é necessário a aceitação da perda desta autonomia e a transformação disso em algo positivo. Através de uma reflexão em torno da pirataria, onde o termo será considerado de maneira heurística e propositalmente extensa, pretendo pensar os limites entre o criar, o trocar, o roubar, o comercializar, etc.

Pirataria marítima e informacional

Uma pergunta: o estudo dos piratas convencionais, muito comuns durante os séculos XVI, XVII e XVIII, pode nos ajudar a compreender os piratas de hoje? Marcus Rediker e Peter Linebaugh no livro Between the Devil and The Deep Blue Sea e Peter Lamborn Wilson em Utopias Piratas buscam realizar uma história social dos piratas que recupere seus hábitos, códigos, idéias, ideologias e organizações. Lamborn Wilson (2001) após analisar as estruturas políticas da República de Salé e da cidade de Argel, enclaves piratas localizados no norte da África, chega à conclusão de que governos razoavelmente democráticos para os padrões da época existiram nestes locais. O autor nos diz o seguinte de Argel: “Minhas suspeitas são de que a vida diária da cidade não era nem mais nem menos violenta, considerando-se toda a história da humanidade, do que a vida diária de muitos outros grupos urbanos. Mas Argel era diferente porque sua economia dependia da violência fora de suas fronteiras – as ações dos corsários. E era mais democrática do que as monarquias européias ou islâmicas” (LAMBORN WILSON, 2001, p. 37).

Os piratas e renegados de uma forma geral possuíam um lugar de importância dentro daquele contexto marítimo de transição do feudalismo para o capitalismo, sendo, contudo, deixados um pouco de lado por historiadores modernos. Como coloca Richard Henning Field: “The merchant world that Rediker explores and brings to life as part of the harsh realities of life at sea encompasses the long and painful transition from feudalism to capitalism; the rise of the capitalist mentality of production, labor, wages, and profit; and the complex realities and class confrontation over issues of power, authority, work, and discipline” (FIELD, 1990, p. 76).

Pensar os piratas de então e os piratas do mundo digital lado a lado é interessante para que entendamos melhor estas práticas realizadas em uma condição de fronteira à margem das transações consideradas “corretas”. Assim como os piratas do mar estão ligados às condições prevalecentes em um momento histórico de transição para o capitalismo, os piratas contemporâneos também refletem a emergência do que na sociologia tem recebido uma diversidade de nomes, dentre eles “sociedade complexa” e “sociedade da informação”. Para autores como Anthony Giddens (1997) e Alberto Melucci (1985), nas sociedades complexas os conflitos e desigualdade não dizem respeito apenas aos aspectos de cunho material. Espaços públicos abertos onde códigos possam ser apropriados e interpretados de formas diversas são muito importantes para o estabelecimento de um entendimento entre as pessoas. Neste momento histórico, dominação diz respeito à capacidade de controlar a construção e circulação de idéias. Dentro deste contexto, as regulações relativas à propriedade

intelectual ganham uma importância imensa e o combate à pirataria vira um item de importância primordial entre as políticas a serem implementadas pelos países signatários de acordos como o TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) da OMC. Diga-se de passagem, uma agenda impulsionada de maneira clara pelos interesses dos países desenvolvidos. Diferentemente das fortunas materiais roubadas pelos piratas estudados por Lamborn Wilson, Rediker, Linebaugh entre outros, o que está em questão quando falamos em pirataria atualmente é o “roubo” da propriedade imaterial. No mundo analisado por Rediker e Linebaugh os piratas causavam prejuízos, o mesmo parece ocorrer hoje, os jornais falam em uma crise na indústria fonográfica causada principalmente pela “pirataria” (MUNIZ, 2008). Autores como Nestor Canclini (2008), Homi Bhabha (2007) e Paul Gilroy (2001) afirmam a importância de se atentar para o fronteiriço. Tanto os “piratas da informação” dos dias de hoje, como aqueles atuando nos mares do mundo em um longo período da nossa história, parecem concentrar suas atividades exatamente no “entre-lugar”. As situações de fronteira oferecem dificuldades dos mais diversos tipos às organizações nacionais e supranacionais. Por exemplo, é comum o cruzamento de fronteiras como forma de escapar do enfrentamento de um processo legal. A Internet - aqui considerada também como um “entre-lugar” – ainda oferece dificuldades a juizes, legisladores e juristas. É possível a utilização do termo “pirataria” fazendo-o abranger estas atividades que entram em conflito com as definições legais de “propriedade” e que, normalmente, ocorrem em uma condição fronteiriça. Contudo, não se trata necessariamente de um conflito deliberado e racionalizado, a resistência e a subversão surgem aqui como um processo complexo de construção de identidade. Citando Bhabha: “Esses ‘entre-lugares’ fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria idéia de sociedade” (BHABHA, 2007, pág. 20).

