Crianças-soldado: o discurso liberal e os incentivos à violência

July 5, 2017 | Autor: G. Ayres Arantes ... | Categoria: Guerra, Segurança Internacional
Share Embed


Descrição do Produto

Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015

Crianças-soldado: o discurso liberal e os incentivos à violência9

Neste artigo busca-se entender a forma pela qual o discurso liberal tradicionalmente concebe o papel da criança nos conflitos armados, contrastando essa perspectiva com a abordagem de David Keen e Mark Duffield sobre a violência. Objetiva-se, assim, promover uma reflexão sobre um tema por vezes negligenciado na segurança internacional.

Giovanna Ayres Arantes de Paiva10

Inter-Relações / Ano 15 - Nº 41 / 1º semestre 2015 / p. 18-27

Palavras-chave: conflitos armados; crianças-soldado; violência.

Introdução Quando se fala na proteção de civis durante conflitos armados – principalmente os intraestatais – destaca-se uma categoria específica em relação àqueles que são atingidos diretamente pelos conflitos: as crianças, em especial as chamadas crianças-soldado. A definição de criançassoldado adotada comumente é aquela contida nos Princípios de Paris, que as define como “qualquer pessoa com menos de 18 anos que é ou foi recrutada ou usada por uma força armada ou grupo 9

Uma versão prévia deste trabalho foi apresentada oralmente no 5º Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais (SimpoRI) na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em 2014. Agradeço as sugestões e observações que contribuíram para o amadurecimento deste trabalho. 10 Mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Membro do Observatório de Política Exterior e do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) desde 2010. Pesquisa a área de Paz, Defesa e Segurança Internacional, com ênfase no recrutamento de crianças-soldado.

P á g i n a | 18

Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015

armado em qualquer tipo de função, incluindo meninos e meninas usados como combatentes, cozinheiros, espiões e escravos sexuais” (UNICEF, 2007, p. 7)11. Nota-se uma postura mais alarmante sobre o emprego de crianças-soldado em conflitos armados, tema que passou a ser incluído entre os assuntos que afetam a paz e a segurança internacionais. O emprego de crianças por grupos paramilitares ou até mesmo por forças armadas nacionais é enxergado como uma ameaça à própria segurança da criança que, ao participar ativamente dos conflitos, priva-se dos seus direitos à educação, saúde e lazer. Frequentemente, os casos de recrutamento de crianças-soldado são associados não só aos conflitos internos que se desenrolam em diferentes continentes, mas também às condições políticas, sociais e econômicas locais. Se, por um lado, muitas crianças seriam raptadas e forçadas a uniremse às partes beligerantes, por outro lado, algumas se alistariam de forma voluntária, como forma de garantir a sobrevivência em um contexto no qual não há mais uma estrutura familiar e estatal capaz de garantir apoio à criança e a seus direitos básicos (MACHEL, 1996). Essas são algumas das características gerais traçadas quando se pensa na utilização de crianças-soldado: a criança como vítima de um conflito que propaga a violência e como vítima de um Estado que não tem condições de garantir o bem-estar da população. A criança-soldado é, consequentemente, o objeto da segurança em análises que enfatizam a proteção do indivíduo, principalmente da criança. Apesar de esses aspectos parecerem obrigatórios em um estudo sobre o tema em questão, eles carregam em si concepções de um discurso liberal que pode obscurecer alguns pontos também relevantes sobre o assunto, porém pouco explorados. A intenção do presente texto é explicitar dois pontos: em primeiro lugar, como a partir de um discurso liberal cria-se a imagem tradicionalmente associada à criança-soldado; em segundo lugar, colocar em evidência questões não tão exploradas quando se trata das crianças-soldado, como o recrutamento voluntário e os incentivos à violência oferecidos às crianças. Para isso, as análises de Mark Duffield (2001; 2010) e David Keen (2000) serão úteis.

11

“Any person below 18 years of age who is or who has been recruited or used by an armed force or armed group in any capacity, including but not limited to children, boys, and girls used as fighters, cooks, porters, messengers, spies or for sexual purposes. It does not only refer to a child who is taking or has taken a direct part in hostilities” (UNICEF, 2007, p. 7).

