Crimes Contra a Humanidade no Brasil: A Imprescritibilidade da Persecução e Punição dos Crimes Ditadura de 1964-1985

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Copyright © 2015 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito Todos os direitos reservados e protegidos. Nenhuma parte deste livro, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados sem prévia autorização dos editores. Produção Editorial: Equipe Conpedi Diagramação: Marcos Jundurian Capa: Elisa Medeiros e Marcos Jundurian Impressão: Nova Letra Gráfica e Editora Ltda. CNPJ. nº 83.061.234/0001-76 Editora: Ediciones Laborum, S.L – CIF B – 30585343 Deposito legal de la colección: MU 859-2015 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) E56p Encontro de Internacionalização do CONPEDI (1. : 2015 : Barcelona, ES)

I Encontro de Internacionalização do CONPEDI / organizadores: Samantha Ribeiro Meyer Pflug, Luiz Henrique Urquhart Cademartori. – Barcelona : Ediciones Laborum, 2015. V. 3 Inclui bibliografia ISBN (Internacional): 978-84-92602-86-5 Depósito legal : MU 859-2015 Tema: Atores do desenvolvimento econômico, político e social diante do Direito do século XXI 1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Congressos. 2. Direito constitucional. 3. Direito internacional 4. Direitos humanos. I. Meyer Pflug, Samantha Ribeiro. II. Cademartori, Luiz Henrique Urquhart. III. Título. CDU: 34 Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071 1º Impressão – 2015

EDICIONES LABORUM, S. L. CIF B-30585343 Avda. Gutiérrez Mellado, 9 - 3º -21- Edif. Centrofama Teléfono 968 88 21 81 – Fax 968 88 70 40 e-mail: [email protected]

Diretoria - Conpedi Presidente Prof. Dr. Raymundo Juliano Feitosa - UFRN Vice-presidente Sul Prof. Dr. José Alcebiades de Oliveira Junior - UFRGS Vice-presidente Sudeste Prof. Dr. João Marcelo de Lima Assafim - UCAM Vice-presidente Nordeste Profa. Dra. Gina Vidal Marcílio Pompeu - UNIFOR Vice-presidente Norte/Centro Profa. Dra. Julia Maurmann Ximenes - IDP Secretário Executivo Prof. Dr. Orides Mezzaroba - UFSC Secretário Adjunto Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto - Mackenzie Conselho Fiscal Prof. Dr. José Querino Tavares Neto - UFG /PUC PR Prof. Dr. Roberto Correia da Silva Gomes Caldas - PUC SP Profa. Dra. Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches - UNINOVE Prof. Dr. Lucas Gonçalves da Silva - UFS (suplente) Prof. Dr. Paulo Roberto Lyrio Pimenta - UFBA (suplente) Representante Discente Mestrando Caio Augusto Souza Lara - UFMG (titular) Secretarias (Diretor de Informática) Prof. Dr. Aires José Rover - UFSC (Diretor de Relações com a Graduação) Prof. Dr. Alexandre Walmott Borgs - UFU 3

(Diretor de Relações Internacionais) Prof. Dr. Antonio Carlos Diniz Murta - FUMEC (Diretora de Apoio Institucional) Profa. Dra. Clerilei Aparecida Bier - UDESC (Diretor de Educação Jurídica) Prof. Dr. Eid Badr - UEA / ESBAM / OAB-AM (Diretoras de Eventos) Profa. Dra. Valesca Raizer Borges Moschen - UFES Profa. Dra. Viviane Coêlho de Séllos Knoerr - UNICURITIBA (Diretor de Apoio Interinstitucional) Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira - UNINOVE

Rua Desembargador Vitor Lima, 260, sala 508 Cep.: 88040-400 Florianópolis – Santa Catarina - SC www.conpedi.org.br 4

Apresentação Este livro condensa os artigos aprovados, apresentados e debatidos no Iº ENCONTRO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – CONPEDI, realizado entre os dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014, em parceria com a Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona – Espanha. O evento teve como tema os “Actores del Desarrollo económico, político y social frente al Derecho del siglo XXI”. Para o evento foram submetidos e avaliados mais de quinhentos artigos de pesquisadores do Brasil e da Europa. Após as avaliações foram aprovados em torno de trezentos artigos para apresentação e publicação. O principal objetivo do evento foi o de dar início ao processo de internacionalização e fundamentalmente, o de construir espaços para a inserção internacional e divulgação de pesquisas realizadas pelos Pesquisadores dos Programas de Pós-Graduação em Direito do Brasil, associados ao CONPEDI. A realização deste primeiro evento procurou estimular o debate e o diálogo sobre questões atuais do Direito envolvendo a realidade brasileira e espanhola. Os artigos apresentados analisaram o papel dos “Actores del Desarrollo económico, político y social frente al Derecho del siglo XXI” praticamente em todas as áreas do Direito. Considerando a amplitude do tema, as diversas abordagens e buscando uma aproximação entre as áreas de conhecimento optou-se pela organização de seis grupos de trabalhos (GTs), que foram constituídos da seguinte forma: a) Derecho Constitucional, Derechos Humanos e Derecho Internacional; b) Derecho Mercantil, Derecho Civil, Derecho do Consumidor e Nuevas Tecnologías; c) Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social; d) Derecho Administrativo, Derecho Tributario e Derecho Ambiental; e) Teoría del Derecho, Filosofía del Derecho e História del Derecho; f) Derecho Penal, Criminología e Seguridad Pública. Além da promoção do intercambio entre as Instituições e profissionais da área do Direito do Brasil e Europa, a possiblidade de ampliar e difundir a produção cientifica no âmbito internacional e a melhoria dos indicadores dos Programas de Pós-graduação brasileiros, com a realização do primeiro evento internacional 5

a atual Diretoria do CONPEDI também cumpre com um de seus compromissos assumidos quando eleitos. A transcendência da realização deste primeiro evento internacional para os pesquisadores brasileiros da área do Direito se reflete no resultado final obtido. A publicação de 15 livros, através da Ediciones Laborum da Espanha em parceria com o CONPEDI, com todos os artigos apresentados e debatidos nos GTs representa uma expressiva conquista que trará importantes resultados para os programas de Pós-graduação brasileiros e, fundamentalmente, para a área do Direito. Barcelona/Florianópolis, março de 2015. Os Organizadores

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Sumário

Atores Não Estatais e o Combate à Pirataria Marítima Eliane Maria Octaviano Martins e Nelson Speranza Filho...................... 9 Causas de la Ineficacia del Derecho Humano a La Planificación Familiar en Brasil Ana Maria D´Ávila Lopes e Denise Almeida de Andrade......................... 41 Cidadania Planetária e Fraternidade: Uma Leitura a partir dos Direitos Humanos e o Sistema Normativo Brasileiro Contemporâneo Nara Suzana Stainr Pires e Rogério Silva Portanova............................... 77 Comunidade, Solidariedade e Cidadania: O Reconhecimento do Outro como Condição de Empoderamento Cidadão no Processo de Mudanças Institucionais André Gomes de Sousa Alves e Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa 101 Controle de Convencionalidade da Corte IDH e a Proteção dos Direitos Humanos no Âmbito Global Mário Coimbra e Sérgio Tibiriçá do Amaral.......................................... 125 Crimes Contra a Humanidade no Brasil: A Imprescritibilidade da Persecução e Punição dos Crimes Ditadura de 1964-1985 Emilio Peluso Neder Meyer.................................................................... 143 Democracia Racial e Elementos de Ódio na Sociedade Brasileira Francisco Humberto Cunha Filho e Thiago Anastácio Carcará................ 181 Democracia Representativa, Cidadania e Participação Social Liton Lanes Pilau Sobrinho e Bárbara Guasque...................................... 219 Desafios e Perspectivas do Direito Internacional Contemporâneo e a Ideia de Sustentabilidade Tânia Lobo Muniz e Elve Miguel Cenci................................................. 243 volume

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Desenvolvimento e Direito ao Desenvolvimento: Para Onde Caminha a America Latina? José Alberto Antunes de Miranda e Sergio Urquhart de Cademartori....... 273 Direito à Educação Básica de Qualidade: Um Direito Ainda a ser Conquistado Ivan Simões Garcia e Sandra Filomena Wagner Kiefer............................ 293 Direito à Moradia e à Democracia Participativa: Uma Experiência na Elaboração do Plano Estadual de Habitação, Tocantins, Brasil João Aparecido Bazolli........................................................................... 311 Direitos Fundamentais Sociais e Federalismo Rogério Luiz Nery da Silva e Yuri Schneider........................................... 335 Esforços Institucionais da ONU no Apoio à Mediação de Conflitos e Paz Inclusiva Gilberto Passos de Freitas e Simone Alves Cardoso................................... 365 Estado Social Democrático de Direito, Concessão de Serviços Públicos e Globalização Econômica. Reflexões Sobre um Mundo em Transformação Marcos Augusto Maliska e Eduardo Biacchi Gomes................................. 385

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atores não estatais e o combate à pir ataria marítima Eliane Maria Octaviano Martins1 Nelson Speranza Filho2

Resumo O presente trabalho científico tem como objetivo o estudo do papel desempenhado pelos atores não estatais no combate à pirataria marítima. Tais atores compreendem tanto organizações não governamentais quanto empresas da indústria shipping. O fenômeno é, hodiernamente, questão de grande preocupação mundial, dados os enormes prejuízos à economia internacional que arca com gastos que vão desde o pagamento de vultuosos resgates para soltura das vítimas e navios objeto de sequestros, passando pelo efetivo combate ao fenômeno, com emprego de armas militares de última geração, chegando até o aumento dos valores dos contratos de seguro marítimo e, consequentemente, dos produtos transportados pelo modal aquaviário, afetando toda a cadeia produtiva e de fornecimento que dependa do citado meio de transporte. Neste contexto a participação ampliada tem se mostrado importante mecanismo de governança no combate à pirataria marítima, visto que torna possível a participação de diversos atores interessados na resolução do problema, bem como massivos investimentos 1 Doutora pela Universidade de São Paulo (USP-PROLAM). Mestra pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita (UNESP). Especialista pelo Curso de Pós-graduação lato sensu em Direito Privado pela FADISC. Professora nos programas de Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Católica de Santos (UNISANTOS). Coordenadora e professora no Curso de Especialização em Direito Marítimo e Portuário da Universidade Católica de Santos (UNISANTOS). Advogada e consultora jurídica. 2 Doutorando em Direito Ambiental Internacional. Mestre em Direito Internacional. Especialista em Direito Processual Civil e do Trabalho pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS). Professor universitário na Faculdade do Guarujá – FAGU, integrante do Grupo Educacional UNIESP. Professor convidado no Curso de Especialização em Direito Marítimo e Portuário da Universidade Católica de Santos – UNISANTOS, presencial e a distância. Professor nos Cursos de MBA em Gestão Estratégica de Pessoas e de Negócios da UNIMONTE. Professor no Curso de Especialização em Engenharia de Segurança do Trabalho da UNIMONTE. Advogado. volume

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na criação e manutenção de importantes instrumentos de pesquisa, gerenciamento de informação e combate propriamente dito. Diante de tal problema, constata-se que a participação de tais atores é ferramenta indispensável para a obtenção dos resultados almejados pela comunidade global.

Palavras-chave Pirataria Marítima; Direito do Mar; Atores não estatais; Participação ampliada.

Abstract This scientific paper aims to study the role played by non-state actors in combating maritime piracy. Such actors include both non-governmental organizations and businesses shipping industry. The phenomenon is, in our times, issue of major global concern, given the enormous damage to the world economy that pays for expenses ranging from the payment of ransoms to release any significance victims and vessels subject to abductions, through effective combat the phenomenon, with employment military weapon of last generation, reaching the increasing values ​​of marine insurance contracts and, consequently, of the products transported by waterway mode, affecting the entire production and supply chain that relies on means of transport said. In this context the expanded participation has been an import a nt governance mechanism in combating maritime piracy, as it makes the participation of various stakeholders in tackling possible as well as massive inve s tments in the creation and maintenance of important research tools, information management and combat itself. Faced with this problem, it appears that the participation of such actors is indispensable tool to obtain the results desired by the global community.

Key words Maritime Piracy; Law of the Sea; Non-state actors; Extended participation. 1. introdução A presente obra visa analisar o papel desempenhado pelos atores não estatais no processo de combate ao fenômeno da pirataria marítima, notadamente nas chamadas zonas de risco do Leste e Oeste da África. Para tal, é realizada uma 10

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análise da doutrina em âmbito internacional, com o objetivo de identificar quais os atores envolvidos no citado processo, assim como seus respectivos papéis, a fim de ressaltar sua importância no combate à pirataria marítima. A pirataria marítima é fenômeno d e grande preocupação na comunidade internacional, dados os enormes p rejuízos à economia internacional, que arca com gastos que vão desde o pagam e nto de vultuosos resgates para soltura das vítimas e navios objeto de sequestros, passando pelo efetivo combate ao fenômeno, com emprego de armas milit a res de última geração, chegando até o aumento dos valores dos contratos de seguro marítimo e, consequentemente, dos produtos transportados pelo modal aquaviário, bem como as graves violações dos direitos humanos dos trabalhadores marítimos, vítimas das mais diversas e cruéis formas de violência. Em plena era de grande desenvolvimento na áreas de energia, com a descoberta do pré-sal, e tecnologia, a pirataria marítima se apresenta como um desafio para a ordem internacional, visto que esta prática delitiva é responsável por grandes prejuízos à economia mundial, bem como por graves violações aos direitos humanos de suas vítimas, que são submetidas à violência extrema. Destarte, torna-se imperiosa a gestão do mencionado problema de forma a propiciar uma participação ampliada, de modo a permitir aos interessados o aprimoramento dos mecanismos empregados em tal combate, através massivo investimento em pesquisa, gerenciamento de informação e combate efetivo. Para o melhor entendimento sobre a questão, faz-se imperioso discorrer sobre o conceito de pirataria marítima que, apesar de normatizado, gera grande discussões a respeito de sua abrangência, bem como das espécies de atos piratescos e modus operandi. Após é realizada uma análise a respeito dos atores não estatais envolvidos no processo de governança global em relação ao combate à pirataria marítima, discorrendo-se sobre seus papéis e resultados obtidos. Por derradeiro, verifica-se que tal prática delitiva representa grande preocupação para a sociedade global, sendo necessário o emprego de ferramentas de governança capazes de controlá-la. Neste sentido, ganha especial relevância a participação ampliada, que possibilita a atores não estatais interessados na volume

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resolução do problema, como organizações não governamentais e empresas multinacionais, uma ação substantiva no combate ao referido fenômeno, de forma a gerar melhores resultados. 2. conceito de pir ataria marítima A pirataria marítima, definida hoje como ato ilícito, nem sempre teve esta conotação: [...] pirataria era entendida principalmente como um ato de guerra, quando navios, comandantes e tripulações estavam sob a licença (‘Carta de Marque’) ou os auspícios de um monarca ou governo para atacar e pilhar a frota de um Estado competidor numa dada rota comercial considerada monopólio para a aquisição de especiarias, tecidos, minerais nobres e presas de animais apreciados pelos artesãos europeus. Adicione-se o fato de que o ato constituía-se de pirataria em qualquer porção do espaço marítimo, fosse realizado em alto-mar ou não (CALIXTO, 2006, p. 202-203).

O conceito de pirataria perdeu hodiernamente seu caráter de ato com participação estatal, passando a ter como essência a finalidade privada, não se confundindo, portanto, com o corso, que contava com intervenção de um Estado que autorizava sua prática e dela se beneficiava. A doutrina conceitua pirataria como “o saque, a depredação ou o apresamento de navio, geralmente sob violência, e com fins privados” (MARTINS, 2008, p. 82), ou mesmo como “qualquer roubo ou outro ato de violência, com fins privados e sem autorização de autoridade pública, cometido em mares ou no espaço aéreo localizados fora da jurisdição de qualquer Estado” (JENKINS, 2013). Entretanto, conforme será exposto mais adiante, quando da análise dos tipos relativos aos atos de pirataria, não apenas atos violentos configuram o fenômeno ora estudado, mas também quaisquer atos de auxílio ou instigação a esta prática. A Convenção sobre o Alto-Mar de 1958 dispôs sobre os atos de pirataria, em seu artigo 15º, o seguinte: [...] Constituem pirataria os actos a seguir enumerados: 12

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1) Todo o acto ilegítimo de violência, de detenção ou toda a depredação cometida para fins pessoais pela tripulação ou passageiros de um navio privado ou de uma aeronave privada, e dirigidos: a) No alto mar, contra um outro navio ou aeronave, ou contra pessoas e bens a seu bordo; b) Contra um navio ou aeronave, pessoas ou bens, em local fora da jurisdição de qualquer Estado. 2) Todos os actos de participação voluntária para utilização de um navio ou de uma aeronave, quando aquele que os comete tem conhecimento de factos que conferem a este navio ou a esta aeronave o carácter de navio ou aeronave pirata. 3) Toda a acção tendo por fim incitar a cometer os actos definidos nas alíneas 1) e 2) do presente artigo ou empreendida com a intenção de os facilitar.

Tal texto, bem como outros regramentos sobre o tema, foi repetido integralmente na Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (CNUDM III), de 1982, também conhecida como Convenção de Montego Bay, que em seu art. 101 define quais atos são considerados de pirataria, in verbis: [...] Constituem pirataria quaisquer dos seguintes atos: a) ato ilícito de violência ou de detenção ou todo ato de depredação cometidos, para fins privados, pela tripulação ou pelos passageiros de um navio ou de uma aeronave privados, e dirigidos contra: i) um navio ou uma aeronave em alto mar ou pessoas ou bens a bordo dos mesmos; ii) um navio ou uma aeronave, pessoas ou bens em lugar não submetido à jurisdição de algum Estado; b) todo ato de participação voluntária na utilização de um navio ou de uma aeronave, quando aquele que o pratica tenha conhecimento de fatos que dêem a esse navio ou a essa aeronave o caráter de navio ou aeronave pirata; c) toda a ação que tenha por fim incitar ou ajudar intencionalmente a cometer um dos atos enunciados nas alíneas a) ou b).

Dessa forma, pode-se conceituar pirataria marítima como o cometimento, participação, induzimento ou instigação, de ato ilícito danoso praticado com fins volume

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privados e sem a autorização de autoridade pública, perpetrados pela tripulação ou passageiros de um navio contra navio ou pessoas localizados fora da jurisdição de algum Estado. Diante de tal conceito, pode-se identificar três elementos que devem ser avaliados quando da análise de atos de pirataria: O objeto do ato deve ser um navio, aeronave ou passageiros/ tripulantes destes veículos. O critério geográfico, por sua vez, estipula que o crime tem que ser perpetrado em alto mar ou em lugar onde não haja a jurisdição de um estado. Por este critério, deixariam de ser considerados todos os atos cometidos nas águas interiores, mar territorial e zona econômica exclusiva (ZEE). [data venia, a rigor, a jurisdição é exercida somente no mar territorial e águas interiores, onde o Estado atua na plenitude do uso de seus poderes, visto que a zona contígua destina-se apenas à fiscalização, um preparo para a entrada no navio no mar territorial, assim como na zona econômica exclusiva há somente o monopólio da exploração de recursos naturais, quer sejam de natureza animal (pesca), quer sejam de natureza mineral (por exemplo petróleo)] Os dois primeiros critérios — objeto e localização — são objetivos. Entretanto, a finalidade é subjetiva por natureza, podendo comportar diferentes interpretações. Por exemplo, não há consenso entre os juristas se o animus furandi, a intenção de roubar, é elemento necessário ou se atos de insurgentes procurando derrubar seu governo devem ficar fora da definição. A jurisprudência das cortes nos Estados Unidos da América e Reino Unido têm adotado que qualquer ato não autorizado de violência cometido no alto mar é pirataria (CANINAS, 2009, p. 106).

Diante de tal dispositivo legal há que identificar três tipos de ato de pirataria: pirataria propriamente dita, participação na pirataria e instigação ou auxílio à pirataria. O primeiro tipo tem como elementos característicos: a violência, seja física (depredação) ou moral (mera ameaça), sendo frequente o uso da primeira, dadas as proporções dos meios de transporte das vítimas (navios); e os fins privados, visto que não se confundem os atos de pirataria com atos típicos do poder de império de Estado (presa bélica, captura e apreensão). 14

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Os atos de pirataria referem-se às presas3 piratescas: Denomina-se presa todo ato de depredação, praticado no mar por homens que o percorrem roubando, à mão armada, navios de qualquer nação. Diz respeito, principalmente, ao arrebatamento do navio ou à carga por piratas. É o ato de pirataria (GIBERTONI, 2005, p. 234).

O segundo tipo refere-se à participação na pirataria, segundo o qual não se faz necessária para a caracterização do tipo o elemento da violência, mas sim, apenas, o conhecimento do uso do navio para cometimento de atos de pirataria. Tal espécie é usualmente cometida pela tripulação dos motherships4 que não praticam propriamente os atos de violência contra as vítimas de pirataria, mas que tem conhecimento do uso das embarcações para tal fim. O último tipo faz menção à instigação ou auxílio à pirataria. Incitar refere-se ao ato de instigar, reforçar a ideia de cometer as condutas descritas nas alíneas a ou b do mencionado dispositivo legal. Auxiliar é a prestação de ajuda material à prática dos citados atos, como por exemplo os piratas que atuam como assistentes de artilharia, no recarregamento das RPGs5 utilizadas nos ataques às vítimas. São equiparados a esses atos os cometidos por navios de guerra na hipótese prevista no art. 102 da CNUDM III, in verbis: Os atos de pirataria definidos no Artigo 101, perpetrados por um navio de guerra, um navio de Estado ou uma aeronave de Estado, cuja tripulação se tenha amotinado e apoderado do navio ou aeronave, são equiparados a atos cometidos por um navio ou aeronave privados.

Vale ressaltar que todos esses atos descritos na CNUDM III, para que possam configurar pirataria, hão de ser praticados em lugar não submetido à jurisdição de um Estado, sob pena de serem considerados outros tipos penais previstos na legislação interna de tal Estado, delitos estes classificados pela Organização 3 Presa significa a tomada de coisa de seu dono. 4 Navios de maior porte (geralmente navios de pesca) usados para coordenar atos de pirataria mais elaborados, das quais saem embarcações menores e mais rápidas. 5 Do inglês rocket-propelled grenade. Lançadores de granadas propelidas por foguetes. volume

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Marítima Internacional (International Martime Organization – IMO) como roubo armado contra navios (armed robbery against ships), conforme dispõe o item 2.2 do Anexo Code of Practice for the Investigation of Crimes of Piracy and Armed Robbery against ships da sua Resolução A.922(22): ‘Roubo armado contra navios’ significa qualquer ato ilícito de violência ou de detenção ou qualquer ato de depredação, ou ameaça, não tipificado como ato de pirataria, dirigido contra um navio ou contra pessoas ou bens a bordo de um navio dentro da jurisdição do Estado sobre tais infrações.

Faz-se mister ainda mencionar que tal assunto é também disciplinado na Convenção para Supressão de Atos Ilícitos contra a Segurança da Navegação Marítima (SUA Convention), que em seu artigo 3º disciplina que: 1. Qualquer pessoa comete delito se, ilícita e intencionalmente: (a)  sequestar ou exercer controle sobre um navio, pela força ou ameaça de força ou por qualquer outra forma de intimidação; ou (b) praticar ato de violência contra pessoa a bordo de um navio, se esse ato for capaz de pôr em perigo a navegação segura desse navio; ou (c) destruir um navio ou causar dano a um navio ou à sua carga e esse ato for capaz de pôr em perigo a navegação segura desse navio; ou (d) colocar ou mandar colocar em um navio, por qualquer meio, dispositivo ou substância capaz de destruí-lo ou causar dano a esse navio ou à sua carga, e esse ato puser em perigo ou for capaz de pôr em perigo a navegação segura desse navio; ou (e)  destruir ou danificar seriamente instalações de navegação marítima ou interferir seriamente em seu funcionamento, se qualquer desses atos for capaz de pôr em perigo a navegação segura do navio; ou (f) fornecer informações que sabe serem falsas, dessa forma pondo em perigo a navegação segura de um navio; ou (g) ferir ou matar qualquer pessoa, em conexão com a prática ou tentativa de prática de qualquer dos delitos previstos nas letras (a) a (f).  16

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2. Qualquer pessoa também comete delito se: (a) tentar cometer qualquer dos delitos previstos no parágrafo 1; ou (b) ajudar na prática de qualquer dos delitos previstos no parágrafo 1, cometido por qualquer pessoa, ou for, de outra forma, cúmplice de pessoa que cometa tal delito; ou (c)  ameaçar, com ou sem condição, conforme disposto na lei nacional, com o objetivo de compelir pessoa física ou jurídica a praticar ou deixar de praticar qualquer ato, cometer qualquer dos delitos previstos no parágrafo 1, letras (b), (c) e (e), se essa ameaça for capaz de pôr em perigo a navegação segura do navio em questão. 

A SUA Convention, também conhecida como Convenção de Roma de 1988, foi criada com a finalidade de suprir a anomia existente na CNUDM no sentido de ser elemento da pirataria o fim privado do ato, dessa forma, não integrando o tipo condutas baseadas em outros fins, como por exemplo políticos e religiosos.] Como se depreende, a Convenção de Roma de 1988, veio superar a lacuna da CNUDM ao não cobrir atos políticos ilícitos em suas definições sobre pirataria, superando, bem assim, a necessidade do envolvimento de dois navios para caracterizar o ato. Ao generalizar a ofensa ou a ilicitude, as disposições do tratado de Roma se aplicam tanto aos atos terroristas marítimos – privados ou políticos – quanto à pirataria marítima. (CALIXTO, 2006, p. 223)

Todavia, vale ressaltar que os atos de terrorismo marítimo não se confundem com os de pirataria marítima, dada a finalidade privada destes, que são o objeto da presente obra. 3. espécies de pir ataria O International Maritime Bureau (IMB) disciplina que há três dimensões de atos de pirataria: o Low-Level Armed Robbery (LLAR), o Meddium-Level Armed Assault and Robbery (MLAAR), e o Major Criminal Hijack (MCHJ) (SARAMAGO, 2009). volume

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3.1. low-level armed robbery Refere-se à modalidade mais simples de pirataria, sem destruição de partes do navio ou mesmo sequestro da tripulação, e com menor rentabilidade para os agentes, visto que consiste muitas vezes em pequenos roubos ou furtos. O ‘Low-Level Armed Robbery’ é o nível mais baixo da pirataria, no qual os piratas assaltam o navio e a tripulação e fogem, sendo um dos romoves do assalto o cofre do navio. Estes tipos de ataques ocorrem, normalmente, enquanto o navio está no porto ou no ancoradouro, sucedendo-se, normalmente à noite. Ocasionalmente, contudo raramente, o navio é levado para venda. (SARAMAGO, 2009)

Vale ressaltar que é comum o enquadramento de tal delito no conceito de armed robbery against ships, dado o fato de ocorrer com maior frequência em portos, área de jurisdição do Estado em que se situa o porto. Como exemplo, pode ser citado o evento ocorrido no dia 16 de outubro de 20126, em Conakry, na Guiné, em que seis assaltantes embarcaram em um navio cargueiro ancorado, furtando carga armazenada em contêineres. A tripulação ficou a salvo, pois se escondeu nos alojamentos, entrando em contato imediatamente com o Centro de Denúncias do Internacional Maritime Bureau, que transmitiu a mensagem às autoridades competentes. Os assaltantes fugiram com as citadas mercadorias ao ver a embarcação da patrulha enviada se aproximando. Outro caso ocorreu 18 do mesmo mês e ano, em Tanjung Datu, em Sarawak, na Malasia, onde ladrões abordaram um rebocador que puxava uma balsa, roubaram o dinheiro da tripulação e fugiram7. 3.2. medium-level armed assaul and robbery É uma espécie intermediária de pirataria, em que são empregados armamentos poderosos, utilizando violência para a consecução dos atos piratescos e táticas de abordagem das vítimas. 6 Fonte: ICC. Disponível em: . Acesso em: 29 out. 2012. 7 Fonte: ICC. Disponível em: . Acesso em: 29 out. 2012.

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Segue-se o ‘Meddium-Level Armed Assault and Robbery’, no qual os actos de pirataria são realizados por grupos que se encontram bem organizados e que operam com embarcações rápidas nas proximidades da costa. No entanto, o raio de acção pode ser alargado pela utilização de ‘navios-mãe’ (mother-ships), possuindo, frequentemente, radar. Neste caso, já estamos perante um maior nível de brutalidade, com tripulação ameaçada, amarrada, e possivelmente ferida. O armamento utilizado abrange armas automáticas, RPG’s ou morteiros. (SARAMAGO, 2009)

Esta espécie também é classificada normalmente como armed robbery against ships, dado o fato de comumente visar navios ancorados. Entretanto, nada impede que seja realizada em região fora da jurisdição de algum Estado, posto que os agentes contam com embarcações maiores que lhes dão suporte. O modus operandi nessa modalidade de pirataria geralmente observa o seguinte: [...] as horas iniciais da manhã são o momento favorito dos piratas para atacar os navios que estão de passagem em alto mar. Usualmente, estes atacantes tem um bom conhecimento de navios e se aproximam dos navios com rapidez de dezessete nós [aproximadamente 31,5km/h]. Os piratas usam cordas e ganchos para chegarem ao convés. A partir deste ponto, os procedimentos usados são similares aos empregados pelos ladrões armados nos portos. Os piratas de alto mar, entretanto, parecem ser mais violentos do que seus colegas da costa e geralmente são mais bem armados. Depois de roubarem a tripulação e pegarem tudo o que puderem da carga do navio, os piratas normalmente trancam os membros da tripulação em seus aposentos. Os piratas então partem, deixando o navio se movendo sem ninguém na ponte. (GOTTSCHALK, Jack A. et al, 2000, p. 130, tradução nossa).

Como exemplos, podem ser citados os eventos ocorridos no dia 15 de outubro de 20128, no sul de Brass, na Nigéria, em sete piratas armados embarcaram em um rebocador através de uma lancha lançada de um navio mãe, roubando os pertences pessoais da tripulação, bem como sequestrando sete integrantes desta; e no dia 4 do mesmo mês e ano, em Lomé, Togo, em que: 8 Fonte: ICC. Disponível em: . Acesso em: 29 out. 2012. volume

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Cerca de 10-12 piratas armados com armas automáticas embarcaram em um navio-tanque à deriva. Os piratas sequestraram o navio tanque e reuniram toda a tripulação na ponte enquanto esperavam por uma bunker barge [um navio tanque pequeno de reabastecimento] para roubar a carga do navio. Quando a bunker barge chegou, a tripulação do navio foi forçada a preparar as defesas para o navio atracar ao seu lado. Depois de roubar a carga os piratas trancaram a tripulação na cabine do Comandante, danificando alguns dos equipamentos de navegação, roubaram dinheiro navio, pertences pessoais da tripulação, provisões e itens eletrônicos e depois deixaram o navio-tanque em 05/10/2012 nas primeiras horas da manhã. Todos os tripulantes estão a salvo apesar de algumas lesões físicas.9

3.3. major criminal hijack Esta é a forma mais grave de pirataria e a mais rentável das três espécies. Na dimensão mais elevada distinguida pelo IMB, o ‘Major Criminal Hijack’, as acções são perpetradas por organizações regionais de grande dimensão, ou mesmo internacionais. Aqui, o navio é sequestrado, e é pedido um resgate; há o recurso à violência extrema (por vezes a tripulação é assassinada). Pode acontecer o navio ser repintado, ser-lhe dada outra bandeira e registo sob outro nome (Phantom Ship). São uma pequena parte dos crimes de pirataria ocorridos em todo o mundo, no entanto os mais rentáveis.

Quanto à última espécie, faz-se mister mencionar importante caso, o do petroleiro MV Sirius Star, o maior navio já sequestrado por piratas da história. Com carga avaliada em US$ 100 milhões10, e tripulação de 25 pessoas, foi sequestrado por piratas somalis em 15 de novembro de 2008, sendo libertado após pagamento de resgate no montante de US$ 3 milhões, em 9 de janeiro de 200911. 9 Fonte: ICC. Disponível em: . Acesso em: 29 out. 2012. 10 Hijacked Saudi oil tanker Sirius Star on the move. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2012. 11 NT saudita foi liberado segundo fontes somalis. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2012.

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4. zonas de risco O International Maritime Bureau (IMB) classifica algumas regiões do mundo como zonas de risco em relação à pirataria marítima, considerando o elevado número de incidentes reportados a ele nestas regiões. Essas regiões podem ser reunidas em cinco grupos devido às suas características geográficas e idiossincrasias: Costa da Somália, Golfo de Áden, Golfo da Guiné, Sudeste da Ásia (Estreito de Malacca, Malásia, Indonésia, Mar do Sul da China e outros) e Índia. Os citados incidentes ocorrem nessas regiões por diversos motivos, mas principalmente devido à sua localização geográfica favorável à existência de importantes rotas marítimas. O mapa (RODRIGUE, 2014) abaixo ilustra esta assertiva. FIGURA 1. Principais rotas de comércio marítimo



Zonas de risco de pirataria marítima

A principal rota marítima (core route), que liga as regiões da América do Norte, Europa e Ásia, passa por todas as zonas de risco classificadas pelo IMB. Todavia, vale ressaltar que o IMB realiza seus estudos estatísticos incluindo nos atos de pirataria os roubos armados praticados contra navios. Tal cálculo visa aumentar o número de incidentes reportados para fomentar o combate a estes delitos. volume

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Tecnicamente, somente há pirataria se as condutas praticadas estiverem de acordo com os ditames legais do art. 101 da CNUDM, isto é, somente se as condutas forem realizadas “em lugar não submetido à jurisdição de algum Estado”, no caso, além dos limites do mar territorial, pois, do contrário, constituemse em crimes de jurisdição interna dos Estados onde foram praticados. Destarte, somente algumas das áreas listadas como zonas de risco pelo IMB são realmente regiões onde há relevante número de incidentes de pirataria, como é o caso da Costa da Somália, Golfo de Áden e Golfo da Guiné. As demais são áreas onde o maior número de ataques constituem roubos armados contra navios, visto que praticados em portos, ancoradouros, ou águas próximas à costa. 5. combate à pir ataria marítima O processo de combate ao fenômeno da pirataria marítima dá-se por diversas formas e com o auxílio de diversos atores. Tais estratégias abrangem desde a pesquisa sobre o fenômeno, ajuda humanitária, criação de instituições (normatização) sobre o assunto, participação da sociedade internacional em fóruns de discussão, até intervenções militares ou segurança privada armada. Como o foco do presente trabalho é a atuação dos diversos atores não estatais no combate à pirataria marítima, nas seções seguintes será abordado somente o papel destes importantes atores no mencionado processo, levando-se em consideração a participação das organizações não governamentais e das empresas envolvidas. Basicamente, esses atores participam do processo de governança do combate ao citado fenômeno de duas formas: pesquisa e combate propriamente dito. É fundamental para uma boa governança a pesquisa sobre determinado as-sunto, de forma a prover conhecimento aos diversos atores envolvidos em seu combate. Através da pesquisa são conhecidos o fenômeno, suas causas, consequências e mapeadas suas ocorrências. A pesquisa está ligada ao processo cognitivo, de aprendizado, a respeito do fenômeno estudado, ao passo que objetiva o levantamento de dados, sua análise e consequentemente a obtenção de conclusões a respeito. 22

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Diante de tais considerações, é possível discutir-se o assunto em fóruns internacionais. Esta discussão torna-se mais proveitosa ao passo que é conhecido o assunto de forma aprofundada e garantida a participação ampliada, integrando os fóruns não somente os sujeitos de Direito Internacional, mas também os diversos atores internacionais interessados em fazê-lo. Tendo como base os resultados obtidos nessas discussões, que são importantíssimos instrumentos de governança, podem ser criadas instituições, normas internacionais com o escopo de positivar as conclusões e meios pelos quais deverá agir a comunidade global visando a pacificação social. Todavia, para o efetivo combate à pirataria marítima, é necessária a adoção de medidas concretas para inibir ou mesmo controlar o mencionado fenômeno. Neste contexto, esses atores desempenham indispensável papel na criação e manutenção de redes de informações a respeito de denúncias, bem como seu mapeamento. Ainda, conforme será abordado nas seções seguintes, a fragilidade da segurança de navios que navegam pelas citadas zonas de risco criou um novo nicho no mercado, a segurança privada armada embarcada. 5.1. participação ampliada A participação da sociedade civil internacional, assim como da empresas multinacionais, é de extrema relevância, visto que permite uma abertura tanto nos processos cognitivos, apoiados em pesquisas realizadas e subsidiadas por particulares, quanto nos fóruns de discussão, propiciando um melhor entendimento sobre o fenômeno analisado e, consequentemente, maximizando as chances de solucionar o problema de interesse da comunidade global. É tamanha a importância de tais atores no processo de governança global antipirataria marítima, que a Resolução 1846(2008) do Conselho de Segurança da ONU: 4. Exorta os Estados, em cooperação com a indústria naval, a indústria de seguros e da IMO, para emitir aos navios autorizados a arvorar a sua bandeira aconselhamento e orientação adequados sobre desvio, evasão, e técnicas defensivas e medidas a tomar se sob a ameaça ou ocorrência de ataque quando navegarem nas águas ao longo da costa da Somália; volume

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5. Além disso, exorta os Estados e organizações interessadas, incluindo a IMO, para prestar assistência técnica para a Somália e Estados costeiros próximos a seu pedido para aumentar sua capacidade em garantir a segurança costeira e marítima, incluindo combate à pirataria e roubo armado no mar ao longo da costa da Somália e litorais próximos;

No combate à pirataria marítima destacam-se duas ONGs pela produção de conhecimento e efetiva prestação de serviço na solução do problema proposto: a International Chamber of Commerce, através do International Maritime Bureau (IMB) e Commercial Crime Services (CCS); One Earth Future Foundation, através do projeto Oceans Beyond Piracy. No tocante à ajuda humanitária, pode-se citar a atuação da ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF), entretanto, a maior participação neste quesito ainda se dá por atores estatais ou a eles relacionados, como Organizações Internacionais, em especial a ONU através do World Food Program (WFP). Devido tal motivo não se discorrerá no presente trabalho mais sobre esta atuação. No tocante às empresas multinacionais, destaca-se a participação na autogestão do risco pela vítima. 5.1.1. International Chamber of Commerce Fundada em 1919, a International Chamber of Commerce (ICC) é uma organização não governamental que tem como escopo “proporcionar um fórum para empresas e outras organizações examinarem e melhor compreenderem a natureza e o significado das importantes mudanças ocorridas na economia mundial” (CARRIER, 2013). Hoje, 13 comissões da ICC compreendendo especialistas do setor privado que cobrem campos especializados de imediata preocupação dos negócios internacionais. Os assuntos variam de técnicas bancárias à tributação, a partir da legislação de concorrência aos direitos à propriedade intelectual, telecomunicações e tecnologia da informação, do transporte, meio ambiente e energia aos investimentos internacionais e política comercial.12 12 Fonte: ICC. The Merchants of Peace. Disponível em: . Acesso em: 24 mar. 2013. Tradução nossa.