A sociedade, assim como a música, está constantemente se recriando, para Simmel, o conceito de sociedade utilizado para referir-se a “grandes sistemas” e “organizações supraindividuais” - cristalizações que podem adquirir “existência e leis próprias” – deve ser

diferenciado da sociação, “algo que os indivíduos fazem e sofrem ao mesmo tempo”. Simmel se coloca contra um entendimento substancialista e pouco dinâmico do social: “A sociedade não é, sobretudo, uma substância, algo que seja concreto para si mesmo. Ela é um acontecer que tem uma função pela qual cada um recebe de outrem ou comunica a outrem um destino e uma forma” (SIMMEL, 2006, p.18).

Aqueles responsáveis pela geração de conteúdo musical desenvolvem sua própria maneira de regular o trabalho criativo a despeito do que diz a legislação, trata-se do que Simmel chama de sociação. Como colocado por Kretschemer e Kawohl: “copyright practice is already changing, as in their various ways, bootleggers, Djs, samplers, consumers and performance artists invent new forms of cultural engagement” (Kretschemer e Kawohl, 2004, p. 44). Parece haver uma lacuna entre a prática criativa e a legislação de proteção ao autor, próxima de valores extraídos do idealismo alemão e do utilitarismo inglês (Kretschemer e Kawohl, 2004). A perspectiva utilitarista é orientadora de instituições responsáveis por regular a atividade criadora, e o faz baseando-se em pressupostos irrealistas a respeito da atividade criadora e dos próprios artistas. Como coloca Sahlins: “Ao se conceber a criação e o movimento dos bens exclusivamente a partir de suas quantidade pecuniárias (valor de troca), ignora-se o código cultural de propriedades concretas que rege a ‘utilidade’ e, com isso, continua-se incapaz de explicar o que é de fato produzido” (SAHLINS, 2007, p. 180).

Conseqüentemente, a legislação vigente parece ignorar “o que é de fato produzido”, além de como é produzida a criação musical no dias de hoje. Em grande parte devido a visão herdada no berço de enxergar a criação como destacada da produção e da circulação.

Pirataria musical Algo muito comum em todas as manifestações consideradas neste trabalho é a forma como a composição da música acontece ao longo de sua circulação e comercialização. Não estamos falando de obras acabadas vistas como um fim, mas principalmente de um processo de construção e desconstrução constante. A criatividade é vista como uma constante re-

