Crimen Contra O Mogno -- National Geographic Brasil

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crime contra o

mogno

A extração ilegal quase extinguiu essa madeira do Peru. Agora os madeireiros apontam as motosserras contra espécies menos conhecidas, mas cruciais para uma floresta sadia.

A escultura de mogno em um parque no centro de Pucallpa simboliza a importância da árvore. 119

Por Scott Wallace Fotos de Alex Webb

O mogno é a joia da coroa da Amazônia. Seu tronco magnífico assoma dominador no dossel florestal. O padrão vermelho vivo e a durabilidade fazem dessa tora um dos mais cobiçados materiais de construção no mundo, valorizado por mestres artesãos, símbolo de riqueza e poder. Uma única árvore pode render dezenas de milhares de dólares no mercado internacional quando sua madeira trabalhada chega às vitrines dos Estados Unidos e da Europa. Depois de 2001, ano em que o Brasil proibiu a extração do mogno, o Peru tornou-se um dos maiores fornecedores mundiais. A corrida do “ouro vermelho”, como o produto às vezes é chamado, despojou de suas árvores mais valiosas muitas regiões peruanas, como a do Alto Tamaya, lar dos índios ashaninkas. Agora, os derradeiros espécimes de mogno, e também os de cedro-rosa, estão quase todos restritos a terras indígenas, parques nacionais e reservas territoriais demarcadas para proteger tribos isoladas. Diante desse quadro, os madeireiros passaram a mirar outros gigantes da floresta dos quais poucos de nós já ouvimos falar: copaíba, ishpingo, shihuahuaco, capirona, que vão parar em nossas casas na forma de dormitórios, armários e pisos. Essas variedades menos conhecidas têm ainda menos proteção que as carismáticas e caras, como o mogno. Porém, muitas são cruciais para os ecossistemas florestais. Conforme os madeireiros vão descendo na lista das espécies, cortam mais árvores para compensar os lucros decrescentes e, nesse processo, ameaçam hábitats críticos. Primatas, aves e anfíbios que vivem nos 120  nat ional g eo graphic

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andares superiores da floresta se veem ameaçados. As comunidades indígenas, abaladas, dividem-se entre as que defendem a conservação e as que buscam dinheiro rápido. E algumas das tribos mais isoladas do planeta fogem do zunido das motosserras e do aterrador estrondo dos leviatãs seculares desabando no chão. Acredita-se que três quartos da extração anual de madeira no Peru provenham de práticas ilícitas. Dizem que, apesar do combate à extração do mogno iniciado há cinco anos e do drástico declínio na produção no país, boa parte da madeira que chega aos mercados do mundo industrializado tem origem ilegal. A maioria dessas exportações vai para os Estados Unidos, mas a parcela destinada à Ásia vem crescendo.

Próximo ao Alto Tamaya, a sudeste, um mosaico de 38 850 quilômetros quadrados de áreas protegidas conhecidas como Complexo de Conservação do Purus é riquíssimo em árvores gigantescas, que brotaram no solo da selva séculos atrás. Essa região contém a cabeceira dos rios Purus e Yurúa, que depois correm para o Acre, e suas encostas escarpadas abrigam tribos que vivem em isolamento. Ali pode estar, também, até 80% do mogno que ainda resta no Peru. As madeireiras ilegais estão usando povoações indígenas próximas como porta dos fundos para as terras protegidas. Muitas comunidades foram ludibriadas por homens que lhes ofereceram dinheiro em troca de ajuda para obter licenças para cortar árvores. Em posse dessas licenças, eles

Um agente do serviço de parques do Peru mede em palmos o diâmetro do tronco de um mogno derrubado ilegalmente. Um madeireiro com uma motosserra pode abater um gigante centenário como este em menos de meia hora.

vendem o mogno que derrubam dentro das reservas. Ao longo do rio Huacapistea, um afluente do Yuruá que demarca a fronteira noroeste da Reserva Territorial Murunahua, negócios escusos empobreceram e decepcionaram meia dúzia de comunidades ashaninkas. No auge da estação das chuvas, junto-me a Chris Fagan, diretor executivo da ONG Upper Amazon Conservancy, e Arsenio Calle, diretor mo g no   121

VENEZUELA OCEANO ATLANTICO

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Âmbito do mogno Histórico

Atual

Mostrada apenas a porção sul-americana

74°o Uso do mogno no peru Concessões para extração 8° Madeireiros compram licenças, mas críticos afirmam que são usadas para vender árvores derrubadas em terras adjacentes.