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No que tange ao assunto da pirataria marítima, há duas divisões especializadas no estudo e combate a tal delito: o Commercial Crimes Services (CCS) e o International Maritime Bureau (IMB). ICC Commercial Crime Service (CCS) é o braço anticrime da International Chamber of Commerce. Com sede em Londres, CCS é uma organização-membro encarregada em combater todas as formas de crimes comerciais. As divisões especializadas que compreendem o CCS oferecem um campo de serviços dedicados a encontrar as necessidades individuais de cada membro. Juntos, eles enfrentam todos os tipos de crimes comerciais: fraude no comércio internacional, fraude a seguros, fraude de instrumento financeiro, lavagem de dinheiro, fraude a transporte e falsificação de produtos. O ICC International Maritime Bureau (IMB) é uma divisão especializada da International Chamber of Commerce (ICC). O IMB é uma organização sem fins lucrativos, fundada em 1981 para agir com foco no combate a todos os tipos de crimes marítimos e malversação. Por 25 anos, o IMB tem usado o conhecimento, experiência e acesso da indústria a um grande número de bem posicionados contatos pelo mundo para proteger a integridade do comércio internacional a procura de fraude e malversação.13

Em especial o IMB tem auxiliado muito a sociedade global no combate à pirataria marítima, visto que realiza importante pesquisa, com o levantamento e mapeamento do número de ataques de pirataria e roubo armado contra navios pelo mundo, bem como das circunstâncias em que estes ataques ocorreram e quem são suas vítimas. Estas informações são veiculadas ao público em geral por meio de relatórios anuais. Outro serviço de extrema relevância prestado pelo IMB é a manutenção do Piracy Reporting Centre, que consiste em um centro receptor de denúncias, que recebe as notícias sobre ataques de piratas ou ladrões e as encaminha imediatamente à autoridades competentes. Antes de 1992, comandantes e operadores de navios não tinham com quem contar quando seus navios eram atacados, roubados 13 Fonte: ICC-CCS. Disponível em: . Acesso em: 24 mar. 2013. Tradução nossa. volume

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ou sequestrados quer no porto ou no mar. As autoridades locais ou se faziam de surdas, ou escolheram ignorar que havia um sério problema em suas águas. O International Maritime Bureau ciente do nível crescente de pirataria, quis prestar um serviço gratuito aos marítimos e estabeleceu o IMB Piracy Reporting Centre 24h (PRC) em Kuala Lumpur, na Malásia.14

O trabalho realizado pelo IMB é muito importante para o processo de governança global em relação ao combate à pirataria marítima, posto que, através de seus relatórios, contribui para o conhecimento do fenômeno enfrentado, tão necessário no processo de governança, pois através deles é possível conhecer as áreas mais afetadas pela pirataria, bem como comparar os números de incidentes ocorridos em outros momentos. Destarte, pode-se verificar os meios encontrados para combater a pirataria estão alcançando os resultados almejados. Outra interessante faceta do IMB é o fomento à adoção de determinadas práticas e tecnologias antipirataria. Como foi apontado pelo IMB no passado, a tecnologia pode desempenhar um importante papel na batalha contra a pirataria. For exemplo, o IMB bastante favorável a dois produtos tecnológicos chamados Secure-Ship – um sistema preventivo e dissuasivo para impedir tentativas de abordagem – via uma não letal, cerca eletrificada com pulso de 9.000 volts em torno do navio – e ShipLoc – um barato sistema de rastreamento por satélite desenhado par localizar navios no mar ou no porto via minúsculo transmissor oculto nos navios e monitorado através de qualquer computador particular com acesso à internet. Equipados juntos, ShipLoc e Secure-Ship podem ser uma possível resposta para combater a pirataria com maior eficiência na maioria dos navios (exceto tanques e gaseiros em que o Secure-Ship não pode ser equipado). (ABHYANKAR, 2006, p. 18, tradução nossa)

5.1.2. One Earth Future Foundation A One Earth Future Foundation (OEF) é uma organização não governamental fundada em 2007, que iniciou suas atividades em 2008 com o escopo de promover a paz através da governança (seu slogan). 14 Loc. cit.

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Essa ONG possui diversos projetos, sendo o Oceans Beyond Piracy o relativo ao combate à pirataria marítima. Oceans Beyond Piracy (OBP) é um projeto da One Earth Future Foundation. OBP foi lançado em 2010 com o intento de desenvolver uma resposta à pirataria marítima através: 1. Da mobilização das partes interessadas da comunidade marítima 2. Do desenvolvimento de parcerias público-privadas para promover soluções em longo prazo no mar e no porto 3. Da dissuasão sustentável baseada no Estado de Direito15

Tal programa é responsável por duas importantes pesquisas sobre os custos da pirataria marítima na economia e nas vidas humanas. O estudo sobre os custos da pirataria na economia, denominado de The Economic Cost of Maritime Piracy. O estudo visa analisar o custo da pirataria no Chifre da África, Nigéria e Golfo da Guiné, e Estreito de Malacca. O foco é inevitavelmente os custos da pirataria da Somália porque esta é a região contemporânea onde a pirataria está mais concentrada, e é a melhor fonte de dados. [...] Com base em nossos cálculos, a pirataria marítima está custando à economia internacional entre $7 a $12 bilhões, por ano. (OEFOBP, 2010, p. 2, tradução nossa)

Já a pesquisa realizada sobre as violações aos direitos humanos pela pirataria marítima, intitulada The Human Cost of Somali Piracy 2011, foi realizada em conjunto com a ICC-IMB, e teve como objetivo a elaboração de um relatório sobre os tipos de violência sofrida pelos marítimos e outras vítimas, como turistas e trabalhadores da ajuda humanitária, bem como sua quantificação, em relação ao ano base de 2010. Da mesma forma exposta em relação ao IMB, tais estudos contribuem para o conhecimento do fenômeno pirataria marítima, bem como para a accountability necessária para a boa governança. 15 Fonte: OEF. Disponível em: . Acesso em: 24 mar. 2013. Tradução nossa. volume

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5.2. autogestão do risco pela vítima A indústria shipping desenvolve importante atuação no combate efetivo à pirataria marítima, notadamente no que tange a autogestão do risco pela vítima. Esta pode ser conceituada como conjunto de medidas adotadas pela provável ou iminente vítima de ataque pirata a fim de minimizar ou evitar prejuízos dele advindos. Diversas organizações estatais e não governamentais editaram um manual de autogestão do risco pela vítima, intitulado Best Management Practices for Protection against Somalia Based Piracy (BMP4). As principais práticas de autogestão do risco pela vítima de tais ataques podem ser dividas, para a facilitação do entendimento de seu emprego, em três momentos distintos: • Medidas utilizadas previamente ao ataque; • Medidas utilizadas durante o ataque (abordagem); • Medidas utilizadas posteriormente ao ataque (navio abordado). Vale ressaltar que, dos meios de governança empregados no combate à pirataria marítima, a autogestão do risco é o mais eficiente, posto que é capaz de produzir resultados imediatos, evitando a abordagem por piratas. 5.2.1. Medidas utilizadas previamente ao ataque A primeira de todas as medidas antipirataria está na educação. O adequado treinamento da tripulação, fixando um plano antipirataria e demonstrando como implementá-lo, é questão de extrema importância. As medidas utilizadas antes do ataque de piratas são as realizadas nas fases de espreita, localização e até mesmo aproximação dos suspeitos. É cediço que navios que se deslocam com velocidade acima de 18 nós nunca foram vítimas de incidentes de pirataria (UNCTAD, 2011, p. 26/64, tradução nossa). Assim, a primeira recomendação é no sentido de que os navios aumentem sua velocidade quando estiverem transitando por zonas de risco. Independentemente da velocidade de navegação, a manutenção de vigilância em 360º nas zonas de risco é medida essencial para se evitar ataques de piratas. 28

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Além do uso de radares e tripulantes para realizar a vigilância, tem sido utilizados também circuitos fechados de televisão (CFTV) e bonecos vestidos como tripulantes para enganar os pretensos atacantes, simulando que já foram avistados e, portanto, a emboscada não irá funcionar. Entretanto, sendo avistado um navio ou embarcação suspeitos, Gray, Monday e Stubblefield (2011, p. 78) sugerem a utilização de um interessante sistema de medida de alerta, visando mensurar o nível de ameaça para que, assim, possam ser tomadas as medidas adequadas. FIGURA 2. Plano antipirataria

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Quando as embarcações se aproximam do navio, em rota suspeita (de colisão ou de emparelhamento), os estágios funcionam da seguinte forma: na condição amarela a tripulação deve ficar alerta, verificando se a rota suspeita é mantida e se os suspeitos se aproximam; na condição laranja o navio e tripulação devem iniciar algumas medidas antipirataria, como manobras agressivas (ziguezaguear para causar ondas e rotas irregulares, desde que não importe na redução de velocidade), que tornam a abordagem muito difícil, soar o alarme e disparar sinalizadores, bem como posicionar a tripulação em suas funções antipirataria, inclusive enviando mensagens de alerta pelo rádio; na condição vermelha, devem continuar a serem tomadas as medidas da condição laranja, mas com o disparo de armas de fogo como aviso aos suspeitos, assim como a ativação da segurança privada armada presente a bordo do navio. Outra alternativa antipirataria é a utilização de rotas alternativas, visando evitar a passagem por zonas de risco. Tem sido cogitada a adoção da rota de Vasco da Gama, contornando o Cabo da Boa Esperança, a fim de evitar o Canal de Suez, com passagem obrigatória pelo Golfo de Áden, zona de alto risco de pirataria. FIGURA 3. Mapa da rota alternativa ao Canal de Suez

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16 Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2013.

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Essa medida já encontra alguns adeptos na comunidade marítima. Em 2011, apesar do fluxo de petróleo ter diminuído, as distâncias de comércio aumentaram em determinadas regiões. A Europa, por exemplo, trocou o petróleo da Líbia por outros substitutos de longo-curso do Oeste da Ásia, Mar Negro e África Ocidental. Além disso, petroleiros comercializando entre Oeste da Ásia e a Costa Atlântica dos Estados Unidos estão aumentando muito as distâncias de viagem para desviar da pirataria na Costa da Somália e Oceano Índico. (UNCTAD, 2012, p.11, tradução nossa)

Entretanto, tal medida não tem sido adotada por todos os transportadores marítimos, visto que o sacrifício de combustível e tempo não compensam, em termos de valores financeiros, em relação ao preço do prêmio pago aos seguradores marítimos. Neste sentido é a resposta da economista Maria Helena Carbone, diretora da área marítima da consultoria de riscos norte-americana Aon, em entrevista dada à revista Exame em 2009: – Uma alternativa que vem sendo discutidas pelas empresas marítimas é o desvio pelo Cabo da Boa Esperança, contornando todo o continente africano. Essa é uma boa opção?  Essa alternativa gera um acréscimo de custo para o transportador marítimo, muito superior ao custo do prêmio adicional que estaria desembolsando para manter a mesma rota, pelo Canal de Suez. (EXAME, 2009, grifo do autor)

Para ilustrar o esse posicionamento segue o gráfico na página seguinte: FIGURA 4. Custos de re-roteamento pelo Cabo da Boa Esperança

(SANDERS et al., 2010) volume

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5.2.2. Medidas utilizadas durante o ataque As medidas antipirataria utilizadas durante o ataque são, em verdade, preparações prévias do navio e tripulação para, no momento do ataque efetivo, serem utilizadas como forma de dissuasão. Faz-se mister mencionar que geralmente há a soma de medidas de uma fase com a outra, assim, as medidas a serem analisadas a diante são realizadas junto das utilizadas antes do ataque. Essas medidas consistem basicamente em duas espécies: instalação de ofendículos e contratação de segurança privada armada. Ofendículos, do latim offendicula, são “obstáculos que são colocados para a proteção da propriedade” (SILVA, 2002, p. 571). No caso das medidas antipirataria tais obstáculos variam, podendo ser de diversas espécies: • Redes: visa a parada dos motores dos esquifes dos piratas pelo entrelaçamento em suas hélices; • Cercas elétricas ou cercas de arame farpado: instaladas na linha da amurada do navio com o objetivo de aumentar sua altura e dificultar sua transposição; • Espuma deslizante: atirada no convés deixa-o escorregadio, dificultando a abordagem dos piratas; • Jatos d’água ou de vapor: quando disparados diretamente contra os agressores representam uma arma não letal capaz de derrubá-los para fora do navio; • Equipamentos sônicos de longo alcance: são utilizados para alertar as autoridades competentes e outros navios em longas distâncias; • Canhões laser: produzem um feixe cujo objetivo é cegar temporariamente e desorientar os piratas; • Sistema ADS (Active Deniel System): sistema de micro-ondas usadas para controle de multidões. O sistema emite ondas eletromagnéticas que causam o aquecimento da camada superficial da pele, causando extremo desconforto e dor no alvo; 32

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• Unidades não tripuladas de ataque ou reconhecimento: podem ser lançadas ao mar ou ar com finalidade de dissuasão dos ataques ou mesmo de reconhecimento da área, a fim de melhorar os resultados em manobras evasivas. FIGURA 5. Armas antipirataria

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O BMP4 (OCIMF, 2011, p. 25-26) ainda recomenda que a ponte de comando do navio seja especialmente protegida, utilizando-se grades de aço, filmes de segurança nos vidros, barricadas de sacos de areia e equipamentos de proteção balística para equipe que funciona na ponte, visto que é um dos principais alvos dos piratas. Também é recomendável que a ponte seja protegida por uma dupla camada de correntes, que se mostram eficazes na redução do dano causado por RPGs.

17 Preventing oil tanker piracy with anti-piracy weapons and tatics. Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2013. volume

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Outra medida que vem demonstrando importantes resultados é a contratação de segurança privada armada a bordo dos navios que transitam por zonas de risco de pirataria marítima. Graças a piora da situação [pirataria], tem havido um movimento pela indústria marítima a favor do uso de guardas privados armados a bordo de navios, como um meio de proteção contra ataques piratas. Em resposta a este movimento, a IMO Maritime Safety Commitee (MSC), em sua octogésima nona sessão, em maio de 2011, adotou várias formas de orientação no uso de segurança pessoal privada armada contratada, construindo sobre o trabalho prévio de prevenção e supressão da pirataria e roubo armado contra navio. (UNCTAD, 2011, p. 120, tradução nossa)

Atualmente tal medida é regulada pela circular da IMO-MSC nº 1443, de 23 de maio de 2012, cuja leitura se recomenda que seja feita em conjunto com a circular da IMO-MSC nº 1405/Rev.2. A circular nº 1443 menciona que o objetivo da orientação sobre a contratação de segurança privada armada a bordo de navios que transitam por áreas de risco é “melhorar a governança, reduzindo o potencial de acidentes, e promover a conduta no mar de forma competente, segura e legal”. Todavia, no item 1.3, 1, do seu anexo, menciona que a aprovação e responsabilização pelos atos dos seguranças privados será de competência, primeiramente, do Estado de Bandeira. A adoção de segurança privada armada a bordo de navios é questão muito controvertida na comunidade marítima internacional, possuindo opositores e partidários. Segundo Maria Helena Carbone, em entrevista realizada pela revista Exame, mencionou o seguinte: – O que a senhora pensa sobre a opção que vem sendo discutida atualmente de armar as tripulações?  Sempre considerei que armar pessoas que não são especificamente treinadas e preparadas para tal atividade representa mais risco do que benefício. Além disto, o emprego de armas de guerra pode representar uma exclusão em algumas coberturas de seguro. (EXAME, 2009, grifo do autor) 34

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Entretanto, o fato é que essa medida tem ajudado a dissuadir diversos ataques de piratas nas áreas críticas, visto que o grupo de agressores não espera o revide de fogo proveniente do navio alvo, bem como não possuem estrutura em seus esquifes para suportar trocas de tiros. Como exemplo da eficácia de tal medida, podem ser citados os seguintes eventos de pirataria: em 10 de outubro de 2012, em torno de 320 milhas náuticas a Sudeste de Mogadíscio, Somália, “um esquife com seis a oito piratas a bordo se aproximou e disparou contra um navio de pesca em alta velocidade. A equipe de segurança embarcada revidou fogo resultando no esquife abortar e fugir. Toda a tripulação está segura”18; em 4 de março de 2013, em torno de 40 milhas náuticas a Sudestes da Cidade de Mukalla, Iêmen, no Golfo de Áden: Quatro esquifes com cerca de seis pessoas em cada um se aproximaram de um petroleiro navegando a bombordo, meio e popa. O comandante soou o alarme, tomou as medidas antipirataria, informou a UKMTO e toda a tripulação não essencial se retirou para a cidadela. A equipe de segurança armada a bordo disparou tiros de alerta resultando na parada de aproximação dos esquifes a uma distância de cerca de quatro cabos [aproximadamente 740,8m] do navio. Escada e RPG foram avistadas nos esquifes que se aproximavam. Um navio de guerra foi deslocado para o local para assistência.19

5.2.3. Medidas utilizadas posteriormente ao ataque Após a abordagem do navio, apenas restam duas medidas para toda a tripulação: buscar guarida na sala de segurança e chamar ajuda. Se os piratas vierem a bordo, o último refúgio é a ‘sala segura’ ou ‘sala do pânico’, chamada de ‘cidadela’ pelos europeus. Uma sala segura em que a tripulação pode se retirar se o navio for abduzido permite que as forças militares invadam o navio com o mínimo risco à tripulação. Qualquer um fora da sala é conside18 Fonte: ICC. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2012, tradução nossa. 19 Fonte: ICC. Disponível em: . Acesso em: 05 mar. 2013, tradução nossa. volume

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rado jogo justo. Para ser efetiva, salas seguras devem ser à prova de balas e abastecidas com comida, água, instalações sanitárias, e equipamento de comunicação. Sob as circunstâncias ideais, a sala deveria também ter sistemas que pudessem substituir os motores do navio e imobilizá-lo. (GRAY; MONDAY; STUBBLEFIELD, 2011, p. 82, tradução nossa)

Vale ressaltar que, protegida a tripulação, é imediatamente acionado o IMB, por meio de seu centro de denúncias antipirataria, para que sejam informadas as autoridades competentes para a efetiva repressão do delito. 6. conclusões A pirataria marítima é fenômeno de extrema relevância para a sociedade global, visto que os prejuízos dele advindos são preocupantes e comuns à toda a comunidade mundial. Hodiernamente, a pirataria marítima é reconhecida como um dos maiores problemas em relação à segurança da navegação marítima, dados os frequentes e enormes prejuízos advindos de sua prática à indústria shipping e ao comércio mundial como um todo. Neste contexto faz-se necessária a adoção de medidas eficazes ao combate de tal prática delitiva. Diante disso, há diversos instrumentos adotados pela comunidade internacional visando enfrentar a pirataria marítima, que variam desde a pesquisa a respeito do fenômeno, mapeamento de zonas de risco, patrulhamento de tais áreas, criação de redes de informação, bem como operações militares. Notadamente, ganha relevância a participação ampliada, no sentido de permitir a atores não estatais interessados uma intervenção na resolução do problema. Esta ferramenta de governança propicia um melhor aproveitamento de esforços, visto que possibilita investimentos e cooperação na formação de estratégias capazes de solucionar ou ao menos minimizar os prejuízos oriundos da pirataria. Constata-se que o papel desempenhado pelos atores não estatais no levantamento de dados, mapeamento das zonas de risco e, principalmente, na criação e administração de redes de compartilhamento de informação, é essencial na resolução do problema da pirataria marítima. 36

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Essas estratégias, aliadas as empregadas pelos Estados e Organizações Internacionais, geram excelentes resultados, dada a convergência de esforços organizados e melhor distribuídos. Não obstante tais instrumentos, a indústria shipping desempenha também interessante e importante papel na resolução do problema, ao passo que pretende, mediante a adoção de medidas de profilaxia, evitar maiores transtornos para si e para as tripulações dos navios envolvidos nas transações comerciais. Por derradeiro, conclui-se que é de extrema importância e necessidade para o efetivo combate à pirataria marítima o papel desempenhado pelos atores não estatais, visto que, devido à sinergia criada por suas ações, e por consequência seus ótimos resultados, tornam-se indispensáveis ao desenvolvimento econômico, político e social relativo ao comércio internacional realizado pelo modal aquaviário. 7. referências ABHYANKAR, Jayant. Piracy, Armed Robbery and Terrorism at Sea: A Global and Regional Outlook. In: ONG-WEBB, Graham Gerard, Ed. Piracy, Maritime Terrorism and Securing the Malacca Straits. Pasir Panjang: ISEAS, 2006. BRANDÃO, Clarissa; VENÂNCIO, Daiana Seabra. O impacto da pirataria marítima na indústria do petróleo, In: 6º Congresso Brasileiro de P&D de Petróleo e Gás. 2011. Disponível em: . Acesso em: 23 mar. 2013. CALIXTO, Robson José. Incidentes marítimos: história, direito marítimo e perspectivas num mundo em reforma da ordem internacional. 2 ed. São Paulo: Lex Editora, 2006. CANINAS, Osvaldo Peçanha. Pirataria marítima moderna: história, situação atual e desafios. Revista da Escola de Guerra Naval, Rio de Janeiro, n. 14, 2009, p. 106. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2012. CARRIER, Jean-Guy. A word from our Secretary General. Disponível em: . Acesso em: 24 mar. 2013. EXAME. Piratas modernos são atraídos pela grande movimentação econômica nos mares. ______. 04/06/2009. Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2013. GIBERTONI, Carla Adriana Comitre. Teoria e prática do direito marítimo. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. GOTTSCHALK, Jack A. et al. Jolly Roger with an Uzi: the rise and threat of modern piracy. Annapolis: Naval Institute Press, 2000. GRAY, Jim; MONDAY, Mark; STUBBLEFIELD, Gary. Maritime Terror: Protecting Yourself, Your Vessel, and Your Crew against Piracy. Boulder: Paladin Press, 2011. Hijacked Saudi oil tanker Sirius Star on the move. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2012. ICC. The Merchants of Peace. Disponível em: . Acesso em: 24 mar. 2013. ICC-IMB. Piracy and Armed Robbery against Ships: report for the period 1 january – 31 december 2013. Londres, 2014. ICC-IMB; Oceans Beyond Piracy. The Human Cost of Somali Piracy in 2011. 2012. Disponível em: . Acesso em: 24/03/2013. JENKINS, John Philip. Piracy. In: Encyclopaedia Britannica. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2013. MARTINS, Eliane M. Octaviano. Curso de Direito Marítimo. 3 ed. vol. I. Barueri: Manole, 2008. 38

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causas de la ineficacia del derecho humano a la planificación familiar en br asil Ana Maria D´Ávila Lopes1 Denise Almeida de Andrade2

Resumen El reconocimiento del derecho a la planificación familiar como un derecho humano es reciente. A pesar de ello, importantes conquistas para su regulación legislativa internacional e nacional han sido ya alcanzadas. Sin embargo, las políticas públicas para implementarlo no han conseguido aún concederle la eficacia necesaria. En ese contexto, el objetivo de este trabajo es identificar las causas de la ineficacia del derecho humano a la planificación familiar, con el fin de contribuir para la resolución del problema. Para ello, inicialmente, los principales documentos internacionales relativos al derecho a la planificación familiar serán analizados. Seguidamente, será realizada una breve exposición de la evolución histórica de ese derecho en el Brasil. Finalmente, las diversas causas de la ineficiencia de las políticas públicas serán apuntadas.

Palabras clave Derechos Humanos; Planificación Familiar; Derechos Reproductivos.

Resumo O reconhecimento do direito ao planejamento como um direito humano é recente. Apesar disso, importantes conquistas para sua regulação legislativa 1 Máster y Doctora en Derecho Constitucional por la Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Profesora del Programa de Post-Grado en Derecho de la Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Miembro Efectivo de la Cámara de Asesoría y Evaluación - Área de las Ciencias Sociales – de la Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP). Becaria de Productividad en Investigación del Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 2 Máster y doctoranda en Derecho Constitucional por la Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Becaria de la Coordinación de Perfeccionamiento de Personas de Nivel Superior (CAPES), modalidad PROSUP/PRODAD. volume

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internacional e nacional têm sido já alcançadas. No entanto, as políticas públicas para implementá-lo não têm ainda conseguido conceder-lhe a eficácia necessária. Nesse contexto, o objetivo deste trabalho é identificar as causas da ineficácia do direito humano ao planejamento familiar, com o fim de contribuir na solução do problema. Para tal, inicialmente, os principais documentos internacionais relativos ao direito ao planejamento familiar serão analisados. Seguidamente, será realizada uma breve exposição da evolução histórica desse direito no Brasil. Finalmente, as diversas causas da ineficiência das políticas públicas serão apontadas.

Palavras-chave Direitos Humanos; Planejamento Familiar; Direitos Reprodutivos. 1. introducción A pesar del reconocimiento del derecho humano a la planificación familiar ser reciente, importantes conquistas en el plan legislativo internacional y nacional han sido ya alcanzadas. Sin embargo, las políticas públicas capaces de conceder eficacia a ese derecho no han conseguido acompañar esas conquistas legislativas, conforme puede ser verificado por los datos expuestos en las estadísticas oficiales. En ese contexto, el objetivo de este trabajo es identificar las diversas causas de la ineficacia del derecho humano a la planificación en Brasil, como forma de propiciar la discusión académica y la concientización de la sociedad civil de su papel protagónico en la lucha por el reconocimiento de los derechos humanos de todos sus miembros, sin ninguna discriminación. Con esa finalidad, los más importantes documentos internacionales relativos al derecho humano a la planificación familiar serán inicialmente analizados, con el objetivo de delinear el marco legislativo internacional de su desarrollo. Seguidamente, será realizada una breve exposición de la evolución histórica de ese derecho en el Estado brasileño, con el objetivo de mostrar los avanzos alcanzados desde la década de 1960, cuando la temática comenzó a ser discutida. Finalmente, serán señaladas las diversas causas de la ineficacia del derecho buscando evidenciar la necesidad de una mayor participación de la sociedad civil para denunciar y exigir 42

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políticas públicas capaces de garantizar el ejercicio del derecho a la planificación familiar sin discriminación de ninguna especie, conforme se encuentra establecido en la Constitución Federal de 1988. 2. análisis crítico de la legislación internacional sobre la planificación familiar La primera vez, aunque de forma tímida, que la planificación familiar fue tratada en ámbito internacional como un derecho humano fue en la “Conferencia Internacional de los Derechos Humanos” celebrada en Teherán en 1968. Así, en el art. 16 de la “Proclamación de Teherán”, se estableció que “La comunidad internacional debe continuar velando por la familia y el niño. Los padres tienen el derecho humano fundamental de determinar libremente el número de sus hijos y los intervalos entre sus nacimientos” (ONU, 1968, on-line). A partir de ese momento, otros documentos fueron elaborados buscando proteger el derecho de toda persona, y en especial de las mujeres, a libremente decidir sobre su capacidad reproductiva, conforme mostrado a continuación. 2.1. convención par a la eliminación de todas las formas de discriminación contr a las mujeres (cedaw, 1979) La “Convención para la Eliminación de Todas las Formas de Discriminación contra las Mujeres” (Cedaw) fue adoptada en 1979 por la Asamblea General de la Organización de la Naciones Unidas (ONU, 1979, on-line) y está compuesta de 30 artículos estructurados en seis partes. Comienza el documento proclamando el principio de la no discriminación y la igualdad entre hombres y mujeres como uno de sus fundamentos. La discriminación contra la mujer es definida en el art. 1: Artículo 1 A los efectos de la presente Convención, la expresión “discriminación contra la mujer” denotará toda distinción, exclusión a restricción basada en el sexo que tenga por objeto o por resultado menoscabar volume

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o anular el reconocimiento, goce o ejercicio por la mujer, independientemente de su estado civil, sobre la base de la igualdad del hombre y la mujer, de los derechos humanos y las libertades fundamentales en las esferas política, económica, social, cultural y civil o en cualquier otra esfera (ONU, 1979, on-line)

En los siguientes artículos, los Estados son llamados a adoptar medidas legislativas, jurisdiccionales e administrativas dirigidas a eliminar esa forma de discriminación. En el art. 4 se dispone que la adopción temporaria de medidas especiales (acciones afirmativas) dirigidas a las mujeres no debe ser considerada una práctica discriminatoria, sino un medio para disminuir la desigualdad entre hombre y mujeres. La necesidad de tomar medidas para la modificación de los padrones culturales que provocan la discriminación de género es prevista en el art. 5: Artículo 5 Los Estados Partes tomarán todas las medidas apropiadas para: a) Modificar los patrones socioculturales de conducta de hombres y mujeres, con miras a alcanzar la eliminación de los prejuicios y las prácticas consuetudinarias y de cualquier otra índole que estén basados en la idea de la inferioridad o superioridad de cualquiera de los sexos o en funciones estereotipadas de hombres y mujeres; [..] (ONU, 1979, on-line)

La igualdad de la mujer en el ámbito de los derechos políticos, adquisición de la nacionalidad, educación, derechos laborales, derechos económicos y civiles es tratada en los artículos 7, 9, 10, 11, 14 e 15, respectivamente. En relación al tema de este trabajo, deben ser citados el art. 12, que trata sobre los cuidados de la salud de la mujer, buscando garantizar la igualdad de acceso a los servicios médicos, inclusive los referentes a la planificación familiar; y el art. 16 que dispone sobre las relaciones familiares, estableciendo el derecho tanto del hombre como de la mujer de decidir libre y responsablemente sobre el número de hijos y el intervalo entre los nacimientos. En los siguientes artículos, a partir del art. 17, son previstas las normas relativas a la creación de un comité para acompañar el cumplimiento de las medidas 44

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que los Estados deberán tomar, así como las normas de aplicación de la propia Convención. 2.2. conferencia internacional sobre población y desarrollo En setiembre 1994, en la ciudad de El Cairo, fue realizada la “Conferencia Internacional sobre la Población y Desarrollo” (CIPD), la cual se destaca por haber instaurado un nuevo paradigma en relación a la reproducción humana. Así, por la primera vez, la comunidad internacional trató la planificación familiar como un derecho humano de la mujer y no como una amenaza al control demográfico de la población mundial. En la CIPD se elaboró el Programa de Acción (ONU, 1994, on-line) para los 20 años siguientes. El Programa es un documento final de más de 150 páginas producto de las discusiones ocurridas durante la Conferencia, que contó con la participación de delegaciones de 179 Estados e más de 1000 ONGs. El documento está estructurado en 11 capítulos, siendo los capítulos II e VII los más próximos al tema de este trabajo. El Capítulo II trata de los Principios, especialmente los relativos a la igualdad de género y el reconocimiento de la autonomía de la mujer. Define, también, como objetivo prioritario de la comunidad internacional, la erradicación a la discriminación sexual. Principio 4 Promover la equidad y la igualdad de los sexos y los derechos de la mujer, así como eliminar la violencia de todo tipo contra la mujer y asegurarse de que sea ella quien controle su propia fecundidad son la piedra angular de los programas de población y desarrollo. Los derechos humanos de la mujer y de las niñas y muchachas son parte inalienable, integral e indivisible de los derechos humanos universales. La plena participación de la mujer, en condiciones de igualdad, en la vida civil, cultural, económica, política y social a nivel nacional, regional e internacional y la erradicación de todas las formas de discriminación por motivos de sexo son objetivos prioritarios de la comunidad internacional. (ONU, 1994, on-line) volume

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Es importante resaltar que, por la primera vez, las mujeres dejaron de ser tratadas como objetos en el ámbito de los programas y políticas públicas de control demográfico, para pasar a ser reconocidas en su dignidad. Con ese cambio, se le dio poder a las mujeres para ejercer su autonomía en relación a su salud sexual y reproductiva (SHALEV, 2001, p. 54). En el art. 7.2 se reconoció la importancia del acceso de las mujeres a información y a centros de salud de cualidad. Derechos Reproductivos y Salud Reproductiva Bases para la acción 7. 12 El principio de la libre elección basada en una buena información es indispensable para el éxito a largo plazo de los programas de planificación de la familia. No puede haber ninguna forma de coacción. En todas las sociedades hay numerosos incentivos e impedimentos sociales y económicos que influyen en las decisiones sobre la procreación y el número de hijos. En este siglo, muchos gobiernos han ensayando el uso de sistemas de incentivos y desincentivos a fin de disminuir o elevar la fecundidad. La mayoría de esos sistemas apenas han repercutido en la fecundidad y en algunos casos han sido contraproducentes. Los objetivos gubernamentales de planificación de la familia deberían definirse en función de las necesidades insatisfechas de información y servicios. Los objetivos demográficos, aunque sean un propósito legítimo de las estrategias estatales de desarrollo, no deberían imponerse a los proveedores de servicios de planificación de la familia en forma de metas o de cuotas para conseguir clientes (ONU, 1994, on-line).

El Capítulo VII, cuyo título es “Derechos Sexuales y Reproductivos” fue dividido en cinco partes, siendo la primera sobre los derechos reproductivos y la salud reproductiva, la segunda sobre planificación familiar, la tercera sobre las enfermedades de transmisión sexual, la cuarta sobre la sexualidad humana y las relaciones entre los sexos y, por último, la quinta sobre los adolescentes. En la Primera Parte, la salud reproductiva es definida como el estado general de bienestar físico, mental y social en todos los aspectos relativos al sistema reproductivo y sus funciones y procesos. Para ello, se reconoce al hombre y a la mujer el derecho de obtener información y acceso a los métodos de su 46

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elección en materia de planificación familiar, debiendo estos ser seguros, eficaces, aceptables y económicamente accesibles y que no estén legalmente prohibidos. Aspecto relevante es la afirmación de que la salud reproductiva incluye también la salud sexual, la cual no puede ser entendida como el derecho de apenas recibir asesoramiento o atención en materia de reproducción de enfermedades de transmisión sexual. 7.2 [...]. En consonancia con esta definición de salud reproductiva, la atención de la salud reproductiva se define como el conjunto de métodos, técnicas y servicios que contribuyen a la salud y al bienestar reproductivos al evitar y resolver los problemas relacionados con la salud reproductiva. Incluye también la salud sexual, cuyo objetivo es el desarrollo de la vida y de las relaciones personales y no meramente el asesoramiento y la atención en materia de reproducción y de enfermedades de transmisión sexual (ONU 1994, on-line).

En ese mismo documento se observa que los derechos reproductivos allí citados se insieren en el derecho humano a la salud reconocido en las legislaciones nacionales e internacionales, así como en documentos de la ONU aprobados por consenso, como la Declaración Universal de los Derechos del Hombre de 1948 (art. 25.1), la Declaración y el Programa de Acción de la Conferencia Mundial de Derechos Humanos de Viena de 1993 (§ 41), el Pacto de Derechos Económicos, Sociales y Culturales de 1966 (art. 12). Aparte de eses documentos, no debe olvidarse la Convención para la Eliminación de Toda Forma de Discriminación contra las Mujeres de 1979 (Cedaw), en la cual expresamente se garantizan los derechos reproductivos (art. 16.1,“e”). En el Programa se insta a los Estados a que realicen acciones para facilitar el acceso a los servicios de salud reproductiva hasta el año 2015, lo que debe incluir asesoramiento, información y educación en materia de planificación familiar. Los Estados deben educar y capacitar a los hombres a asumir por igual la responsabilidad en la planificación familiar, en los trabajos domésticos y en la creación de los hijos, así como en la prevención de las enfermedades de transmisión sexual. La Segunda Parte del Capítulo VII trata sobre la planificación familiar, recomendándose la adopción de medidas para ayudar a las parejas y a las personas volume

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individualmente consideradas a alcanzar sus objetivos de procreación, prevención de embarazos no deseados y de alto riesgo, a través del acceso a servicios de salud de cualidad. También se orienta para que todos los gobiernos y la comunidad internacional utilicen todos los medios para apoyar la elección voluntaria en materia de planificación familiar. Objetivos 7.14 Los objetivos son: (a) Ayudar a las parejas y a las personas a alcanzar sus objetivos de procreación en un marco que favorezca condiciones optimas de salud, responsabilidad y bienestar de la familia, y que respete la dignidad de todas las personas y su derecho a elegir el numero de hijos, su espaciamiento y el momento de su nacimiento; (b) Prevenir los embarazos no deseados y reducir la incidencia de los embarazos de alto riesgo y la morbilidad y mortalidad; (c) Poner servicios de planificación de la familia de buena calidad y aceptables al alcance y disposición de cuantos los necesitan y desean, manteniendo su carácter confidencial; (d) Mejorar la calidad de los servicios de asesoramiento, información, educación y comunicaciones en materia de planificación de la familia; (e) Lograr que los hombres participen mas y asuman una mayor responsabilidad practica en la planificación de la familia; (f) Promover la lactancia materna para favorecer el espaciamiento de los nacimientos (ONU 1994, on-line).