elaboração, e porque não, negociação. Nestes casos, a originalidade é entendida de maneira distinta daquela presente na legislação atual de direitos autorais. Realizo, assim, uma reflexão sobre a utilização do termo “pirataria”, associado a práticas realizadas no “entre-lugar” e marcadas por uma relação ambígua de aproximação e recusa dos valores hegemônicos. Argumento que as músicas tocadas nos sound systems jamaicanos, nas aparelhagens paraenses e nas equipes de som cariocas podem receber a denominação de “piratas”. Mas, em que sentido estas culturas musicais em questão podem ser vistas como “piratas”? Procuro pensar a pirataria não como uma prática que necessariamente envolva a violação da lei. Definir em termos estritamente legais o termo nos impede de entender situação nas quais se fala em pirataria mesmo quando não há o registro formal. A pirataria será usada neste trabalho para revelar conflitos em relação ao estatuto da propriedade que transcendam ao simples desrespeito a uma norma institucionalizada. Utilizo o termo de maneira extensa, abarcando práticas que normalmente não são assim chamadas (como o uso de sampler), mas que estão o tempo inteiro em risco de colidir com o estabelecido legalmente da mesma forma que outras ações que costumam receber este nome. É uma ampliação heurística que serve para lançar luz sobre certas questões. Uma delas é o fato da pirataria produzir efeitos contraditórios, uma vez que participa do mundo simbólico com relação ao qual entra em conflito. Basta percebermos como os piratas marítimos estão sempre associados a tesouros em um período da economia européia marcado pelo metalismo, assim como estão hoje associados à falsificação de grandes marcas. Valores são reforçados e minados simultaneamente. A ambivalência é uma das características mais importantes da pirataria, o “entre-lugar” marcando a tênue separação entre o legal e o ilegal. Erin Mackie (2005) em um estudo sobre as identidades e contraculturas caribenhas realiza uma comparação dos Rastafaris e Rude Boys com os desterrados e piratas, figuras importantes em séculos anteriores nesta parte do mundo. Não há espaço para avançar no conteúdo desta comparação, porém, um ponto deste trabalho de Mackie é imensamente relevente: o desenvolvimento do conceito de pirataria como capaz - através desta ação realizada em regiões fronteiriças onde as regras tornam-se mais difusas - demonstrar as cumplicidades entre os fora-da-lei e o sistema dominante.

Entrevistas dadas para a pesquisa que deu origem ao livro “Tecnobrega: o Pará reinventando o negócio da música” demonstram a importância da pirataria na distribuição dos cds do tecnobrega. Os próprios entrevistados integrantes do circuito brega utilizam este termo e reconhecem a importância da prática para a popularização do gênero e dos artistas nele envolvidos. Caso o termo pirataria é utilizado para referir-se a reprodução não autorizada pelo detentor da propriedade intelectual de material protegido, serve bem também para descrever uma série de práticas como o sampler, a versão, o remix, a citação, a colagem, todas as vezes que elas são feitas sem autorização expressa do autor. No livro Music and Copyright (TOYNBEE, 2004; THÉBERGE, 2004) são relatados dois casos de litígios entre grupos de rap (Beastie Boys e 2 Live Crew) e detentores de direitos autorais que terminaram a favor dos grupos de rap. Os samplers foram considerados como um uso justo, aplicou-se o fair use2. Contudo, diversos autores concordam na dificuldade de se aplicar o direito autoral tradicional às culturas musicais onde a versão, o remix, a colagem e a citação são recursos fundantes; mesmo onde existe o reconhecimento do fair use. Como coloca Jason Toynbee: “One of the biggest problems identified in this chapter concerns sampling or, more generally, the creative reuse of music. It was suggested that when thinking about copyright and reuse an African diasporic model of culture, where versioning is the norm, might be more appropriate than the European ideal of original creation” (TOYNBEE, 2004, p. 135).

Vistas como um todo musical e organizacional estas manifestações regulam suas trocas através de parâmetros estranhos àqueles existentes na Europa no momento do surgimento da legislação de proteção ao autor. Entretanto, não são marcadas pelo isolamento, e ao circularem pelo mundo globalizado estas práticas geram, no mínimo, a necessidade de uma utilização mais flexível da legislação, como é o caso das licenças creative commons, que são uma adaptação do direito autoral tradicional. Isto para que estas práticas mantenham o seu caráter não-privatizado, caso contrário, o direito autoral permite a utilização destes artifícios

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Fair use é um dispositivo presente na legislação americana que permite o uso não autorizado de material protegido por lei em determinadas condições. É inexistente na legislação brasileira.

criativos, mas com custos muito mais elevados. Um exemplo, é o de Gabriel O Pensador que ao gravar pela Sony pagou cada uma das citações utilizadas (HERSHMANN, 2005).