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Áreas protegidas Complexo de Conservação do Purus Com 38 850 quilômetros quadrados, abriga tribos remotas e boa parte do mogno peruano proibido aos madeireiros.

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Reservas territoriais  Áreas protegidas foram demarcadas para povos indígenas que vivem isolados; nelas é ilegal extrair madeira.

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martin gamache e MAGGIE SMITH FONTES: LABORATÓRIO DE ANÁLISE ESPACIAL, UNIVERSIDADE DE RICHMOND; CHRIS FAGAN, UPPER AMAZON CONSERVANCY; JAMES GROGAN, INSTITUTO FLORESTA TROPICAL; INSTITUTO DEL BIEN COMÚN

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O Peru é um dos maiores fornecedores de mogno. Essa árvore, que requer uma combinação exata de solo, umidade e luz solar, é encontrada do México e América Central até a borda meridional da bacia Amazônica. A extração reduziu o mogno a 30% de seu hábitat histórico na América do Sul.

N

122  nat ional g eo graphic

Corrida do ouro vermelho

A

do Parque Nacional do Alto Purus, em uma incursão pelo rio Huacapistea. Com jeito de garoto em seu uniforme cáqui folgado, Calle, de 47 anos, tem autoridade sobre boa parte do complexo do Purus. “Arsenio faz um trabalho notável ao remover madeireiros do parque”, diz Fagan. “Mas a demanda por mogno ilegal continua grande.” A organização de Fagan criou no Peru um grupo associado chamado ProPurus para ajudar a administração do parque e as federações indígenas a protegerem as florestas. Uma iniciativa consiste em organizar “comitês de vigilância” nas comunidades para patrulhar a orla do parque nacional e manter afastados os intrusos. O diretor de campo do ProPurus, José Borgo Vásquez, um sexagenário veterano de batalhas conservacionistas por toda a Amazônia peruana, também vem a bordo de uma de nossas canoas motorizadas. “Os madeireiros estão roubando vocês”, diz Borgo a um grupo em nossa primeira parada, a aldeia ashaninka de Dulce Gloria. “Vocês não fazem nada para impedi-los.” Borgo acredita que os esforços de conservação só terão êxito se as comunidades locais se empenharem na defesa de suas terras nativas. Os dois principais obstáculos, diz ele, são a pobreza e a falta de instrução, que tornam o dinheiro sedutor e a proteção da floresta difícil de explicar a muitos habitantes. O terceiro obstáculo é a distância, o que dá aos madeireiros ilegais uma vantagem esmagadora. A Floresta Amazônica é tão imensa, e seus vales ribeirinhos tão remotos, que fica impossível patrulhar com eficácia. A ausência de autoridade dá aos criminosos a impressão de que a selva é deles. Um informante local nos conta que um madeireiro chamado Rubén Campos está usando

uma trilha rio acima para transportar toras de mogno até uma vertente vizinha no outro lado da divisa. (Fracassaram os esforços para entrar em contato com Campos e obter sua versão da história.) Essa tática lhe permitiria carregar qualquer madeira ilegal pelo rio Ucayali até as serrarias em Pucallpa, a capital regional, sem que os ashaninkas no rio Huacapistea soubessem. No dia seguinte, sob uma chuvarada, guias nos conduzem mata adentro em busca dessa operação ilícita. Passamos por um mogno enorme com um X entalhado no tronco, ao que parece marcado para o corte. Sustentado por uma profusão de raízes tabulares, o grande tronco arroja-se para o teto da floresta e lá derrama orquídeas e bromélias de seus ramos. Um rasgo na mata leva à selva encharcada de chuva e termina em um paredão verde elétrico. Logo encontramos o culpado: um trator John Deere, com pneus enormes, estacionado em um galpão feito de folhas enferrujadas de metal corrugado. Prosseguimos, passando por uma dúzia de grandes troncos de mogno e cedro-rosa, prontos para ser transportados pelo trator. Calle mede os diâmetros: 1,5 metro cada um. Diz que as árvores tinham centenas de anos. Chegamos a uma clareira, dominada por um barraco com teto de colmo. Um vigia solitário de nome Emilio é arrancado da rede a nossa chegada. “Um homem tem de trabalhar”, diz, na defensiva. “Se não há outro emprego, o que fazer?” A questão também preocupa Calle. Essa extração de madeira não é legal; ninguém está autorizado a derrubar a floresta. Mas o acampamento está fora da jurisdição de Calle. Com a chuva torrencial, ficaria difícil seguir o rastro do trator através do ribeirão, inchado pelas águas, até a reserva. Por isso voltamos. Calle alertará as autoridades quando for a Pucallpa, mas é provável que ninguém terá ânimo para acusações e ações judiciais. Sem provas vindas de dentro da reserva, seria um caso difícil de levar adiante. Os madeireiros têm bons contatos com poderosos em Pucallpa. Policiais honestos são acusados, sem razão, ou até demitidos quando transpõem certos limites. Além disso, há pouco tempo, o governo em Lima devolveu a responsabilidade pela aplicação da lei na floresta aos