En la Tercera Parte, que trata de las enfermedades de transmisión sexual (ETS), se recomienda la adopción de medidas para la reducción de esas enfermedades y de otras que puedan afectar la capacidad reproductiva. La información sobre las formas de transmisión y la promoción del uso de preservativos de buena calidad es citada como un medio para el combate de las ETS, incluyendo el VIH. En esta parte del documento se llama la atención para la situación de vulnerabilidad en que las mujeres se encuentran: 7.28 Las desventajas económicas y sociales de la mujer la hacen especialmente vulnerable a las enfermedades de transmisión sexual, incluido el VIH; es ejemplo de esto, su vulnerabilidad al 48

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comportamiento sexual imprudente de sus parejas. En la mujer, los síntomas de las infecciones de transmisión sexual no suelen ser aparentes, lo que hace que su diagnostico sea más difícil que en el hombre, y las consecuencias para la salud suelen ser más graves e incluyen en particular, el riesgo incrementado de infecundidad y de embarazo ectópico. El riesgo de transmisión del varón infectado a la mujer es también más elevado que a la inversa, y a muchas mujeres les resulta imposible tomar medidas para protegerse (ONU, 1994, on-line).

La sexualidad humana y las relaciones entre los sexos son temas de la Cuarta Parte, donde se objetiva promover el desarrollo adecuado de una sexualidad responsable por medio del establecimiento de relaciones de equidad y respeto mutuo entre los sexos. El acceso a información y a servicios de salud de buena calidad adquiere carácter fundamental como forma de permitir que hombres y mujeres puedan ejercer conscientemente sus derechos y responsabilidades en materia de procreación. Por otro lado, la educación sexual para los jóvenes adquiere papel de destaque, así como la asesoría y orientación a los padres para el respeto de los derechos de los niños y de los jóvenes en conformidad con la Convención sobre los Derechos de los Niños de 1989. La educación sexual debe comenzar en la unidad familiar, incluyendo también los adultos, especialmente los hombres en relación a su salud sexual y fecundidad. Los programas educacionales deben promover y apoyar el debate activo y abierto sobre la necesidad de proteger las mujeres, los jóvenes y los niños contra los abusos, incluyendo el abuso sexual, la explotación sexual, el tráfico con fines de explotación sexual, la violencia y la producción y comercialización de material pornográfico infantil. Se recomienda a los gobiernos y a la comunidad internacional, la adopción de medidas urgentes para poner fin a la práctica de la mutilación genital de mujeres y niñas, protegiéendolas contra todas las prácticas no necesarias y peligrosas de esa naturaleza. 7.40 Los gobiernos y las comunidades deberían adoptar con carácter urgente medidas para poner fin a la práctica de la mutilación genital de la mujer y proteger a las mujeres y niñas contra todas las prácticas peligrosas de esa índole. Las medidas volume

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encaminadas a eliminar esa práctica deberían incluir programas eficaces de divulgación en la comunidad, en los que participen los dirigentes religiosos y locales, y que incluyan educación y orientación acerca de sus efectos sobre la salud de las niñas y mujeres, así como tratamiento y la rehabilitación apropiados para las que hayan sufrido una mutilación. Los servicios deberían incluir la orientación de las mujeres y los hombres con miras a desalentar dicha práctica (ONU, 1994, on-line).

La última parte del Capítulo VII trata de las cuestiones relativas a la salud sexual y reproductiva de los adolescentes, especialmente sobre los embarazos no deseados, el aborto en condiciones precarias y las enfermedades de transmisión sexual. El Programa incide en la importancia de la promoción de una conducta reproductiva y sexual responsable y saludable de los adolescentes, incluyendo la abstinencia voluntaria. Defiende, también, la prestación de servicios de salud e información adecuados para esa edad, salvaguardando los derechos a la intimidad, a la confidencialidad, al respeto y al consentimiento fundado en información correcta, en respeto a los valores culturales y creencias religiosas de los adolescentes, sin ignorar los derechos, deberes y responsabilidades de los padres. 2.3. conferencia de beijing En setiembre de 1995 fue celebrada en Beijing la IV Conferencia Mundial de la Mujer, con la participación de más de 40 mil representantes de organizaciones gubernamentales y no gubernamentales y 189 Estados. En la Conferencia de Beijing se consolidaron muchas de las reivindicaciones para la igualdad entre hombres y mujeres que ya habían sido discutidas en la Conferencia Mundial de las Mujeres, realizada en la Ciudad de México en 1975, así como en las otras conferencias mundiales sobre el asunto (Copenhague 1980 y Nairobi 1985). Las decisiones tomadas durante la Conferencia de Beijing fueron plasmadas en dos documentos: La Declaración y la Plataforma de Acción (ONU 1995, on-line). La Declaración de Beijing está compuesta de 38 artículos y se destaca por reafirmar el consenso y la voluntad de los gobiernos en promover la igualdad de derechos y la dignidad humana inherente a todos los hombres y mujeres (art. 50

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8), por asegurar la plena aplicación de los derechos humanos de las mujeres y de las niñas (art. 9) y por promover su superación y progreso a partir del desarrollo pleno de su potencial (art. 12). En el ámbito de los derechos sexuales y reproductivos (art. 17), se declara como fundamental para el fortalecimiento de las mujeres, el reconocimiento explícito y la reafirmación del derecho a controlar todos los aspectos de su salud. Ya la Plataforma de Acción evalúa el progreso alcanzado desde los compromisos asumidos en Nairobi y propone, para el 2000, un conjunto de acciones prioritarias agrupadas en 12 esferas: pobreza; educación; salud; violencia contra la mujer; conflictos armados; oportunidades económicas; acceso a todos los niveles de tomada de decisión en las esferas pública, privada y social; mecanismos para promover el progreso de las mujeres; derechos humanos; media; género y discriminación contras las niñas. La Plataforma de Acción se encuentra estructurada en seis capítulos. El Primer Capítulo trata de los objetivos de la Declaración determinando que los Estados deben adoptar medidas inmediatas y concertadas para la creación de un mundo pacífico, justo, humano y equitativo, fundando en los derechos humanos y en las libertades individuales. En este capítulo, se enfatiza que las mujeres comparten problemas comunes que solamente pueden ser resueltos trabajando de forma conjunta y en asociación con los hombres, como forma de alcanzar el objetivo común de la igualdad de género en todo el mundo. Para alcanzar eses objetivos, se afirma que es necesario que los gobiernos, organismos internacionales e instituciones de todos los niveles destinen recursos suficientes en nivel nacional e internacional, aparte de recursos especialmente dirigidos para países en desarrollo. 3. The Platform for Action emphasizes that women share common concerns that can be addressed only by working together and in partnership with men towards the common goal of gender* equality around the world. It respects and values the full diversity of women’s situations and conditions and recognizes that some women face particular barriers to their empowerment. volume

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4. The Platform for Action requires immediate and concerted action by all to create a peaceful, just and humane world based on human rights and fundamental freedoms, including the principle of equality for all people of all ages and from all walks of life, and to this end, recognizes that broad- based and sustained economic growth in the context of sustainable development is necessary to sustain social development and social justice. 5. The success of the Platform for Action will require a strong commitment on the part of Governments, international organizations and institutions at all levels. It will also require adequate mobilization of resources at the national and international levels as well as new and additional resources to the developing countries from all available funding mechanisms, including multilateral, bilateral and private sources for the advancement of women; financial resources to strengthen the capacity of national, subregional, regional and international institutions; a commitment to equal rights, equal responsibilities and equal opportunities and to the equal participation of women and men in all national, regional and international bodies and policy- making processes; and the establishment or strengthening of mechanisms at all levels for accountability to the world’s women (ONU, 1995, on-line).

En el Segundo Capítulo se aborda el tema del contexto mundial em el cual se encuadran los trabajos de la Conferencia, identificándose los objetivos y las recomendaciones derivadas de las anteriores conferencias, así como el contexto y las tendencias relevantes en materia económica, política e social. En este Capítulo se afirma la importancia de que el poder entre la mujer y el hombre sea compartido, así como la necesidad de los dos asumir las responsabilidades del hogar, del trabajo y de la comunidad nacional e internacional. Se afirma también que la igualdad entre hombres y mujeres es una cuestión de derechos humanos y constituye requisito indispensable para promover el desarrollo y la paz. En el Tercer Capítulo son identificadas las 12 principales esferas de preocupación en relación a la condición de la mujer en el mundo. En el Cuarto Capítulo son presentadas las estrategias para cada una de esas esferas. 52

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Los mecanismos y las disposiciones institucionales necesarias para mejorar la condición de la mujer en la sociedad son enumerados en el Quinto Capítulo. El último Capítulo se refiere a la necesidad de destinar nuevos recursos financieros y humanos para avanzar en la tarea de mejorar la condición social de la mujer. En relación a la temática del presente trabajo, en el Cuarto Capítulo encontramos las estrategias que deben ser adoptadas para disminuir las disparidades, insuficiencias y desigualdades para el acceso de las mujeres a servicios de salud y conexos: a) fomentar el acceso de la mujer durante toda su vida a servicios de atención a la salud y a la información, así como a servicios conexos adecuados, de bajo costo, pero de buena calidad; 106. […] c. Design and implement, in cooperation with women and community-based organizations, gender-sensitive health programmes, including decentralized health services, that address the needs of women throughout their lives and take into account their multiple roles and responsibilities, the demands on their time, the special needs of rural women and women with disabilities and the diversity of women’s needs arising from age and socio-economic and cultural differences, among others; include women, especially local and indigenous women, in the identification and planning of health-care priorities and programmes; remove all barriers to women’s health services and provide a broad range of health-care services; [...](ONU, 1995, on-line)

b) fortalecer programas de prevención que fomenten la salud de las mujeres; 107. [...] a. Give priority to both formal and informal educational programmes that support and enable women to develop selfesteem, acquire knowledge, make decisions on and take responsibility for their own health, achieve mutual respect in matters concerning sexuality and fertility and educate men regarding the importance of women’s health and well-being, placing special focus on programmes for both men and women volume

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that emphasize the elimination of harmful attitudes and practices, including female genital mutilation, son preference (which results in female infanticide and prenatal sex selection), early marriage, including child marriage, violence against women, sexual exploitation, sexual abuse, which at times is conducive to infection with HIV/AIDS and other sexually transmitted diseases, drug abuse, discrimination against girls and women in food allocation and other harmful attitudes and practices related to the life, health and well-being of women, and recognizing that some of these practices can be violations of human rights and ethical medical principles; [...](ONU, 1995, on-line)

c) adoptar iniciativas que lleven en consideración las diferencias de género para enfrentar las enfermedades de transmisión sexual y el VIH, así como otros problemas relativos a la salud sexual y reproductiva; 108. [...] e. Develop gender-sensitive multisectoral programmes and strategies to end social subordination of women and girls and to ensure their social and economic empowerment and equality; facilitate promotion of programmes to educate and enable men to assume their responsibilities to prevent HIV/AIDS and other sexually transmitted diseases; [...](ONU, 1995, on-line)

d) promover la investigación y difundir las informaciones sobre la salud de la mujer; 109. [...] Train researchers and introduce systems that allow for the use of data collected, analysed and disaggregated by, among other factors, sex and age, other established demographic criteria and socio-economic variables, in policy-making, as appropriate, planning, monitoring and evaluation; Promote gender-sensitive and women-centred health research, treatment and technology and link traditional and indigenous knowledge with modern medicine, making information available to women to enable them to make informed and responsible decisions; Increase the number of women in leadership positions in the health professions, including researchers and scientists, to achieve equality at the earliest possible date; [...](ONU, 1995, on-line) 54

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e) aumentar los recursos para el acompañamiento de la salud de las mujeres. 110. [...] d. Develop goals and time-frames, where appropriate, for improving women’s health and for planning, implementing, monitoring and evaluating programmes, based on gender-impact assessments using qualitative and quantitative data disaggregated by sex, age, other established demographic criteria and socioeconomic variables; [...](ONU, 1995, on-line)

A pesar de la importancia de esas normas para el reconocimiento y promoción de los derechos de las mujeres, se debe resaltar que la Plataforma de Acción de Beijing fue totalmente omisa en materia de los derechos sexuales. 3. el derecho humano a la planificación familiar en br asil Para comprender los actuales contornos teórico-prácticos del derecho humano a la planificación familiar en Brasil es antes necesario hacer, aunque de forma breve, una referencia a su evolución histórica, la cual se remonta a la década de los años sesenta, cuando ese derecho comenzó a ser discutido, pasando por el lanzamiento del Programa de Asistencia Integrada a la Salud de la Mujer (1984), la promulgación de la Constitución Federal de 1988 y la Ley de Planificación Familiar (1996). 3.1. antecedentes En los inicios de la década de 1960 comenzó observarse en Brasil una disminución en las tasas de fecundidad. Algunos autores, como Viera (1999, p. 75) señalan que la principal causa del fenómeno fue el creciente desarrollo económico del país, especialmente de las regiones Sur y Sudeste, vale ressaltar que é nos anos 60 que se inicia o progressivo decréscimo nas taxas de fecundidade da população brasileira, relacionadas à urbanização e à formação dos pólos industriais que alterarão significativamente o padrão familiar em relação ao número de filhos. volume

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Otra causa que puede ser señalada es la interferencia de entidades privadas, financiadas por instituciones internacionales, como la Sociedad Civil de Bienestar Familiar (BEMFAM), que viabilizaron el acceso de las mujeres a métodos contraceptivos, inclusive e forma gratuita. Se resalta, en este punto, la incoherencia de la posición de la dictadura militar brasileña de la época que, si por un lado afirmaba la necesidad de aumentar la población para “povoar os espaços vazios”, por otro lado, permitía la interferencia de entidades extranjeras en el control de la natalidad de su población. Para Coelho, Lucena e Silva (2000, p. 40) Uma vez dependente do capital internacional, o Brasil se rendeu às entidades americanas consideradas de planejamento familiar, apesar da resistência de militares, da Igreja e do próprio governo, que justificavam a importância de uma grande população, tanto do ponto de vista estratégico como econômico.

Ese panorama continuó hasta la Conferencia Mundial de Bucarest en 1974, en la cual el gobierno brasileño pública y oficialmente declaró “ser um direito social, decidir quanto à composição da família. Para tanto, o poder público deveria se ocupar da divulgação de informação sobre a contracepção, o que na prática não se efetivou” (VIEIRA, 2000, p. 41). Con esa línea de pensamiento, en 1975, el gobierno creó el Programa Nacional de Salud Materno-Infantil (PMI), a partir del cual las políticas de asistencia a la salud de la mujer pasaron a ser mejor formuladas, especialmente porque se comenzó a seguir la orientación de la Organización Mundial de Salud (OMS) de considerar como relevante el binomio clase social y vulnerabilidad (COELHO; LUCENA; SILVA, 2000). Sin embargo, el Programa también fue criticado por priorizar el tecnicismo, la impersonalidad, la práctica curativa (y no preventiva) y la concentración médica en los centros urbanos, en lugar de implementar prácticas humanizadas, preventivas y horizontalizadas. En los últimos años de la década de 1970, el movimiento feminista brasileño buscó establecer un canal de diálogo con las esferas oficiales de poder para reivindicar el reconocimiento del derecho de las mujeres a la libre planificación 56

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familiar3. Fue un acto de mucho coraje, considerando la coyuntura autoritaria y socio-política machista. Hubo, también, el inicio de una aproximación con otros segmentos sociales, como la prensa y las universidades. Esas iniciativas no resultaron en avanzos inmediatos, pero posibilitaron que la década siguiente fuese marcada por la solidificación de algunas reivindicaciones, como el fortalecimiento de la participación de las mujeres en la vida política oficial del Brasil y la efectivización de medidas dirigidas a la salud integral de la mujer y no apenas en periodos de embarazo o menopausia. Para Pitangy (1999, p. 23): nos anos 80, cresce a influência de feministas em partidos da oposição brasileira[...]. Com a realização das eleições para governadores, em 82, [...] são criados os primeiros espaços governamentais, denominados conselhos, com o objetivo de propor e implementar políticas com perspectiva de gênero.

En 1985, fue significativa la creación del Consejo Nacional de los Derechos de la Mujer (CNDM), por haber sido instituida en plena efervescencia política de las luchas por la redemocratización del país, las que culminaron con la promulgación de la Constitución Federal de 1988. 3.2. el progr ama de asistencia integr ada a la salud de la mujer La política de asistencia integral a la salud de la mujer comenzó a ser adoptada por el Ministerio de la Salud en el inicio de la década de 1980 y es definida como el conjunto de “ações de saúde dirigidas para o atendimento global das necessidades prioritárias desse grupo populacional e de aplicação ampla no sistema básico de assistência à saúde.” (MINISTÉRIO DE SÁUDE, on-line). Esa política tenía como foco principal presentar una propuesta de atención a la salud de la mujer que no se limitase al periodo exclusivo de la maternidad.

3 Como ejemplo de esas luchas, puede citarse la propuesta de alteración del capítulo sobre la familia del Código Civil de 1916, especialmente para retirar del hombre la condición de “jefe” de la sociedad conyugal. La propuesta fue enviada en 1976 al Poder Legislativo Federal (PITANGUY, 1999). volume

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O atendimento à mulher pelo sistema de saúde tem-se limitado, quase que exclusivamente, ao período gravídico-puerperal, e, mesmo assim, de forma deficiente. Ao lado de exemplos sobejamente conhecidos, como a assistência preventiva e de diagnóstico precoce de doenças ginecológicas malignas, outros aspectos, como a prevenção, detecção e terapêutica de doenças de transmissão sexual, repercussões biopsicossociais da gravidez não desejada, abortamento e acesso a métodos e técnicas da fertilidade, têm sido relegados a plano secundário. Esse quadro assume importância ainda maior ao se considerar a crescente presença da mulher na força de trabalho, além do seu papel fundamental no núcleo familiar (MINISTÉRIO DE SAÚDE, on-line).

Aparte de superar esa visión restrictiva, la política de atención integral a la salud de la mujer buscó responder a los nuevos contornos que la familia brasileña estaba asumiendo a partir de la inserción de la mujer al mercado de trabajo y al proceso de urbanización de las ciudades. Si bien eran políticas públicas dirigidas a la mujer, se consideraba que sus impactos irían beneficiar la salud de toda la población, pues “a compreensão maior da proposta [era] a de que as ações previstas faz[iam] parte de um programa global de assistência primária à saúde da população” (MINISTERIO DE SAÚDE, on-line). Fue bajo esa amplia visión de lo que debía ser el atendimiento integral a la salud que, en 1984, se creó el Programa de Asistencia Integrada a la Salud de la Mujer (PAISM), imbuido también del sentimiento de que la redemocratización del país había venido para mejorar la condición de vida de toda la población, especialmente la más carente. La adopción del PAISM constituye un momento histórico en la lucha por el reconocimiento de los derechos de las mujeres, pues Trata-se de um documento histórico que incorporou o ideário feminista para a atenção à saúde integral, inclusive responsabilizando o estado brasileiro com os aspectos da saúde reprodutiva. Desta forma as ações prioritárias foram definidas a partir das necessidades da população feminina. Isso  significou uma ruptura com o modelo de atenção materno-infantil até então desenvolvido (MINISTÉRIO DE SAÚDE, on-line). 58

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Siguiendo la concepción ya instaurada de que la atención a la salud de la mujer no debía limitarse al periodo la maternidad, el PAISM priorizó acciones educativas dirigidas a todas las edades y periodos de vida, desde la adolescencia hasta la tercera edad, respetando las particularidades y necesidades de cada uno de eses momentos, buscando garantizar la eficiencia de las medidas y el éxito de los resultados. Lamentablemente, el proceso de implantación del PAISM fue marcado por dificultades y retrocesos. Así, a pesar de su relevancia y pionerismo, no consiguió ser plenamente concretizado, conforme afirman Coelho, Lucena y Silva (2000, p. 43), quanto ao PAISM, vimos que, a partir de uma proposta norteada por princípios éticos, busca corrigir as distorções existentes no campo da saúde reprodutiva e, em particular, em relação aos direitos reprodutivos. Vimos também que a luta pela sua implantação faz parte do esforço pela implantação do SUS, que toma impulso [...], mas retrocede na prática das instâncias responsáveis pela sua concretização. As tentativas de ruptura com os princípios do PAISM, demonstram que, apesar das declarações oficiais favoráveis à sua implantação, há flagrantes manobras políticas com o propósito de inviabilizá-lo”.

Las inconsistencias del discurso oficial pueden aún ser encontrada en web-site del Ministerio de Salud (on-line). O Programa Assistência Integral à Saúde da Mulher foi elaborado pelo Ministério da Saúde e apresentado na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da explosão demográfica em 1983. A discussão se pautava predominantemente sobre o controle da natalidade. O Ministério da Saúde teve papel fundamental, pois influenciou no âmbito do Governo Federal e este por sua vez, se posicionou e defendeu o livre arbítrio das pessoas e das famílias brasileiras em relação a quando, quantos e qual o espaçamento entre os/as filhos/as.

Dos imprecisiones encontradas en esa cita merecen destaque: a) el PAISM no puede ser considerado fruto del esfuerzo de un ente federal, pues fue resultado de la interlocución entre la sociedad civil y órganos oficiales, lo que, justamente, garantizó la solidez de la propuesta y que aún hoy sirve de parámetro; b) las políticas que hasta hoy son desarrolladas no han conseguido garantizar el ejercicio volume

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del libre arbitrio de las personas y las familias en relación a la planificación familiar. Esas imprecisiones confirman la actual ausencia de transparencia y coherencia en las prácticas que envuelven la planificación familiar. De cualquier manera, no hay como desconocer el mérito del PAISM, especialmente por haber propugnado la relevancia de una información de cualidad, objetiva y accesible como punto de partida para cualquier práctica adecuada de planificación familiar. Del mismo modo, el PAISM se destaca por haber priorizado las prácticas educativas y plurales en el proceso de formación autónoma del individuo. Es bajo esa percepción que defendió la prevención y el empoderamiento de las mujeres, a partir de tomadas de decisión conscientes y responsables: “o conceito de assistência reconhece o cuidado médico e de toda a equipe de saúde com alto valor às praticas educativas, entendidas como estratégia para a capacidade crítica e a autonomia das mulheres” (MINISTÉRIO DE SAÚDE, on-line). 3.3. la constitución feder al de 1988 La Constitución de la República Federativa del Brasil (CF⁄88), proclamada el 5 de octubre de 1988, representa el momento cumbre del proceso de redemocratización enfrentado por el país después de la dictadura militar instaurada en marzo de 1964. Debido al grande número de normas de fortalecimiento de la ciudadanía que fueron positivadas, incluyendo una amplia diversidad de derechos y garantías fundamentales, fue denominada “Constitución Ciudadana” por Ulysses Guimarães, presidente de la Asamblea Constituyente que la elaboró. Está compuesta de 250 artículos distribuidos en nueve Títulos, más otros 98 artículos constantes en el Acto de las Disposiciones Finales Transitorias (ADCT). Hasta la fecha4, la Constitución ha sido objeto de seis Enmiendas Constitucionales de Revisión (ECR), más otras 81 enmiendas (EC) producto del proceso de reforma constitucional (BRASIL, 1988, on-line). En el Título I se encuentran previstos los principios fundamentales del Estado Democrático de Derecho brasileño, entre los cuales podemos citar, por su 4 Dato referente a la fecha de elaboración de este texto: 07 de junio de 2014.

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relevancia y relación con el presente trabajo, la dignidad de la persona humana y la prohibición de cualquier forma de discriminación. La dignidad de la persona humana está prevista en el inciso III del art. 1° de la CF/88, como uno de los fundamentos del Estado, actuando como paradigma para la interpretación y la aplicación de todo el ordenamiento jurídico nacional. En ese sentido se manifiesta Ingo Sarlet, para quien ese principio “constitui valor-guía não apenas dos direitos fundamentais mas de toda a ordem jurídica” (SARLET, 2002, p. 74). El principio de la no discriminación por motivos de origen, raza, sexo, color, edad o de cualquier otra índole, está previsto como uno de los objetivos del Estado en el inciso IV del art. 3° de la CF/88. Es importante resaltar que esta norma fue redactada como una cláusula abierta, prohibiéndose no apenas las formas de discriminación citadas expresamente en el texto constitucional, sino “cualquier otra forma discriminación”. La igualdad de todas las personas, como norma fundamental del Estado brasileño, fue reforzada en el caput del art. 5° donde se afirma que “todos son iguales frente a la ley...”, debiendo la igualdad ser interpretada no a partir de su restricta acepción oriunda del liberalismo, que apenas consideraba la igualdad en su sentido formal – en el texto en la norma – sino que debe ser interpretada como una igualdad material – igualdad en el texto y en la aplicación de la norma – imponiendo tratar a los iguales como iguales y a los desiguales como desiguales. Esa exigencia deriva del hecho de que, aunque todo ser humano es igual a otro, en la sociedad no todos los seres humanos ejercen o cumplen los mismos papeles, encontrándose algunos en situación de clara desventaja en relación a los otros, lo cual, por su vez, exige del Estado tanto la diferente aplicación de la norma en el caso concreto, cuanto la previsión de normas especiales (acciones afirmativas) para igualar a los que se encuentren en situación de desventaja o vulnerabilidad, como en el caso de las personas con deficiencia. Bajo ese nuevo paradigma conceptual, el constituyente estableció expresamente la igualdad entre hombres y mujeres (art. 5°, I), rompiendo con siglos de discriminación de género contra las mujeres. En esa misma línea, en el §5° del art. 226, se estableció que los derechos y deberes deberían ser ejercidos igualmente por el hombre y la mujer. En materia de derechos reproductivos hubo también un importante avanzo al establecerse la libre planificación familiar como un derecho de la pareja. volume

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Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

Después de siglos bajo el yugo de una cultura machista, esa norma evidencia la voluntad jurídico-política de superar la situación de discriminación contra la mujer imperante en la sociedad brasileña. 3.4. la ley de planificación familiar La Ley de Planificación Familiar (Ley n°. 9263/96) fue promulgada en enero de 1996 con la finalidad de regular el §7° del art. 226 de la Constitución Federal de 1988, estando estructurada en tres capítulos y 25 artículos (BRASIL, 1996, on-line). Del análisis de algunos de esos artículos, puede verificarse la preocupación del gobierno brasileño por acompañar las mudanzas conceptuales de la planificación familiar, introducidas en documentos internacionales, como el Programa de Acción de la Conferencia Internacional sobre Población y Desarrollo (CIPD) de 1994. Así, en los artículos 2° y 3°, encontramos una definición de planificación familiar en la cual se privilegia la autonomía de los individuos y la igualdad entre hombres y mujeres. Art. 2º Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal. Parágrafo único - É proibida a utilização das ações a que se refere o caput para qualquer tipo de controle demográfico. Art. 3º O planejamento familiar é parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde. 62

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Importante también resaltar que, en el párrafo único del art. 2°, la planificación familiar fue desvinculada de cualquier tipo de control demográfico. Ya en el art. 3°, el derecho a la libre planificación familiar fue asegurado no apenas a la pareja, como está establecido en la CF⁄88, sino también a las personas consideradas individualmente. La prevención y la educación fueron establecidos principios directores de la planificación familiar (art. 4°), garantiéndose a todos el acceso igualitario a las informaciones, medios, métodos y técnicas disponibles para la regulación de la fecundidad, los cuales serán ofrecidos a través del Sistema Único de Salud (SUS) o de instituciones privadas, pero siempre bajo la fiscalización del Poder Público (art. 6°). La esterilización, que solamente puede ser voluntaria, es un asunto regulado de forma más detallada en la Ley, siendo aceptada apenas en los siguientes casos: Art. 10. Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações: (Artigo vetado e mantido pelo Congresso Nacional - Mensagem nº 928, de 19.8.1997). I - em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce; II - risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos.

Otras limitaciones se refieren a la exigencia del consentimiento libre e informado de los pacientes, así como la prohibición de la esterilización durante los periodos de parto o aborto, excepto en casos de comprobada necesidad (art. 10, §1° y §2°). Por otro lado, fue establecido que la esterilización solamente podría ser realizada a través de la ligadura de trompas o la vasectomía, prohibiéndose la histerectomía y la ooforectomía (art. 10, §4°), siendo necesario el consentimiento del cónyuge en la vigencia de la sociedad conyugal (art. 10, §5°). volume

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En el Capítulo II, de la citada Ley, se encuentran dispuestos los crímenes y las penas relativas la violación del derecho a la libre planificación familiar. 3.5. las actuales políticas públicas de planificación familiar Al inicio del año 2000 era ya inequívoca la necesidad de reconfigurar el Programa de Asistencia Integrada a la Salud de la Mujer (PAISM), en la medida en que los esfuerzos para su efetivización no habían tenido éxito. En su lugar, una serie de planes/políticas/programas fue presentada. Es así como el Poder Ejecutivo federal creó, en 2003, la Secretaria de Políticas para las Mujeres (on-line), que dio inicio a la construcción de la Política Nacional de Atención Integral a la Salud de la Mujer (PNAISM). Referida secretaria desempeña sus actividades a partir de tres ejes principales: a) Políticas do Trabajo y de Autonomía Económica de las Mujeres; b) Enfrentamiento a la Violencia contra las mujeres; y c) Programas y Acciones en las áreas de Salud, Educación, Cultura, Participación Política, Igualdad de Género y Diversidad. En esta última línea de acción está la Secretaria de Articulación Institucional y Acciones Temáticas (SAIAT), la cual está sometida a la Coordinación-General de Programas y Acciones en Salud del Ministerio de Salud, que “tem por propósito contribuir para implementação da PNAISM – Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Mulheres: Princípios e diretrizes – em todo o território Nacional” (MINISTÉRIO DE SAÚDE, on-line). La PNAISM fue consolidada en documento publicado en mayo de 2004, por el Ministerio de Salud, fecha que marca oficialmente su inicio. En su texto de presentación se encuentran las premisas básicas de lo que debe ser entendido por protección integral de la salud de la mujer. Esse documento incorpora, num enfoque de gênero, a integralidade e a promoção da saúde como princípios norteadores e busca consolidar os avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, com ênfase na melhoria da atenção obstétrica, no planejamento familiar, na atenção ao abortamento inseguro, e no combate à violência doméstica e sexual. Agrega, também, a prevenção e o tratamento de mulheres vivendo com HIV/aids e 64

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as portadoras de doenças crônicas não transmissíveis e de câncer ginecológico. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, on-line).

Ese mismo año, el Estado brasileño aprobó el Pacto Nacional por la Reducción de la Mortalidad Materna y Neonatal, él cual se transformó en una iniciativa internacionalmente reconocida, pues ratificó el compromiso de alcanzar uno de los objetivos de desarrollo del milenio de la ONU (objetivo 5): “a proposta, premiada pelo ONU (Organização das Nações Unidas), como modelo de mobilização, apresenta resultados que permitirão o Brasil alcançar os objetivos do milênio, antes mesmo de 2015” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2014, on-line). En los años siguientes, otras acciones relacionadas al derecho a la planificación familiar fueron iniciadas, como la Política Nacional de Derechos Sexuales y de Derechos Reproductivos, la Política de Atención Integral a la Reproducción Humana Asistida, el Plan Nacional de Políticas para las Mujeres, la Política Nacional de Planificación Familiar, el Plan Integrado de Enfrentamiento de la Feminización de la Epidemia de AIDS y la Política Nacional por el parto natural y contra las cesáreas desnecesarias (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2014, on-line). Salta a la vista la extensa lista de iniciativas, las cuales son indistintamente llamadas políticas, planes, programas, etc. lo que acostumbra dificultar la compresión de la propuesta oficial del Estado brasileño, al mismo tiempo en que termina por inviabilizar el acompañamiento adecuado de todo lo que es propuesto, tanto por la sociedad civil como por el proprio gobierno. No se defiende la centralización de las discusiones ni de la ejecución de iniciativas, pero esa pulverización excesiva de proyectos, lanzados muchas veces con intervalos menores a 12 meses, demuestra una dificultad (y hasta incapacidad) de presentar un plan de acción consolidado, que proporcione una mejor compresión de las metas que se pretenden alcanzar, bien como las medidas que deben ser adoptadas para ello. De cualquier forma, es imprescindible una breve exposición de los aspectos más relevantes de cada una de esas propuestas, teniendo en vista que componen el actual escenario de las políticas públicas dirigidas a la planificación familiar en Brasil. Así, por ejemplo, en 2005 fue lanzada la Política Nacional de Derechos Sexuales y de Derechos Reproductivos envolviendo diversos ministerios y acciones. volume

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A nova política contém 14 propostas voltadas ao planejamento familiar, que serão implementadas entre 2005 e 2007. Os principais eixos de ação são a ampliação da oferta de métodos anticoncepcionais reversíveis, os chamados não-cirúrgicos, o aumento do acesso à esterilização cirúrgica voluntária e a introdução da reprodução humana assistida no Sistema Único de Saúde (SUS). A política foi elaborada em parceria com os ministérios da Educação, da Justiça, do Desenvolvimento Agrário e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, e com as secretarias Especial de Políticas para as Mulheres, de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e Especial de Direitos Humanos (POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS TERÁ AÇÕES EDUCATIVAS, 2014, on-line).

El trabajo conjunto de diversos ministerios en la construcción de la mencionada Política merece reconocimiento, pues demuestra que la temática es compleja y presenta diversos matices. Sin embargo, ese aspecto positivo marca solamente el inicio del proceso, ya que el grande desafío es conseguir articular de manera adecuada y eficiente los actores envueltos, con el fin de que se alcancen las metas establecidas. Posteriomente, en 2006, fue instituída la Política de Atención Integral a la Reproducción Humana Asistida “para garantir o direito à reprodução em casos em que se faz necessária a atenção médica para a fertilização”(MINISTÉRIO DA SAÚDE. 2014, on-line). Es una política que fue creada a partir de la constatación del grande número de personas que con problemas de fertilidad. prevê o apoio do Sistema Único de Saúde (SUS) para o tratamento da infertilidade, problema vivido por 8% a 15% dos casais, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).Esse serviço normalmente é oferecido em hospitais universitários e também em hospitais conveniados ao SUS. O Ministério da Saúde coordena as políticas de assistência à população e define suas diretrizes, mas são as secretarias estaduais e municipais os órgãos responsáveis por sua execução. (REPRODUÇÃO ASSISTIDA NO BRASIL ATINGE BOAS TAXAS DE FERTILIZAÇÃO, 2013, on-line).

Ese mismo año fue publicado el Plan Nacional de Políticas para las Mujeres (PNPM) con un enfoque más amplio, priorizando diversos aspectos de la vida de 66

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la mujer, como la planificación familiar y la violencia contra la mujer, el mercado de trabajo, educación, etc. O PNPM tem 199 ações, distribuídas em 26 prioridades, que foram definidas a partir dos debates estabelecidos na I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. Elas foram organizadas por um Grupo de Trabalho, coordenado por esta Secretaria e composto por representantes dos ministérios da Saúde, Educação, Trabalho e Emprego, Justiça, Desenvolvimento Agrário, Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Planejamento, Orçamento e Gestão, Minas e Energia e Secretaria Especial de Políticas da Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) e de representantes das esferas governamentais estadual – representados pelo Acre – e municipal – representada por Campinas/SP. As ações do Plano foram traçadas a partir de 4 linhas de atuação, consideradas como as mais importantes e urgentes para garantir, de fato, o direito a uma vida melhor e mais digna para todas as mulheres. São elas: A) Autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania; B) Educação inclusiva e não sexista; C) Saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; D) Enfrentamento à violência contra as mulheres. (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 2006, p. 13).

En 2007, fue creada la Política Nacional de Planificación Familiar: Ela inclui oferta de oito métodos contraceptivos gratuitos e também a venda de anticoncepcionais a preços reduzidos na rede Farmácia Popular. Toda mulher em idade fértil (de 10 a 49 anos de idade) tem acesso aos anticoncepcionais nas Unidades Básicas de Saúde, mas em muitos casos precisa comparecer a uma consulta prévia com profissionais de saúde. A escolha da metodologia mais adequada deverá ser feita pela paciente, após entender os prós e contras de cada um dos métodos (PLANEJAMENTO FAMILIAR: 2011, on line).