Ambivalência pirata Na minha recente viagem pelo Pará pude notar a penetração do fenômeno tecnobrega. A cada lugar que eu ia, o mais recente Super Vetron - um dos grandes sucessos desta indústria - podia ser escutado em carros passando, em caixas de som instaladas na rua e também em bicicletas e minicarros adaptados para tocar música. Sua distribuição é feita basicamente através de camelôs, no meu caso pude comprar uma cópia por dois reais. Sua embalagem é simples, um plástico contendo o cd e um papel impresso em colorido com os nomes das músicas e a foto de uma mulher de biquini. Além disso, apresenta no canto um desenho de um pirata com a inscrição “Piratinha G.d.c”, pude verificar a repetição desta marca em outros cds, me levando a pensar que se trata de um “selo”, como o Piratex que encontramos nas ruas do Rio de Janeiro. Algo marcante na produção musical do brega é a proliferação de versões locais de grandes sucessos internacionais. Como coloca Paulo Murilo do Amaral: “Se o tecnobrega é ‘autenticamente’ paraense, é também caracterizado pela ‘não autenticidade’; ou seja, o som, que é ‘autêntico’, consiste também na recriação (em “versões”, para usar um termo nativo) de músicas que estão na crista da onda no circuito mundial das rádios, da produção discográfica, audiovisual e dos espetáculos” (AMARAL, 2006, p. 2) .

Nas versões do tecnobrega o que importa não é a proximidade entre a “cópia” e o “original” produzido por uma superlogomarca, no caso uma grande gravadora. Poderia até dizer que o que define a versão brega é exatamente a distância do “original”, a adaptação a uma manifestação musical local. Contudo, não quero pensar em termos de proximidade e distância de um “original”, pois é possível que esta palavra não tenha o mesmo sentido para os envolvidos na produção do funk, do tecnobrega ou da música jamaicana. Além disso, copiar um tênis da Nike é da mesma forma que a versão brega uma infração da legislação de proteção à propriedade intelectual. Os responsáveis pelas versões poderiam ser processados da mesma forma que o falsificador de tênis. A falsificação do tênis não deve ser entendida como uma prática menos investida de significação cultural em virtude de sua motivação menos “artística”.

É possível a argumentação de que o alto valor de produtos de marca se deva a um maior custo com pesquisa e desenvolvimento. Porém, mais importante para a discussão do que a legitimidade ou não dos preços de certos produtos, é como o seu consumo revela a importância destes símbolos para as pessoas. Assim, muitos consumidores - que segundo Lins Ribeiro (2009) são de classes cada vez mais altas - preferem as cópias de marcas conhecidas do que produtos que talvez tenham o mesmo patamar de qualidade de alguns produtos falsificados, mas que apresentam uma marca não conhecida. A ambivalência em relação à pirataria é perceptível dentro das próprias culturas musicais em questão. Comecemos pelo tecnobrega: muitos artistas incentivam a distribuição de distribuidores e reprodutores não autorizados, o que segundo Lemos e Castro não configuraria pirataria, pois a lei não é infringida. Contudo, os próprios artistas falam em pirataria de materiais que nem registrados são. Assim, o termo é utilizado a despeito de haver ou não infração de qualquer lei. Isso revela que não há total concordância a respeito da cópia ilimitada das músicas, mas, considerando a necessidade de se obter fama, a distribuição pirata é reconhecida como necessária. Isso aparece claramente na seguinte fala de um cantor solo: “a pirataria é o meio mais rápido que existe, porque o cara pega e manda fazer cinqüenta mil CDs, aí distribui pro Pará todo. Os Cds aqui de Belém vão para o Maranhão, Amazonas. Então nossa música está, através da pirataria, chegando a outros estados. É uma fonte de divulgação muito grande. O importante é que a música está tocando e o pessoal quer saber o nome do artista” (LEMOS e CASTRO, 2008, p. 162).