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“Bem-vindo à terra sem lei”, diz Edwin Valera, com um gesto largo. “A única lei aqui é a da arma.”

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Reserva Territorial Madre de Dios

Homens descarregam capirona, usada em construção, na periferia de Pucallpa. Boa parte da madeira peruana é cortada sem autorização e vendida com documentação falsa. A floresta pluvial sucumbe devagar aos madeireiros.

Mulheres e crianças ashaninkas reúnem-se na aldeia remota de Nueva Bella. Madeireiros inescrupulosos exploram essas comunidades, extraindo suas árvores por preços irrisórios e roubando mogno de reservas próximas que protegem tribos isoladas.

Máfias madeireiras já levaram mogno por uma ninharia – isso quando pagaram. governos regionais, cujas autoridades costumam ser suscetíveis à persuasão. “As áreas protegidas se reduzirão a matas fragmentadas se não tivermos mais iniciativa”, argumenta Calle. Ele receia que agora os madeireiros conseguirão mais margem de manobra para solapar a lei. os malfeitores não terão liberdade nenhuma para agir no território de Edwin Chota Valera. Não se ele puder evitar. Valera, de 52 anos, um homem dinâmico com vistoso cabelo preto e nariz adunco, é o líder da aldeia ashaninka de Saweto, 95 quilômetros a noroeste do Complexo de Conservação do Purus. Desde 1998, quando os nativos da região se estabeleceram em Saweto, eles vêm assistindo impotentes enquanto, estação após estação, madeireiros descem o rio vindos da cabeceira dos rios Alto Tamaya e Putaya, levando troncos colossais às serrarias de Pucallpa. Diante dessas invasões, uma década atrás os moradores solicitaram ao governo regional em Pucallpa o título legal de posse de suas terras – 650 quilômetros quadrados de florestas entremeadas de rios que vão de Saweto até a fronteira com o Brasil. A reivindicação ficou anos enredada na burocracia enquanto madeireiros ilegais saqueavam a mata. Parece que a petição, enfim, terá uma resposta ainda neste ano. A epidemia de desmatamento impeliu legisladores americanos a requerer em 2007 uma série de reformas como condição para aprovar um acordo de livre-comércio com o Peru. O acordo obrigou o Peru, entre outros itens, a implementar um plano de ação para o mogno que obedeceria à Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e Flora Selvagens Ameaçadas de Extinção (Cites, na sigla em inglês). Autoridades 128  nat ional g eo graphic

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em Lima declararam que estão tentando outras medidas, entre elas um sistema de monitoração eletrônica, para ajudar a modernizar a indústria madeireira peruana. As mudanças demoram a surtir efeito, e pouco alívio trazem às muitas comunidades remotas, como Saweto, vítimas das máfias madeireiras, que já levaram seu mogno em troca de ninharia – isso quando pagaram. Mas chega uma nova era aos ashaninkas do Alto Tamaya. Em uma reunião na única sala da escola de Saweto, Teresa López Campos exorta seu povo a enfrentar os madeireiros. “Para onde iremos se nos expulsarem daqui?”, brada ela. “É aqui que vamos morrer. Não temos para onde ir.” Dois dias depois, uns dez homens e mulheres ashaninkas juntam-se, sob o comando de Valera,