La propuesta envuelve campañas de información y estímulo a la planificación familiar. A proposta também inclui uma ampla campanha de esclarecimento e estímulo ao planejamento familiar, com a distribuição, em larga escala, de material educativo sobre os diferentes métodos volume

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de contracepção. Esse material será distribuído em escolas, centros comunitários, no Programa Saúde da Família e contém informações sobre as diversas maneiras de se evitar uma gravidez não planejada. (GOVERNO LANÇA POLÍTICA NACIONAL DE PLANEJAMENTO FAMILIAR: 2007, on line).

Resulta importante llamar la atención para el hecho de que la Política Nacional de Planificación Familiar centraliza su propuesta en la entrega gratuita y la venta a un precio bajo de métodos contraceptivos, así como la distribución de material informativo, cuyo foco principal son también los métodos contraceptivos, lo cual refleja una preocupante asociación del derecho a la planificación familiar con el control de natalidad, como era hace décadas atrás. Por otro lado, la falibilidad de los métodos contraceptivos y los métodos contraceptivos naturales son temáticas silenciadas en esa Política, lo cual atenta contra el derecho fundamental a una información verdadera y completa. En 2007 fue también implementado el Plan Integrado de Enfrentamiento a la Feminización de la Epidemia del SIDA (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2014, on-line), debido al grande número de mujeres infectadas con el virus Ya en 2008, fue instituida la Política Nacional por el Parto Natural y Contra las Cesáreas Desnecesarias, con “a definição de fluxos e prazos para que as prefeituras investiguem os óbitos maternos, com maior eficiência e rapidez, exigindo a notificação em 48 horas e a conclusão de todo o processo, no máximo em 120 dias”. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2014, on-line). En la práctica, la asistencia a la planificación familiar es hoy ofrecida por medio de equipos del Programa Saúde da Família (PSF)5 [...] “que tem o propósito de reverter a forma de assistência à saúde, ou seja, incorporando ações coletivas de cunho promocional e preventivo a substituir progressivamente o atendimento individualizado, curativo, de alto custo e de baixo impacto”. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2014, on-line).

5 El Programa Salud de la Família (PSF) es “um modelo de política pública de saúde que traz a proposta do trabalho em equipe, de vinculação dos profissionais com a comunidade e de valorização e incentivo à participação comunitária” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001).

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En 2009, fue lanzado el II Plan de Políticas para las Mujeres, apenas tres años después del primer Plan haber sido aprobado, con el objetivo de superar las deficiencias del anterior (PRESIDENCIA DE LA REPÚBLICA, 2009), mas cuyos resultados aún son prematuros de evaluar. Todas esas iniciativas abordan el derecho a la planificación familiar con la finalidad de mejorar la situación actual no sólo de las mujeres, sino de la población en general. Sin embargo, su fragmentación en planes, políticas y programas contradice la propuesta de una asistencia integral y continuada de salud, colocando en risco su éxito. 4. causas de la ineficacia del derecho humano a la planificación familiar El carácter dinámico y vanguardista de algunas de las políticas públicas, como el PAISM, y de leyes, como la Ley de Planificación Familiar, no ha sido suficiente para mudar el escenario que envuelve el derecho a la planificación familiar en Brasil. Datos oficiales muestran que los índices de mortalidad materna son aún elevados. O Brasil reduziu sua taxa de mortes maternas em 43% desde a década de 90. Outros países mencionados pelo relatório são Peru (64%), Bolívia e Honduras (61% cada), República Dominicana (57%), Barbados (56%), Guatemala (49%), Equador (44%), Haiti (43%), El Salvador (39%) e Nicarágua (38%). A OMS alerta que, ainda assim, nenhum dos países da região tem condições de alcançar a meta dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) de reduzir  75% a taxa mortalidade materna até 2015 (OMS, on-line).

Esa situación demuestra las discrepancias existentes entre la construcción conceptual de ese derecho y las prácticas destinadas a su implementación, siendo la compatibilización de esas esferas esencial para que se consiga avanzar en los resultados hasta hoy alcanzados. Una de las causas de ese problema es señalada por Santos y Freitas (2011, p. 1817), los que entienden que el motivo de la falta de eficacia del derecho se volume

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debe a que el destinatario de la norma es concebido como un sujeto aislado, ignorándose que la planificación familiar se insiere en un contexto más complejo, como es la familia. O modelo de planejamento familiar atual utilizado pela saúde pública no Brasil é baseado na saúde reprodutiva da mulher. Todavia, a família é compreendida como um sistema em que o indivíduo não deve ser tratado separadamente, mas fazendo parte de uma rede familiar que possui regras implícitas e explícitas.

Otra de las causas apuntada es la falta de atención a la realidad en la cual las personas se encuentran inseridas. Así, la población que reside en las regiones urbanas, sea en medianas o grandes ciudades, vive de forma muy diferente que la población de pequeñas ciudades, normalmente localizadas en regiones rurales. La rutina, las necesidades y los proyectos de vida de esas personas no son iguales, ya que su existencia está estructurada y organizada de manera muy diferente. A pesar de ser esa una diferencia claramente notoria, las políticas públicas de planificación familiar no las han llevado en cuenta. Así, por ejemplo, las campañas publicitarias de sensibilización y publicitación de métodos contraceptivos desconsideran la diversidad socioeconómica y cultural de la población, conforme observado por Santos y Freitas (2011, p. 1815), são indicadas genericamente e não são necessariamente adequadas à concepção reprodutiva da população rural, dados que desconsideram sua diversidade socioeconômica como anos de escolaridade, crenças, determinantes da saúde e as tradições locais (SANTOS; FREITAS, 2011, p. 1815).

En ese mismo sentido se pronuncian Carvalho y Brito (2005, p. 366), nas regiões estagnadas como o semi-árido nordestino, onde a pobreza tornou-se secular, ou em outras, como as grandes áreas metropolitanas, onde reside, atualmente, a maior parte da população mais pobre brasileira, a significativa proporção de filhos não desejados tornou-se parceira da miséria e da degradação social.

Es imprescindible que la realidad socioeconómica y cultural del destinatario de la norma sea tomada en cuenta al momento de elaborar y aplicar las políticas públicas. 70

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O planejamento familiar foi construído historicamente como aplicação de métodos para controlar o número de filhos por famílias. Entretanto [...] alguns estudos evidenciam que o critério econômico tem sido bastante utilizado. As famílias avaliam a renda e tentam “intuir” o número de filhos compatível. É possível perceber que o princípio da sustentabilidade familiar está presente. A adequação do número de filhos à renda familiar representa a viabilidade dos recursos básicos para o desenvolvimento de seus membros. No entanto, o programa de planejamento familiar não oferece orientações para que as famílias analisem a sustentabilidade. (SANTOS; FREITAS, 2011, p. 1815),

Junto a ello, se verifica una inclinación por la medicalización de las acciones de planificación familiar, disminuyendo la participación y la autonomía del sujeto interesado, ya que algunos de esos contraceptivos exigen su aplicación y retiro por un médico, conforme señalan Santos y Freitas (2011, p. 1815) “as opções contraceptivas mais utilizadas pelas mulheres são sugeridas pelos serviços de saúde e requerem desenvolvimento tecnológico e monitoramento médico, consolidando o processo de medicalização da população”, lo cual termina por alejar al interesado en su uso. Aparte de ello, se observa que las acciones de planificación familiar no sólo son se equivocan por tratar el sujeto de la norma como un individuo de forma aislada, sino que ese sujeto es casi siempre la mujer, “os serviços de planejamento familiar tradicionais atuam em função da vida reprodutiva com responsabilidade exclusivamente feminina” (SANTOS; FREITAS, 2011, p. 1815). Aún más, “na maioria das vezes, a mulher participa sozinha das reuniões de orientação para o planejamento familiar. A mulher faz a escolha do contraceptivo e assume a responsabilidade pela decisão da quantidade de filhos” (SANTOS; FREITAS, 2011, p. 1815). De acuerdo con investigación realizada por Osis (2006, p. 2486) “a presença dos homens em atividades de planejamento familiar era mínima, o que se atribuiu a questões culturais, que determinam que planejamento familiar ‘é coisa de mulher’ ”. En la misma investigación, Osis (2006) observa que el horario de atención de las Unidades Básicas de Salud (UBS) es muy limitado y no contempla los volume

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horarios en que la mayoría de los hombres trabajan, o sea, de las 8 a.m. a las 6 p.m, impidiendo que puedan acudir a eses servicios. Osis también observa que en ninguna de las capitales de Brasil existe cualquier especie de programa dirigido a la salud reproductiva y sexual masculina, lo que confirma la aún predominancia de los valores machistas que, durante siglos, han eximido a los hombres de su responsabilidad en materia de planificación familiar De ese modo, se verifica como, a pesar de la existencia de una legislación internacional e nacional condiciente con el respeto de los derechos humanos de las mujeres, las políticas públicas de planificación familiar brasileiras continúan permeadas de los viejos valores machistas que, durante siglos, han sido usados para discriminar a las mujeres. Un caso lamentablemente emblemático que ilustra perfectamente esa realidad es el que el Programa que pretendió ser implantado en la ciudad de Porto Alegre en 2006, partir de un convenio entre el gobierno local y el Instituto Mujer Consciente. Um programa desenvolvido em parceria pelo Instituto Mulher Consciente (IMC) com a prefeitura de Porto Alegre vai oferecer o implante gratuito de 2,5 mil contraceptivos subdérmicos de progestágeno para mulheres de 15 a 18 anos em situação de vulnerabilidade social. A meta de reduzir os índices de gestação na adolescência vem acompanhada de um sistema de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e de oferta de cursos de profissionalização às jovens. Segundo a ginecologista Bernadete Nonnenmacher, presidente do IMC, o implante é um método eficaz de contracepção com a vantagem de ser reversível a qualquer momento. O bastonete de quatro centímetros de comprimento por dois milímetros de espessura é implantado na parte anterior do braço, região em que não atrapalha movimentos, onde fica por três anos liberando diariamente as doses necessárias de hormônios para inibir a ovulação e evitar a gravidez. (BRASIL, 2014, on-line).

Se trata de un Programa en el cual pueden ser verificados diversos elementos violatorios de los derechos humanos: a) el hecho de ser destinadas a adolescentes pobres de 15 a 18 años (o sea, menores de edad); b) la reducción de la autonomía 72

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de las usuarias para la suspensión del uso del contraceptivo, ya que precisa ser retirado por un médico; c) el posible estímulo al no uso de contraceptivos de barrera, es decir, los que previenen enfermedades de transmisión sexual; d) la falta de coordinación con programas oficiales de salud integral de la mujer; e) la omisión de la información sobre los posibles efectos colaterales, como la “ausência ou infreqüência de sangramento menstrual (52%), sangramentos prolongados (16%) ou sangramentos freqüentes (7%)” (FREITAS, 2014, on-line). Ese ejemplo nos muestra claramente como, en pleno siglo XXI, los errores que se cometían en la elaboración e implementación de las políticas públicas de planificación familiar en las décadas de 1960 y 1970 continúan presentes, evidenciando la necesidad de una mayor interlocución entre el gobierno y la sociedad civil, como forma de terminar con las discrepancias entre la teoría y la práctica, entre la ley y las políticas públicas, entre los intereses gubernamentales y los derechos humanos. 5. conclusión El desarrollo legislativo y doctrinario del derecho humano a la planificación familiar es reciente. Algunas conquistas en el ámbito internacional para el reconocimiento, protección e implementación de ese derecho comenzaron a ser alcanzadas a partir de la década de 1990, obtenido algunos resultados positivos. Así, por ejemplo, los documentos elaborados en las Conferencias de El Cairo (1994) y Beijing (1995) contribuyeron para redefinir la base conceptual del derecho humano a la planificación familiar, influyendo las legislaciones internas de cada Estado. En el marco de ese contexto, el Estado brasileño promulgó la Ley de Planificación Familiar en 1996 (Ley n°. 9263/96), la cual acogió grande parte de los principios expuestos en esos documentos internacionales, especialmente los referentes a la igualdad de género y la autonomía de la mujer. Sin embargo, y a pesar de esos importantes avanzos legislativos, las políticas públicas destinadas a concretizar ese derecho continúan aún hoy fuertemente permeadas de valores discriminatorios, especialmente contra las personas de las zonas rurales, pobres y mujeres. volume

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Esa es una situación que, en pleno siglo XXI, debe ser rotundamente rechazada, siendo responsabilidad de la sociedad civil, y en especial de los que trabajan con derechos humanos, denunciar y exigir del gobierno la adopción de políticas públicas condicientes con el respeto a la dignidad de todos los seres humanos, principio fundamental del Estado Democrático de Derecho brasileño. 6. referencias BRASIL. Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2014. Disponible en: http:// www.spm.gov.br/subsecretaria-de-articulacao-institucional-e-acoestematicas/coordenacao-geral-de-programas-e-acoes-de-saude. Acceso en: 02 jun, 2014. _______. Lei de Planejamento Familiar de 1996 (Lei n°. 9263⁄96). Regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências. Disponible en: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9263.htm Acceso en: 05 jun. 2014. _______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponible en: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acceso en: 05 jun. 2014. CARVALHO, José Alberto Magno de; BRITO, Fausto. A demografia brasileira e o declínio da fecundidade no Brasil: contribuições, equívocos e silêncios. Revista Brasileira Estado e População, 2005, p. 351-369. COELHO, Edmeia de Almeida Cardoso; LUCENA, Maria de Fátima Gomes de; SILVA, Ana Tereza de Medeiros. O planejamento familiar no Brasil no contexto das políticas públicas de saúde: determinantes históricos. Revista da Escola de Enfermagem da USP. São Paulo. v. 34, n. 1, p. 37-44, 2000. FREITAS, Angela. Planejamento Familiar: eterno desafio. CLAM – Centro latinoamericano em sexualidade e direitos humanos. Disponible en: http://www. clam.org.br/publique/media/planejamento_familiar.pdf Acceso en: 14 mar. 2014. GOVERNO LANÇA POLÍTICA NACIONAL DE PLANEJAMENTO FAMILIAR. Secretaria de Estado da Saúde do Piauí. Portal da Saúde. 28 mai. 74

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cidadania planetária e fr aternidade: uma leitur a a partir dos direitos humanos e o sistema normativo br asileiro contempor âneo Nara Suzana Stainr Pires1 Rogério Silva Portanova 2

Resumo O presente artigo tem como objetivo a partir da análise dos direitos humanos e sua recepção no ordenamento jurídico brasileiro para, com esteio na doutrina nacional e estrangeira arrojar-se em bases teóricas sobre a legitimidade da fraternidade como categoria jurídica, e por vez reconhecer seu alcance dentro da concepção de cidadania planetária. A partir disto, aborda-se estas ideias inovadoras de maneira coerente em busca da funcionalidade e/ou efetividade. Pois, cabe a academia e aos operadores do direito fortalecer o elemento de integração entre cidadania, fraternidade, sociedade e Estado, para alcançar os êxitos que permanecem inatingíveis. Estas questões justificam e fomentam o debate acerca do tema que se evidencia cada vez mais relacionado ao pensamento jurídico. Como metodologia para elaboração do artigo, utiliza-se a pesquisa bibliográfica e histórica como técnica de pesquisa a partir do marco teórico da historicidade da fraternidade como direito humano. 1 Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, Mestre em Direito pela UNISC-Universidade de Santa Cruz do Sul, Especialista em Direito Tributário e Ciências Penais, Professora do Curso de Direito da ULBRA e UNIFRA- Centro Universitário Franciscano em Santa Maria RS, Integrante do grupo de Pesquisa Direito Planetário Meio Ambiente e Globalização, Advogada atuante. Membro sócio do Conpedi. E-mail: pires. [email protected]. 2 Graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul(1983), especialização em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina(1987), mestrado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina(1988), doutorado em Sociologie Et Anthropologie Du Politique pela Université Paris 8 Vincennes-SaintDenis(1994) e pós-doutorado pela Universidade Lusíada de Lisboa(2012). Atualmente é professor associado da Universidade Federal de Santa Catarina e Membro de corpo editorial da Sequência (UFSC), Coordenador do grupo de pesquisa Direito Planetário, Meio Ambiente e Globalização. Membro sócio do Conpedi. [email protected]. volume

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Palavras-chave Cidadania; Direitos Humanos; Fraternidade.

Abstract This article aims at analyzing the human rights and its reception in the Brazilian legal system for, with mainstay in national and foreign doctrine throw in theoretical foundations of the legitimacy of the fraternity as a legal category, and a time to recognize your fingertips within the concept of global citizenship. From this, it approaches these innovative ideas coherently in search of functionality and / or effectiveness. Therefore it is up to the gym and jurists strengthen the integration element for citizenship, fraternity, society and state, to achieve the successes that remain unattainable. These issues justify and foster debate on the subject that shows increasingly related to legal thought. The methodology for the preparation of the article, we use the bibliographical and historical research as a research technique based on the theoretical framework of the historicity of the fraternity as a human right.

Key words Citizenship; Human Rights; fraternity. 1. introdução O presente artigo apresentado possui como principal objetivo a cidadania planetária sob a ótica da fraternidade, sendo que inserido no meio jurídico recentemente, tais ideias tem se mostrado dentro de certa perspectiva da sociedade global, extraordinariamente com suma importância, sendo importante avaliar seus principais teores e enfoques dados na contemporaneidade, tendo em vista que abarca toda a noção de vida e seus fundamentos, assim, portanto considerado um direito humano e consequentemente fundamental. O direito fundamental ao buscar exatamente a preservação da vida enquadrase na ideia de que é necessária maior proteção ao meio ambiente, tendo em vista a própria sobrevivência e preservação do ser humano. Ainda que exista certa concordância sobre a relevância de um meio ambiente sadio, equilibrado 78

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e protegido para as gerações futuras, persistem resultados de atos da sociedade globalizada que põe em risco o meio ambiente. A partir de uma apreciação sobre a sociedade globalizada e sua cidadania, nasce a necessidade de aprofundamento na temática, onde se alvitra a hipótese da fraternidade ser um ponto de grande evidência positiva como forma de instrumento capaz de efetivar as políticas de proteção ao meio ambiente, uma vez que diante de grandes transformações e progressos pode contribuir e enriquecer a consolidação de uma efetiva proteção mundial a esse direito protegido. Também é manifesto que existe uma inquietação constante diante dos ideais do Estado contemporâneo, a qual está integrada a contenda que aborda a legitimidade das normas a partir de sua compreensão diante de vários segmentos sociais e do espectro de transformações das relações socioeconômicas, em especial relativa a aplicação da fraternidade no campo da normatividade, pois, paira um paradigma que idolatra a supremacia das regras em relação à própria autonomia dos Direitos Humanos. Estas questões justificam o debate acerca de temas que se comprovam cada vez mais relacionado ao pensamento jurídico, logo questiona-se a legitimidade da fraternidade como categoria jurídica, e por vez reconhecer seu alcance dentro da concepção de cidadania planetária. O objetivo do presente estudo, a partir da análise dos direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro para, com esteio na doutrina nacional e estrangeira, é sobre a legitimidade da fraternidade como categoria jurídica, e por vez reconhecer seu alcance dentro da concepção de cidadania planetária. A partir disto, aborda-se estas ideias inovadoras de maneira coerente, pois, cabe a academia e aos operadores do direito fortalecer o elemento de integração entre cidadania, fraternidade, sociedade e Estado, para alcançar os êxitos que permanecem inatingíveis. Desta maneira, sem anseio de esgotar o assunto almeja-se marcar a discussão, apontar a direção em busca da funcionalidade e/ou efetividade. Por se encontrar dentro do eixo temático Direito Constitucional, Direitos Humanos e Direito Internacional, o propósito é audaz, diante do cenário que se vislumbra, mas a preocupação será participar do acesso crítico, motivacional e reflexivo, e instigar outros a se dedicarem à temática, empenhada com a aplicação volume

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adjacente dos direitos e seu reconhecimento como um dos valores supremos erigidos a nível magno. Para tal, utiliza-se a pesquisa bibliográfica e histórica, onde se destaca a interpretação doutrinária, que se apresenta como um dos paradigmas para a legitimidade da fraternidade como categoria jurídica de princípio, em uma visão caracterizada e que deve pautar uma mudança de atitude e posicionamento dos demais. Neste contexto dividiu-se o artigo em três capítulos, sendo que primeiramente se traça evolução histórica da inserção da fraternidade e suas peculiaridades, no segundo momento legitima-se a fraternidade como categoria jurídica no ordenamento brasileiro contemporâneo, perpassando desde os direitos humanos, a recepção na Constituição Federal Brasileira, sua validade como princípio e as teorias de Robert Alexy e Habermas como justificação, para no terceiro capítulo trazer a concepção inovadora de cidadania planetária. Deste modo sendo, como marco teórico o presente estudo busca a historicidade da fraternidade e sua propagação no cenário social político e jurídico como direito humano e sua recepção no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo. 2. consider ações iniciais sobre a fr aternidade Inicialmente para tratar sobre o tema fraternidade há necessidade de relatar brevemente, suas origens com viés religioso e filosófico. Historicamente fraternidade está centrada na doutrina cristã, mas como maior influência à fraternidade como princípio de interpretação e prática política, remonta-se aos marcos teóricos da Revolução Francesa e Americana. Foi neste cenário de reforma que parte dos pensadores da época com seus ideais iluministas de irmão e co irmão, precedido dos ideários de liberdade e igualdade, frente as desigualdades estabelecidas pelas classes dominantes difundiram a conhecida trilogia igualdade, liberdade e fraternidade. Em verdade a Revolução Francesa marcou como forma de lei, e a liberdade e igualdade foram tomadas como verdadeiras categorias jurídicas, mas em relação a fraternidade não teve a mesma equivalência. Houve um certo desprestígio em virtude de sua origem cristã ou sua associação a organizações secretas que a 80

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enfraqueceram. E no decorrer do processo histórico tombou no esquecimento dos ordenamentos jurídicos estatais, até porque a ideia de fraternidade não comunga com o capitalismo e o individualismo desenvolvido por todos os séculos seguintes. Antonio Baggio ressalta a fraternidade na história ao lado da Igualdade e Liberdade, mas sem o mesmo espaço nesse contexto, mantendo-se, então, inédita e oculta como categoria política e jurídica. [...] a fraternidade já existia como ideia e prática antes de 1789, ligada intimamente à vida cristã. Esta, já fora vivida, praticara a hospitalidade, construíra hospitais e asilos para os pobres e os idosos, escolas para os meninos pobres...dera vida à práticas e instituições que os países democráticos da Idade contemporânea entenderam como direitos da cidadania, em nome da liberdade e da igualdade. (2009, p.10)

Contudo, na contemporaneidade pós moderna, o resgate da fraternidade implica na busca de uma nova dimensão sobre fra­ternidade, difundida por Chiara Lubich a partir de 1996, onde propôs a um grupo de políticos italianos, dar início a reflexões mais aprofundadas sobre vocação política e do compromisso com o serviço que o estudo da fraternidade poderia servir a toda sociedade que tenha objetivo de dez fazer reconhecer humanitariamente. Osvaldo Barreneche (2010, p. 10) esclarece que a partir desse encontro, passam a existir dois caminhos intensamente ligados: por um lado, os que procuraram colocar em prática o novo pensamento, focando o terreno da práxis em diversos campos sociais e políticos. Por outro lado, os que avançaram nos estudos acadêmicos sobre a fraternidade, relacionaram-na com outras disci­plinas científicas. Entre os anos de 2005 e 2011 na Europa, realizaram-se atos destinados a dar espaço para a fraternidade no Direito como o Congresso Internacional em Roma: “Racionalidade no Direito. Qual espa­ço para a fraternidade?”,o Congresso Internacional para Estudantes de Direito e Jovens Profissionais, organizado pelo Mo­vimento Comunhão e Direito, em Castel Gandolfo (Itália), a Conferência sobre Autori­dade, poder, soberania: a questão da democracia, realizada em Loppiano no Istituto Universitario Sophia; e Congresso Internacional para jovens juristas com o tema a dignidade humana, relações, direito - em Castel Gandofo. volume

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O desenvolvimento dos estudos sobre fraternidade no âmbito latinoamericano, pioneiro, aconteceu em 2007, na Argentina e no Chile foi apresen­ tada uma edição em português e espanhol do livro Princípio Esquecido/1: A fraternidade na reflexão atual das ciências políticas, organizado pelo filó­sofo e politólogo Antonio Maria Baggio, onde reuniram-se representantes acadêmicos culminando com a criação da RUEF - Red Universitaria para el Estudio de La Fraternidad, realizando maior aprofundamento sobre o assunto. A nível brasileiro, em São Luiz do Maranhão, no ano de 2008, o Congresso Regional; em São Paulo, o Congresso Nacional; e, em Santa Catarina, no mês de setembro 1a Jornada Sul Brasileira de Direito e Fra­ternidade, na Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC, onde permanece até a atualidade o núcleo de pesquisas sobre o desenvolvimento da fraternidade. Doutrinariamente vale ressaltar a contribuição internacional de Eligio Resta, Antonio Maria Baggio, e nacionalmente das pesquisadoras Sandra Regina Martini Vial, Josiane Rose Petry Veronese entre outros. O que comprova que a trajetória se encontra em fase de avanço sobre os estudos da Fraternidade como possibilidade de fun­damento jurídico, político, cultural, categoria, perspectiva ou até mesmo uma experiência como indaga Geralda Rossetto (2013, p.73), mas com certeza, impulsionados a partir do grande resgate de Chiara Lubich. A partir deste panorama se passa a uma breve análise sobre o pensamento desenvolvido por Antônio Baggio, que permeia o campo da fraternidade. Sabe-se que no Estado Democrático de Direito prevalece a ideia de que a democracia se encontra calcada no diálogo que por sua vez estabelece diretrizes para convivência tolerante entre os indivíduos pertencentes a este Estado. Este movimento deliberase em função da concretude e realidade dos fatos. Giovani A. Saavedra ao escrever sobre justificação, reconhecimento e justiça ressaltou a importância deste envolvimento e a “grandeza das pessoas”: As Cidades criam os contextos de justificação. Elas funcionam como gramáticas ou vocabulários convencionais de justificação que os atores envolvidos em conflitos, discussões ou debates no interior da cidade evocam nas situações de disputa. Essa é, por sua vez, definida como um desacordo que se apoia sobre a “grandeza das pessoas” ou sobre uma gradação de justiça na situação de 82

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disputa, ou seja, em disputas as partes envolvidas sempre procuram diminuir ou engrandecer pessoas. As cidades funcionam como uma referência, uma forma de generalidade que transcende as pessoas e permite equiparar a sua grandeza relativa...(2012, p.132)

A partir do enfoque dado por Giovani Saavedra percebe-se que a normatividade se encontra nos espaços públicos, ainda que os modos de vida sejam nelas cada vez mais plurais, dependendo dos projetos individuais de cada um, os princípios que possibilitam esta autonomia são compartilhados. Neste contexto a concepção da fraternidade conforme apresenta Antonio Baggio, se torna imprescindível para os questionamentos sobre fraternidade saber: Responder hoje à pergunta sobre a fraternidade requer um esforço coordenado e aprofundado por parte dos estudiosos e, ao mesmo tempo, um disposição para a experimentação por parte dos agentes políticos. Colaboração que não pode ser improvisada nem planejada no escritório; ela nasce da realidade dos fatos, das escolhas de pessoas e de grupos que já estão agindo nesse sentido, começando a oferecer uma amostra de experiências de crescente relevância...(2008, p. 18).

Nota-se que a concepção do autor é levar a uma pretensão de colaboração por parte de todos, um aprofundamento e enganjamento daqueles que fazem pate do Estado sejam estes representantes políticos, pesquisadores ou sociedade em geral. Reforça Antônio Baggio (2008, p.19) que se a fraternidade não descobrir as traduções teóricas e práticas para ser vivida na dimensão político-pública, não há de se antever qualquer significado para além de sua prática, de suas relações privadas, e mesmo no trabalho da reconstrução histórica, por mais qualidades que tenham, não é possível satisfazer os estudos. Comungando do pensamento de Baggio Josiane Petry Veronese descreve sobre o lugar que todos devem operar dentro da dinâmica histórica: somos levados, portanto, a lançar um primeiro olhar pesaroso sobre a história, sobretudo quando costatamos que grandes bandeiras, como a defesa dos direitos huamnos, pelas quais se lutou e se continua lutando ao longo da história da humaniade, parecem, no entanto, tão distantes(2011,p.112) . volume

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Destaca Geralda Magella de Faria Rossetto(2011, P.04) que ainda é deveras importante consignar que a fraternidade ainda requer experimentação, e, nesta medida, ela cobra reflexão e maturidade de suas premissas, o que o tempo e a dedicação humana certamente corrigirão. Nesta perspectiva, vislubra-se o empenho da academia, pioneiramente em Antônio Baggio, a divulgação do estudo da Fraternidade, entendida como princípio, tal como a liberdade e a igualdade e na condição de prin­ cípio orientador/norteador aberto e em construção de legitimação e consequentemente por outros doutrinadores que Dentro deste contexto se pode olvidar que a fraternidade ganha sentido como princípio indelével unido a igualdade e liberdade na construção de uma sociedade mais justa, onde se a aceitação pelo outro se torna ponto fundamental. Sendo assim, Antônio Baggio categoricamente escreve: a descoberta do destino comum aso homens – aparecer no mundo, vindos não se sabe de onde, e desaparece, após algum tempo, não se sabe para onde – é um momento propício à fraternidade, a aceitação do outro como ele é, sem afetação dos juízos préconcebidos e sem olhar frio e classificador das convenções. (2009, p.79)

A fraternidade não precisa ser então, inventada ou tão somente redescoberta (BAGGIO, 2009, p.34), mas erigida em conjunto, constituída na solidariedade, na diversidade, na consciência, no diálogo e nos direitos humanos, com raízes locais e consciência global, da mesma forma que cidadania também se constrói, em busca da condição de efetividade dos Direitos Fundamentais. Por isso, importa garanti-la, no sentido de construir sua legitimidade capaz de garantir os direitos a todos os indivíduos. Assim, longe de expressar verdades, constata-se que a grande questão não reside somente no reconhecimento ou lembrança da fraternidade pois estes já são muito bem estruturados e defendidos pela doutrina majoritária, mas legitimá-la normativamente dentro do ordenamento jurídico brasileiro, inserido na categoria de princípio constitutivo, com sentido próprio, sui generis, diferente da ideia de solidariedade, embora seja um sustentáculo fundamental na formação dos cidadãos. 84

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Deste modo, uma das prioridades dentro da contemporaneidade é tratar do assunto com pressupostos do direito fraterno que permitam utilizar a fraternidade nas relações jurídicas, além das pactuadas entre os homens, sejam natural ou socialmente, e alcançar a construção de uma cidadania harmoniosa e diligente, efetivamente em construção. Como foi dito, fraternidade constitui-se como elemento norteador na interpretação do Direito de forma legítima, transdiciplinar e sustentável para operacionalidade no Estado Democrático de Direito, o que se passa a análise. 3. a legitimidade da fr aternidade como categoria jurídica no ordenamento br asileiro contempor âneo Os cotejamentos da fraternidade como categoria jurídica dentro do ordenamento jurídico brasileiro ainda se mostram precários, sendo essa vislumbrada somente como uma virtude implícita sobre a ética e moral, fora da legitimação es­tatal. A levar como referência que a fraternidade além de suas raízes no evangelho cris­tão, se projeta na dimensão política quando passa a integrar a tríade da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade, se percebe a posição de exclusão ou esquecimento à fraternidade em relação aos outros valores da tríade francesa, que destacam-se na construção histórica jurídica, com papel relevante. A partir do breve relato histórico e posicionamentos doutrinários, da qual a problematização é apontada para os estudos e propogação da necessidade do princípio da fraternidade para a plena realização da liberdade e da igualdade, parte-se do propósito central, a fim de verificar a legitimidade da fraternidade como uma categoria jurídica, mais precisamente como princípio, e como objeto obrigatório de conduta nas relações jurídicas contemporâneas. 3.1. proteção conferida a fr aternidade pelos direitos humanos Para melhor compreensão do alcance desta questão, há necessidade de se verificar aspectos ligados diretamente à proteção internacional. Neste desdobravolume

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mento a doutrina referencia os principais instrumentos de proteção aos Direitos Humanos, além da Declaração Universal de 1948, o Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966. Estes documentos em conjunto com a Declaração de 1948 outorgam a força de obrigação jurídica a que os EstadosPartes se comprometem quan to à proteção e efetivação desses direitos. Pelo percurso histórico, nessa linha Norberto Bobbio já destaca, ainda que o “problema fundamental”, na atualidade não seja a justificativa dos Direitos Fundamentais, mas sim a proteção desses direitos, e ser avaliado o caráter da universalidade desses direitos (2004, p.43). Ante esta preocupação de Bobbio e outros doutrinadores, vale ressaltar os parâmetros éticos e o fundamento da dignidade humana que são fornecidos pelos direitos humanos. Como qualquer outro direito, o valor da fraternidade apresenta-se ainda como resposta à crise da universalidade, relativa ao alcance e ao significado dos Direitos Humanos (Baggio, 2009, p.169). O pensamento complexo contribui no sentido da certeza em afirmar que a comunidade internacional e o próprio Direito Internacional estão assumindo, ainda que, às vezes, apenas formalmente, os Direitos Humanos como um conteúdo primordial dos interesses públicos internacionais, assinalando a responsabilidade dos Estados por suas políticas internas e externas sobre a matéria. Assim, a necessidade de internacionalização dos direitos humanos surge como uma resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo e outros regimes totalitários. (PIRES, 2013, p.13) É perfeitamente possível, a partir deste marco, os direitos humanos passam a ser debatido em escala internacional, sendo que variados mecanismos e organismos internacionais se voltam para buscar a efetiva proteção aos direitos e a aplicabilidade em favor do hipossuficiente nas relações entre os desiguais. A proteção conferida nas declarações e sua a evolução histórica consagram três dimensões aos direitos humanos, sendo a primeira relativa a liberdade, a segunda a igualdade e a terceira à titularidade coletiva, consagrando o princípio da fraternidade. No art.1º. da Declaração dos Direitos do Homem restou consigado a proteção a todos seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dota86

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dos de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. O processo político que envolveu tal artigo foi ligado á transposição histórica, com emendas relacionadas à religiosidade, tradições, contexto social, até chegar a redação atual em relação aos direitos humanos. Antonio Baggio (2008, p.137) neste sentido enfatiza que se deve extrair deste artigo combinado com artigo 29 da mesma Declaração e seu preâmbulo que a fraternidade, mais do que como um princípio ao lado da liberdade e da igualdade, aparece como aquele que é capaz de tornar esses princípios efetivos. Tal proteção em relação a fraternidade tem explicação na turbulência do quadro político originário, ou seja, um momento de emergência aos problemas relativos à ordem planetária: à qualidade de vida global, sendo impossível evocar a paz, a autoderterminação dos povos, o direito ao meio ambiente equilibrado sem referir-se a solidariedade e fraternidade. Desta forma, quando Constituição da República Federativa do Brasil recepcionou os Direitos Humanos em seu artigo 1º., não consignou a fraternidade entre os princípios fundamentais de forma expressa ou explícita, mas isso não significa que a fraternidade não atinja o status de princípio constitucional, pois no escopo da própria Carta Magna existem os princípios implícitos utilizados por toda classe operacional do direito, inclusive a própria Administração Pública, o Estado, o ente comprometido com a proteção aos Direitos Humanos. O preâmbulo da Constituição, por razão de não ter força normativa ou seja, força cogente, não pode embasar o fundamento da questão, e como o eixo principal deste estudo é a fraternidade como norma jurídica, se passa a análise quanto a principiologia. Quando Se trata dos princípio implícitos, face ao respeito das instituições jurídicas, se pode, não que necessite, interpretar hermeneuticamente o princípio da fraternidade ao encontrar-se inferido no inciso III, do arti­go 1°, da Lei Maior, ao estabelecer como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana. Na mesma linha, entre os objetivos fundamentais, encontra-se no art. 3°, inciso I, na expressão “so­ciedade livre, justa e solidária” um canal implícito de comunicação direta com a ideia de fraternidade. Também o art.5º.LXXVIII onde preconiza que a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados volume

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a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Enfatizando no parágrafo 2º. Que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Contudo, enfatiza-se que os princípios expressos na Constituição Federal não significam, ante a análise do regime jurídico-administrativo, tão somente os mesmos, por se encontrarem explícitos no texto constitucional. Ante a omissão da lei, devem-se aplicar todos os princípios, tanto explícitos como implícitos, mesmo que indiretamente constitua a essência da norma jurídica, orientando na interpretação e fundamentação. 3.2. a fr aternidade legitimada como princípio Adentrando no sentido jurídico princípios significam as normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, constituindo o alicerce do ordenamento jurídico angulares do Sistema do Direito Positivado. Com base nesta positivação se dimensiona a proeminência que assume uma visão principiológica do ordenamento jurídico, onde se pode afirmar que os princípios jurídicos são basilares, diretrizes que norteiam os elementos vitais do direito, ou seja, regras que funcionam como parâmetros para a interpretação das demais normas jurídicas. Nesta perspectiva a doutrina majoritária se manifesta na acepção de que os princípios podem se mostrar mais relevante do que da própria norma jurídica. Genericamente, as normas são norteadas de forma implícita ou explicita por algum princípio que servem de fundamentação, sem impor uma conduta. De forma que os princípios demonstram uma valoração fundamental ao sistema jurídico, para a Administração Pública se manifesta maior, na medida em que o Direito administrativo brasileiro não é codificado, pois a função sistematizadora e unificadora de leis cabe aos princípios. Como ressalta Cretella Junior (1978, p.415), não se pode encontrar qualquer instituto do direito administrativo que não seja informado pelos respectivos princípios, tanto explícitos quanto implícitos. Com base na interpretação os princípios apresentam, por vezes, recursos que o direito positivo não consegue realizar. Estabelece-se a aplicação desses princípios 88