Assim que a fama chega, os artistas começam a sentir os efeitos negativos da pirataria de maneira mais forte, uma vez que esta produção realmente se constitui como uma competição indesejada. Dessa forma, várias estratégias são utilizadas para lidar com a distribuição pirata. Acordos são fechados, como o de um determinado artista que negociou a matriz do seu DVD com dois “pirateiros”. A cópia das bases não é o único tipo de conflito que o hábito de re-utilizar fonogramas gera na “cultura do dancehall”. A concentração nas mãos do produtor das masters das gravações permite com que ele controle as múltiplas re-configurações da gravação original extraindo receitas que não são, na maioria das vezes, repassadas aos músicos que gravaram o riddim. Os músicos sentem-se, portanto, injustiçados. Uma campanha do sindicato dos músicos

conseguiu banir as músicas de versões do rádio durante um período da década de 1970 na Jamaica, contudo, as rádios não conseguiam competir com os sound systems como divulgadores e a medida foi pouco efetiva. Um trecho extraído do livro de Herschmann deixa bem claro a ambiguidade da pirataria também no funk carioca: “Vale a pena também frisar que a prática da pirataria (...) é uma questão com a qual o hip-hop e o funk se defrontam de maneira muito curiosa. Ao mesmo tempo que a pirataria é legitimada na produção, faz parte do processo criativo, da ‘pilhagem’ realizada por esses jovens, ela traz alguns problemas no que se refere ao consumo. Primeiro, nada impede que os grupos produzam trabalhos muito parecidos, com bases musicais idênticas, promovendo em alguns momentos uma certa saturação das músicas e, em segundo lugar, com as gravadoras independentes, ou melhor, com o crescimento dos pequenos estúdios ‘caseiros’, o controle sobre os direitos de venda é menor” (HERSHMANN, 2005, p. 270).

Feito pode-se perceber através da experiência do funk carioca, do tecnobrega e da “cultura do dancehall” busca-se exercer algum controle sobre as práticas piratas, elas não são aceitas de maneira totalmente não-conflituosa. Mas, elas estão intimamente associadas ao modo de se fazer música, assim como à sua circulação, comercialização e divulgação. O baixo custo não deve ser visto como uma causa que gera a reciclagem de fonogramas. A criatividade e a comercialização, assim como a cópia e o roubo, devem ser compreendidos dentro de uma análise relacional. Não se pode ignorar, por exemplo, a oralidade destas manifestações, que é outro destes fatores que contribuem para uma estética baseada na recorrência de padrões e em uma recepção festiva e grupal, onde performances são realizadas a partir da intervenção em um material pré-existente. Paul Gilroy fala, por exemplo, da duplicidade característica da música do Atlântico negro, que está ao mesmo tempo dentro e fora dos princípios estéticos ocidentais. Aqueles engajados na produção musical se entendem como músicos, artistas, etc. Existe o que poderíamos chamar de uma noção da arte como um domínio autônomo, além disso, a preocupação com a originalidade está presente. Contudo, existe também o que Gilroy chama de “(más)cara de uma pré-modernidade que é ativamente reimaginada no presente” (GILROY, 2001, p. 160), que vai de encontro exatamente às idéias de autonomia e originalidade.

A idéia de duplicidade nos ajuda a entender a tentativa dos agentes de controlar a mimesis3, mesmo onde a criatividade parece estar ancorada nela. Há também, segundo Gilroy, uma busca pela modificação da relação destas formas culturais com outras artes, a ciência e a filosofia, havendo uma tentativa de reconfiguração destes domínios; assim como uma transformação da relação entre a forma de se produzir e usar arte com o mundo cotidiano e projetos políticos, principalmente o de emancipação racial.