para localizar madeireiros até a cabeceira do Alto Tamaya e exigir que partam. Ao amanhecer eles seguem pelos meandros do córrego Mashansho e atravessam a mata rente à fronteira do Peru com o Brasil. Empurrando canoas com varas pelos baixios de areia ondulante, parando para apanhar bagres com lanças em redemoinhos cristalinos, meus anfitriões ashaninkas prosseguem devagar, na certeza de que, em algum lugar rio acima, confrontarão um bando comandado pelo esquivo sujeito a que eles chamam de El Gato. É uma expedição arriscada, que provocará a ira não só dos madeireiros mas também de seus patrões em Pucallpa: os donos de serrarias e os comerciantes de madeira, que têm intimidade com a elite do poder na cidade.

Um guarda do serviço de parques, à esquerda, e um guia ashaninka medem um mogno antigo, muito valorizado por madeireiros criminosos. Como não é possível proteger árvores individuais, este gigante está condenado.

Os homens de Saweto estavam fora na semana anterior, quando El Gato passou defronte à aldeia. Sem ligar para as mulheres que da margem gritavam para que ele fosse embora, El Gato viajou com três barcos, abarrotados de comida e combustível para manter seus homens carrancudos cortando árvores nos confins da mata todo o verão. “Enquanto não tivermos o título de posse, os madeireiros não respeitarão a propriedade dos mo g no   129

A Floresta Amazônica é tão vasta, e seus vales tão remotos, que é impossível vigiar de forma eficaz todas as partes. nativos”, diz Valera, em pé na popa da canoa que ele impele com uma vara de 3 metros. “Eles nos intimidam. Têm armas de fogo.” Valera, alvo de frequentes ameaças de morte, foi várias vezes forçado a pedir refúgio a parentes no Brasil, a dois dias de caminhada por trilhas ancestrais. “O título de posse é um ingrediente crucial na luta contra o corte ilegal”, concorda o geógrafo David Salisbury, da Universidade de Richmond, sentado a meu lado. Salisbury, louro e magricela, tem sido conselheiro dos moradores desde que ficou a par de seus problemas quando pesquisava para sua tese de doutorado em 2004. “As comunidades nativas são as mais envolvidas com sua região”, diz ele. “São elas as mais capazes de tomar decisões de longo prazo sobre como usar suas terras e os recursos de modo sustentável.” a atividade madeireira no Peru opera em um esquema de concessões e licenças criado para permitir que uma comunidade, uma companhia ou um indivíduo extraiam uma quantidade sustentável de determinada área. Também são concedidas licenças de transporte para que se possa rastrear a cadeia de custódia de uma carga, do cepo à serraria e, por fim, até o local de exportação ou venda final. Mas é fácil negociar licenças no mercado negro, e isso permite aos madeireiros cortar árvores em uma área e dizer que as trouxeram de outra. A região do Alto Tamaya ilustra bem essa prática. O próximo posto de inspeção do governo fica a vários dias de Saweto, descendo o rio, me diz Valera. Por isso, quando chega a hora de El Gato mandar suas toras rio abaixo durante a temporada das chuvas no ano seguinte, ele pode 130  nat ional g eo graphic

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alegar que toda a madeira que extraiu do território ashaninka foi obtida de uma concessão legal próxima. “Bem-vindo à terra sem lei”, diz Valera, com um gesto largo. “Daquele posto de inspeção até aqui não há lei. Só a das armas.” Conforme subimos pelo arroio Mashansho, vai ficando claro que não são apenas forasteiros que saqueiam a floresta. Desembarcamos em uma praia em que o zunido de um motor chega até nós vindo da mata. Minutos depois, deparamos com cinco rapazes, descalços e sem camisa, derrubando uma enorme copaíba. São todos ashaninkas, todos parentes do membro mais velho de nosso grupo, “Gaitán” (não é seu nome verdadeiro). Sob uma saraivada de serragem e detritos, o filho de Gaitán faz um corte profundo no tronco. De repente, a árvore estala como um raio. Todos correm para se abrigar. A serra ainda ronca quando o colosso inicia uma queda livre e despenca estremecendo o solo. O cepo recém-cortado secreta uma seiva com pungente aroma de pinho. Esse óleo é conhecido por suas propriedades curativas. Se não tivesse sido derrubada, no decorrer dos anos a árvore poderia render muito mais por seu óleo medicinal do que a quantia, inferior a 100 dólares, que a família de Gaitán receberá de uma só vez por sua madeira. Mas, com o bando de El Gato à solta naquela mata, os nativos decidiram se apoderar dela. Esse é o tipo de distorção criado pela ausência da lei; nessa selva desprotegida, o butim é de quem chegar primeiro. Valera balança a cabeça, desolado diante do cepo da copaíba. “Qualquer um que derrube aqui é um fora da lei, sem exceção”, diz. “Ninguém está autorizado.” Ele vem tentando persuadir os ashaninkas a evitar a destruição, mas precisa ir com calma para não dividir seu povo. As comunidades nativas podem subsistir de caça, pesca e colheita se suas matas estiverem intactas. No entanto, precisam de roupa, sabão, remédios, e, para muitos, derrubar árvores, ou aceitar uns trocados para deixar que os madeireiros as cortem, é o único modo de adquirir essas mercadorias. A copa das árvores se pinta com manchas de luz dourada, e o grupo decide que é hora de deixar as canoas e seguir a pé em linha reta pela

