Crime e Contrapeso

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Aquela menina havia vivido algo monumental: tinha dois anos e meio quando seu pai faleceu em um acidente de trabalho. Trabalhava na manutenção da rede elétrica da cidade e morreu eletrocutado. Um pouco depois, sua mãe, dando à luz uma segunda menina, morreu no parto. Seu tio materno a estuprou pouco depois do duplo luto e da dupla ausência de protetores. A menina foi internada com ruptura de períneo. A avó materna, mãe do tio estuprador, alegou, logo na chegada ao hospital, que a menina havia "caído do peniquinho (sic) e se machucado por causa disso". O corpo médico chamou a polícia para saber mais detalhes desse estranhíssimo "acidente".

A menina tinha sido atendida sistematicamente num hospital-dia antes de chegar até mim. Tinha entre quatro e cinco anos quando comecei a atendê-la.

Minha primeira providência e provisão para a menina: mais homens confiáveis. Mostrei à avó o quanto seu filho estuprador, que ela tentara proteger com sua desculpa, não era nenhum inocente e me assegurei com homens da família [que mandei chamar até mim] que ele se mantivesse longe da criança. Ele estava foragido, acobertado por outros familiares, e acabou preso, para tristeza da mãe-avó. Quando eu disse para a avó que a criança precisaria de "mais homens" a coisa lhe soou paradoxal: imaginem só seu espanto. Sim, avó: dentista homem, ginecologista homem, clínico geral homem. Tudo isso. Na escola, já havia as tias, as professoras. O professor de educação física era homem e conversei com ele. Eu mostrei à avó e ao professor de educação física [criando o link família nuclear-escola] a ampla gama de profissionais masculinos compassivos, a anos-luz distantes da pedofilia, que eu conhecia no serviço público, onde ela estava sendo atendida por mim. Ela precisava entrar em contato com o masculino protetor, muito para além-e-aquém do masculino predador que conhecera. Seu pai, o genro da tal avó, poderia ter sido bom, mas seu registro havia sofrido a sobreposição de um abuso inominável. No hospital-dia, felizmente, a menina havia conhecido "tios e tias" bons. Ela sempre me chamou de "tio".

Sempre foi interessante ver a criança brincando com elevado grau de "absorção concentrada", desfrute e capacidade empática para com outras crianças de ambos os sexos. Meu respeito ao vê-la "trabalhando em seu brinquedo" fazia com que as outras crianças respeitassem-na também. Havia um detalhe que elas sabiam, mas isso nunca incluiu a especificidade do ato de agressão. Não. Ela era uma menina que tinha passado por um hospital todos os dias, por mais de um ano. Entre os tantos brinquedos providenciados por mim para aquela UBS, havia um conjunto de xícaras, pratos, talheres, na verdade o tipo de réplica de "baixela" que se costuma ganhar nas festas de casamento. No "entusiasmo concentrado" da criança por aquele brinquedo enxerguei um excelente link entre eu e a menina e, mais fundamentalmente do que isso: um instrumento dela fazer coisas "empareada com as atividades da avó". Assim sendo, no uso daquele "brinquedo" em casa, ela me sentiria por perto [o tal objeto transicional de Winnicott: "o tio terapeuta também está comigo em casa enquanto eu brinco, e ele fica por perto no brinquedo mesmo quando eu paro"], além de exercitar a relação com a avó num espelhamento do tipo "gemelar" com ela ["agora, vó, posso fazer coisas de cozinha enquanto a senhora faz as suas e, talvez, como veria minha mãe fazer, se ela estivesse aqui"]. Assim, eu ficava "com ela e com a avó". No mínimo. Repus uma baixela semelhante na caixa de brinquedos do consultório [comprei outra semelhante, cuja cor fiz questão de distinguir]. As outras crianças, por sua vez, compreendiam que "aquela menina precisou daquele brinquedo" ["a menina que tinha vindo de um hospital e passado por ele por um bom tempo", lembrem-se]. Nas sessões, ela passou a brincar com outras coisas – bonecas, objetos de pano [bichos, pessoas] e, sobretudo, a usar papel sulfite e cartolina para fazer desenhos e "me presentear com eles": ela também me dava seu objeto transicional ["pode levar um pouquinho de mim com você, tio"; "eu também posso te fazer companhia na sua casa, onde você também poderá me fazer companhia"]; e, aqui, nós temos uma série de "informações cruzadas", para além-e-aquém do conteúdo das brincadeiras. Essa "bitransicionalidade" também foi operada por alguns outros tios [dentista, etc] e ela foi se apropriando de um "tônus masculino que sabe cuidar" e, sobretudo, "que quer cuidar". Isso é interessante e fundamental. Esse objeto é parte do eu que vai se construindo, esse "tônus do masculino protetor", é um selfobjeto. Ninguém precisa esmiuçar Heinz Kohut para apreender o que estou narrando em simples e compreensível português.

A menina cresceu. Já não precisava de mim anos depois, mas a avó e ela me visitavam, algumas vezes. A avó entendia que "os coleguinhas da escola, muitos dos quais meninos, é que lhe faziam companhia até que pegasse o ônibus, para que não ficasse exposta a assaltos", isso já na adolescência. "Meninos legais protegem as meninas, não só a avó" [que, de fato, não poderia estar ali, e era mais fraca do que eles, fisicamente falando], muito menos o "escamoteamento da verdade" ["pseudo-acidentes": a "renomeação do crime como não-crime" – um crime em si mesmo]. A avó, naquele novo contexto, também sabia dimensionar o peso de seu primeiro erro de "não-nomeação", e ficava aliviada "porque as coisas agora estavam caminhando".

Alguns anos depois, essa menina, cujo faro se tornou "acima da média" no tocante à captação dos "tons de intenções masculinas" [isso é algo muito sério e profundo: um aprendizado internalizado que, agora, faz parte do "eu daquela jovem" – seu self], soube escolher um namorado que a tratava muito bem. E sem que este precisasse assumir "a carga histórica do desenvolvimento dela" [!]. A menina, tendo superado o segredo, pôde optar pelo silêncio, para não transtornar o namorado com "uma história que envolvia um homem que ainda estava vivo: o tio agressor". A este feeling precisamos associar um bom grau de "maturidade para com o masculino" [!].

Grande percurso, o dela: muito mais do que simplesmente distinguir "tios bons" de "tios maus".


A avó também aprendeu algo significativo.





Marcelo Novaes

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