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ante a lacuna da lei e mesmo do costume, por inexistir norma específica. Desta forma não demonstram qualquer derrogação de norma positiva, porém apresentam a sua complementaridade envolvida por juízos de valor, ideais de justiça, interdisciplinaridade e lógica no sistema normativo. Observe-se que os princípios no ordenamento jurídico referente à administração pública possuem dupla funcionalidade, sendo a primeira hermenêutica que serve como ferramenta de esclarecimento no caso de dúvidas sobre determinado conteúdo normativo e a segunda integrativa que além de facilitar a interpretação das normas, possui a finalidade de preencher vazios normativos em caso de ausência expressa de regramentos. Os meios dentro do ordenamento jurídico brasileiro utilizados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios para legislar suas atividades administrativas abrangem normas, resoluções, regulamentos, portarias, as quais são redigidas por cada ente federativo na atuação da administração pública, tendo como norte os princípios. Dada esta importância, o texto constitucional elencou um capítulo designadamente dedicado especificamente à Administração Pública. Trata-se de uma inovação em face das considerações feitas sobre o valor dos princípios integrantes ou não do ordenamento jurídico constitucional, contribuindo para formação do conjunto de todos os princípios e normas pertencentes ao direito administrativo, denominado tecnicamente de regime jurídico administrativo. Pode-se notar a importância dos princípios no âmbito do Direito e de sua aplicabilidade, principalmente no que tange a esfera da Administração Pública brasileira que é paradigma para todos os demais. Ora, se há possibilidade de interpretar implicitamente o uso dos princípios para própria administração pública, então como não evidenciar o uso desta para a fraternidade? É nessa esteira que pode-se afirmar que a fraternidade não é vaga, mas uma construção interpretativa que traduz a aspiração e o suporte aos demais princípios, que podem ser princípios jurídicos como demonstrado no paradigma da administração pública, e sendo portadora de princípios, a fraternidade contem concepções sob a ótica jurídica. Para tanto, reforça-se estes apontamentos com base teóricas, o que se passa a realizar. volume

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3.3. suporte teórico à fr aternidade como princípio De suporte à fraternidade como norma jurídica busca-se o embasamento teórico de Robert Alexy que tem como temática principal a questão dos direitos Fundamentais do homem, aspectos que enfatizam os problemas epistemológicos, substanciais, institucionais. Robert Alexy aborda a questões dos direitos fundamentais, sua concretização, validade diante do Estado Democrático de Direito, e mais menciona que a chave para a resolução é a distinção entre a representação política e a argumentativa do cidadão, sendo que a representação argumentativa é positiva quando o tribunal constitucional é aceito como instância de reflexão do processo político e ainda quando os direitos fundamentais e democracia estão então reconciliados. Com está assegurado, como resultado, que o ideal, do qual fala a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Há de se considerar que os direitos fundamentais, em primeiro lugar, são valores reconhecidos pela comunidade e, como tais, devem ingressar no texto constitucional que implicam uma estrutura normativa que abarcam um conjunto de valores a partir do momento em que normas constitucionais positivas consideradas direitos constitucionais, já os direitos positivados, são metas e objetivos a serem alcançados pelo Estado Democrático de Direito. Os direitos fundamentais positivados constitucionalmente recebem uma espécie de validação comunitária, pois fazem parte da consciência ético-jurídica de uma determinada comunidade histórica, principalmente no que tange a comunidade brasileira. Após concisas considerações sobre a norma de direito fundamental, a partir deste momento se analisa sua estrutura. Para Alexy somente é possível alcançar este objetivo se utilizar diversas diferenciações teor ético estruturais, ou seja, a distinção entre regras e princípios. Assim se observa que tanto as normas e princípios são normas, daí o porquê de haver, em verdade, uma distinção entre dois tipos de normas. Assim, a diferença consiste no fato de que as regras são sempre satisfeitas ou não satisfeitas, ao passo que os princípios podem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídica.(2006. p.90) Cabe ressaltar que há uma gama de critérios para a distinção de ambos. No ensaio de Alexy a respeito se observa: 90

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No caso de colisão de princípios e conflito de regras, verificamse as diferenças entre ambos com maior clareza. Em comum, há o fato de que, em ambos os casos, no caso de as normas serem isoladamente aplicadas levaria a resultados que se mostrariam inconciliáveis entre si. “Conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões entre princípios – visto que só princípios válidos podem colidir – ocorrem, para além dessa dimensão, na dimensão do peso.”(2006. p.94)

Neste alcance, qualquer regra deve ser interpretada segundo a Constituição, logo, em caso de colisão de regra e princípio Constitucional a regra deve ser interpretada conforme a Constituição, e se não for possível, deve prevalecer o princípio, bem como se toda regra deve ser interpretada perante a Constituição, não pode então prevalecer sobre um princípio Constitucional. Dentro deste contexto apresentado sobre a teoria de Robert Alexy em relação aos princípios pode-se perceber que esta nova interpretação também pode se dar no campo do direito fraterno, ou seja, pode ocorrer colisão de princípios, e desta forma aplicar a ponderação de valores. Torna-se uma relevante contribuição nos desfechos de conflitos diferentemente do que tempos passados, pois atualmente se possui embasamento para maior aprofundamento da aplicabilidade deste princípio dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Neste contexto jurídico-principiológico a carência de mecanismos que tornem a fraternidade parte do processo mais eficiente fica evidente. É necessário que o Estado Democrático de Direito integre da letra fria da lei para o cotidiano e realidade de nossa sociedade, e garantir ao cidadão, um processo compatível com as necessidades do ordenamento, contribuindo à proteção justa para os direitos, de exercer plenamente a cidadania talvez em uma ágora ainda inexistente. O respaldo encontra guarida na concepção comunicativa que decorre da análise de Habermas, tendo em vista a linguagem e a razão. Dessa forma, surge o agir comunicativo que busca a cooperação e diálogo entre os falantes. Assim, o agir comunicativo tende a uma relação reflexiva com o mundo, sendo que a pretensão de validade deve ser reconhecida intersubjetivamente. Nesse aspecto, o diálogo depende da cooperação dos outros e tal ocorrência, pressupõe o acordo sobre pretensões de validade expostas durante os atos volume

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de fala. Para Habermas “Ser bom é importante e significa ter bons motivos, mostrar solicitude com os outros com os outros. Também significa preservar os relacionamentos mútuos, manter a confiança, a lealdade, o respeito e a gratidão”(2003, pg.153). Afinal, a história não autoriza permanecer na inércia, mas que a ideia esteja embutida dentro do processo de alcance da fraternidade, como direito concreto, através da cooperação e entendimento argumentativo de todos os sujeitos envolvidos. A tarefa procura uma amarração na construção de ligações que entrelaçam as ideias da teoria do agir comunicativo de Habermas, a teoria de Robert Alexy em uma perspectiva atualíssima, com os pressupostos deste estudo, quando se trata da análise e discussão sobre a importância da fraternidade como legitima e sua contribuição para concepção de cidadania planetária, o que se passa a tecer. 4. cidadania planetária sob ótica da fr aternidade A priori, Direitos humanos e direitos da cidadania não se confundem, mesmo que exista um eixo entre eles. O artigo 5º da Declaração e Programa de Ação de Viena estabeleceu na Conferência Mundial sobre Direitos do Homem, de 1993 que todos os direitos humanos são universais, indissociáveis e interdependentes, e estão relacionados entre si. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global e de maneira justa e equitativa, em condições de igualdade e atribuindo a todos o mesmo peso. Já o tema cidadania tem sido fator marcante dos movimentos sociais. Os primeiros esforços para a absorção e estabelecimento dos direitos humanos e da cidadania mesclam-se com os movimentos cívicos reivindicativos de liberdade para o País, podendo citar a exemplo da inconfidência mineira, canudos, as lutas pela independência, abolição e, já na república, as alternâncias democráticas, aos quais custaram alguns sacrifícios além de vidas humanas (PIRES, 2009). Percebe-se um ciclo em favor do cidadão, partindo de ações públicas, políticas e sociais, como o exemplo da Ação Cidadania Contra a Miséria e pela Vida, Movimento pela Ética na Política até manifestação do próprio Ministério Público, defendendo a ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses 92

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sociais e individuais indisponíveis. Há uma evolução, mas é evidente que tem muito mais a ativar a nossa importância natural, pois se verifica que ainda restam mazelas que insistem em residir no seio da sociedade. A sociedade contemporânea é marcada por extremas desigualdades. Os contrastes, as diferenças aumentam a situação de ricos e pobres, extremos opostos, nessa escala de aprofundamento das injustiças sociais ganham proporções dentro do mundo globalizado. A globalização, um dos grandes desafios contemporâneos é a procura de um ideal para uma sociedade heterogênea, pelo respeito as minorias que não podem ser ignoradas ou eliminadas. Não basta somente a proteção aos direitos humanos, é necessário maior integração, consciência e reconhecimentos pelos valores das diferenças a um nível muito mais complexo. Nesse sentido, fala-se em cidadania planetária, uma vez que esta tem a ver com a consciência, cada vez mais necessária de que, assim como os seres vivos, este planeta, como organismo vivo, tem uma história. Nossa história faz parte dele. Não estamos no mundo; viemos do mundo. A Terra somos nós e tudo o que nela vive em harmonia dinâmica, compartilhando o mesmo espaço e o mesmo destino. Ainda, menciona que educar para a cidadania planetária implica uma reorientação de nossa visão de mundo da educação como espaço de inserção do indivíduo não numa comunidade local, mas numa comunidade que é local e global ao mesmo tempo (FREIRE, 2012).

Edgar Morin declara seguro em Terra Pátria a recuperação da tríade liberdade, igualdade e fraternidade como princípios para efetivação de uma democracia planetária plena, dando centralidade para fraternidade(p.167/168). Não se pode ignorar, mais que alerta, é fundamental as estratégias para a sobrevivência da espécie humana no planeta Terra, no sentido de compromisso fraterno, cooperativo através de uma responsabilidade coletiva e efetiva, tendo em vista problemas, riscos e danos passados, presentes e futuros para uma democracia efetiva. Muitos debates, tratados, os acordos nacionais e internacionais foram realizados e ratificados, entretanto não foram concretizados mediante o desenvolvimento de uma consciência global nos seres humanos, predominando individualidade, volume

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desequilíbrios, expressos em fronteiras de coerções e violências contra a próprio ser humano e seu mundo vivido, de forma a refletir no planeta. É o nascimento de um novo paradigma, e não é qualquer comunicação capaz de realizar mais pelo planeta e sociedade, mas com a visão sistêmica, torna-se possível o desenvolvimento de outras formas de sobrevivência em consonância com o ambiente complexo. Para isso, deve-se construir uma forma de convivência humana em escala planetária, de modo comunicativo tanto no aspecto comunitário, como institucional, com respeito às diversidades para poder encarar o outro como verdadeiro. Essa postura passa pela compreensão do campo ético, mas precisam-se considerar outros aspectos dentro da consciência planetária, como o espiritual, o existencial, o ecológico e o epistemológico. Enfim, precisa-se refletir, repensar as relações do homem com a natureza, mas antes, necessita-se analisar as relações entre os próprios homens. Rogerio Portanova (2012), no encontro Rio + 20, um dos pioneiros sobre a ideia de direito e cidadania planetária, declarou que o direito tem a responsabilidade e a obrigação de normatizar a vontade de fazer com que todos nós nos mantenhamos vivos, ainda com outros especialistas sugeriram ideias como a imperativo de um pacto global para cuidar dos bens públicos globais. Logo, ser um cidadão planetário é valorizar as relações, os laços de comunhão entre grupos, instituições e outras organizações, além de apreciar o permanente processo de aprendizagem e transformação. Sendo assim, a cidadania planetária se caracteriza por esse todo integrado. Por isso, a tarefa consiste ponderar uma Cidadania planetária, então, alicerçada no fortalecimento da fraternidade, do diálogo, em um pensamento que comporte todas as formas de vida de modo equânime. Os problemas da humanidade devem ser levados a sério se observados sob o ponto de vista da biocêntrica, e não pelos interesses econômico-financeiros que destroem todo o planeta, sob a alegação de desenvolvimento, como ocorre atualmente. A integração é possível através do progresso, e para tal deve-se reencontrar a fonte geradora, permitir-se reencontrar a origem comum, conservando as riquezas primárias adquiridas ao longo da secularização, como a fraternidade. 94

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Neste enfoque Edgar Morin(2012, p.294) coloca que o progresso deve aparecer com um trabalho do homem genérico em nível planetário. Por isso, nosso devir planetário necessita de uma antropoética e de uma antropolítica que associam a regeneração da verdade genérica e a busca de um progresso regenerado. A Cidadania planetária é uma reivindicação de nosso tempo. É preciso o estabelecimento de mecanismos de controle transnacionais, uma nova epistemologia para o Direito Internacional. Entretanto, não se pode imaginar tal realidade sem antes estabelecer mecanismos de concretização dos direitos mínimos à tomada de consciência de cunho emancipatório. Deste modo, se pode expor que a cidadania global está repousada na ideia de sustentabilidade, constituída na fraternidade, na diversidade, na democracia e nos direitos humanos, em escala planetária, com raízes locais e consciência global. 5. conclusões Do estudo realizado, depreende-se a análise de uma situação complexa em decorrência das relações entre os seres humanos, bem como fatores sociais, políticos e econômicos na busca de solução de disputas. Desse modo, a partir do relato histórico e posicionamento doutrinários, teceu-se algumas considerações iniciais da fraternidade, para na sequência discorrer sobre fraternidade enquanto direitos humanos e como princípio, bem como as teorias que a sustentam e legitimam a fraternidade, no intuito de refuncionalizar as posições já existentes, ajustando-as aos objetivos do equilíbrio fraterno e delineando novos caminhos em busca da cidadania planetária. Portanto, a fraternidade já tem sua consolidação como categoria jurídica quando se encontra delineada na Convenção dos Direitos Humanos, recepcionada dentro da Constiuição Federal de maneira implícita, con­clamando a construção de uma nova teoria jurídica que terá de caminhar em conjunto com outros instrumentos jurídicos, políticos e sociais para promoção da paz e harmonia, pois se relaciona com o pensar no outro e o mundo de hoje individualista não permite para tanto. Mas, quanto maior a expressão da fraternidade e sua legitimidade jurídica, maior o deslocamento do direito apenas positivado para o Direito fraterno. De tal modo, se pode articular que a fraternidade está constituída na solidariedade, embora não seja restringida a esta, na diversidade, na consciência, volume

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no diálogo e nos direitos humanos, com raízes locais e consciência global. Por isso, importa garanti-la, no sentido de construir sua legitimidade baseada na democracia e na hermenêutica, capaz de garantir os direitos e cidadania a todos os indivíduos. Portanto, este estudo rompe com concepções redutoras e complexifica de maneira proeminente e instigadora a noção de cidadania planetária e fraternidade em face de sua seriedade e fundamentação como elemento norteador na interpretação do Direito de forma legítima e transdiciplinar para operacionalidade no Estado Democrático de Direito, capaz de insurgir de conceitos remotos para novos paradigmas, que se propõe a revisão de posicionamentos e a reflexão de novos rumos de um futuro comum, conduzido pelo sentimento que liga e articula o que foi separado, ventilado e compartimentado durante a história, para servir como meios para ensejar a razão de cultivar o planeta e os direitos humanos no plano de desenvolvimento sustentável e interligado a toda existência. Enfim, as questões mais admiráveis da humanidade foram resolvidas por alguém que apontou o caminho, com o coração e o afeto, exemplificativamente como Chiara Lubich. Partindo desta concepção, sem uma compreensão simplista ou quimérica, o escopo do trabalho não é simplesmente apresentar uma análise jurídica, porém, provocar, estimular, cotizar para uma cultura de pensar o outro, de fortalecer as relações humanas entre si e com próprio planeta, integralizando os direitos fundamentais verdadeiramente, com boa vontade e consciência. É a apresentação desta ideia que ainda poderá render práticas e aprofundamentos científicos nesta pesquisa que apenas se inicia. 6. referências ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Ed. RT, 2011. ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Administrativo descomplicado. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2010. ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais no Estado constitucional democrático. Forense: Rio de Janeiro, 2007. _______, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais.Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. 96

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comunidade, solidariedade e cidadania: o reconhecimento do outro como condição de empoder amento cidadão no processo de mudanças institucionais André Gomes de Sousa Alves1 Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa 2

Resumo O presente texto tem o objetivo de evidenciar o empoderamento político do cidadão como fator de promoção de mudanças institucionais na comunidade. Nesse contexto, através de metodologia especialmente qualitativa, de pesquisa indireta e abordagem dialética, aborda-se o sentido de comunidade como espaço de perda do comum, ambiente de reconhecimento do outro e assim, de sedimentação da pluralidade a partir da compreensão da solidariedade como processo de discussão comunicativa. Consequentemente, problematiza-se o exercício da cidadania na construção do espaço político dessa comunidade a partir do elemento da outridade, ou seja, na observação do outro como elemento

1 Pós-graduando, a nível de Doutorado em Ciências Jurídicas com área de concentração em Direitos Humanos e Desenvolvimento, perante o Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba-PPGCJ/CCJ/ UFPB. Mestre em Ciências Jurídicas, área de concentração em Direito Econômico, pelo PPGCJ/CCJ/UFPB. Graduado em Direito pela UFPB. Graduado em Ciências Contábeis pela UFPB. Professor Assistente I do Curso de Direito da Universidade Federal de Campina Grande-UFCG. Professor e Coordenador do Curso de Direito das Faculdades Integradas de Patos-FIP. 2 Doutora em Ciências Jurídico-Econômicas (Universidade de Coimbra, Portugal) e pósdoutorado em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. Mestrado em Ciências Jurídicas (UFPB). Graduação em história e Direito (UFPB). Aperfeiçoamento em Direito da Regulação (CEDIPRE - Universidade de Coimbra). Estágios doutorais na Università degli Studi di Firenze (Florença, Italia) e no UNIDROIT (Roma). Professora associada IV do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB e docente permanente do PPGCJ-UFPB. Exerce atualmente o cargo de diretora do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB. É bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq; membro do conselho de consultores de diversos periódicos nacionais, entre estes a Revista Jurídica da Presidência da República; compõe o Comitê Executivo do Consórcio Latino Americano de Direitos Humanos. volume

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indissociável da ação dialógica que deve ser empreendida na comunidade para a fiel execução de sua organização.

Palavras-chave Comunidade; Solidariedade; Cidadania; Mudanças institucionais.

Abstract This text aims to highlight the political empowerment of the citizen as a factor in promoting institutional changes in the community. In this context, especially through qualitative methodology, indirect research and dialectical approach, addresses the sense of community as loss space, recognition of the other and plurality, from the understanding of solidarity as a process discussion communicative. Consequently, problematizes the exercise of citizenship in the construction of political space of that community from the element of otherness, like the observation of the other as an inseparable element of dialogical action that must be undertaken in the community for the faithful performance of his organization.

Key words Comunity; Solidarity; Ctizenship; Institutional changes. 1. introdução Tradicionalmente é empregado à comunidade a noção de espaço onde se eleva o adensamento de laços comuns de propriedade, língua, cultura e organização do modo de v ida do seu espaço. Nesse sentido, evidencia-se em seu conceito a existência do comum como elemento intrínseco de sua constituição, o que a referencia apenas através do adensamento desta normatização ordinária mais própria, por exemplo, a contextos comunitários como a família ou mesmo um grupo tribal. No entanto, quando se amplia a ideia de comunidade para além do mero agrupamento em clã de indivíduos, há de se considerar também que, justamente no sentido oposto do uníssono, ela se apresenta inclusive fugidia à implementação 102

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da noção do comum dentro do seu contexto. Isso porque, ao se revelar a complexidade da comunidade na época moderna e a extrema necessidade de desenvolvimento da vida através de relações com outros sujeitos, o aspecto da pluralidade eleva sua importância nesse ambiente. Nesse sentido, a comunidade passa a ser considerada cada vez mais como espaço de perda do comum e, ato contínuo, fomento de relações com o outro. A diversidade torna-se o fundamento da convivência, cuja organização se dá em torno da discussão plural entre os seres-com. Ou seja, importa reconhecer na estrutura do conceito hodierno de comunidade o encadeamento de vínculos que apenas se concretizam quando se compreende a diversidade como condição inata do processo de desenho institucional dessa comunidade. Ao mesmo tempo, reconhecidos a relação de alteridade que se formula entre os indivíduos plurais da comunidade, há de se considerar a solidariedade dos mesmos no sentido do estabelecimento de vínculo do eu com o outro através, inclusive, de processo comunicativo. Dessa forma, a tese repousa no elemento da outridade, ou seja, na observação do outro como elemento indissociável da ação comunicativa que deve ser empreendida no seio da comunidade para a fiel execução de sua organização. Em última instância, a partir da consideração do processo dialógico que se forma do reconhecimento da diversidade, entende-se o empoderamento dos indivíduos como consequência desse contexto e, ao mesmo tempo, como causa do exercício da cidadania na implementação das mudanças institucionais inerentes ao espaço de participação democrática na estrutura da comunidade. O objetivo é, portanto, considerar a comunidade como espaço de perda do comum e, referendado o seu caráter plural, evidenciar que os laços de solidariedade e a relação de alteridade têm a capacidade de desenvolver o empoderamento dos indivíduos da comunidade e, consequentemente, promover mudanças institucionais através da participação cidadã. Em estreita síntese, num primeiro espaço tecem-se considerações sobre a comunidade e o respectivo sequestro da noção do comum; no segundo momento, aborda-se a solidariedade entre os indivíduos e sua relação de alteridade como causa de fomento dos arranjos institucionais da comunidade e; por último, volume

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explora-se a noção de empoderamento dos dos seres-com no exercício de sua cidadania condicionada à promoção de mudanças institucionais. 2. a comunidade como espaço de perda do comum e ambiente de plur alidade Em sede clássica, o conceito de comunidade representa um espaço de sedimentação de valores comuns, estritamente interligados com base em um tipo de intersubjetividade coletiva e homogênea. Ela importa a união de sujeitos sociais que organizam sua vida em tempo e normatização ordinária, o que resulta no compartilhamento de laços culturais e estrutura organizacional reciprocamente harmonizada pelo comum. No mesmo sentido, à esteira do pensamento de Ferdinand Tönnies (1947), tratar-se-ia do que ele nomeia de Gemeinschaft, correspondente às relações comunitárias e entendida sob a perspectiva da vida social expressa no coletivo, no interior, includente do ponto de vista do grupo e excludente em confronto à Gesellschaft, das relações societárias, que partem do domínio público, do individual racional, do mundo exterior à comunidade. Nesse sentido, a comunidade refletiria o adensamento de ideias gregárias, constituídas sob laços de consanguinidade, coabitação territorial ou afinidade espiritual; os quais estabelecem-se inclinados pelo senso emocional de reciprocidade, convívio e consenso. Assim, características como limitação dos entornos geográfico e cultural, homogeneidade e relações interpessoais de concordância evidenciariam a natureza da comunidade enquanto lócus de formação de uma espécie de contrato social primário. Ou seja, ela tenderia a se apresentar sob a condição de que os que se conhecem, se gostam, se respeitam e convivem em espaço mútuo, o que implica igual ordenação da vida em comum. No entanto, conforme expõem por exemplo doutrinadores como Roberto Esposito e Jean-Luc Nancy, a comunidade não tem apenas o adensamento do comum como elemento irrefutável de sua constituição. Ao contrário, este apresenta-se mais próximo a ideal que, em sede microfacetada, não se apresenta necessariamente como dado real; ou, em outras palavras, resulta na reconfiguração do sentido da palavra comunidade, cuja origem latina communis sintetiza o 104

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comum somente se considerado no contexto de algo compartilhado por muitos, pelo companheirismo. Dessa forma, há uma espécie de fuga do comum na filosofia da comunidade, onde os indivíduos exercem sua subjetividade em razão dos próximos, dos desenhos institucionais que se formam a partir da vinculação entre uns e outros. Isto é, há uma relação de interdependência nas estruturas comunidade, permeadas pelo senso de direitos e deveres estabelecidos reciprocamente. Em síntese, de acordo com o pensamento de Roberto Espósito (2007), a comunidade não constitui a apropriação de um sentimento de comum partilhado entre indivíduos, como propriedade, território, cultura, ideologia; mas justamente o que a isto se contrapõe: a comum desapropriação destes indivíduos, o esvaziamento de todo o seu conteúdo, sua subjetividade e interioridade em favor de um outro. O comum da comunidade, neste caso, é o sacrifício individual ou a doação incondicional do sujeito para com o próximo. Portanto, em contexto hodierno há de se considerar a relevância de uma espécie de perda do comum para consistência dos laços de comunidade. O conceito passa a considerar outras vertentes e essa ideia do comum que se perdeu acompanha a própria evolução da natureza conceitual de comunidade. Neste norte, evidencia-se a mitigação do espaço homogeneizado, contrariado pela elevação da identidade singular como elemento intrínseco à configuração da diferença. Representa, em outros termos, o fortalecimento da característica de separação em razão da diferença. Há, assim, a redução do eu individual em prol do outro, em razão do fortalecimento da outridade como dever de compartilhar o que simbolicamente lhes une. Trata-se de uma obrigação carregada pelo senso vinculativo, de reciprocidade, em que se realiza a ação comunitária por um dever ou obrigação para com o outro, subjacente à própria necessidade de sustentação da comunidade. Conforme expõe Espósito (2007) através de sua ideia de “munus”, na comunidade exsurge-se a capacidade de dissolução do eu singular no outro, como um processo de encarar o que está de fora, na relação, uma experiência de morte que: volume

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é a experiência da desapropriação de nós mesmos. A morte não é jamais minha: é o faltar do que possuo. Ninguém pode viver a própria morte, a morte é sempre do outro. Mas nem mesmo o outro possui e vive a sua morte. A morte é em essência uma impropriedade que nos nivela a todos. E este é o segredo da comunidade: a partilha da impossibilidade de morrer a própria morte. A experiência da morte – entendida como abandono de cada identidade não a uma identidade comum, mas a uma comum ausência de identidade – equivale portanto, à experiência de uma comunidade: já que a morte é a nossa comum impossibilidade de ser aquilo que nos esforçamos para a continuar a ser: indivíduos isolados. (ESPÓSITO, 2007, p. 136)

Em antecipada conclusão, a relação opera-se a partir de uma espécie de conjugação recíproca de forças, que se referencia pela formação de vínculos de alteridade e de atributividade, os quais enaltecem a dependência intrínseca dos membros da comunidade, bem como a atribuição de normatização que garanta arranjos institucionais de vinculação entre ambos os centros de interesse da relação. Trata-se, em outros termos, da consideração da diversidade como causa de fornecimento das condições necessárias para a configuração ontológica da comunidade, a qual apresenta-se, aliás, em contexto de pluralidade do singular, visto que o ser nomeadamente comporta-se com o outro, para o outro com o qual compartilha suas vivências. Trata-se, em síntese, de considerar a perspectiva também desviada do sentido de identidade comum, pretensamente homogênea e erguida em referência ao uníssono; mas, ao contrário, de considerar o plural. Conforme sustenta Marilaine Silva: O que há é a negação da idéia de comunidade como tentativa de redução a uma identidade pretensamente comum, irmanada dentro de forças que lhe são exteriores (território, partido político, religião, língua, etc.): “[...] é possível fazer da multidão uma colectividade de homens livres, em vez de um conjunto de escravos?” (DELEUZE, 1980, p. 17). Essa pergunta de Espinosa parece ecoar no texto llansoliano. Desse modo, um sentido possível para comunidade não reside no que está fora a determinar uma reunião a partir de uma identidade comum, mas na intensidade dos próprios corpos, os afetos de que são capazes. “Aliás, quem 106

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sabe o que é um corpo?” (LLANSOL, 1994, p. 145), pergunta de Llansol a nos lembrar Espinosa: “Não sabemos o que pode um corpo” (DELEUZE, 1980, p. 139). Nesse imprevisível dos corpos e seus afetos, mora a possibilidade do encontro, um estar em comum, mas ainda na diversidade. O que não é um paradoxo, mas uma condição.

A comunidade apresenta-se, portanto, como um espaço de perda do comum, onde a condição sine qua non de sua sustentação dá-se com base na vinculação entre o eu e o outro, ou seja, na diversidade inerente ao coletivo. Assim, a união não necessariamente representa a formulação de uma identidade comum, mas, antes, a aproximação de predicados singulares, que, em compartilhamento, favorecem a organização de forças sociais vinculativamente engendradas. No mesmo norte, como sustenta Nancy (2003), somos “seres-com”, vez que o que nos impulsiona não é o isolamento, mas as relações sociais que estabelecemos com o outro. Trata-se de uma perspectiva sedimentada pela falta, pelo sentimento de vazio que assombra o ser desde sua origem, tornando-o uma espécie de ser esvaziado que tem à sua sombra a metáfora de um fantasma que o rodeia informando que algo lhe falta. De semelhante maneira, Heiddeger (2009) expõe que o vazio (ou o nada) participa de todas as coisas. No mesmo sentido, a presença se caracteriza dentro de uma espacialidade concreta, em uma relação intencionada com os demais entes intramundanos, que só ganham significância dentro de uma conjuntura, uma relação complexa de referências. Dentro dessa perspectiva, a designação particular dos objetos deve ser pensada como um processo derivado, dependente dessa totalidade. E esse contexto só é possível porque a presença, desde sempre, é ser-no-mundo. A relação da presença com um mundo circundante e, nele, com um conjunto de entes intramundanos em uma espacialidade, só é possível porque já se deu previamente um mundo. Assim, a noção de comunidade não necessariamente apenas se configura como espaço determinado e limitado geograficamente, com tradições e culturas partilhadas em comum. Há também em sua estrutura uma ideia de obrigação para com o outro que requer uma proporcional desobrigação. (ESPÓSITO, 2007, p. 28). volume

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Por essa razão, a comunidade tenderia a constituir-se vinculada ao nada, permeada por uma característica intrínseca de niilismo, através da qual os sujeitos sociais não se realizam plenamente, sustentando-se com respaldo num confuso sistema de perda da subjetividade do indivíduo, evidenciado em torno da abdicação da plena realização do eu em confronto com o outro. Nesse sentido, decai-se a ideia tradicional de encarar na comunidade apenas o senso de proteção, correspondente à capacidade de assegurar a todos os indivíduos a plena realização de sua subjetividade e de seus interesses. Evidencia-se também, de outro modo, uma espécie de sequestro, expropriação ou manipulação do compartilhamento de um comum não pertencimento, de uma comum estranheza e singularidade. Por isso Jean-Luc Nancy afirmara que a comunidade não é aquilo que a experiência histórica da sociedade teria destruído, mas é, antes, o mito daquilo que o homem ocidental teria perdido desde sempre. A bem dizer, a experiência da comunidade seria justamente a experiência inquietante daquilo que nunca houve, “La communauté n’a pas eu lieu”. (Nancy, 1986, p. 33). Em outros termos, implica-se a necessidade de despojamento da noção de junção do comum, pois, contraditoriamente, isto resultaria na perda da pluralidade, da diversidade, e, ato contínuo, no soerguimento de uma espécie de pureza unitária que leva a correspondências totalitárias e de quase-morte do eu singular. Em contraposição, a ideia de comunidade não se dá entre os mesmos, ou, do igual com o igual, mas entre este e aquele, entre diferentes. Há de se reconhecer especialmente o estar junto, estar com; ressignificar a ordem de organização em atenção ao que se complementa. Como expõe Nancy (2003, p.14): Somos juntos e apenas então, ou assim, podemos dizer ‘eu’: eu não diria ‘eu’se estivesse só, pois se estivesse só não teria nada de que tivesse que me distinguir. Se me distingo é porque somos vários: haveria que entender ‘ser vários’ com valor distributivo e ao mesmo tempo com o mesmo valor que em ‘ser-no-mundo’.

A comunidade exsurge, desse modo, uma espécie de perda do comum, no sentido de delegar ao compartilhar da diversidade o papel de fundamento 108

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necessário para a sua constituição. É na pluralidade, então, que sedimenta sua estrutura e os arquétipos do sistema político responsável pela organização da vida de seus cidadãos, os quais vinculam-se reciprocamente em razão da alteridade ou da solidariedade. 3. a solidariedade como elemento de alteridade entre plur ais na formação dos arr anjos institucionais da comunidade A organização da vida da comunidade encontra-se estabelecida em torno de um complexo sistema de seres esvaziados, seres que se complementam e se vinculam com o outro para busca de algo que lhes falta e atormenta. Segundo Nancy, aliás, trata-se de reconhecer que o único dado que nos é comum é o de que não há nada em comum, de modo que a comunidade representa a união desses seres esvaziados ou que, como visto, ele denomina de seres-com. Em outros termos, através de um processo de outridade, o indivíduo expele-se para a relação com o outro, esvaindo sua subjetividade para encarar o que está do lado exterior ou fora de sua interioridade. Com isso, rompe-se a estrita individualização e, consequentemente, dá-se o soerguimento de “uma cadeia de alteridade que não se fixa nunca numa nova identidade” (ESPÓSITO, 2007, p. 18). Nesse sentido, há uma íntima correlação entre a individualidade do ser e a necessidade de sua complementação com a diversidade do outro, como condição necessária para a evidenciação de uma espécie de compartilhamento de gestos, atitudes e pensamentos que não podem ser considerados em singularidade, mas, ao contrário, em pluralidade. Ato contínuo, esta vinculação do ser com o outro norteia o desenvolvimento da noção de alteridade, permeada pela solidariedade entre os componentes da comunidade. Essa ideia corresponde justamente à superação do comum e consequente resgate da pluralidade como pressuposto necessário para o adensamento da solidariedade. A solidariedade representa, pois, um conceito que evidencia a necessidade de considerar o outro e elencar a comunicação como valor ético para a articulação da vida da comunidade. Ela funciona como mecanismo condutor do processo de volume

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alteridade e de consequente promoção da comunicação humana e da escuta entre os indivíduos. É o que, já citado, representa a entrega dos sujeitos sociais, a dissolução de um no outro, semelhante à morte do enclausuramento dos sujeitos isolados. Assim, em primeiro contexto a noção de solidariedade implica também na conjugação e forças que devem considerar a reciprocidade entre os indivíduos, cujo aspecto essencial é que as transferências são indissociáveis das relações humanas. Ou, como fundamentam França Filho e Jean-Louis Laville (2004, p.32), uma relação “fundada na dádiva como fato social elementar – a existência da dádiva estando ligada a uma contradádiva.” Em sede clássica, o conceito de solidariedade representa, portanto, a exploração da dimensão do viver em conjunto, visto que, conforme argumenta Leroux (1841, apud Le Bras Chopard, 1992, p.58): A natureza não criou nenhum ser para ele próprio [...] ela os criou uns para os outros, e colocou entre eles uma solidariedade recíproca. Através desta, apenas pelo fato de os homens existirem e terem entre si relações, a sociedade existe. Há, portanto, necessariamente e divinamente comunhão entre os homens.

Portanto, a solidariedade apresenta-se como elemento de alteridade entre plurais na medida em que fomenta a interação entre os indivíduos a partir de uma perspectiva que apenas se constitui sob a consideração da fuga do eu, ou seja, do processo de se esvair da subjetividade singular para vincular-se ao próximo. Neste caso, o conceito de solidariedade aqui adotado não confunde-se necessariamente com a ideia de fraternidade ou a formulação de um projeto de sociedade de irmãos propensos ao despojamento e elenco da caridade como pressuposto de sua constituição; ao invés, representa muito mais coadunada com a predominância do agir com o outro, em um processo simbiótico de reconhecimento além do eu e à proximidade do diverso. Assim, advém-se através da solidariedade um processo de construção de uma ordem social em que se prevaleçam o reconhecimento da pluralidade e a consequente comunicação entre os indivíduos. Em primeiro contexto, o outro não representa apenas o outro ser, mas também aquilo que é diferente do eu, ou, em sede mais específica, novo, estranho, 110

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contrário. A rigor, trata-se de algo que nos é ignorante, que nos falta e, por isso, apresenta-se como novidade e não idêntico, desconhecido e exposto em um universo de características a se descobrir e compartilhar. Nesse sentido, a solidariedade plenamente descrita só se evidencia no outro, correspondendo a um gesto de autonomia, empreende uma relação de vinculação responsável pelo outro. No entanto, como não basta apenas a mera interação com o outro, há a igual necessidade de comunicação entre os plurais, que representa uma espécie de atitude ética direcionada para a efetivação de um processo de discussão, opinião formação do consenso em ambiente politicamente democrático no sentido de reconhecimento do empoderamento dos indivíduos da comunidade. Portanto, através da comunicação entre os indivíduos resulta a possibilidade de delimitação de um espaço político de solidariedade, erguido em comunhão com o outro e num processo de fortalecimento do consenso. Em outros termos, do mesmo modo que observa Bento (2003, p. 201): Basta registrar que o uso de uma razão comunicativa – num ambiente ideal de discussão entre participantes interessados em produzir consenso, mais do que em fazer valer seus interesses (o que é próprio da ação estratégica), em convencer e deixar-se convencer por argumentos racionais, institucionalmente iguais e livres de coerção para propor discussões, opinar, contestar, fazer considerações e incluir temas na agenda de debates – viabiliza a construção de consensos normativos acerca da ética ou da política.