mata. O atalho nos levará a um ponto acima de El Gato no rio. Avançamos pela floresta encharcada enquanto os últimos raios de sol deixam o céu, vadeamos o ribeirão sinuoso pela terceira vez e procuramos um lugar para passar a noite. como as licenças são usadas para vender a madeira obtida ilegalmente nas vizinhanças, muitos criticam o sistema peruano de concessões por fornecer cobertura ao desmatamento. No entanto, os engenheiros florestais e os operadores de uma companhia chamada Consórcio Florestal Amazônico (CFA) dizem que estão tentando fazer as coisas direito. O CFA opera uma enorme concessão em mata fechada nas duas margens do rio Ucayali, no coração da Amazônia peruana. O empreendimento é um modelo de exploração racional. De roupa fluorescente, os serradores são guiados a seu alvo por mapas computadorizados e banco de dados. Os 184 130 hectares de floresta primeva foram divididos em 30 lotes, cada um correspondendo a um único ano de extração, com um plano de rotação de 30 anos. Em uma base entranhada nas terras da concessão, supervisores planejam o dia de trabalho com os empregados. “Delineadores” debruçam-se nas mesas de desenho, atualizando mapas computadorizados que os grupos levarão à floresta. Cada árvore que pode ser cortada é codificada por cor segundo a espécie, e identificada por um número. Cada dupla de serradores terá cortado dez árvores até o pôr do sol, seguindo um traçado linear através da floresta representado por uma faixa no mapa maior. Árvores adultas produtoras de sementes, que serão deixadas intactas para regenerar a mata, também estão identificadas. “Tentamos manter a cobertura florestal, intocada”, diz Geoffrey Venegas, engenheiro costa-riquenho que supervisiona a derrubada. “Estamos anos-luz à frente do que vejo em outras partes.” Desembarcamos de uma picape em um ponto de coleta margeado por pilhas de toras recémcortadas com 1 metro de diâmetro. São todas de árvores de nomes estranhos: chamisa, yacushapana e a aromática cânfora-moena. Quase não se vê mogno na concessão do CFA. Para Venegas, o futuro das madeiras de lei tropicais são

lucro e prejuízo Na década passada, a maior parte do mogno exportado do Peru foi para os Estados Unidos. Os lucros do comércio de madeira beneficiam, sobretudo, exportadores e importadores. As comunidades indígenas, cujas terras e seus direitos são violados nesse processo, mal veem a cor do dinheiro. Valor pago em cada etapa do negócio para cada 300 metros lineares de mogno

Lucro

IMPORTADOR

US$ 8 750

US$ 4 490

EXPORTADOR

US$ 4 260

US$ 1 310 DONO DA SERRARIA

US$ 2 950

INTERMEDIÁRIO

US$ 1 470

US$ 1 480

CAPATAZ

US$ 370

US$ 1 110

MADEIREIRO

US$ 200

US$ 170

os números representam os preços de mogno de primeira linha, com base em pesquisas de 2008 e 2011. GRÁFICO DE MARTIN GAMACHE; ÁLVARO VALIÑO. FONTE: AGÊNCIA DE INVESTIGAÇÃO AMBIENTAL

Com o rio Alto Tamaya envolto na névoa matinal, ashaninkas da comunidade de Saweto preparam-se para uma jornada rio acima para confrontar um bando de madeireiros. Por anos, a floresta foi saqueada de sua madeira valiosa. Agora eles decidiram agir.