Sistemas de som e competitividade A recepção em locais públicos orienta boa parte da produção musical considerada neste trabalho, e, portanto, não pode ser desconsiderada. São empresas bastante competitivas entre si que organizam esta veiculação pública: no caso do tecnobrega temos as aparelhagens; no funk, as equipes de som responsáveis pelos bailes funk; e na Jamaica a cultura dos sound systems, que foi exportada para diversos lugares do mundo. Como já considerado, o funk, o tecnobrega e a música jamaicana possuem em comum uma produção a baixíssimo custo que permite a constante geração de novidades. As festas exigem uma alta rotatividade das músicas de sucesso, portanto, estas estão sempre mudando - ainda que com a permanência de alguns elementos. As produções da indústria fonográfica hegemônica devem possuir uma durabilidade ao longo do tempo em termos de vendas, espera-se que o investimento alto feito no artista seja pago ao longo do tempo de alguns anos, ao menos era assim que costumava ser nos tempos áureos. Nos casos aqui analisados uma música não permanece muito tempo tocando, em pouco tempo elas são esquecidas e substituídas por outras, possivelmente cantadas por novos artistas. O custo é baixo do ponto de vista da circulação do material, uma vez que o comércio informal é dominante e os suportes são de baixo custo. Tenta-se reduzir o custo na gravação também, reutilizando-se bases e gravando-se em home studios com a utilização de baterias programadas. A utilização de sons digitalizados em detrimento de gravações acústicas é predominante na Jamaica atualmente, como relatam Veal e Stolzoff, assim como o produtor Kassin, que viajou para a ilha caribenha durante a gravação do cd da cantora Vanessa da Matta: “No estúdio que a gente gravou o cara falou que não gravava bateria acústica fazia mais de um ano” (Alexandre Kassin). 3

A respeito do controle social da mimesis, de seu caráter paradoxal e criativo, assim como o limite entre cópia, roubo e troca ver Taussig (1992).

Esta rápida produção está muito associada à competitividade feroz entre as aparelhagens, equipes de som e sound systems. Para Veal: “the sound of dub is the sound of profit consolidation, as fiercily competitive producers do their best to maximize profits from sucessive reconfigurations of minimal source material” (VEAL, 2007, p. 90). Além disso, um dos motivos pelos quais as vozes eram tiradas das versões dub, era para abrir espaço para o deejay divulgar o próprio sound system, enquanto provocava seus competidores. No livro de Ronaldo Lemos e Oona de Castro a competitividade entre as aparelhagens também é notada, havendo disputas em torno de certas inovações que colocariam uma ou outra aparelhagem à frente da outra. Esta apresentação da aparelhagem Tupinambá demonstra bem como as aparelhagens buscam se distinguir através da tecnologia e outras inovações, como apresentar a primeira mulher Dj: “Prepare-se! A partir de agora você vai ouvir, curtir e dançar ao som da melhor e maior aparelhagem de todos os tempos: Tupinambá – o Treme Terra! A maior estrutura de som está aqui para fazer a sua alegria. Som tridimensional, iluminação digital e os melhores DJs no comando do Altar Sonoro: Dj Toninho; Dj Weley; a primeira Dj mulher em aparelhagem – ela, a DJ Agatha; e o fantástico DJ Dinho. Agora é TUPINAMBÁ!”( LEMOS e CASTRO, 2008, p. 65).