Este autor explica que, segundo o entendimento habermasiano, a esfera pública política “[...] institucionaliza-se como instância crítica do poder, não para derrubá-lo, não para tomar o Estado, [...] mas sim para influenciá-lo, exigindo que ele se legitime perante um público pensante” (BENTO, 2003, p. 194). Nesse sentido, na ação comunicativa os atores que convivem na comunidade buscam harmonizar suas ações através da obtenção de um consenso entre eles sobre questões de validade. Aqui os sujeitos adquirem uma capacidade para o entendimento mútuo, com a capacidade de atingirem consenso, pressuposto para haver o entendimento mútuo. volume

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Assim, propõe-se um mundo da vida fundamentado numa racionalidade comunicativa, onde os sujeitos podem compartilhar suas ideias e críticas, sendo que cada qual internaliza a dos outros para a formulação do consenso. Ou seja, busca-se igualmente impedir que os centros de poder isolados distorçam a vontade popular. Aliás, conforme expõe Durkheim, em sua tradicional divisão de solidariedade mecânica e orgânica, enquanto a primeira manifesta-se através do encontro componentes semelhantes, o laço social da última fundamenta-se na diversidade para estabelecimento da organização da comunidade, implicando uma relação que tem como princípio a variedade de papéis sociais, onde se procura a companhia “daqueles que pensam e que sentem como nós” (DURKHEIM, 2003). Em outros termos: A vida social tem uma dupla origem, a similitude das consciências e a divisão do trabalho social. O indivíduo é socializado, no primeiro caso, porque, não possuindo individualidade própria, confundese, assim como os seus semelhantes, no seio de um mesmo tipo coletivo; no segundo, porque, possuindo uma fisionomia e uma atividade pessoais que o distinguem dos outros, deles depende na própria medida em que deles se distingue e, por conseqüência, da sociedade que resulta da sua união. (DURKHEIM, 2003, p. 70)

Assim, há de se considerar que no espaço político da comunidade há o adensamento solidário dos indivíduos, especialmente no sentido de que, portanto, estes tendem a considerar o outro e a agir em função do ato comunicativo para a efetiva produção do consenso. Isto é, a pluralidade dos indivíduos e a consequente necessidade de interação entres os mesmos fornece as bases para a configuração das estruturas da instituição. Fala-se, nesse caso, no que os (neo)institucionalistas formulam enquanto desenho institucional, o que se concebe como sendo o processo de formação de uma instituição. O desenho institucional seria o caminho percorrido, a troca de ideias entre os atores sociais para se chegar a uma instituição. Considerando do ponto de vista jurídico as instituições como conjunto de princípios e regras (jurídicas), que configuram relações sociais ou grupo de relações sociais, toda sociedade ou organização necessita de instituições que moldem 112

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sua forma de comportamento, que minimize as inseguranças que existem em seu interior. Logo, uma instituição só pode ser aceita e reconhecida por uma sociedade se for por esta vista como algo legítimo e que minimiza as incertezas que nela existem, fazendo com que os atores sociais ajam conforme um padrão estabelecido e tido como aquilo que é certo. Desse modo, segundo Hall e Taylor (2003, p. 210) , ao se referirem ao caráter interativo que as relações entre instituições e ações dos indivíduos: Quando agem conforme uma convenção social, os indivíduos se constituem simultaneamente como atores sociais, vale dizer, empreendem ações dotadas de significado social e reforçam a convenção a que obedecem.

Destarte, os indivíduos agem com vistas à resolução de um problema utilizando-se das instituições para tanto, uma vez que estas fornecem meios para resolvê-los. Ao mesmo tempo, quando agem solucionando seus problemas, os atores confeccionam uma ação dotada de valor, que formará um modelo institucional de comportamento a ser seguido. Desse modo, a solidariedade enquanto vínculo de alteridade entre os indivíduos resulta na capacidade destes aproximarem a capacidade de comunicar-se e, consideradas as diversidades da comunidade, formularem a institucionalização de arranjos que os tornem reais produtores e recepcionadores das convenções acordadas no processo político de consenso. A ideia reforça, ademais, o próprio caráter de perda do comum na comunidade, visto que apenas a partir do reconhecimento da diversidade é que se pode efetivar a necessidade de comunicação. Ou seja, esta representa, em outras palavras, requisito que só se contempla com o outro, com a pluralidade; bem como enquanto condição de interação dos indivíduos. É, como ressaltado, a perda da característica do comum a partir da institucionalização da solidariedade no ambiente da comunidade. No mesmo norte, como evidencia Niklas Luhmann (1985, p. 62): [...] Através do mecanismo da institucionalização formamse expectativas referentes às expectativas de terceiros, independentemente dessas expectativas se confirmarem ou não. volume

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Os que participam da situação supõem (e esperam reciprocamente essa suposição) o que terceiros deles esperariam. As instituições simples podem consistir em cadeias contínuas de expectativas normativas: os participantes diretos esperam normativamente e resolutamente quais expectativas normativas seriam a eles dirigidas a partir de terceiros. Deles deve-se esperar o que eles esperarão e como deverão se comportar.

De acordo com Luhmann (1985, p. 64), “[...] legítimas são as decisões nas quais pode-se supor que qualquer terceiro espere normativamente que os atingidos se ajustem cognitivamente às expectativas normativas transmitidas por aqueles que decidem”. Consequentemente, as decisões são legítimas quando todo e qualquer indivíduo pode cumpri-las, mesmo sem ter auxiliado em sua formulação. Nesse contexto, a partir da legitimidade que é inerente aos atos comunicativos existentes entre os membros da comunidade, os atores sociais contribuem com o processo discursivo, participando ativamente e gerando expectativas a serem executadas. Ou seja, o consenso entre os cidadãos ocasiona o surgimento de valores e críticas retratadas no cotidiano plural da comunidade e legitimadas pelo processo discursivo. 4. o empoder amento político como condição de exercício da cidadania e de mudança institucional na comunidade A solidariedade entre os indivíduos da comunidade representa condição para o estabelecimento em consenso dos arranjos institucionais que se delineiam na sociedade. Nesse sentido, o reconhecimento da participação do outro como elemento importante do processo fortalece o discurso plural. Ao mesmo tempo, a ação comunicativa dos indivíduos em torno do espaço político da comunidade enaltece o sistema de diálogo e participação democrática bem como a sedimentação de decisões legítimas. Nesse sentido, o empoderamento político emerge como consequência do sistema de reconhecimento do indivíduo enquanto cidadão, de sua condição enquanto ser atuante no processo decisório e de legitimidade pública. 114

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Como afirmam Perkins e Zimmerman (1995, p. 1), o empoderamento qualifica-se como “um construto que liga forças e competências individuais, sistemas naturais de ajuda e comportamentos proativos com políticas e mudanças sociais”. Em outros termos representa base para a constituição dos próprios arranjos institucionais da comunidade, das forças que se intercruzam na discussão comunicativa e fortalecem o reconhecimento do outro como elemento indispensável para a legitimidade democrática, consistente esta no fato da instituição ser aceita e transmitir senso de lealdade para os atores que dela participam. O empoderamento representa, então, o processo de fortalecimento dos sujeitos sociais no espaço de participação política e, consequentemente, das próprias instituições que se formam no contexto da comunidade. Nesse caso, os indivíduos renunciam apenas o processo de tutela ou de proteção e, rompendo as estruturas da inatividade, agem com autonomia e autodeterminação. Conforme expõe Foucault (1994), o poder não se dá de maneira monolítica, não está num espaço pré-determinado, mas funciona em rede de modo que seu exercício mais ínfimo encontra apoio em outros pontos da rede, podendo se potencializar e potencializar outros poderes. Assim, uma relação de poder articula-se sobre dois elementos que lhe são indispensáveis: que o ‘outro’ (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como sujeito de ação; e que se abra diante da relação de poder todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis (Foucault, 1995). Entende-se, portanto, o empoderamento político como o “acesso dos membros individuais de unidades domésticas ao processo pelo qual são tomadas decisões, particularmente as que afetam o seu futuro como indivíduos” (Friedmann, 1996, p.34). Nesse sentido, ele representa o fomento da capacidade de o indivíduo exercer sua participação em sede democrática, conquistando a possibilidade de, autonomamente, relacionar-se com os mecanismos de ampliação de seu potencial de discussão da vida da comunidade. Sob essa perspectiva, o empoderamento político enaltece portanto o caráter cidadão na comunidade, vez que através dele ampliam-se os espaços de relação com a vida pública, inclusive do ponto de vista de discussão e direção. Amplia-se a volume

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partir desse empoderamento a cultura política e a participação cidadã, permeados pela ação comunicativa que se desenvolve através dos canais de oportunidade de expressão do indivíduo. Assim, ao invés de considerar a cidadania do ponto de vista excludente ou restrita, como se observa nos templos clássicos da Grécia ou mesmo na obra kantiana, ela se apresenta neste contexto de maneira includente e referendada do ponto de vista do empoderamento dos indivíduos. No mesmo sentido, sintetiza-se portanto como “[...] uma pluralidade de situações jurídicas através das quais o ordenamento permite a integração no indivíduo nas diversas esferas de comunicação social” (ALÁEZ CORRAL, 2006, p.6). Conforme sustenta Clarke (2010, p. 27): Se suas ações permitem e propiciam que cada um possa ser dono de sua própria vida convivendo ao mesmo tempo com os demais, essas pessoas serão, por seu compromisso, cidadãos. Se este compromisso não é passageiro, mas, ademais, consciente e diligente, e se estende a abarcar a melhoria da própria pessoa, dos demais e do mundo, então, essas pessoas se comprometem com o mundo como cidadãos plenos.

Assim, a cidadania exsurge-se também da capacidade de empoderamento do cidadão, na medida em que a ele, de modo ativo, dirigir a própria vida, desenvolver suas ações e fomentar suas responsabilidades políticas. Em outros termos, significa a capacidade de fomentar o potencial de sedimentação do indivíduo no seio da comunidade. Dessa forma, os cidadãos também determinam a construção do espaço público, e quanto a isto, Hannah Arendt (1974) entende que “[...] a cidadania é um elemento indispensável para o acesso à espacialidade pública, ao mesmo tempo em que é continuamente remodelada pela atuação dos cidadãos no seu interior”. Isto é, a partir do momento em que se desenvolve a cidadania ativa entre os indivíduos no ambiente político, arregimenta-se a capacidade de potencializar democraticamente tanto o espaço público quanto a própria participação política dos cidadãos. Estas afirmações levam então a considerar a cidadania como elemento indispensável para a garantia de legitimidade nos arranjos das instituições da 116

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comunidade. No caso, trata-se, ademais, do que Clarke nomeia de cidadania ativa, que liga a realização do indivíduo à ação no espaço público, ao decidir, ao atuar politicamente (2010, p.55-56). Dessa forma, a cidadania plena expressa a capacidade de considerar a pluralidade e, a partir desta, delimitar o campo institucional de discussão da vida da comunidade, estabelecendo um senso de compromisso consigo mesmo e com o outro como condição de existência compartilhada. Nesse sentido, segundo Clarke (2010, p. 29), “a cidadania plena [...] tem em conta a diferença e a alteridade; não impõe a universalidade, não inibe a diferença.” Trata-se do que ele chama de “La muerte de um universal”, sob o convencimento de que não se pode reduzir a análise da cidadania a um projeto que, universalizado, se converte em dogma e despreza a diversidade. Sob esse ponto de vista, o empoderamento político do cidadão também se reveste de fator determinante para a sustentação da alteridade e contínuo desapego do comum como elemento intrínseco à comunidade. A participação do cidadão na comunidade só se reconhece plena quando esta se dá a partir do reconhecimento de seu espaço nas discussões que se vinculam entre os seres-com. Em acordo, aliás, com o pensamento de Carracedo (2007, p.160) ao abordar a autonomia cidadã, “com a experiência da colaboração, da reciprocidade mútua, é que se deriva imediatamente o respeito mútuo e o sentido da justiça.” Assim, considerado o empoderamento político a partir de canais de comunicação e alteridade, é a partir da racionalidade dialógica dos processos democráticos e da ação cidadã que se pode referendar a formação de propostas mais includentes de cidadania na comunidade. Nesse contexto, em que pese as dificuldades naturais desse processo de articulação comunicativa entre os diversos indivíduos, o resultado desta leva ao empoderamento político dos mesmos e consequente adensamento da cidadania como fator de gerência ativa do espaço público. Em sede mais específica, através de uma co-gestão entre os indivíduos da comunidade é possível obter um espaço público que atenda às necessidades sociais. Assim, para a efetivação constante do Estado democrático de direito é imprescindível a disponibilização desse espaço para que hajam deliberações volume

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populares entre cidadãos e comunidade como um todo, com o intuito de discutirem soluções para a resolução dos problemas sociais. Sobre isto, como parte do processo de descentralização, democratização e fortalecimento do poder local, configura-se uma nova geração de direitos relativos à demanda por uma democracia deliberativa, que assegure a participação da cidadania nos processos de cogestão pública. Desse modo, o processo de empoderamento político do cidadão reveste este último de predicados que passam a capacitá-lo no processo de comunicação e discussão pública, o que, por conseguinte, fornece as bases de uma espécie de gestão compartilhada da comunidade e de suas respectivas instituições. Aliás, citando a teoria habermasiana do direito e da democracia, Christina Andrews (2005) retrata através da facticidade e validade que o processo de discussão é condição de legitimidade desse empoderamento cidadão e eventual promoção das mudanças institucionais. Com base na facticidade há a coercitividade da norma (instituição jurídica) perante os atores sociais, enquanto que de acordo com a validade há a legitimidade que os cidadãos atribuem a estas normas. Logo, a eficácia das normas depende de ambos os fatores, devendo elas permear a discussão popular e o consenso moral e consequente aprovação daqueles sobre os quais seus efeitos atingem, carecendo não só de serem legítimas, mas também de serem válidas ao ponto de, se descumpridas, os atores transgressores virem a sofrer sanções. Destarte, para Habermas as normas positivas são então legítimas quando ocorre consenso nos discursos públicos. Assim, com base na autora supracitada, “[...] a legitimidade de facto das instituições [...] pode ser estabelecida [...] apenas [...] pela deliberação intersubjetiva de atores sociais cujos projetos de vida são afetados pelas instituições”(ANDREWS, 2005, p. 277) É, em outras palavras, o que no contexto da participação popular, Leonardo Valles Bento (2003) fala da necessidade de “desenhos institucionais discursivos” para se chegar a uma esfera pública politizada. Este autor entende que deve haver modelos institucionais preocupados com a deliberação, por meio da qual se efetivará a participação popular democrática nas questões de interesse público; estes modelos, enfim, permitiriam “[...] aos cidadãos efetivamente 118

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decidir politicamente e não simplesmente aplicar conhecimentos gerenciais [...]” (BENTO, 2003, p. 229). Dessa forma, em estreito resumo lógico, a ideia reside no estabelecimento do empoderamento do indivíduo como condição de fortalecimento de sua cidadania e, em resultado, de promoção das mudanças institucionais que continuamente exibem-se no contexto da pluralidade da comunidade. Nesse sentido, ao conceituar a mudança institucional, consiste no processo através do qual arranjos institucionais anteriores deixam de estar em vigor e são substituídos por um novo conjunto de regras e procedimentos. É o momento em que novas instituições tomam o lugar de instituições estáveis. Ou seja, vez que a comunidade apresenta-se como espaço de diversidade e provocação da comunicação plural entre os sujeitos (especialmente em razão da contínua perda do comum e consequente consideração da natureza dos serescom), continuamente evidenciam-se processos de discussão que, em contexto de solidariedade, fornecem as bases para as mudanças institucionais rotineiramente necessárias para a concretização da modificação nas metas e objetivos da comunidade como um todo. Para Rachel Sztajn (2005), as instituições têm a função principal de dirimir as incertezas existentes em uma organização. Para desempenhar tal tarefa, é necessário que a instituição seja vista como algo estável, permanente, formada por normas sólidas, que fornecem segurança aos atores sociais. Assim, para que a comunidade esteja pari passu com a evolução do próprio contexto plural que lhe assola, as mudanças institucionais são necessárias às instituições, pois caso não sofram transformações, na medida certa, tornar-se-ão obsoletas, além de não mais conseguirem amenizar as incertezas de uma organização, uma vez que seus modelos de conduta tornam-se dispensáveis e ultrapassados para esta. Nesse sentido, a referida autora complementa ao dizer que (2005, p. 232): [...] e, nesse sentido, é que se pode falar em mudanças institucionais uma vez que o complexo de relações ordenadas, uniformes e permanentes no tempo e no espaço não é imune a mudanças. Sociedade e instituições são sistemas abertos que se autoinfluenciam e alteram permanentemente. volume

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Há, então, diante desse quadro, a necessidade de consideração que o sistema de interrelação existente entre os indivíduos da comunidade apresenta-se como aberto cognitivamente às transformações da vida social, de modo que as mudanças institucionais apresentam-se como elemento de extrema necessidade para a consequente sustentação da própria comunidade. De todo modo, a mudança institucional deve ocorrer de maneira ponderada, ou seja, deve haver eficiência e equilíbrio no processo de mudança institucional. A eficiência significa que as instituições necessitam de inovação para acompanhar o crescimento da sociedade que nela está inserida; porém, é também indispensável que haja equilíbrio no processo de mudança, pois é justamente essa moderação que garante que haverá o mínimo de incerteza na instituição. Nesse sentido, sobre esses dois extremos a autora frisa que: [...] Por um lado, tem-se a necessidade de estabilidade, condição para a redução da incerteza; por outro, tem-se a necessidade de mudança imposta pela busca da eficiência adaptativa. [...] O excesso de estabilidade pode embutir perda de oportunidades e a conseqüente estagnação; o excesso de mudança pode trazer incerteza e a conseqüente paralisia. Ambos os elementos, se mal dosados, podem ocasionar resultados desastrosos (ZYLBERSZTAJN; SZTAJN, 2005, p. 239).

Assim, há de se ter um necessário equilíbrio entre as forças que se conjugam solidariamente no processo de mudança das instituições. O empoderamento dos indivíduos através de sua participação cidadã deve ser ponderado no processo de mudanças institucionais da comunidade, merecendo o despojamento de excessos ou carências que desarticularizam as próprias mudanças reclamadas. Portanto, a cidadania como elemento deflagrador das mudanças institucionais da comunidade deve, em apertada sinopse, observar os seguintes requisitos: a pluralidade inerente à comunidade; o reconhecimento do poder do outro; e a ação comunicativa como elemento condutor do processo. Ou seja, não mais existem instituições ou sistemas fechados, pois não se pode ignorar as transformações que o tempo e as situações acarretam. Aliás, a comunidade é, como assinalado, um ambiente em que não se pode considerar a universalidade do pensamento como ideologia única, mas ambiente de relação 120

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dialógica entre o eu e o outro. Assim, as transformações inerentes ao processo de convivência desses indivíduos deve ser acompanhado de contínua discussão e eventual mudança nas instituições em evidência na comunidade, sob pena de enclausurar a comunidade em um sistema que, ao final, retornará à consideração do comum, do dogma, de uma verdade paradigmática que não passa pelas alterações reclamadas pela própria relação de solidariedade entre os sujeitos. 5. conclusões Para se entender a real ideia conceitual da comunidade hodierna, há de se relegar a noção do comum como elemento de contextualização de sua filosofia de organização, visto que a pluralidade do ser e a necessidade deste de estar em relação com o outro fornece as bases para a descrição de que a comunidade formula-se, antes, a partir da interação dos indivíduos e de sua consequente diversidade. Nesse sentido, a comunidade apresenta em sua representação conceitual uma espécie de fuga do comum, considerada a partir do reconhecimento do outro nesse processo de alteridade. Como observado, somos seres-com e, assim entendidos, temos a necessidade de encontro com o próximo, de intercâmbio de experiências e, ato contínuo, de vinculação simbiótica da vida em comunidade; assim, pluraliza-se a noção do indivíduo, norteando a perda de um eventual universalismo que poderia reduzir o problema e desconsiderar o contexto plural. Além disso, encarada a comunidade como espaço plural de reconhecimento da diversidade, esta só se solidifica apenas quando se desenvolve a solidariedade entre os indivíduos, a qual se dá a partir do vínculo de alteridade inato ao processo e, também, da ação comunicativa que deve se acostar na relação entre os sujeitos sociais. Nesse caso, entende-se que o processo de diálogo aproxima o outro e, assim, estabelecida essa vinculação, tem a condição de sustentar a formulação de arranjos institucionais no ambiente da comunidade. Em sede mais específica, evidencia-se através da ação comunicativa o vínculo de alteridade e se u consequente fortalecimento, o que, por conseguinte, leva a solidificar os acordos e consensos dos debates existentes em torno das instituições da comunidade. volume

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Desse modo, considerado este reconhecimento do poder do outro e, no processo de comunicação, do fortalecimento do próprio vínculo entre os indivíduos, extrae-se como consideração final que o empoderamento que se evidencia nos indivíduos da comunidade torna o exercício de sua cidadania mais participativo no sentido de promover as mudanças insitucionais requeridas pelo sistema. Em outros termos, ainda que se considere que as mudanças institucionais são continuamente necessárias no contexto da comunidade, estas só ocorrem a partir do momento em que se empodera os indivíduos na relação dialógica através do exercício da cidadania. A ideia repousa, pois, na concretização da participação solidária dos cidadãos como meio de, fugidia à ideia de uma utopia do comum, nortear um processo de pluralidade e que desencadeia a capacidade de se fomentar as mudanças institucionais inerentes às transformações da comunidade. Isso corresponde, portanto, à ampliação do conceito de comunidade em torno do referencial de ação comunicativa que deve unir os indivíduos para, reconhecido o empoderamento destes, fomentar a maximização do potencial cidadão nos arranjos institucionais. Ou seja, a comunidade apenas pode ser considerada hodiernamente como espaço de concretização de mudanças institucionais a partir do reconhecimento das diversidades e da solidariedade enquanto condições inerentes ao processo de empoderamento do cidadão. 6. referências ALÁEZ CORRAL, Benito. Nacionalidad, ciudadanía y democracia. A quién pertenece la Constitución? Madrid: Centrod e Estudios Políticos y Constitucionales, 2006. ANDREWS, Cristina W. Implicações teóricas do Novo Institucionalismo: Uma abordagem Habermasiana. In: Revista de Ciências Sociais, Rio de janeiro, vol. 48, n. 2, p. 271-299, 2005. Disponível em: Acesso em: 23 de julho de 2013. ARENDT, Hannah. Las orígenes del totalitarismo. Madrid: Taurus, 1974. BENTO, Leonardo Valles. Governança e governabilidade na reforma do Estado: entre eficiência e democratização. São Paulo: Manole, 2003. 122

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controle de convencionalidade da corte idh e a proteção dos direitos humanos no âmbito global Mário Coimbra1 Sérgio Tibiriçá do Amaral2

Resumo A proteção dos direitos humanos tem fundamento na Constituição e nos tratados internacionais de direitos humanos. O controle de convencionalidade no Sistema Interamericano(OEA), composto de Comissão e Corte é um instrumento transnacional de efetivação dos tratados regionais direitos humanos, de caráter suplementar, para buscar soluções quando a Justiça nacional julga errado, viola ou ainda não efetiva o devido processo legal. A Corte ampliou a base do controle para os tratados de direito humanitário em nível da Organização das Nações Unidas. O artigo versa sobre essa ampliação, ou seja, um controle regional utilizando-se das Leis de Genebra, do âmbito da ONU.

Palavras-chave Pacto de San José; Controle de Convencionalidade; Sistema Interamericano; Tratados de direitos humanos; Corte Interamericana; Direito Internacional Humanitário. 1 Graduação em Direito pela Associação Educacional Toledo (1981) e mestre em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (2001). É doutorando em Direito Constitucional na Instituição Toledo de Ensino de Bauru. Atualmente é professor da Associação Educacional Toledo de Presidente Prudente e promotor de justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo 2 Mestre em Direito das Relações Públicas pela Universidade de Marília (1998); especialista em interesses difusos e coletivos pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo(1999) e mestre em Sistema Constitucional de Garantias pela Instituição Toledo de Ensino (2003). Doutor em Sistema Constitucional de Garantias pela ITE (2011). Professor titular de Teoria Geral do Estado da FDPP das Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo; Professor do Programa de Pós-Graduação da Instituição Toledo de Ensino(ITE) - Mestrado e Doutorado em Sistema Constitucional de Garantias da ITEBauru. volume

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Abstracto La protección de los derechos humanos se justifica en la Constitución y en los tratados internacionales de derechos humanos. El control de convencionalidad en el sistema (OEA), integrado por la Comisión y la Corte es un instrumento transnacional de realización de los tratados de derechos humanos regionales, de carácter adicional, a buscar soluciones cuando la justicia nacional equivoca, viole o no considere el debido proceso legal. La Corte amplió la base del control a los tratados de derecho humanitario a nivel de las Naciones Unidas. El documento analiza esta expansión, es decir, un control regional utilizando las leyes de Ginebra, el nivel de las Naciones Unidas

Palabras clave Pacto de San José; Control de convencionalidad; Sistema Interamericano; Tratados de derechos humanos; Corte Interamericana; Derecho Internacional Humanitário. 1. introdução O artigo discorreu sobre o controle de convencionalidade, que protege a dignidade da pessoa humana constante na Constituição e nas convenções de direitos humanos nas quais o Brasil é signatário, entre elas, o Pacto de São José da Costa Rica, bem com sua ampliação para tratados em nível das Nações Unidas. Ressaltou-se que os tratados de direitos humanos, buscando demonstrar os compromissos assumidos pelos Estados, incluindo o brasileiro, trazem direitos e garantias como estão no texto do artigo 5. parágrafo 2.o e também são supra-legais, de acordo com entendimento do Supremo Tribunal Federal. Foram usados métodos histórico e dedutivo, também o indutivo, apreciando a doutrina e a jurisprudência. Inicialmente foram feitas considerações gerais sobre o funcionamento do Sistema, que tem a Comissão e a Corte, sendo que as petições passam pelo órgão não jurisdicional. Depois, buscou-se demonstrar o funcionamento do controle de convencionalidade feito com base nos tratados de direitos humanos no âmbito da OEA. O outro capítulo demonstrou a ampliação da competência da Corte, que buscou proteger direitos humanos previstos nas chamadas Leis de Genebra, ou 126

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seja, normas no âmbito da Organização das Nações Unidas visando demonstrar a aceleração na proteção decisional. A decisão desse novo tipo de controle torna a proteção mais universalizada, trazendo um novo diálogo regional e global. 2. consider ações ger ais sobre o sistema O Brasil faz parte da Convenção por meio da promulgação feita pelo decreto 678, reconhecendo a competência contenciosa da Corte Interamericana dos Direitos Humanos em 1998, com o Decreto Legislativo 89, estando sujeito aos deveres do Pacto de São José e aos julgamentos da Corte. O Sistema foi criado pela Carta da OEA, na Conferência de Bogotá de 19483 e, conta com 35 Estados-membros, sendo que 25 ratificaram Convenção, que entrou em vigor em 1978. Todas as petições ou reclamações começam na Comissão. Hector Fix-Zamudio(2008, p. 203) relata a necessidade de passar pela Comissão, que faz “instrução e a investigação das violações dos direitos humanos”, ressaltando ser um tipo de juízo de admissibilidade que proporciona aos Estados um acordo na fase política de solução de controvérsias. Com o fim da Segunda Guerra Mundial são assinadas a Carta e a Declaração da ONU, que começam a desenvolver-se o Direito Internacional dos Direitos Humanos, com a adoção de inúmeros instrumentos internacionais, incluindo os regionais como o Pacto de São José. Confere-se um lastro axiológico e uma unidade valorativa a esse campo do Direito, com ênfase na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. Norberto Bobbio, na obra “A Era dos Direitos” fala sobre o nascimento de uma terceira geração de direitos, que marcam o progresso moral da humanidade. Esse dialogo visando a proteção de direitos ganhar por meio de um julgamento da Corte, uma novo viés. Para Valério de Oliveira Mazzuoli (2010, p.7), “o Pacto é o grande codex dos direitos civis e políticos no Continente Americano e o tratado de diretos humanos mais utilizados – academicamente e no foro – nos países interamericanos, 3 Na mesma Conferência se aprovou a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. volume

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principalmente os latinos”. Mas, o próprio autor e outros como o colombiano Ernesto Ray Cantor(2010, p.13) ressaltam a necessidade de sempre ampliar a defesa de direitos. Necessário entender os princípios que regem o funcionamento do sistema e, por consequência, o controle de convencionalidade. Um dos princípios é o do esgotamento dos recursos internos, previsto no art. 46 “a” da Convenção, que é requisito de admissibilidade de uma petição ou comunicação a ser analisada pela Comissão. No entanto, como fica patente na leitura do referido artigo, o esgotamento não é absoluto, quando nos termos do artigos 46: a) não há devido processo legal; b) não se houver permitido o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido impedido de esgotá-los; c) houve demora injustificada na decisão. Os direitos humanos e garantias devem inicialmente ser protegidos dentro do âmbito doméstico, o que faz afirmar que existe o princípio da suplementariedade. Caso haja problemas ou injustiça, deve haver ação internacional para corrigir falhas ou vícios. Desse princípio também chamado de complementariedade decorre para alguns, o princípio do esgotamento. Os dois são fundamentais no controle de convencionalidade, bem como um outro que estabelece a proibição de retrocesso. Um direito declarado e aceito como universal ou inerente ao homem não pode dele ser subtraído do artigo. 4.4: “Não se pode restabelecer pena de morte nos Estados que a hajam abolido”. Nenhum documento do Sistema violou essa proibição de subtrair direitos, ao contrário, sempre foram surgidos novos.Os documentos da Carta da OEA e da Declaração foram reiterados e aperfeiçoados nos tratados regionais específicos. Outro importante princípio norteador dos julgamentos é o “pro homine”. Havendo conflito entre uma norma interna e outra internacional, prevalece a mais favorável. Sempre a mais benéfica. O artigo 29, “a“ e “b” da Convenção aborda o critério de escolha.. Para o controle de convencionalidade, esse princípio permeia o julgamento no Brasil, que culminou no STF pela proibição da prisão civil do depositário infiel prevista como possibilidade no art. 5 LXVII confronta com o art. 7.7 da Convenção. 128

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A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) é uma das entidades autônomas do Sistema Interamemericano4, que vem ganhando força na busca da promoção e defesa desses direitos, pois junto com os Estados pode submeter um caso de violação diante da Corte. O Brasil já sofre quatro condenações na Corte, que passaram pela comissão, numa incluindo uma decisão pedindo a invalidação da Lei de Anistia. 3. a corte inter americana e seus julgamentos A Corte Interamericana é um órgão judicial autônomo criado pelo Pacto, com sede em San José, na Costa Rica, que visa aplicar e interpretar a Convenção Americana de Direitos Humanos e outros tratados, inicialmente em nível da OEA. É composta por sete juízes, nacionais dos Estados – Membros da OEA, eleitos a título pessoal entre juristas da mais alta autoridade moral, de reconhecida competência em matéria de direitos humanos. Não deve haver dois juízes da mesma nacionalidade (art.52). O quorum para as deliberações da Corte é constituído por cinco juízes (art.56), com as decisões tomadas pela maioria dos juízes presentes. Em caso de empate, o Presidente terá o voto de qualidade5. Esse direito processual convencional é relativamente novo na sua proteção de direitos humanos em nível de Brasil. Mas, o sistema tem fundamento no que Ramiro Podetti (2009, p.33), Eduardo Andrés Velândia Canosa (2014, p.87) e Niceto Alcalá-Zamora y Castillo( 1992, p.516) chamam de “trilogia estrutural do Processo”, que numa disciplina científica seriam: a) acesso à jurisdição transnacional; b) jurisdição transnacional complementar e c) um processo constitucional transnacional. Para tanto, necessário conhecer o sentido dessas definições, suas fontes e ainda evidenciar a ação de controle de convencionalidade no Sistema Interamericano, bem como sua ampliação para outros tratados fora do âmbito regional. A jurisdição da Corte tem caráter residual e a competência transnacional envolve os tratados de direitos humanos no âmbito da OEA, num controle de 4 Foi criada em 1959 mediante a Resolução VIII da Quinta Reunião de Consulta de Ministros das Relações Exteriores. 5 Art.23. Quorum, do Estatuto da Corte Interamericana de Direitos Humanos. volume

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convencionalidade transnacional diante da Corte e outro controle em nível interno. Como fontes do processo, Adelma Loianno (2010, 786) cita: ”a) A Convenção Americana (particularmente artigos 52 a 69); b) o Estatuo da Corte (aprovado pela Resolução n. 448, em 1979); c) O Regulamento Interno da Corte (na atualidade se encontra vigente o LXXXXII Período Ordinário de Sessões – 19 a 31 de janeiro de 2009) e d) as regras emanadas e contidas na jurisprudência da Corte”. Pela sua competência deve ser entendida a atribuição funcional que a Corte impõem aos Estados: a) a interpretação dos tratados nas opiniões consultivas e b) a aplicação da Convenção nos processos contenciosos. Em virtude dessa competência contenciosa, a Corte resolve processos de responsabilidade internacional do Estado por violação dos direitos humanos previstos nos tratados continentais. O campo material dos tratados a serem analisados inicialmente: 1)Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem; 2) Pacto de San José da Costa Rica; 3) Protocolo Adicional da Convenção Americana dos Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador); 4) Protocolo Adicional da Convenção relativo à abolição da Pena de Morte; 5) Convenção Interamericana para Prevenção da Tortura; 6) Convenção Interamericana Sobre Sequestro e 7) Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ou Convenção de Belém do Pará6. O controle de convencionalidade traz caminhos diferentes no catálogo da supremacia dos direitos humanos, como ficará demonstrado. 4. o controle de convencionalidade O controle de convencionalidade é um mecanismo de proteção transnacional exercido pela Corte, quando o direito interno é incompatível com a Convenção. Pode ser um dispositivo previsto na Constituição ou ainda como revela Eduardo Andrés Velândia Canosa (2012, p.194), quando atos administrativos, jurisprudência, práticas administrativas ou judiciais são incompatíveis com 6 Artigo 23 do Regulamento da Comissão.