P á g i n a | 19

Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015

O discurso liberal e o recrutamento de crianças-soldado Sobretudo a partir da década de 1990, assiste-se a uma onda de intervenções, principalmente visando assegurar os valores liberais considerados universais e que devem ser garantidos em qualquer parte do mundo, como as instituições e as práticas democráticas. Soma-se a isso o impulso que a chamada “securitização” ganhou principalmente após o 11 de setembro, de forma a prevenir riscos possíveis, não só advindos de ações terroristas, mas também riscos econômicos, ambientais e societais (HIRST, 2014). Tudo isso contribui para a difusão das ideias liberais e do internacionalismo liberal. Conforme destaca Hirst: A premissa básica do internacionalismo liberal é que a paz e a segurança somente podem estar asseguradas em um mundo dominado por democracias, no qual a institucionalidade multilateral constitui instrumento central. Primeiramente, esta fórmula inspirou a criação da Liga das Nações [...]. Logo, foi utilizada na Carta do Atlântico, que levou à fundação da ONU em 1945 e à retomada com afinco em 1989, quando terminou a Guerra Fria. Com o fim da Guerra Fria, o internacionalismo liberal experimentou novo impulso, que, por sua vez, conduziu a dois desdobramentos paralelos. O primeiro – de natureza conceitual e normativa – compreende a intervenção como um dever, especialmente frente a determinados cenários que justificariam soberania encurtada e contida em nome de ação externa salvadora. O segundo diz respeito à importância crescente das ações militares para a eliminação dos focos de “ameaças à paz mundial”, que tanto seriam conduzidas unilateralmente como por meio de mandatos multilaterais. Neste caso, o conceito de ameaça internacional adquiriu sentido especialmente lasso, impreciso e muitas vezes desproporcional. (HIRST, 2014, p. 10).

Nesse contexto, outra dimensão da soberania estatal ganha espaço: a “soberania compartilhada”, que, segundo Hirst (2014), serviria para lidar com situações nas quais o exercício da soberania convencional já “não funciona”. Isto é, os mandatos da ONU legitimariam a suspensão da capacidade de um Estado de controlar sua situação interna, já que este seria supostamente incapaz. Essas intervenções multidimensionais remetem a um intervencionismo “que se impunha independentemente de particularidades e idiossincrasias de culturas políticas locais” (HIRST, 2014, p. 15). Essa responsabilidade de proteger carrega em si os princípios da Segurança Humana, ou seja, de proteger o indivíduo de um Estado que não garante os direitos básicos (SLAUGHTER, 2011). Apesar de o debate sobre a Segurança Humana e a responsabilidade de proteger parecerem P á g i n a | 20

Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015

recentes, ambos guardam raízes no liberalismo clássico do século XVIII. Conforme Emma Rothschild (1995) argumenta, a Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, consistia nos direitos de liberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão, ou seja, eram condições do indivíduo, um direito privado. Os princípios de segurança do final do século XX constituem, portanto, uma retomada das políticas dos séculos XVIII e XIX. Os Direitos Humanos de 1948 estão também contidos nos direitos americanos e na Revolução Francesa. Esses direitos começam com a segurança do indivíduo, uma segurança que garanta o livre usufruto da propriedade, o direito de participação política e que o indivíduo não será perturbado pela violência. Porém, esses ideais serviram para legitimar intervenções em outros Estados, em nome da defesa da segurança. O problema dessa série de intervenções é querer disseminar um modo único de tratar os conflitos e reconstruir Estados. Esse modo liberal de intervenção utiliza as lentes da Segurança Humana, percebendo a criança somente como a vítima do conflito e obscurece as particularidades dos contextos em que elas estão inseridas. Por isso, cabe agora analisar outros fatores importantes quando se trata das crianças-soldado, que vão além da ótica liberal.

Princípios universais e incentivos à violência Apesar da construção desse discurso que pode ser visto em documentos oficiais da ONU e nas atividades de algumas ONGs, há outros fatores que podem ser levados em consideração quando se trata das crianças em conflitos armados, mas que não são tão frequentemente citados. Duas perspectivas nos ajudarão a expor essa análise. Primeiramente, a discussão que o autor Mark Duffield (2010) traz sobre a universalidade do liberalismo no processo de reconstrução de um Estado e, posteriormente, a abordagem de David Keen (2000) sobre os incentivos à violência. Criticando justamente as noções do liberalismo já vistas anteriormente, Duffield contraargumenta a universalidade dessas categorias liberais. Uma característica do liberalismo é justamente sua tendência de ver nos povos não ocidentais a falta de requisitos necessários para uma existência adequada. Para suprir essa inadequação, o desenvolvimento aparece como uma forma de fornecer a solução para esses povos na forma de uma tutela moral. Duffield (2010, p. 61) alega que “Através do apoio e da educação fornecida externamente, o desenvolvimento promete transformar P á g i n a | 21

Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015

uma vida inadequada em uma vida plena” (tradução nossa)12. Portanto, o desenvolvimento também seria uma forma de governar o outro na medida em que muda comportamentos e atitudes e impõe uma solução considerada adequada. Por isso, o desenvolvimento tem funcionado como uma tecnologia liberal da segurança. O autor ainda argumenta que, ao ditar o modelo de desenvolvimento que deve ser seguido, as agências da ONU e as ONGs não objetivam levar para esses lugares que passam por conflitos os mesmos níveis de desenvolvimento e proteção social que desfrutam, por exemplo, países mais desenvolvidos. Pelo contrário, Duffield defende que, através das noções de sustentabilidade, necessidades básicas e de Segurança Humana, a maneira liberal de desenvolvimento funciona para reproduzir e manter a divisão entre desenvolvimento e subdesenvolvimento. Em suma, o objetivo seria manter as desigualdades de desenvolvimento e prover somente aquele desenvolvimento mínimo para conter as populações mais pobres em seus respectivos países, evitando assim, ondas migratórias para países mais desenvolvidos. Seria uma política então de contenção, a fim de conter as populações nos países menos desenvolvidos, evitando que tragam problemas relacionados ao subdesenvolvimento para as áreas mais desenvolvidas. Ademais, Duffield (2001) critica o modo de resolução dos conflitos que se foca, geralmente, somente no Estado em que o conflito ocorre, e não na rede de relações que envolve determinado conflito. Nesse ponto, é necessário ressaltar a concepção que o autor apresenta de “guerras em rede” (network wars) (2001, p. 21), no sentido em que os atores estatais e não-estatais formam uma rede de relações que mantêm e perpetua a guerra. Portanto, não haveria como acabar com um conflito apenas com medidas dentro de determinado Estado. O mais eficaz seria romper essa rede de relações transnacionais que financia e fortalece o conflito. Porém, isso demandaria desmantelar atividades econômicas em outros países, inclusive naqueles que enviam ajuda humanitária para o local do conflito ou aqueles que têm peso importante nas decisões da ONU. Já David Keen (2000) traz uma importante contribuição ao romper com a ideia de que o conflito armado é necessariamente uma “quebra” ou “colapso” da ordem vigente, e que os conflitos consistiriam em uma interrupção do processo do desenvolvimento. Keen defende que a guerra não seria irracional, como uma guerra de todos contra todos, em seu estilo mais selvagem. A guerra 12

“Through externally provided support and education, development promises to make incomplete life full and wholesome” (DUFFIELD, 2010, p. 61).

P á g i n a | 22

Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015

pode ser, para esse autor, a possibilidade de emergência de um sistema alternativo de poder e proteção. Essa perspectiva decorre da concepção de violência que o autor traz. A violência pode ser entendida de dois modos: “top-down”, ou seja, a mobilização da violência por grupos dominantes como políticos e empresários, por motivos econômicos ou políticos, e “bottom-up” que se refere à violência praticada por civis comuns ou soldados do baixo escalão, como uma solução para seus próprios problemas. Esse envolvimento com a violência pode servir para funções econômicas, psicológicas e de segurança. Mais do que isso, a violência pode ser um fim em si mesma, visto que se engajar em abusos e crimes traz recompensas imediatas. Assim, a violência é o fim e a guerra é apenas um meio para se chegar a esse fim. A participação em grupos armados durante um conflito, por exemplo, pode ser entendida nesse tipo de violência, ou seja, pode ser uma forma de proteção, de vingança ou mesmo de defesa. Para aqueles que implementam a violência, ela serve a interesses que se prolongam no tempo à medida que a violência também se prolonga. Nesse sentido, pode haver vantagens para determinadas partes beligerantes em manter um conflito armado e não mais em vencê-lo. Algumas dessas vantagens seriam o uso da violência contra os civis; o controle do comércio local; a exploração do trabalho em favor de uma das partes beligerantes (até mesmo a escravidão ou formas análogas a ela); o acesso à terra, água e recursos naturais; benefícios extraídos do envio de ajuda humanitária; e o saque de civis. Mas em que medida as abordagens de Duffield (2001; 2010) e Keen (2000) ajudam a entender o caso das crianças-soldado? Apesar de existir uma legislação que protege as crianças durante um conflito armado (como o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo ao Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados, de 2002) é difícil impedir seu recrutamento apenas com base em documentos. As ações da ONU e de algumas ONGs tendem a tratar o assunto procurando uma solução universal para o tema, que estaria contida nos princípios liberais. Entretanto, ao tratar o emprego de crianças-soldado a partir de princípios considerados universais, pode-se obscurecer as particularidades de cada conflito, e são essas particularidades, por vezes ignoradas, que nos levam a entender o porquê do recrutamento. Especificidades culturais e a imagem que cada sociedade tem da criança e da infância podem interferir no processo de reintegração à vida civil de uma criança-soldado e em como essa criança se enxerga no grupo militar em que foi incorporada. P á g i n a | 23

Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015

Além disso, considerar o recrutamento de crianças-soldado como um problema de segurança internacional como a ONU faz, focando-se nos aspectos da Segurança Humana, ou seja, na proteção individual da criança, seria uma forma de desviar a atenção de outros aspectos relevantes, como o modo pelo qual os grupos armados são financiados, qual a relação dos demais países com um Estado cujas forças armadas nacionais recrutam crianças, quais as relações comerciais desse Estado com outros países, porque recrutam crianças-soldado, se o grupo armado age internacionalmente, etc. Não se deve esquecer que, enquanto os grupos continuarem sendo financiados e não se romper essa rede de relações, eles continuarão empregando crianças. Desse modo, enquanto ainda houver incentivos à violência e enquanto a utilização de crianças em conflitos armados for lucrativa e cômoda, será difícil interrompê-la. O recrutamento de crianças-soldado em conflitos armados, em suas diferentes formas, deve ser visto não só como a vitimização da criança forçada a se engajar em grupos armados que as sequestram ou as obrigam a trabalhar, mas também como uma possibilidade de terem proteção e segurança. Ou seja, em determinados contextos, participar ativamente de um conflito como uma criança-soldado é um incentivo à violência e uma forma da própria criança, juntamente aos grupos ou forças armadas, estabelecer recompensas imediatas através da violência, pois as crianças-soldado uma vez recrutadas podem ser levadas a participar do crime e dos benefícios do crime, percebendo como eles trazem vantagens como uma espécie de licença para roubar, explorar o trabalho, explorar civis e espalhar o medo. É verdade que tratar o emprego de crianças-soldado como um problema de segurança internacional, que contraria toda a legislação já estabelecida sobre o assunto e os princípios liberais, chama mais atenção e confere mais urgência para a resolução desse assunto. Não obstante, buscar uma fórmula universal para lidar com o tema impede enxergar as particularidades dos conflitos que utilizam as crianças-soldado.

Considerações finais Conforme visto, as constantes violações contra civis durante conflitos armados e o aprofundamento dos estudos sobre segurança contribuíram para a maior relevância do tema das crianças-soldado. O desenvolvimento dos estudos de segurança também contribuiu para ver a P á g i n a | 24

Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015

questão de outra forma, haja vista a abordagem da segurança como um tema multissetorial, a qual explicita que os temas da agenda de segurança não são estritamente militares, mas podem envolver uma pluralidade de questões, dependendo da forma como são interpretados em determinado contexto sócio-histórico. Essa perspectiva iniciou-se quando Buzan, Wilde e Waever (1998), na década de 1980, introduziram a ideia de que o setor militar é apenas mais um setor dos estudos de segurança, que incluem também os setores ambiental, econômico, societal e político. A partir disso, há um entendimento de que a agenda de segurança não envolve questões apenas militares, mas também questões que extrapolam a lógica estadocêntrica. Os estudos sobre Segurança Humana, conforme já citado, os quais se baseiam na ideia de que as ameaças aos indivíduos estão mudando e intensificando-se, aborda a tradição humanocêntrica, ou seja, enfatizando as condições necessárias para que os indivíduos tenham segurança. Trata-se de enxergar os impactos locais e globais dos conflitos em variados âmbitos como econômico, da alimentação, da saúde, do ambiente, pessoal, comunitário e político. Desse modo, com as atenções da sociedade internacional – acadêmicos, organizações não governamentais, organizações internacionais – voltadas para a segurança do indivíduo, principalmente dos civis em contexto de guerra, aliado à imagem já construída da infância e da criança, reforça a postura da ONU que, em seu relatório, afirma: O envolvimento sistemático do Conselho de Segurança sobre a questão de crianças e conflitos armados representa um elemento-chave da estratégia de defesa do Escritório do Representante Especial. Com seis resoluções do Conselho de Segurança dedicadas especificamente à questão das crianças e os conflitos armados desde 1999, a questão está agora firmemente na agenda do Conselho, em que se reconhece que ela representa uma ameaça legítima para a paz e a segurança internacionais (ONU, 2005, p. 4, tradução nossa).13