Como estará a floresta daqui a 30 anos, quando estradas levarem às partes mais distantes da concessão?

Uma tora de kapok pende do guindaste no rio Ucayali, em Pucallpa. Gigantes forradas de orquídeas, as árvores kapok representam um rico hábitat a primatas, aves, anfíbios e insetos. São usadas para a produção de tábuas de compensado.

essas espécies menos badaladas. “Identificamos 20 delas com potencial comercial”, comenta ele. animado. “Neste ano, estamos cortando 12.” Os executivos do CFA explicam que explorar espécies variadas aumenta o valor da floresta, reforçando o incentivo para cuidar dela, mesmo se o mogno e o cedro-rosa já tiverem sido erradicados. Investidores “socialmente responsáveis” admiram as práticas da companhia, seu potencial 134  nat ional g eo graphic

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de lucros no longo prazo e sua certificação pelo Conselho de Manejo Florestal, uma entidade internacional autônoma que estipula os critérios para a exploração sustentável das florestas. Mas até o impacto dessas práticas espanta quem visita uma floresta que semanas antes era uma área intocada. No silêncio do meio da manhã, o grito de um cri-crió ressoa pela mata. Uma borboleta azul iridescente do tamanho de uma mão aberta passa voando como uma pipa sacudida pela brisa. Macacos brincam de esconde-esconde em um trecho não desmatado. A estação seca vai bem avançada, mas o solo continua esponjoso, exsudando uma vitalidade úmida que resiste à escassez de chuvas: a marca registrada de uma floresta pluvial tropical sadia.

Mas como ficará essa floresta daqui a 30 anos, quando estradas sulcadas e trilhas secundárias se estenderem até as partes longínquas da concessão, e quando homens e máquinas voltarem aqui para recomeçar o ciclo? A floresta estará regenerada? O CFA aposta nisso. “Se formos bem-sucedidos, toda a indústria madeireira peruana será beneficiada”, diz o gerente de vendas Rick Kellso. “É possível ter bons lucros fazendo as coisas direito. Não é preciso ser criminoso.” perto da cabeceira do córrego Mashansho, sob um céu fulgurante de estrelas, Edwin Chota Valera e David Salisbury reúnem os ashaninkas ao redor da fogueira do acampamento para planejar o confronto com El Gato no dia seguinte.

“Ele vai pedir para ver seus papéis”, diz Salisbury, referindo-se ao título que os ashaninkas ainda não possuem. “Mas lembrem-se: ele também não tem papéis. Está cortando madeira na ilegalidade. Não há justificativa para estar aqui.” Entramos no acampamento dos madeireiros ao raiar do dia, e invadimos as choças decrépitas antes que qualquer um tenha tempo de pegar um fuzil. Um sujeito de cabelo claro vestindo camiseta de futebol amarela se levanta. Os olhos verdes traem sua perplexidade. “É você o homem a quem chamam de El Gato?”, pergunta Valera. “Sou eu”, responde, ressabiado. Ele não opõe resistência e concorda em ir embora, mas pede permissão aos ashaninkas para levar as árvores que já havia cortado rio acima. “Somos só gente trabalhadora tentando pôr comida na mesa.” Sua voz tem um tom triste de derrota. El Gato argumenta que está endividado até o pescoço com um tal de Gutiérrez, que lhe adiantou 50 000 dólares em dinheiro vivo para a expedição de derrubada. “Esse cara vai me perseguir até o dia da minha morte”, lastima-se. Valera não se comove nem um pouco. “A coisa pode ficar feia para vocês se permanecerem aqui”, avisa. O governo em Lima, diz, prometeu às comunidades indígenas maior controle sobre os próprios assuntos. “As coisas estão começando a melhorar para o nosso lado.” Poucos dias depois de encontro com El Gato, vândalos invadem Saweto, na calada da noite, e sabotam três motores de popa que eram usados pelo grupo de Valera: um golpe devastador contra a comunidade pobre. Os ashaninkas não têm dúvida quanto ao culpado. Mas promover uma ação penal está fora de questão.  j mo g no   135

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