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os tratados de direitos humanos no âmbito da OEA. O objetivo é assegurar a supremacia da Convenção mediante um exame de confrontação normativo do direito interno com um tratado de direitos humanos. A competência da Corte está prevista no artigo 62, com previsão expressa para aplicar o Pacto de São José. Portanto, o tribunal das Américas pode conhecer qualquer demanda por violação de direitos humanos ou fatos e atos internacionalmente ilícitos. O controle pode ser encontrado numa sentença proferida pela Corte ou mesmo por um juiz ou tribunal brasileiro, que determina a modificação, anulação ou reforma das normas ou das práticas internas, visando à proteção dos direitos humanos. “Los órganos de supervisión de la Convención Americana sobre Derechos Humanos pueden y deben, en el contexto de casos concretos de violaciones de derechos humanos, determinar la compatibilidad o no con la Convención Americana de cualquier acto u omisión por parte de cualquier poder u órgano o agente del Estado, inclusive leyes nacionales y sentencias de tribunales nacionales”, explica Manuel Ventura Robles, juíz da Corte, citado por Eduardo Andrés Velândia Canosa e Diana Johanna Beltrán Grandes( 2012, p.117). O controle concentrado de convencionalidade é consagrado na jurisprudencia7 de forma explícita nas seguintes sentenças: Lacayo vs. Nicarágua, Última Tentación de Cristo (Olmedo Bustos y otros) vs. Chile, Myrna Chang vs. Guatemala, Almonacid Arellano vs. Chile, entre otros. Trata-se da efetivção da função principal que foi outorgada pela Convenção no artígo 62, que têm um caráter complementar todas as obrigações convencionais dos Estados como respeitar e garantir os direitos humanos no ámbito dos tratados regionais. Portanto, as espécies normativas primárias previstas no artigo 59 da Constituição do Brasil podem ser confrontadas na Corte levando em conta os tratados de direitos humanos, com fundamento no artigo 2.o. da Convenção: “Se o exercício dos direitos e liberdades mencionadas no artigo 1 ainda não estiver garantida por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados-partes 7 (http://www.corteidh.or.cr/index.php/es/jurisprudencia). volume

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comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades”. Os Estados-Partes tem o dever de adotar em suas disposições de direito interno a citada convenção, criando um controle com base na Convenção. (MAZZUOLI, 2010, p.763). O controle de convencionalidade é um mecanismo de proteção processual transnacional exercido nas hipóteses nas quais o direito interno brasileiro seja incompatível com o Pacto, com o objetivo de garantir a supremacia da citada Convenção, mediante um exame de confrontação normativo. A obrigação de respeito e garantia, portanto, ultrapassa as fronteiras nacionais, bem como as legislações dos Estados-partes, que devem até mesmo revogar até as normas constitucionais, como no caso “La Última Tentación de Cristo”. Esse tipo de controle se concretiza com uma sentença que determine a modificação, revogação, anulação ou reformas de normas ou mesmo políticas executivas internas, visando proteger os direitos humanos. Portanto, em tese, o campo material no Brasil são leis ou atos normativos em qualquer nível, sendo que a Colômbia aceita a revogação das espécies normativas estaduais e municipais (VELANDIA CANOSA; BELTRÁN GRANDE p, 118). O controle de convencionalidade da Corte é dual, podendo ser concentrado ou difuso, sendo que o concentrado é feito na Corte IDH e o difuso, a cargo os juízes de qualquer jurisdição em nível interno, incluindo no caso do Brasil o Supremo Tribunal Federal. Talvez, a melhor classificação seria dividir em controle de convencionalidade interno, que poderia ser difuso ou concentrado. E um controle internacional, que seria concentrado na Corte. A jurisprudência estabeleceu que “os juízes e órgãos em todos os níveis tem a obrigação de exercer ex-ofício um controle de convencionalidade entre as normas internas e a Convenção, dentro das suas competências”(LOIANO, 2010, p. 20). O caso que marca essa posição é Almonacid Arellano, mas isso fica patente no caso Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia), que pede a revogação da Lei de Anistia. Há outros julgamentos consolidando a questão: Manuel Cepeda Vargas vs. Colombia, e ainda Cabrera García e Montiel Flores vs. México. Por controle concentrado ou via de ação deve se entender aquele processo transnacional apresentado diante da Corte, que coloque em movimento a 132

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jurisdição americana, ao qual geralmente corresponde ao Informe apresentado pela Comissão diante da Corte. As sentenças proferidas no exercício desse controle gozam de efeito vinculante, pois devem ser acolhidas por todos Estados-partes. Por outro lado, o controle difuso na Corte é denominado via incidental ou de exceção. É o que se apresenta nos processos internos, como aconteceu no Brasil com a prisão civil por dívida, a qual o Supremo Tribunal Federal entendeu a prevalência das normas da Convenção sobre o Código Civil. Em virtude deste tipo de controle, qualquer Juiz ou Tribunal do Brasil pode não aplicar uma lei que confronta a Convenção, dando aplicação direta ao tratado. Portanto, se trata de um controle concreto, que pode se apresentar em processos civis, penais, administrativos ou constitucionais (FERRER MAC-GREGOR, 2012, p. 4). No Recurso Extraordinário n. 466.343-SP julgado em 3 de dezembro de 2008, o STF revogou o artigo 652 do Código Civil, que previa a prisão civil do depositário infiel. Portanto, o STF não aplicou o direito civil nacional e em seu lugar aplicou a Convenção, depois de uma confrontação entre ambos num caso concreto, numa decisão pro-homini, que protegeu os direitos humanos. Essa decisão foi seguida pela doutrina nacional, mas o entendimento já era da responsabilidade internacional do Estado pela elaboração e aplicação de leis violadoras da Convenção, como está nos artigos 1. e 2, como ficou claro na Opinião Consultiva 14/94 no caso Lacayo vs. Nicaragua. No entanto, o caso do Chile é didático. No caso contencioso, “Ultima Tentação de Cristo vs. Chile”, Olmedo Bustos e outros procuraram a Corte devido a uma censura envolvendo o Conselho de Qualificação Cinematográfica do Chile, que vetou a exibição do filme “A Última Tentação de Cristo”, que, segundo o órgão, atentava contra os dogmas religiosos do país, que é confessional católico. Na Justiça do Chile, a censura foi confirmada ao filme. Por isso, as vítimas acionaram a Comissão e Chile nada fez. Foi para Corte Interamericana, pois os envolvidos tiveram prejuízos e Ciro Colombara López, uma das vítimas, perdeu seu emprego na Universidade Católica do Chile. O Chile acabou sendo condenado com base em violação dos artigos 13 e artigos 1.1 (Aplicação dos Direitos e Deveres) e 2. (Obrigação de adequar à legislação interna) volume

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da Convenção, em face de Juan Pablo Olmedo e outros. Como reparação dos danos, o Chile deveria retirar a e censura prévia, que viola o Estado Democrático de Direitos, e permitir a exibição do filme, o que configura um tipo de controle de convencionalidade. Ainda pagar às vítimas a indenização pelos gastos realizados com os processos internos e o processo internacional ante o sistema interamericano, não sendo caso de indenização por danos matérias ou morais. Outros casos El Amparo vs. Venezuela, Caballero Delgado vs. Colômbia, Castilllo Pàez vs. Peru, Suarez Romero vs. Equador, Castillo Petruzzi e outros vs. Colômbia, “Barrios Altos” vs. Peru, Periódico “La Nacion” vs. Costa Rica, Caesar vs. Trinidad e Tobago, Fermin Ramírez vs. Guatemala, Raxcacó Reys vs. Guatemala e Almonacid Arellano v.s Chile. 5. caso massacre de santo domingo vs. colômbia Em julgamento, de 19 de agosto de 2013 surgiu uma nova questão no caso “La Masacre de Santo Domingo vs. Colombia”, no qual ainda numa alegação das exceções preliminares defendidas pelo Estado colombiano no tocante a falta do esgotamento dos recursos internos e ainda a falta da competência em razão da matéria envolvendo controle de convencionalidade. A mudança substancial na fundamental ocorre nas alegações que mantém a competência material. As violações foram contra o direito à vida (arts. 4. 1 19 da Convenção), integridade pessoal (art. 4.1 e 5.1), propriedade privada (arts. 21.1 e 21.2), a circulação e direito de residencia(art. 22.1) e ausência do debido proceso legal(arts. 8.1 e 25) e outros dispositivos relativos a uma presumível violação do Direito Internacional Humanitário, que faz parte dos tratados da Organização das Nações Unidas. A sentença em conformidade com o artigo 67 da Convenção e o artigo 68 do Regulamento interpretou a sentença de exceções preliminares, fundo e reparações, emitida pelo tribunal em 30 de novembro de 20128. Segundo a Comissão, o caso se refere a um bombardeio ocorrido em 13 de dezembro de 1993 pela Força Aérea da Colômbia na localidade de Santo Domin8 http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_263_esp.pdf.

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go, municipio de Tame, departamento de Arauca. A tripulação da aeronave lançou em dispositivo “cluster”, composto por seis bombas de fragamentação sobre a zona urbana, que resultou na norte de 17 civis, entre eles seis criança, além de 27 civis feridos, entre eles nove crianças. Observou-se que os militares sabiam que eran civis e crianças quando fizeram o ataque. Se isso não bastase, sobreviventes e feridos foram metralhados quando buscavam fugir. Com a fuga dessas pessoas, houve pilhagens e saques nas casas. Posteriormente, houve a falta do devido proceso legal e falta de garantías na apuração dos crimes. Segundo a Colômbia, o caso não deveria ser apreciado pela Corte, pois a competência da Corte da OEA é taxativa e delimitada pela Convenção, que establece as normas e fatos que podem ser denunciados. Ainda nesse sentido, o Estado pediu que de forma subsidiária, o caso não deveria prosperar no tocante a competencia em razão da matéria, apenas de maneira parcial no sentido de que a decisão de fundo, de reparações e custas não se tinha no seu dispositivo da sentença qualquer violação de cláusulas dos tratados da OEA, mas apenas do Direito Internacional Humanitário9. O Estado manifestou que tanto no contexto geral como particular e pontual dos fatos que são objetos da discussão correspondem a uma situação típica de conflito armado, pois o Exército colombiano manteve combates com os guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias (FARC) a 500 metros da população de Santo Domingo. Por isso, o Estado alegou que as eventuais infrações e responsabilidade que poderiam surgir não seriam de competência da Corte, por estarem relacionadas com a aplicação do Direito Internacional Humanitário, dado que o “direito de guerra” não está dentro das suas atribuições e competências10.

9 Caso Las Palmeras Vs. Colombia. Excepciones Preliminares, párrs. 32 a 34. Véase asimismo, Caso de la “Masacre de Mapiripán” Vs. Colombia. Fondo, Reparaciones y Costas, Párr. 115, y Caso Bámaca Velásquez Vs. Guatemala. Fondo, párr. 209. 10 Alegó que la normatividad de derechos humanos debe ser leída a la luz de los principios de derecho humanitario, debido a las implicaciones del estado de excepcionalidad en la configuración y alcance de algunas garantías básicas, pero en hipótesis de conflicto armado el derecho internacional humanitario deviene en ley especial. “En suma, pese a que son mecanismos de protección paralelos y concurrentes, en virtud de la especialidad de la materia, el derecho internacional humanitario está integrado por principios y mecanismos que son mucho más adecuados para hipótesis de conflicto armado que los mandatos del derecho internacional de los derechos humanos. Así, la muerte o lesión de una persona puede afectar volume

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A Corte, por sua vez, afirmou que a Convenção é um tratado internacional segundo o qual os Estados-partes se obrigam a respeitar os direitos e liberdades reconhecidas no documento e garantir seu exercício para toda pessoa na sua jurisdição. O tribunal é competente para decidir qualquer ato ou omissão estatal, em tempos de paz ou de conflito armado, sendo compatível ou não com a Convenção. Ainda afirma a sentença, que toda a atividade da Corte não tem nenhum limite normativo e toda norma jurídica é suscetível de ser submetida a ese controle de convencionalidade. Embora a sentença seja recente, o entendimento não é novo, como fica claro da Opinião Consultiva 16/99 solicitada pelo México, quando a Corte delineou o alcance do seu julgamento: “O ‘corpus juris” do Direito Internacional dos Direitos Humanos está formado por um conjunto de instrumento internacionais de conteúdo e efeitos jurídicos variados (tratados, convenções, resoluções e declarações\). Sua evolução dinámica tem exercido um impacto positivo no Direito Internacional, num sentido de afirmar e desenvolver a amplitude deste último para regular as relações dos Estados e dos seres humanos sob a sua jurisdição, incluindo as violações durante os conflitos armados11. la normatividad humanitaria o considerarse como una lesión al derecho a la vida. La forma como es dirimido el ámbito de competencia frente a un hecho, está precisamente determinado por el contexto. Si la muerte ocurrió en un conflicto armado, propiamente el caso deberá ser analizado a la luz del Derecho Internacional Humanitario. En caso contrario, aplicarán las normas de derechos humanos. Sin embargo, considerar que la muerte de una persona en el marco de un conflicto interno armado, afecta cláusulas de derechos humanos, conlleva a una superposición de competencias”. (expediente de fondo, tomo 2, folio 355 a 356). 11 As decisões são: Caso Masacre Plan de Sánchez Vs. Guatemala. Fondo. Sentencia de 29 de abril de 2004. Serie C No. 105; Caso De la Masacre de las Dos Erres Vs. Guatemala. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de noviembre de 2009. Serie C No. 211; Caso Las Palmeras Vs. Colombia. Excepciones Preliminares; Caso de la Masacre de Pueblo Bello Vs. Colombia. Sentencia de 31 de enero de 2006. Serie C No. 140; Caso de las Masacres de Ituango Vs. Colombia. Sentencia de 1 de julio de 2006 Serie C No. 148; Caso de la Masacre de la Rochela Vs. Colombia. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 11 de de mayo de 2007. Serie C No. 163; Caso Contreras y otros Vs. El Salvador. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 31 de agosto de 2011 Serie C No. 232; Caso Masacres de Río Negro Vs. Guatemala. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 4 de septiembre de 2012 Serie C No. 250, Caso Masacres de El Mozote y lugares aledaños Vs. El Salvador. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 25 de octubre de 2012. Serie C. No. 252, y Caso de la “Masacre de Mapiripán” Vs. Colombia. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de septiembre de 2005. Serie C No. 134.

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Por tanto, esta Corte debe adotar um criterio adequado para considerar a questão sujeita ao exame dentro de um marco de evolução dos direitos fundamentais da pessoa humana dentro de um direito internacional contemporáneo”. A opinião apenas reforça o entendimento que na busca do princípio pro-homini, as cortes e tribunais devem buscar efetivar e ampliar direitos humanos. 6. conclusões Do exposto, infere-se que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos é de grande importância para proteção dos direitos fundamentais do homem, funcionando o controle de convencionalidade como um fiscal dos Estados - parte da OEA em relação aos direitos que eles se obrigaram proteger. Pelas análises feitas fica claro que se trata de uma instância supranacional, que visa à aceleração da proteção. O Sistema funciona como órgão de proteção complementar aos direitos humanos nos países da OEA faz exame de compatibilidade de todos os atos normativos ou não, bem como as sentenças proferidas pelo Judiciário, tomando como parâmetro a Convenção e seus Protocolos Adicionais, além da jurisprudência da Corte. A Corte, por sua vez, tem prolatado sentenças de fundo com a ampliação da sua competência, com as denuncias de violações dos direitos humanos ocorridas no desenvolvimento de conflitos armados internacionais, como o caso da Colômbia, que há anos enfrenta as Forças Armadas Revolucionárias (FARC). Nas justificativas do tribunal, fica claro que a Convenção da OEA não estabelece limitações nesse sentido e todos os tratados, incluindo as Leis de Genebra podem servir de parâmetros, para condenações. Do mesmo modo, com respeito à aplicação do Direito Internacional Humanitário, o tribunal assinalou que certos atos ou omissões que violam os direitos humanos de acordo com os tratados da Convenção de Genebra podem ser levados em conta como elementos de interpretação da própria Convenção Americana. Portanto, as normas do Direito Internacional Humanitário são parâmetros de interpretação das obrigações contraídas pelos Estados em virtude da Convenção. Isso significa a possibilidade de utilizar mecanismos próprios volume

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do Direito Internacional Humanitário para expandir o alcance e os conteúdos dos direitos e deveres dos Estados, cujo exame de compatibilidade deve ser feito pelos juízes internos e também de forma concentrada pela Corte. Abrese a possibilidade de que, a interpretação das normas consuetudinárias e seus respectivos princípios, como o da distinção, proporcionalidade e precaução, que são marcos das obrigações do Estado estipuladas na própria Convenção, visando a complementariedade dos sistemas de proteção dos direitos humanos. Portanto, ainda que sejam diversos, os sistema não são antagônicos. Todas as vezes que se tratar de ampliar uma garantia reforçada de proteção das pessoas envolvidas num conflito armado internacional, dentro do princípio da complementariedade, os sistemas devem trabalhar conjuntamente para aumentar a proteção das pessoas, em especial nos conflitos armados, onde os perigos de violações são maiores. Por isso, ainda que a competência da Corte não preveja a responsabilidade pela violação de tratados internacionais globais, que não estão estabelecida no Pacto, se os atos ou omissões dos Estados violam direitos humanos da Convenção de Genebra de 1949, também devem ser utilizados parâmetros de interpretação sistemática e principiológica, como o princípio pro-homini. A sentença do caso Las Palmeras vs. Colômbia, usou especialmente o artigo especialmente o artigo 3°, ou seja, quando se tratar de controle de convencionalidade seja difuso ou concentrado, terá que ser analizado todo o conjunto dos sistemas de proteção no ámbito da Organização dos Estados Americanos e da Organização das Nações Unidas. 7. referências ALCALÁ-ZAMORA Y CASILLO, Niceto. Estudios de te teoria general y historia Del proceso(1945-1962), Tomo 1, 2. Ed, México: UNAM, 1992. ANNONI, Danielle. Direitos humanos & acesso à justiça no direito internacional: responsabilidade internacional do Estado. Curitiba: Juruá, 2003. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992 e 2004. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. 138

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crimes contr a a humanidade no br asil: a imprescritibilidade da persecução e punição dos crimes ditadur a de 1964-1985 Emilio Peluso Neder Meyer1

Resumo O artigo procura reconstruir os principais elementos que envolvem a definição dos crimes contra a humanidade e a consequente imprescritibilidade a eles associada no contexto de uma justiça transnacional e em prol de uma efetiva justiça transicional. Ele discute as recentes transformações pelas quais tem passado o Brasil, demonstrando, em seguida, que boa parte delas já vinha se produzindo em outros países pelo menos desde a década de 1980. Tal retrato permite consolidar as noções jurídicas de crimes contra a humanidade e de sua imprescritibilidade como parte do costume e do jus cogens que forma o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Essa normativa, por outro lado, é parte constitutiva do sistema constitucional brasileiro de 1988.

Palavras-chave Crimes contra a humanidade; Imprescritibilidade; Ditadura brasileira; Direitos humanos; Constituição brasileira de 1988.

Abstract The article aims to reconstruct the main elements that surround the definition of the crimes against humanity and the consequent imprescriptibility which is associated to them in the context of a transnational justice and in favour of an effective transitional justice. It discusses the recent transformations through Brazil has gone, showing, in the sequence, that a great amount of them have happened 1 Professor Adjunto de Direito Constitucional, Teoria da Constituição e Teoria do Estado da Faculdade de Direito da UFMG (Graduação e Pós-Graduação). Mestre e Doutor em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UFMG. Membro do IDEJUST – Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição. volume

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in other countries at least since the 1980’s. This portrait allows consolidating the law concepts of crimes against humanity and its imprescriptibility as a part of the custom and the jus cogens which forms the International Human Rights Law. These rules, on the other side, are a constitutive part of the Brazilian constitutional system of 1988.

Key words Crimes against humanity; Imprescriptibility; Brazilian dictatorship; Human rights; Brazilian Constitution of 1988. 1. introdução A responsabilidade criminal por atos praticados durante a ditadura brasileira de 1964-1985 vem atravessando um momento extremamente frutífero em termos de mudanças. Desde a condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CteIDH), em novembro de 2010, pelas omissões que se sucederam à Guerrilha do Araguaia (MEYER, 2012, p. 283 e ss e CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010), o Ministério Público Federal (MPF) tem procurado levar adiante uma ação conjunta que possa dar efetivo cumprimento ao que fora decidido. Isto se deve, em parte, a uma linha de trabalho desenvolvida pela 2a Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal. O documento formulado a partir de uma reunião em 28 de fevereiro de 2011 relembra que o Brasil já fora condenado pela CteIDH em três outras ocasiões, mas que esta era a primeira vez em que obrigações de fazer eram delimitadas para os órgãos de Estado (BRASIL, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2011, p. 8). O MPF reconheceu que a CteIDH obrigou a instituição a promover a persecução penal dos desaparecimentos forçados não aplicando a Lei de Anistia de 1979 (Lei nº 6.683/1979) e não aplicando institutos como prescrição, irretroatividade da lei penal, ne bis in idem ou qualquer outra excludente de responsabilidade criminal. Assim, não haveria colisão entre a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153/DF (ADPF 153) e a decisão da CteIDH. O art. 7º do ADCT prevê a submissão do Brasil a tribunal internacional de direitos humanos, o que obriga não só o 144

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Estado internacionalmente, mas suas instituições nacionais. Uma derrogação do tratado que institui a competência da CteIDH poderia afastar a obrigação, mas isso implicaria em uma derrogação da própria Convenção Americana de Direitos Humanos, o que seria inadmissível em vista do art. 60, § 4º, inc. IV, da Constituição. Contudo, ao tentar evitar uma contestação direta da decisão do STF na ADPF 153 naquele momento, preferindo a tese de um “controle de convencionalidade” nesse campo, o MPF não assumiu uma posição forte em termos de posicionamento institucional. Isto, porém, não evitou que alguns membros da instituição caminhassem para uma defesa mais ostensiva do Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao proclamar a tese de que os crimes da ditadura brasileira são crimes contra a humanidade2. Em prol desse sistema, a tese mais “radical” e mais consentânea com a Constituição de 1988 viria a aparecer em 2014. O primeiro processo a levantála guarda a peculiaridade de se relacionar a fatos não abrangidos pela Lei nº 6.683/1979: aqueles que diziam respeito ao atentado à bomba no complexo Riocentro, em 30 de abril de 1981. O MPF ofereceu denúncia contra Wilson Luiz Chaves Machado, Cláudio Antonio Guerra, Nilton de Albuquerque Cerqueira, Newton de Araújo Oliveira e Cruz, Edson Sá Rocha e Divany Carvalho Barros por tentativa de homicídio doloso, transporte de explosivos, associação criminosa, favorecimento pessoal e fraude processual. Em meio aos diversos atentados que vinham ocorrendo desde a década de 1970, atribuindo-se aos grupos de resistência armada de esquerda tais práticas, o atentado do Riocentro estaria inserido em um “[...] contexto de um ataque estatal sistemático e generalizado dos agentes do Estado contra a população brasileira durante o regime de exceção” (BRASIL, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2014, p. 10). A peça acusatória detalha os diversos núcleos da organização criminosa que demonstram a existência de um ataque sistemático por parte daqueles integrantes da chamada “comunidade de informações” posicionada com a “linha dura” do regime. O núcleo de planejamento era responsável pelo recrutamento 2 A defesa dessa tese e do seu correlato, a imprescritibilidade de tais crimes, está em MEYER in ANJOS FILHO (2013, p. 173-192). volume

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e treinamento de agentes operacionais, utilizando-se, para tanto, de órgãos estatais como o Serviço Nacional de Informações (SNI) e o Destacamento de Operações de Informações (DOI) do I Exército. O núcleo operacional teria a responsabilidade de pôr em prática o próprio atentado à bomba, utilizandose de, pelo menos, quatro equipes operacionais. Mencione-se, ainda, o apoio externo aos executores alcançado por meio da suspensão das atividades da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, no dia do evento, nas cercanias do Riocentro. Em manifestação anexa à denúncia, o MPF destacou as duas outras investigações que já ocorreram sobre os fatos em jogo. Um primeira, em 1981, no âmbito da Justiça Militar, foi cercada de inúmeras pressões que conduziram ao arquivamento das investigações; em 1999, diante de fatos novos e da revelação do “grupo secreto” responsável pelo atentado, 2a Câmara de Coordenação e Revisão do MPF entendeu por bem remeter os autos ao Procurador-Geral Militar, por entender serem tais fatos passíveis de enquadramento na antiga Lei de Segurança Nacional (Lei nº 6.620/1978). Processado na Justiça Militar, esse novo inquérito também foi arquivado. Explanando o conceito de prova nova, o MPF demonstrou tanto haverem provas à época do inquérito de 1999 que foram ignoradas (elementos noviter reperta) quanto novas provas que viriam a surgir posteriormente ao arquivamento (elementos noviter cognita), como a agenda do Coronel Julio Miguel Molinas Dias, ex-integrante do DOI do Rio de Janeiro assassinado em Porto Alegre em 2012 e outras provas testemunhais. Isto tudo impediria a exigência de um conceito forte de coisa julgada para o caso. Além disso, e de peso central nesse trabalho, colhem-se os argumentos de que as condutas, já àquela época, poderiam ser consideradas crimes contra a humanidade e, portanto, imprescritíveis: A pretensão punitiva estatal no presente caso não pode ser considerada extinta pela prescrição porque as condutas objeto da imputação já eram, à época do início da execução, qualificadas como crimes contra a humanidade, razão pela qual devem incidir sobre elas as consequências jurídicas decorrentes da subsunção às normas cogentes de direito internacional, notadamente a imprescritibilidade de delitos dessa natureza (BRASIL, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2014b, p. 28). 146

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Seguindo aquilo que Kathryn Sikkink nominou de “justiça em cascata” (SIKKINK, 2011, p. 4), a Justiça Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro houve por bem receber a denúncia. Parece, pois, haver uma progressiva expansão da responsabilização criminal em termos transicionais ao redor do mundo; o Brasil começa a ser incorporado nesse fluxo. A Juíza Federal Ana Paula Vieira de Carvalho aderiu à tese de que tais crimes se configuram como crimes contra a humanidade e são, portanto, imprescritíveis. Essa imprescritibilidade é um princípio geral de Direito Internacional, tendo sido acolhido como costume pela prática dos Estados e por resoluções da Organização das Nações Unidas. Ela faz referência ao pensamento de Malcolm Shaw (2010, p. 56) e às Resoluções nº 95, de 1946, e nº 3.074, de 1973, da Assembleia Geral da ONU. Além disso, reforça a integração ao jus cogens desse preceito: Acrescento, ainda, que o Brasil, já em 1914 ratificou a Convenção Concernente às Leis e Usos da Guerra Terrestre, firmada em Haia em 1907, na qual reconhece “ o caráter normativo dos princípios jus gentium preconizados pelos usos estabelecidos entre as nações civilizadas, pelas leis da humanidade e pelas exigências da consciência pública”. Desde o início do sec. XX, pois, reconhece a força normativa destes princípios (BRASIL, JUSTIÇA FEDERAL, 2014a, p. 10).

Seguindo, de certo modo, essa corrente, a Justiça Federal da Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro também viria a receber a denúncia ofertada contra José Antonio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Raymundo Ronaldo Campos, Jurandy Ochsendorf e Souza e Jacy Ochsendorf e Souza pela suposta prática dos crimes de homicídio doloso qualificado, ocultação de cadáver, fraude processual e quadrilha armada relacionados com o desaparecimento de Rubens Beyrodt Paiva em 19713. Coube ao Juiz Federal Caio Márcio Gutterres Taranto acrescentar outro argumento para evitar a incidência da Lei 6.683/1979 aos crimes praticados por agentes públicos durante a ditadura: a anistia ocorrida atingiria apenas ato “punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares” (BRASIL, JUSTIÇA FEDERAL, 2014d, p. 6).

3 Para a denúncia oferecida pelo MPF, cf. BRASIL, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2014c. volume

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Semelhante conclusão poderia ser obtida a partir do art. 4o da Emenda Constitucional nº 26/1985 (o STF teria mantido esse entendimento no Recurso Extraordinário nº 120.111) e do art. 8o do ADCT.4 O problema dessa lógica, contudo, é que ela tende a reconhecer validade aos atos de exceção da ditadura ao partir do princípio de que atos institucionais e complementares poderiam em tese ensejar punições – já que, por outro lado, a anistia não teria sido possível para atos praticados com base na legislação ordinária, como os vários crimes perpetrados em nome da ditadura. Ou seja, é preciso, nesse caso, contar com algum grau de validade para a “legislação autoritária”. Para além disto, a decisão de recebimento contempla uma série de argumentos fundamentais para se dar um passo adiante no processo transicional brasileiro. Segundo ela, os crimes contra a humanidade da ditadura brasileira foram praticados no contexto de uma perseguição política. A ordem constitucional vigente à época já permitia o entendimento da incidência de princípios de Direito Internacional; para além disto, com o Decreto nº 10.719/1914, o Brasil ratificou a Convenção Concernente às Leis e Usos da Guerra Terrestre, firmada em Haia, em 1907. Some-se a isto a incidência do art. 6o do Estatuto do Tribunal de Nuremberg. A decisão ainda sustenta que a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura foi incorporada ao nosso ordenamento jurídico em 13 de novembro de 1989, por meio do Decreto nº 98.386, em data, pois, em que não teria ocorrido a prescrição da pretensão punitiva dos crimes relativos ao

4 Fundamental interpretação do referido dispositivo foi dada por Paixão (2014, p. 1), ao rediscuti-lo à luz da mudança de posicionamento da maioria da população brasileira entrevista em pesquisa da Folha de S. Paulo que questionava sobre a possibilidade de mudança da Lei de Anistia de 1979 – 46% dos entrevistados, maioria pela primeira vez na história recente do país, optou pela anulação da mesma (MENDONÇA, 2014, p. 1). Segundo Paixão (2014, p. 1), sobre o dispositivo do ADCT da Constituição de 1988, “Uma chave de leitura plausível será: devemos ler – e, por consequência, aplicar – esse dispositivo numa perspectiva geracional. Ou melhor: intergeracional. Ao prever esse período expandido de reparação, o Constituinte fez uma opção pelo diálogo entre gerações. Permitiu que fossem anistiados militantes comunistas perseguidos pelos órgãos de repressão do governo Dutra, ao mesmo tempo em que líderes sindicais envolvidos em greves da segunda metade da década de 1980 também possuem direito à reparação. São camadas geracionais diferentes, formadas por grupos e pessoas com trajetórias díspares, afastadas no tempo, que só podem se encontrar por meio de práticas comunicativas intergeracionais”.

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desaparecimento de Rubens Paiva; a partir de então, tal punibilidade tornou-se, por mais esse ângulo, imprescritível5. Esses dois exemplares processos criminais, com suas respectivas denúncias e decisões de recebimento, sugerem uma mudança fundamental no processo de justiça de transição no Brasil. O presente artigo, além de trazer à luz os argumentos apresentados pelo MPF e pelos órgãos da Justiça Federal brasileira, busca demonstrar que não se está diante de nenhuma grande novidade em termos de efetivação de uma ordem constitucional pautada por um sistema internacional de direitos humanos. Nas linhas abaixo, principalmente com base nos estudos de Naomi Roht-Arriaza (2005), demonstraremos como a força de julgamentos de primeira instância pode inspirar a atuação jurisdicional de cortes superiores, órgãos em outros países e de cortes internacionais. 2. construindo um sistema de justiça tr ansnacional: o caso pinochet e suas consequências Roht-Arriaza (2000, p. 2 e ss) denomina “efeito Pinochet” a série de julgamentos decorrentes dos processos de responsabilização que recaíram sobre o ex-ditador chileno no final da década de 1990 e início da década de 2000. O mais importante fruto das tentativas de responsabilização foi a construção de um conceito de justiça cosmopolita ou universal com efetivos resultados práticos6. Entre os principais atores na Espanha que deram propulsão aos processos estavam os promotores públicos Carlos Castresana e Joan Garcés e os juízes espanhóis Baltazar Garzón e García-Castrellano. Da atuação destes resultou uma série de processos relativos a crimes das ditaduras da Argentina e do Chile; no caso 5 Consolidando toda essa ordem argumentativa, o próprio Ministério Público Federal veio a publicar estudo em que relata todas as ações propostas pelo órgão acusatório, bem como apresenta toda a cadeia de fundamentos para considerar os crimes da ditadura crimes contra a humanidade e, portanto, imprescritíveis (cf. BRASIL, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2014c, p. 48 e ss, principalmente). 6 A discussão sobre a importância de uma justiça universal ou cosmopolita voltou à tona recentemente no 1o Congresso sobre Justiça Universal, realizado em Madri, na Espanha, em maio de 2014. Dele participaram o Presidente da Comissão de Anistia e Secretário Nacional de Justiça do Ministério da Justiça brasileiro Paulo Abrão, Baltazar Garzón e Benjamin Ferencz, Fiscal dos Julgamentos dos Crimes de Guerra de Nuremberg (PORTAL BRASIL, 2014, p. 1). volume

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chileno, a ponta do iceberg começava com investigações de García-Castrellano sobre a morte de Orlando Letellier nos EUA e se abria para uma análise mais abrangente por Garzón da Operação Condor. Ao cabo, concluiu-se por uma efetiva participação de Pinochet nas “Caravanas da Morte” chilenas. Um pedido de extradição dirigido ao Chile seria algo inviável desde o início. Uma viagem de Pinochet ao Reino Unido, contudo, pareceu tornar o processo extradicional mais plausível. Em 16 de outubro de 1998, Pinochet é preso ao ser encontrado em uma clínica inglesa e colocado à disposição do processo extradicional que se iniciara por provocação de Garzón. Apesar do pedido ter sido deferido pela Câmara dos Lordes inglesa, que anteriormente reconheceu a ausência de imunidade para o antigo chefe de Estado, em 2000, Jack Straw, Lord High Chancellor, decidiu que não seria cabível a efetivação da decisão ante o estado de saúde de Pinochet. Com a volta de Pinochet ao Chile, vislumbrou-se a possibilidade de sua responsabilização. A “Caravana da Morte” operara logo após o golpe de 1973, com o helicóptero Puma das Forças Armadas percorrendo diversas cidades do Chile por quarenta dias e deixando um saldo de 75 prisioneiros mortos. O General Sergio Arellano Starck estaria presente em todas as ocasiões como representante direto do Comandante em Chefe das Forças Armadas, Augusto Pinochet. Em meio a outros processos, em 28 de janeiro de 1998, Patricia Silva ajuizou uma ação contra Pinochet7 e qualquer outro responsável pela morte de seu marido Mario Silva Iriarte. Por conta da prerrogativa de foro de Pinochet, ele seria julgado pela Corte de Apelações de Santiago, tendo seu processo sido distribuído ao Juiz Juan Guzmán Tapia. Logo após o retorno do ex-ditador ao Chile, em 7 de março de 2000, uma decisão de Guzmán reconheceu a ausência de imunidade parlamentar, permitindo-se o processamento. Tanto a Corte de Apelação como a Suprema Corte do Chile confirmaram a decisão. Em dezembro de 2000, Guzmán recebe a acusação contra Pinochet pelo envolvimento em 18 desaparecimentos da “Caravana da Morte”, estabelecendo sua prisão domiciliar. Posteriormente, a Corte de Apelações de Santiago 7 No sistema chileno, ações criminais eram distribuídas a um juiz que atuava em um sistema de perfil inquisitorial, colhendo provas, ouvindo testemunhas e realizando audiências. Esse sistema foi alterado no início da década de 1990 para um sistema de cariz “adversarial”.

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reconheceria que Pinochet sofria de uma “demência subcortical”, decisão esta confirmada pela Suprema Corte em julho de 2002, encerrando-se o caso. 3. ampliando o r aio de alcance da justiça tr ansnacional par a além do chile: o caso argentino Em sua análise dos efeitos produzidos por julgamentos que remontam ao caso Pinochet, Roht-Arriaza (2004, p. 97) demonstra que, na Argentina, o interesse pelos casos de violação de direitos humanos renasceu no ano de 1995 com as revelações de Adolfo Scilingo8 sobre os voos da morte, a admissão por outros oficiais do uso da tortura e o pedido público de desculpas do General Balza. Diante de um Poder Judiciário que se mostrou de certo modo conivente com o regime autoritário de 1976-1983, o Presidente responsável pela transição, Raul Alfonsín, buscou refazer a imagem institucional por meio do julgamento das juntas9 – algo que enfrentaria um retrocesso com as leis de obediência devida e ponto final. Tal leis foram declaradas constitucionais pela Suprema Corte argentina, em 1987, no caso que envolvia um antigo chefe de polícia de Buenos Aires, Ramón Camps. Essa decisão fundou-se em três argumentos: a) não caberia ao Judiciário rever uma decisão política congressual; b) o legislador era livre tanto para sancionar penalmente certas condutas, como para livrá-las da punição; c) não caberia também ao Judiciário usurpar uma decisão política legislativa em dado momento histórico. Vale registrar que o Juiz Antonio Bacqué dissentiu da maioria sustentando o papel do Judiciário desenhado em Marbury v. Madison [5 U.S. (1 Cranch) 137 (1803)]: caberia a ele dizer sobre o significado do direito em uma democracia constitucional. A presunção absoluta de que certos fatos eram verídicos definidas pelas leis em questão violaria o disposto no art. 29 da Constituição argentina10. 8 Em 1997, Scilingo se apresentou voluntariamente ao Juiz espanhol Baltazar Garzón. Em 2007, Scilingo teve sua pena aumentada pela Corte Suprema espanhola, tendo de cumprir um total de 1.084 anos (limitado a 25 anos). 9 Para um retrato dos julgamentos das juntas e uma exploração de sua capacidade de produzir uma “solidariedade discursiva” a partir dos debates no curso do processo criminal, cf. OSIEL (2001). 10 “Articulo 29o.- El Congreso no puede conceder al Ejecutivo nacional, ni las Legislaturas provinciales a los gobernadores de provincia, facultades extraordinarias, ni la suma del poder volume

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Além disto, a anistia estabelecida era inválida, pois tanto alcançava ações cíveis quanto se estendia para atos não passíveis de anistia, como a tortura. Eleito Presidente em 1989, Carlos Menem teria um papel crucial neste campo. Ele foi o responsável por decretos de indulto aos membros da junta já condenados, bem como a mais de cinquenta oficiais; chegou a declarar que a discussão acerca de violações de direitos humanos durante a ditadura estava encerrada; expandiu para nove o número de membros da Suprema Corte, nomeando juízes ligados aos interesses políticos por ele defendidos. Contudo, em 1998, sua influência sobre o Judiciário estava se desfazendo. Os problemas políticos e econômicos de seu governo fizeram com que mesmo os membros do Judiciário que lhe eram próximos assumissem uma posição mais distante, usando da retórica dos direitos humanos. A Reforma Constitucional de 1994 permitiu o advento de uma cláusula de abertura para o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Ela tornou clara a supremacia dos tratados de direitos humanos assinados pela Argentina sobre o direito doméstico em seu art. 7511. O novo dispositivo, inclusive, motivou publico, ni otorgarles sumisiones o supremacias por las que la vida, el honor o las fortunas de los argentinos queden a merced de gobiernos o persona alguna. Actos de esta naturaliza llevan consigo una nulidad insanable, y sujetaran a los que los formulen, consientan o firmen, a la responsabilidad y pena de los infames traidores a la pátria”. 11 “Articulo 75o.- Corresponde al Congreso: […]

22. Aprobar o desechar tratados concluidos con las demas naciones y con las organizaciones internacionales y los concordatos con la Santa Sede. Los tratados y concordatos tienen jerarquia superior a las leyes.



La Declaracion Americana de los Derechos y Deberes del Hombre; la Declaracion Universal de Derechos Humanos; la Convencion Americana sobre Derechos Humanos; el Pacto Internacional de Derechos Economicos, Sociales y Culturales; el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Politicos y su Protocolo Facultativo; la Convencion sobre la Prevencion y la Sancion del Delito de Genocidio; la Convencion Internacional sobre la Eliminacion de todas las Formas de Discriminacion Racial; la Convencion sobre la Eliminacion de todas las Formas de Discriminacion contra la Mujer; la Convencion contra la Tortura y otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes; la Convencion sobre los Derechos del Ninho; en las condiciones de su vigencia, tienen jerarquia constitucional, no derogan articulo alguno de la primera parte de esta Constitucion y deben entenderse complementarios de los derechos y garantias por ella reconocidos. Solo podran ser denunciados, en su caso, por el Poder Ejecutivo nacional, previa aprobacion de las dos terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Camara.