Legitimando tal prática como uma ameaça à Segurança Internacional e aproveitando-se dos estudos de Segurança multissetorial, a Organização abre precedentes para tomar medidas 13

“The systematic engagement of the Security Council on the issue of children and armed conflict represents a key element of the advocacy strategy of the Office of the Special Representative. With six Security Council resolutions dedicated specifically to the issue of children and armed conflict since 1999, the issue is now firmly on the agenda of the Council, where it is recognized that it presents a legitimate threat to international peace and security” (ONU, 2005, p. 4).

P á g i n a | 25

Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015

extraordinárias de proporção internacional contra o emprego de crianças em conflitos armados. Porém, os desafios que as Nações Unidas enfrentam consistem em estabelecer perguntas além daquelas guiadas puramente por princípios liberais e ir mais além, questionando porque os Estados ou grupos armados dentro dos Estados empregam crianças-soldado; quais funções essas crianças desempenham no conflito; quais as relações políticas e econômicas das partes beligerantes com outros setores da sociedade; o que faz determinado conflito ser lucrativo e prolongar-se no tempo. Afinal, ao dizer que a utilização de crianças-soldado é uma ameaça à paz e à Segurança Internacional, pressupõe-se que os inimigos seriam as partes beligerantes que empregam tais crianças. Para combater o inimigo, é fundamental conhecê-lo. Portanto, as perguntas que devem ser feitas vão além da estigmatização dos chamados “Estados falidos” e de Estados não democráticos. Não menos importante, também é necessário questionar qual a concepção de “infância” que cada sociedade (principalmente as não ocidentais) possui. No caso das crianças-soldado, a infância é o valor a ser protegido e que pode até justificar uma intervenção, haja vista que já existe uma ampla legislação em defesa das crianças em conflitos armados e uma intervenção desse tipo ou a manutenção de uma intervenção em nome da defesa da infância e dos direitos básicos da criança dificilmente seria deslegitimada pela sociedade internacional e opinião pública. Porém, uma visão desse tipo ignora que, quando já inserida em uma situação de conflito, a criança encontra incentivos nas formas de violência que perpetuam sua atuação em determinado grupo, rompendo a análise tradicional da criança como a vítima, pois nessas situações, uma criança na linha de batalha constitui, ela mesma, uma ameaça real para a vida de outros civis.

Referências bibliográficas BUZAN, Barry, WILDE, Jaap; WAEVER, Ole. Security. A new framework for analysis. Colorado: Lynne Rienner Publishers, Inc., 1998. DUFFIELD, Mark. Global Governance and the New Wars. London: Zed Books, 2001. ______. The Liberal Way of Development and the Development–Security Impasse: Exploringthe Global Life-Chance Divide. Security Dialogue, 2010.

P á g i n a | 26

Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015

UNICEF, FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA. Paris Principles, 2007. Disponível em: Acesso em: 10 jul. 2014 HIRST, Mônica. O Brasil Emergente e os Desafios da Governança Global: a Paz liberal em questão. Brasília: IPEA, 2014. KEEN, David. Incentives and Disincentives for Violence. In: MALONE; BERNAL (eds.). Greed & Grievance. Lynne Rienner Publishers, Inc.: London, 2000. MACHEL, Graça. Promotion and Protection of the Rights of the Children: Impact of armed conflict on children. UNICEF, 1996. Disponível em: . Acesso em: 26 jun. 2014. MÜNKLER, Herfried. Viejas y nuevas guerras: assimetría y privatización de la violencia. Madrid: Siglo XXI, 2005. ONU, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembleia Geral. Report of the Special Representative of the Secretary-General for Children and Armed, Conflict, 2005. Disponível em: Acesso em: 03 ago. 2014. ROTHSCHILD, Emma. What is Security? Daedalus. Vol. 124, nº3, Summer, 1995. SLAUGHTER, Anne-Marie. Wilsonianism in the twenty-first century. In: The crisis of American foreign policy: Wilsonianism in the twenty-first century. Princeton: Princeton University Press, 2011.

P á g i n a | 27

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.