A proximidade com a experiência das equipes de som cariocas é notável, inclusive no que diz respeito ao fascínio pela tecnologia. A grande vantagem frente aos competidores é possuir o mais moderno e potente equipamento sonoro: “Quase sempre são as equipes, pela qualidade de som, que atraem o público, e a publicidade do baile é feita em torno de seu nome. Os DJs são mantidos em posição secundária, tanto que estão sempre de costas para o público (ao contrário das boates da Zona Sul do Rio, ou de qualquer outra cidade, onde os DJs ficam de frente para o público, controlando melhor o que acontece na pista de dança), As equipes acham mais importante impressionar os dançarinos mostrando seus amplificadores (ver fotos), com inúmeros botões, ponteiros e luzes piscando. Isso faz parte da competição interequipes, que sempre disputam o título de melhor aparelhagem, ou maior ‘potência’” (VIANNA, p. 70). Este relato de Hermano Vianna é um tanto antigo, alguns detalhes relatados já devem ter se modificado, contudo, não há motivos para se acreditar que a competitividade tenha se reduzido desde então. Apesar de movimentarem multidões, estas “empresas” como as aparelhagens, as equipes de som e os sound systems não são, na maioria das vezes, formalizados ou bem vistos pelas

elites. Os bailes funk, no Rio de Janeiro, e os sound systems, na Jamaica, possuem um longo histórico de repressão policial. Com relação às aparelhagens, por exemplo, 19% possuem CNPJ (LEMOS E CASTRO, 2008), e costumam ser mais bem aceitas, ao menos não possuem um histórico de repressão comparado ao do funk e dos sound systems.

Considerações finais Marshall Sahlins no humorístico livro “Esperando Foucault, Ainda” alerta para as dificuldades de uma recente tendência na antropologia de “explicar” práticas “em termos de poder e resistência, hegemonia e contra-hegemonia”. Segundo o autor, corre-se o risco de nada dizer significativamente através destes termos quando utilizados sem “referência realpolítica”. Levando em consideração este alerta de Sahlins, procurei realçar os aspectos ambivalentes da pirataria e não apenas a sua contradição no que diz respeito às relações mais institucionalizadas e formais do mercado fonográfico; a pirataria não se presta a ser compreendida através de dicotomias. Cito um trecho do livro que me parece bastante adequado a esta discussão: “Hoje, fala-se muito em ‘culturas da resistência’, embora fosse claramente mais acurado descrever o que vem acontecendo como resistência da cultura. Além disso, essa resistência vem-se dando há muito tempo, desde antes e de forma independente do imperialismo ocidental. A subversão cultural, ao envolver a integração do estrangeiro nas categorias e relações do familiar – uma modificação nos contextos culturais das formas e forças externas que modifica também seus valores -, é algo consubstancial às relações interculturais. Como modo de diferenciação inerente à ação humana, esse tipo de resistência cultural é mais inclusivo que qualquer oposição deliberada, já que não requer uma política autoconsciente de distinção cultural, nem se restringiu historicamente às reações dos povos colonialmente oprimidos” (SAHLINS, 2004, p. 74).

Muito se discute sobre a necessidade de proteger as criações dos povos do chamado quartomundo, simultaneamente, existe uma discussão muito animada em torno da defesa de uma maior flexibilidade da legislação autoral, de maneira que o caráter eminentemente social da criação seja contemplado, em detrimento de uma concepção excessivamente associada a um determinado período da história européia. Pode-se pensar que existe uma contradição entre a posição de defesa dos interesses dos povos do quarto-mundo, o que exigiria supostamente mais regulação, e aquela sustentada por aqueles que apóiam uma maior liberdade do fluxo de informações. O que existe é uma multiplicidade de maneiras de se criar, além de muitas concepções nativas sobre a arte. Esta multiplicidade necessariamente entra em contradição

com leis que foram pensadas em uma outra realidade, a partir de concepções utilitaristas e idealistas. É praticamente impossível ignorar tais valores ao se participar do mercado mundial de música, como é possível perceber com a experiência da globalização do reggae. Entretanto, a impossibilidade de se ignorar tal valores não implica em uma aceitação imediata, tampouco em um recusa intransigente, desta relação entre o estrangeiro e o familiar pode surgir o que Sahlins denominou no trecho citado de resistência.

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