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juízes argentinos a se interessarem mais pelo Direito Internacional. Outro fator que contribuiu para essa mudança paradigmática foi a forma como a Argentina havia se tornado um local seguro para criminosos de guerra nazistas. Dentre os 40.000 vistos concedidos a fugitivos nazistas (que incluíram criminosos “ilustres” como Adolf Eichmann, Ante Pavelic e Joseph Mengele), Joseph Schwammberger, responsável por liderar um campo de concentração na Polônia, teve um pedido extradição relativo ao mesmo deferido pela Suprema Corte argentina. Tal precedente foi importante para outro caso: o de Erich Priebke, envolvido com o massacre de mais de 300 civis em Roma – incluindo 75 judeus. Priebke, que vivia escondido em Bariloche, aceitou ser entrevistado por um canal televisivo norte-americano admitindo seus crimes. Diante de um pedido da Itália, a Suprema Corte argentina reconheceu a possibilidade, afirmando que os crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade imputados a ele não estavam sujeitos à anistia ou a qualquer medida excludente da responsabilidade, diante do Direito Internacional costumeiro. A decisão foi importante mesmo levando-se em conta o sistema de cognição limitada do processo extradicional, tornando-se um encorajador precedente para o direito interno. 4. em busca da verdade por meio da atividade jurisdicional argentina Mesmo diante da posição inicialmente refratária da Suprema Corte argentina, vários atores institucionais e sociais continuaram buscando espaços de ação no direito estabelecido. Logo após as declarações de Scilingo, o Centro para Estudos Jurídicos e Sociais, liderado por Emilio Mignone e Alejandra Lapacó – ambos tendo perdido filhas durante a repressão – teve um importante papel. Mignone já havia ajuizado uma ação civil para obter informações sobre o paradeiro de sua filha, o que fora finalmente negado pela Corte Federal de Apelações. Isto não desanimou Lapacó, que sustentava que as normas anistiadoras não tinham a capacidade de limitar ações cíveis. A Corte de Apelações de Buenos Aires concordou com o pedido de Lapacó, afirmando que os direitos à verdade e de

Los demas tratados y convenciones sobre derechos humanos, luego de ser aprobados por el Congreso, requeriran del voto de las dos terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Camara para gozar de la jerarquia constitucional”.

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prantear seus mortos haviam sido violados pelo Estado. O direito à verdade era, inclusive, parte da normativa internacional fixada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em casos como Velásquez Rodriguez12. Diante da posição do Estado, nesse momento, de alegar a ausência de qualquer informação, o caso acabou chegando à Suprema Corte, que denegou o pedido de Lapacó. Contudo, alguns meses depois, a Suprema Corte viria a reconhecer um direito a habeas data, no caso de Facundo Urteaga em relação às informações sobre seu irmão, supostamente morto “em confronto”. O direito à informação implicava os direitos à identidade e à reconstrução do passado de alguém, ligados diretamente à dignidade humana. Assim, Lapacó optou por levar seu caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. No caso Alicia Consuela Herrera, a Comissão já havia sustentado que as leis de obediência devida e ponto final violavam os direitos a uma solução judicial e de ser ouvido perante um tribunal competente e segundo garantias, bem como a obrigação do Estado de assegurar direitos. Esse reconhecimento também aconteceu em relação ao Uruguai, ao Chile e a El Salvador; além disso, em 2001, no caso Barrios Altos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos confirmou a posição da Comissão. Em novembro de 1999, o Estado argentino optou por uma solução conciliatória com os demandantes no caso Lapacó: caso desistissem do processo, o Estado garantiria o pleno acesso 12 Angel Manfredo Velásquez Rodríguez, estudante universitário hondurenho, foi violentamente preso, sem mandado judicial, por membros da Direção Nacional de Investigação e da G-2, um grupo de inteligência das Forças Armadas de Honduras. A prisão ocorrera em Tegucigalpa em 12 de setembro de 1981 e, segundo testemunhas, foi ele levado à II Estação das Forças de Segurança Pública, onde foi interrogado sob forte tortura a respeito do eventual cometimento de crimes políticos. Dias depois, foi conduzido ao Batalhão de Infantaria onde prosseguiram os atos de suplício. Dois anos depois, quando o caso já tramitava na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o Estado de Honduras alegou desconhecer seu paradeiro. Após o compromisso de promoção de investigações internas – que não resultaram em nada – a Comissão levou o caso à CteIDH em 1986.

A CteIDH entendeu que restou provada no curso do processo uma prática reiterada de desaparecimentos forçados em Honduras, nos anos que vão de 1981 a 1984. Manfredo Velásquez está entre as vítimas de tais crimes e houve clara omissão do Estado em garantir os direitos humanos atingidos por esta prática. Assim, o fato é que este não é um caso de tratamento específico pela CteIDH da problemática da “auto-anistia”, mas é um caso em que expressamente é exigido dos Estados signatários da Convenção Americana de Direitos Humanos que eles diligenciem no sentido de combater o desaparecimento forçado, assim como outras violações a direitos humanos (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1998, p. 2).

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à verdade em relação aos desaparecimentos, excluindo-se apenas as situações de sequestro de menores e roubo de identidade. O juiz da Corte Federal de Apelações de La Plata, Leopoldo Schffrin, vinha, de longa data, assumindo uma posição simpática a um reenquadramento das violações de direitos humanos da ditadura. A Associação de Direitos Humanos de La Plata almejava que a Corte realizasse audiências a respeito do que aconteceu com os desaparecidos e quem eram os responsáveis; ela concordou com o pedido e começou com os Juicios de la Verdad. Roht-Arriaza (2005, p. 104) narra que não havia nos julgamentos um réu, apenas um promotor público e um acusador escolhido pelo grupo de direitos humanos. Como testemunhas, elas poderiam ser obrigadas a comparecer, mas não tinham o direito de não se auto-incriminar. É preciso lembrar que a CONADEP não realizou audiências públicas; além disso, ela se limitou a 746 casos – os Juicios de la Verdad realizaram 400 audiências e ouviram 2.000 casos de mortes e desaparecimentos. Marta Vedio, da Associação de Direitos Humanos de La Plata, via dois propósitos nos julgamentos: trazer à tona a verdade e acumular provas para processos criminais no futuro. Algo em torno de cinquenta grupos e instituições apoiaram as audiências. Logo, os julgamentos da verdade começaram em outras cidades, como San Martín, Córdoba e Rosário. Cuidava-se de “borrar” a linha divisória entre comissões da verdade e julgamentos, colocando-se também em questão se processos sem réus podem propiciar justiça. Rapidamente, a questão a respeito do que fazer diante de tantas evidências se tornou premente. No caso envolvendo o perpetrador Miguel Etchecolatz, acusado de homicídios e torturas, Schffrin agudizou aquela questão ao tentar sensibilizar seus colegas para uma eventual atenuação de pena diante das confissões. Schffrin destacou a diferença entre seu papel e o do historiador: ele precisa decidir sobre fatos, ele é um ator no drama social e deve decidir o futuro, não apenas reconstruir o passado. A maioria na Corte dissentiu de Schffrin, decidindo que não cabia a ela entrar na seara penal, o que fez com que Etchecolatz remanescesse em silêncio – após ser condenado pelo sequestro de bebês, em 2006, ele foi condenado por genocídio, cumprindo hoje prisão perpétua. É possível apontar alguns outros riscos derivados dos julgamentos. Nilda Eloy, uma antiga presa política, reconheceu a voz de seu algoz Miguel Angel Ferreyro, volume

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em uma das sessões; agentes públicos que mentiram sob juramento foram acusados de perjúrio e os que se recusaram a se manifestar de desacato. A Corte Suprema argentina, contudo, com base do direito contra a auto-incriminação, confirmou que os suspeitos não poderiam testemunhar sob juramento ou ficar presos indefinidamente por desacato. Por outro lado, a pressão para medidas posteriores aos julgamentos da verdade cresceu enormemente no período de 1998-2002. Além disso, o direito à verdade começou a ganhar novos contornos, com a tentativa da Marinha de demolir a ESMA – Escola Superior de Mecânica Armada – talvez o mais famoso centro de tortura da Argentina, frustrada por uma decisão judicial que reconheceu no edifício um abrigo de provas de crimes e uma expressão da memória da nação. 5. os sequestros de crianças impulsionando o advento do direito internacional Um rumoroso caso sobre sequestro de crianças teria um papel importante ser considerado. A médica Silva Quintela, grávida, fora sequestrada por forças de segurança em 1977, tendo desaparecido após dar à luz à sua filha no centro de detenção Campo de Maio. Seu parceiro, Abel Madariaga, que havia sobrevivido à perseguição, suspeitava de um médico militar, Norberto Bianco, como responsável pelo sequestro e alteração de identidade. Após fugir para o Paraguai e retornar em um processo extradicional, Bianco e sua mulher foram formalmente acusados. A advogada de Madariaga, Alcira Ríos, destacou desde sempre o caráter abominável de tais crimes, excluídos expressamente das leis de anistia argentinas. Depois de desenvolver um contato com as Avós de Praça de Maio, ela se determinou na estratégia de obter provas de oficiais de mais baixa hierarquia e famílias de militares com o objetivo de ascender a pontos mais altos da cadeia de comando para determinar quem colocou as práticas em vigor. Na década de 1990, a Argentina viria a se tornar um banco de dados de referência mundial que permitia o cruzamento de DNA’s por três gerações. Foi criada, inclusive, uma Comissão Nacional para o Direito à Identidade: esta se viu diante de situações de apresentação voluntária de jovens, assim como recusas veementes em esclarecer os casos, bem como em desfazer os laços com os pais sequestradores. O juiz Roberto Marquevich, responsável pelo caso Quintela até 1997, tinha como objetivo encontrar as crianças e punir os responsáveis pelos sequestros. 156

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Investigando o oficial Julio César Caserotto, ele promoveu um acordo de delação premiada; o acusado, então, nomeou o General Rafael Videla como responsável pelas ordens de sequestro. Sobreviventes relataram a existência de uma maternidade no centro de Campo de Maio – conhecida como “unidade de epidemiologia”. Uma outra acusação contra Videla foi formulada por Garzón na Argentina. Em julho de 1988, Marquevitch ordenou a prisão do general. No processo, Marquevitch concluiu pela responsabilidade de Videla por um plano generalizado de sequestro. Ele confirmou que tais crimes não estavam abrangidos pela anistia, além de serem crimes permanentes e crimes contra a humanidade, à luz dos precedentes Schwammberger e Priebke. Rapidamente, as investigações sobre outros casos ganharam espaço. Em Buenos Aires, o advogado Alberto Pedroncini sustentou perante o Juiz Bagnasco a natureza sistemática do roubo de crianças. Para tanto, acusou outros membros das juntas, como Reynaldo Bignone, Cristino Nicolaides e Rubén Franco. Estes arguiram que mesmo que casos individuais não tivessem sido considerados nos julgamentos das juntas, novos procedimentos, nesse momento, levariam a uma situação de bis in idem, já que o Judiciário refutou a existência de um plano sistemático. A Corte Suprema argentina colocou de lado essa alegação e declarou válidas as investigações, que discutiam justamente casos concretos de sequestro de crianças13. Além dos casos de sequestro de crianças, um outro motivo para rediscutir a persecução penal na Argentina foi o uso de ilimitados poderes por perpetradores para sequestrar e extorquir com objetivos de ganho pessoal. Foi o que aconteceu com o bem-sucedido empresário de Mendoza Conrado Gómez. Sequestrado em seu escritório por um grupo de 15 a 20 homens em 1977, seu cofre foi arrombado, tendo sido levados quase US$ 1 milhão, assim como títulos de propriedade que rapidamente foram transferidos para militares, usando-se nomes falsos ou o de uma pessoa jurídica controlada pelo Almirante Massera. Uma investigação de 1999 concluiu não ter havido a apuração de todos os envolvidos no caso durante o julgamento das juntas, incluindo-se o famigerado Alfredo Astiz. O Judiciário argentino reconheceu que era necessário interpretar restritivamente as leis de anistia e que o sequestro visando o enriquecimento ilícito pessoal não poderia ser 13 Cf. IUD (2014). volume

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tolerado sob os auspícios de uma suposta reconciliação em jogo. Mais que isso, não haveria que se discutir nenhuma cláusula de exclusão da responsabilidade, uma vez que os crimes aqui teriam o claro contorno de crimes permanentes. Com isso, Massera e quatro outros agentes da ESMA foram formalmente acusados. Um último fator a ser considerado diz com o fato de que não haveria mais como sustentar o absurdo de permitir investigações sobre as crianças desaparecidas e os bens das vítimas, mas, ao mesmo tempo, silenciar sobre os próprios crimes de desaparecimento forçado. Com isto, começaram a brotar decisões reconhecendo a invalidade das leis do ponto final e de obediência devida perante o Direito interno argentino e o Direito Internacional. Um novo caminho começou a despontar com a decisão do juiz Gabriel Cavallo no caso Caso Simon (ARGENTINA, CORTE SUPREMA DE JUSTICIA DE LA NACIÓN, 2005)14. Júlio Simon, ou “Turco Julián” era acusado, juntamente com Juan Antonio Del Cerro e Carlos Alberto Rolón, de ter sequestrado José Liborio Poblete Roa, Gertrudis Marta Hlaczik e Claudia Vitoria Poblete, em 28 de novembro de 1978. Claudia Vitoria Poblete, então com oito meses de idade, seria entregue à família do General Ceferino Landa, passando a adotar o nome de Mercedes Beatriz Landa. Para proceder ao interrogatório de Simon e Del Cerro, o juiz de primeiro grau declarou a invalidade das leis de “ponto final” e “obediência devida” perante a Convenção Americana de Direitos Humanos, a Declaração Americana de Direitos Humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes; e mais, com fundamento no art. 29 da Constituição Argentina, reconheceu a inconstitucionalidade e a nulidade daquelas normas. Isto já demonstra a possibilidade de que o controle de constitucionalidade pudesse funcionar em um modelo de força centrípeta, em que as instâncias inferiores “inspirariam” as instâncias superiores. A CSJN (Corte Suprema de Justicia Nacional) entendeu que a lei de “obediência devida” visava convalidar uma decisão do Poder Executivo de declarar a impu14 ARGENTINA. Corte Suprema de Justicia de la Nación. S. 1767. XXXVIII. Símon, Julio Hector y otros s/ privación ilegítima de la libertad, etc. Causa n° 17.768. Fallos: 328:2056. Buenos Aires, 14 de junho de 2005. Disponível em . Acesso em 12 jul. 2012.

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nidade de pessoas do meio militar, mas que ela estava inquinada de “sérias falências”. Pois não se poderia considerar que normas de hierarquia pudessem desculpar ações de conteúdo ilícito manifesto, atos atrozes ou aberrantes totalmente contrários à Constituição. O órgão jurisdicional reconheceu, contudo, que circunstâncias políticas impeliram a nação argentina a sucumbir perante este suposto conflito de interesses em nome da “paz social”. Ocorre que, desde a adoção da lei até o presente, o sistema jurídico argentino foi impactado por mudanças importantíssimas que exigiam uma revisão daquele resultado. O Direito Internacional dos Direitos Humanos, especialmente impulsionado pelo dispositivo do art. 25, inc. 22, da Constituição Argentina, não permitiria semelhante ponderação. Ainda que o Poder Legislativo ainda detivesse a prerrogativa de estabelecer anistias, não poderia fazê-lo nos moldes anteriores. Se outrora se aceitava tais normas em prol de um equilíbrio social entre civis e militares, hoje não mais se poderia entender que elas teriam o poder de determinar um esquecimento de graves violações de direitos humanos. A base dessa mudança de entendimento estaria também na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A normativa internacional protetiva dos direitos humanos fez parte também, assinalou a CSJN, dos debates parlamentares que levaram à aprovação da Lei n° 25.779/2003, que anulou as leis de “obediência devida” e “ponto final”. Em tais debates, discutiu-se inclusive que o advento da lei anuladora ou revogadora seria impotente ante o princípio da “lei penal mais benigna”. Isto não teria passado desapercebido pelos representantes do povo que, ainda assim, viram nas normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos uma vinculação mais exigente: Asimismo, la discusión legislativa permite inferir que el sentido principal que se pretendió dar a la declaración de nulidad de las leyes fue, justamente, el de intentar dar cumplimiento a los tratados constitucionales en materia de derechos humanos por medio de la eliminación de todo aquello que pudiera aparecer como un obstáculo para que la justicia argentina investigue debidamente los hechos alcanzados por dichas leyes y, de este modo, subsanar la infracción al derecho internacional que ellas continúan representando. Se trató, fundamentalmente, de facilitar el cumplimiento del deber estatal de reparar, haciéndolo de la forma más amplia posible, de conformidad con los compromisos asumidos con rango constitucional ante la comunidad internavolume

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cional (ARGENTINA, CORTE SUPREMA DE JUSTICIA DE LA NACIÓN, 2005, p. 27-28).

A posição da CSJN foi precedida por diversos casos no controle difuso, como na Corte de Apelações de Salta (Cabezas, Daniel Vicente y Otros). Por último, resta mencionar que a eleição em 2003 de Néstor Kirchner permitiu uma nova composição para a Corte Suprema argentina. Ele mesmo já havia mencionado publicamente sua opinião pela inconstitucionalidade das leis. Além disso, determinou a aposentadoria de agentes que pudessem enfrentar processos de responsabilização. Em agosto de 2003, como mencionado, o Congresso revogou as normas anistiadoras. O argumento que essa seria a norma mais favorável aos réus não chegou a imperar, dado que elas eram ab initio nulas, não tendo a força de lei. Note-se que este foi o argumento levantado na década de 1980 para não revogar, mas anular a auto-anistia dos militares estabelecida pela Lei 22.294/1983, por intermédio da Lei 23.040/198315. 6. justiça tr ansnacional na europa: bélgica, fr ança, itália, alemanha e espanha Vivendo em Bruxelas desde 1979, Rosario Aguillar teve seu primeiro marido morto pelos militares chilenos, o irmão de seu segundo marido também morto e este último ficou preso por dez anos, sendo que, forçado ao exílio, ela também se viu coagida a acompanha-lo, deixando suas crianças com seus pais no Chile. Na Bélgica, ela viria a ter contato com Georges Beauthier, da Liga dos Direitos do Homem, que, após ouvi-la a respeito de violações de direitos humanos praticadas no Chile, aconselhou-a a procurar um magistrado local. Foi o Juiz Damien Vandermeersch o responsável por receber sua queixa, assim como a de outras cinco parties civiles. No dia seguinte, eles passariam o dia todo em uma delegacia 15 “La solución adoptada por el Congreso, a iniciativa del Ejecutivo, fue anular, en vez de derogar, la ley de amnistía. Esto fue posible porque mediante una nueva concepción de la validez de las leyes promulgadas por gobiernos autoritarios, la ley fue interpretada como una norma impuesta de facto que, como tal, no tenía la presunción de validez de la que gozan las normas de origen democrático. De esta manera, sería válida sólo si su contenido era justo. Esta solución infringía una antigua práctica de dar a las leyes de facto el mismo valor que a las leyes constitucionales, pero abrió las puertas para los juicios por violaciones de derechos humanos” (NINO in BASSIOUNI et al., 2005, p. 6).

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de polícia relatando os fatos. Pela sistemática processual belga, era possível que, como partie civile, uma vítima levasse sua ação diretamente ao Judiciário, que detém poderes investigativos, sem necessariamente depender da boa vontade de um promotor público. Além disso, de acordo com a legislação à época, os juízes belgas detinham jurisdição universal a respeito de crimes de guerra, que poderiam ser levados ao conhecimento da autoridade judiciária pela própria vítima e independiam da presença dos réus para que os processos tivessem seguimento. Adicione-se que a imunidade não se estenderia a tais tipos penais. Uma questão que poderia ser colocada para Vandermeersch dizia respeito à proibição de aplicação de uma legislação de 1993 ex post facto; esse argumento não seria decisivo, na sua visão, pois os crimes imputados já eram crimes há muito tempo na legislação doméstica chilena, seja como homicídio, roubo ou outro tipo. Além disso, a pena a ser aplicada seria a mesma, o que não infringiria o postulado da legalidade. Vandermeersch via os atos praticados não como crimes de guerra, mas como crimes contra a humanidade. Em favor dessa visão, não seria necessária uma tipificação expressa nesse sentido na legislação doméstica, mas apenas uma criminalização comum à qual seria somada a maior reprovabilidade. Por fim, não haveria que se arguir prescrição, vez que tais crimes são, sob o Direito Internacional, imprescritíveis. No dia 15 de dezembro de 1998, um pedido de extradição foi expedido, sem, contudo, obter sucesso perante as cortes britânicas. Antes mesmo dos casos belga e espanhol, cortes europeias investigaram casos argentinos e chilenos se os mesmos envolvessem vítimas de nacionalidade de um país europeu ou de dupla nacionalidade. Segundo Roht-Arriaza (2005, p. 122), o capitão argentino Alfredo Astiz era conhecido entre os prisioneiros da ESMA como o “anjo louro”. Ele foi capaz de se infiltrar na organização inicial das Mães da Praça de Maio; com isso, algumas mães e seus apoiadores chegaram a ser presos e a desaparecer. Entre esses últimos, haviam duas religiosas francesas, as Irmãs Alice Domon e Léonie Duquet. Elas foram vistas vivas pela última vez na ESMA em 1977. Como na Argentina a lei de obediência devida evitou que Astiz fosse processado, as famílias das vítimas levaram seus pleitos ao Judiciário francês. Auxiliadas pela Associação de Parentes e Amigos de Cidadãos Franceses Desaparecidos na Argentina, e com a assistência da volume

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advogada Sophie Thonon, concluiu-se que o caso seria uma típica confrontação de “bem contra o mal” que poderia chamar a atenção. Astiz foi preso pelas forças britânicas ao fim da Guerra das Malvinas. As autoridades francesas requereram sua entrega, mas o governo de Thatcher negouse a tanto, sob o argumento de ser o mesmo um prisioneiro de guerra sob os auspícios das Convenções de Genebra. À revelia, ele seria condenado na França em 1990. Astiz viria a ser preso brevemente em 1998; a França o requereria novamente em 2001, assim como a Itália, mas o governo argentino negou-se a extraditá-lo. Apenas em 2011, Alfredo “El Tigre” Astiz seria condenado à prisão perpétua na Argentina, decisão esta confirmada em 2014. Casos argentinos foram designados para o magistrado francês Roger Le Loire, que decidira por tratá-los como quaisquer outros casos. Ainda assim, o crime de sequestro foi tratado como crime permanente – com isto, eventuais homicídios foram dados como prescritos. Por outro lado, a Câmara de Acusações da Corte de Apelações de Paris reformou a decisão, entendendo que as acusações não poderiam ser liminarmente rejeitadas sem uma análise de mérito de cada caso concreto. Por questões internas ao Direito francês, a noção de crimes contra a humanidade ficou restrita aos crimes da Segunda Guerra Mundial e a tortura praticada fora da França não mereceria investigação senão após uma reforma do Código Penal de 1994. Apesar de um pedido de extradição de Pinochet ter sido negado, Le Loire ouviu inúmeras testemunhas e acumulou documentos relativos aos casos. Além disso, tomou uma série de outras medidas judiciais, mantendo contatos com Garzón na Espanha e Giovanni Salvi na Itália. Em outubro de 2001, expediu mandados de prisão contra 17 pessoas envolvidas em casos chilenos, incluindo o ex-chefe da DINA, Manuel Contreras. Mas o caso chileno teria mesmo um fato impactante com a prisão de Ramírez Pineda, um militar envolvido no caso do atentado contra Carlos Prats na Argentina. Ao realizar uma visita ao país em 2002, ele acabou por ser preso. Concorrendo com um pedido de extradição chileno, o processo extradicional francês restou frustrado, voltando o agente para sua terra natal. Em outro caso, Marie Anne Erize Tisseau, uma cidadã francesa, foi sequestrada na província de San Juan, na Argentina, em 15 de outubro de 1976, por 162

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soldados comandados pelo major Jorge Olivera. Oliveira se tornou advogado no período pós-ditadura, chegando a defender Erich Priebk. Foi ele o principal defensor da “teoria dos dois demônios”, que visava estabelecer uma culpa recíproca entre oficiais e insurgentes durante a guerra suja (ROHT-ARRIAZA, 2005, p. 128). Em 2000, Olivera foi preso em Roma pela morte de Tisseau. Por meio de contatos na Argentina, ele forjou um atestado de óbito da Argentina que, enviado às autoridades italianas, foi aceito como prova de exaurimento do prazo prescricional de vinte e dois anos. A Suprema Corte Italiana de Cassação apenas corrigiria o erro anos depois, caracterizando o crime como parte de um ataque sistemático. Olivera seria condenado posteriormente à prisão perpétua na Argentina, mas, ao ser internado em um hospital militar, o mesmo viria a fugir em julho de 2013 (AGÊNCIA EFE, 2014, p. 1). Suspeita-se que cerca de 600 cidadãos italianos foram mortos pelas forças de repressão argentinas. Em 1982, uma representação promovida por Juana Betanin em relação a parentes seus desaparecidos iniciou o questionamento das violações de direitos humanos na Itália. O exercício da jurisdição daquele país se deveu ao disposto no art. 8o do Código Penal, que permite tal incidência por conta de uma cláusula sobre “cidadãos ou estrangeiros que cometam crimes políticos em território estrangeiro”. Cidadãos italianos foram vítimas de tais crimes. O reconhecimento de crimes contra a humanidade nesse país apenas aconteceria com o Tratado de Roma do Tribunal Penal Internacional. Em 1986, eram 117 os casos que tramitavam na justiça italiana. A grande ameaça aos casos viria com o pedido, em 1995, do promotor Antonio Marini de arquivamento dos procedimentos devido à falta de cooperação do governo argentino. Foi apenas com sua substituição por Francesco Caporale é que a situação se alterou. Apenas no ano 2000, é que generais como Suárez-Mason e Riveros foram, à revelia, levados a julgamento. Todos os acusados foram condenados por homicídio e sequestro. Tal condenação foi cumprida na Argentina após Suárez-Mason ter sido extraditado pelo Governo dos Estados Unidos; ele viria a falecer em 2005. Riveros foi condenado à prisão perpétua antes mesmo da decisão italiana, em 2009, na própria Argentina. O Tribunal de Nuremberg, não obstante vários problemas, deixou um importante legado para o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Pode-se volume

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apontar: comandantes civis ou militares passam a ser responsáveis individualmente por decisões tomadas que levavam a atos criminais; a obediência a ordens já não mais seria considerada; crimes praticados por uma liderança de um Estado não seriam apenas mais problemas internos, mas diriam respeito à toda comunidade internacional. Crimes atrozes voltariam a ser julgados na Alemanha, agora relativos a ditadura argentina e se praticados contra vítimas alemãs ou descendentes de alemães. A relação entre os militares das duas nações já era antiga. Além da formação similar àquela das forças do Kaiser, o fim da Segunda Guerra promoveu a fuga de diversos nazistas para o país sul-americano, assim como diversos oficiais nutriam simpatia pelo nazismo. Dos que desapareceram ou sumiram durante a ditadura argentina, 10% eram judeus. Ellen Marx foi uma alemã que perdeu sua filha Leonor Marx em 21 de outubro de 1976, durante a nacht und nebel argentina. Com a organização de famílias dos desparecidos, em 1999 um jurista alemão visita a Argentina para tomar depoimentos. A partir disto, várias representações criminais são dirigidas ao chefe da promotoria de Nuremberg, contra 41 oficiais argentinos. Curioso, senão trágico, é observar que quatro casos envolvendo judeus foram colocados de lado pelo promotor alemão, sob o argumento de que as vítimas não eram de fato alemãs, desde que seus pais perderam a nacionalidade durante a década de 1930 por conta de uma lei da década, não tendo posteriormente reivindicado a reaquisição. Sem a concordância da promotoria, nada de ação penal. Pressões da opinião pública é que viriam a fazer com que ele voltasse atrás. Outro importante caso diz respeito à vítima Elisabeth Kasseman, filha de um proeminente teólogo alemão, presa em março de 1977. Em junho do mesmo ano, seu corpo foi encontrado em uma vala comum e remetido para a Alemanha. Diante da legislação alemã das décadas de 1960 e 1970 que impediam a prescrição do crime de homicídio e estabeleciam longos prazos para o crime de sequestro, em março de 2001, uma corte de Nuremberg determinou a prisão do general Guillermo Suárez-Mason, assim como dos oficiais Juan Bautista Sasiain e Pedro Durán Sáenz. Pedidos de extradição feitos foram novamente negados pelo governo argentino. Interessante observar que o Governo Alemão, insatisfeito, questionou perante as autoridades judiciárias argentinas as decisões executivas negativas das extradições. O argumento principal era o de que “extradições em branco” eram inválidas. 164

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É importante esclarecer que a decisão de permitir o prosseguimento do processo extradicional contra Pinochet, tomada pela Audiência Nacional espanhola, não se limitou ao antigo ditador chileno. A decisão de Garzón incluía mais 36 nomes chilenos. Em relação ao caso argentino, foram feitos pedidos em relação a 48 agentes públicos em 1999 e a outros 18 em 2001. Mesmo com uma maio “boa vontade” para extraditar durante do governo Kirchner, a Espanha mudou de tática e retrocedeu ao verificar que havia, agora, uma maior disposição para julgar por parte do Judiciário argentino. Roth-Arriaza (2005, p. 140) lembra que Ricardo Miguel Cavallo trabalhou na ESMA escolhendo e buscando alvos da repressão, como também sendo o responsável pelo “tanque de peixes”, uma área destinada a eventual “recuperação” de subversivos por meio do trabalho escravo. Além disto, ele supervisava a confecção de identidades falsas para que agentes militares pudessem viajar livremente; com o fim da repressão, isto se tornou um meio de vida para ele. Parte de seu capital se formou também de extorsões praticadas contra vítimas e seus familiares. Com isto, ele pode fundar a empresa TALSUD, que tinha contratos com várias governos latino-americanos e que ganharia uma licitação para a licença e o registro de veículos no México. O empreendimento era chamado de RENAVE (Registro Nacional de Vehículos) e se mostrou questionável desde o início. Cavallo iria defender em cadeia pública de televisão o sistema proposto pela TALSUD, que incluía um registro eletrônico de veículos. Pessoas que assistiram aos programas deram a dica a José Vales, correspondente do periódico argentino Reforma no México; ele começou a investigar o passado de Cavallo e descobriu que ele forjou uma nova identidade para se estabelecer fora da Argentina. Pressionado pela divulgação das informações sobre seu passado, Cavallo se prontificou a ir à Argentina para trazer documentos que provassem sua inocência. Durante uma parada em Cancún, um esforço da Interpol buscaria efetuar sua prisão; o problema é que, por algum motivo, ele fora deixado de fora da lista de oficiais argentinos da ordem de prisão de Garzón. Em uma manobra de algumas horas, o advogado Manuel Ollé na Espanha convenceu o magistrado de plantão no lugar de Garzón, Ruíz Polanco, a expedir a ordem de prisão. Após o próprio Garzón formular o pedido extradicional, coube ao juiz mexicano Luna Altamirano deferir o pedido e ao Ministro das Relações Exteriores Jorge volume

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Castañeda, no governo de Vicente Fox, aprovar definitivamente o procedimento. Cavallo ainda tentaria, sem sucesso, um recurso de amparo perante a Suprema Corte mexicana; na Espanha, ele seria condenado em 2005 a 200 anos de prisão e, em 2008, novamente extraditado para a Argentina. 7. a justiça tr ansnacional enfrenta os crimes tr ansnacionais contr a a humanidade: a oper ação condor A partir de fevereiro de 1999, durante o governo Clinton, vários documentos sigilosos foram “desclassificados” e trazidos à público, provenientes de diversos órgãos, como os Departamentos de Estado e Defesa, CIA, FBI, Agência Nacional de Segurança e o Conselho Nacional de Segurança. Cada vez mais se tornava clara uma atividade coordenada de países sul-americanos no combate aos “subversivos”. Assassinatos e sequestros foram praticados dentro e fora dos países coordenados no contexto do que se denominou Operação Condor, envolvendo Uruguai, Paraguai, Argentina, Chile, Bolívia e Brasil. A terceira fase desse operação começaria em 1976 com a perseguição de “terroristas” pelo mundo e eventual assassinato dos mesmos. Foi em novembro de 1999 que Alberto Pedroncini considerou que seria a oportunidade para acionar a justiça argentina em nome de familiares argentinos, chilenos, paraguaios e uruguaios que perderam entes no contexto da repressão da Operação Condor. Coube ao juiz Canicoba Corral concentrar-se nos crimes de desaparecimento forçado e sua natureza permanente; ele expediu uma ordem de prisão contra Videla, já preso pelo sequestro de crianças, que recorreu da ordem. A Corte de Apelações de Buenos Aires considerou que a associação criminal e a privação ilegal da liberdade se situavam no contexto de crimes contra a humanidade. Videla seria potencialmente responsável por tais atos. No bojo de tal ação, Uruguai, Chile e Brasil negaram pedidos extradicionais. Posteriormente, em 2009, no julgamento da Extradição nº 970, o Supremo Tribunal Federal brasileiro não só concordou com a natureza permanente do crime de sequestro de crianças como deferiu a extradição do oficial Manuel Piacentini para a Argentina (BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2009). 166

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Na Itália, sob os auspícios da investigação do magistrado Giancarlo Capaldo, vários oficiais argentinos foram acusados por envolvimento na Operação Condor, incluindo membros das juntas. Em janeiro de 2014, uma corte de Roma recebeu denúncias contra 35 agentes públicos latino-americanos envolvidos na operação. Nenhum deles brasileiro; mas também nenhum argentino, tendo em vista que o governo desse país não cooperou com as investigações de modo a não obstaculizar seus próprios processos. 23 vítimas de origem italiana ocasionaram os processos (CHADE, 2014, p. 1). No Uruguai, as Leis 15.737 e 15.848 de 1986 (esta última conhecida como “Ley de La Caducidad de la Pretensión Punitiva do Estado”) buscaram estabelecer auto-anistias. Na data de 16 de abril de 1989, a maioria do povo uruguaio votou pela manutenção desta última lei; mas em 19 de outubro de 2009, a Lei 15.848/1986 foi declarada inconstitucional pela Suprema Corte de Justicia no caso Sabalsagaray (URUGUAI, SUPREMA CORTE DE JUSTICIA, 2004). Na sequência, em 25 de outubro de 2009, nova maioria manifestou-se pela não revogação da lei. Em 24 de fevereiro de 2011, contudo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado do Uruguai pelos desaparecimentos forçados de María Claudia García Iruretagoyena de Gelman e de María Macarena Gelman García, familiares do poeta Juan Gelman. Veja-se que no dispositivo da decisão, a CteIDH foi enfática em refutar a possibilidade que que a “Lei de la Caducidad” pudesse impedir investigações e responsabilizações, em decisão semelhante a proferida no Caso Gomes Lund: El Estado debe garantizar que la Ley de Caducidad de la Pretensión Punitiva del Estado, al carecer de efectos por su incompatibilidad con la Convención Americana y la Convención Interamericana sobre Desaparición Forzada de Personas, en cuanto puede impedir u obstaculizar la investigación y eventual sanción de los responsables de graves violaciones de derechos humanos, no vuelva a representar un obstáculo para la investigación de los hechos materia de autos y para la identificación y, si procede, sanción de los responsables de los mismos, de conformidad con los párrafos 253 y 254 de la Sentencia (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2011, p. 85).

Dando cumprimento à decisão da CteIDH, Câmara dos Representantes e Senado uruguaios, com a sanção do Presidente José Mujica, aprovaram a Lei volume

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18.831 de 1º de novembro de 2011, definindo que fica restabelecida a pretensão punitiva estatal para os delitos de terrorismo de Estado praticados até 1º de março de 1985, abarcados pelo art. 1º da Lei 15.848/198616. Além disto, a lei estabeleceu que prazo algum de caráter processual ou prazos de decadência ou prescrição poderiam ser contados de 22 de dezembro de 1986 (data da vigência da Lei 15.848) até 1º de novembro de 2011 (data da vigência da Lei 18.831)17. Por fim, a própria lei cuidou de caracterizar tais crimes como de lesa humanidade nos termos do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Importa, contudo, destacar o quanto a Suprema Corte Uruguaia reforçou a necessidade de uma decisão de caráter contramajoritário. O controle de constitucionalidade, no Uruguai, obedece a um modelo concentrado em que tanto podem ser ajuizadas ações diretas, como podem ser formuladas exceções pelas partes em um processo judicial que serão dirimidas pela Suprema Corte de Justiça, desde que haja da parte um interesse direto, pessoal e legítimo. Um Representante do Ministério Público uruguaio (Fiscal Letrada Nacional en lo Penal de 2º Turno) havia oposto uma exceção em um procedimento criminal para a declaração de inconstitucionalidade dos arts. 1º, 3º e 4º da Lei 15.848/1986, no que foi acompanhado pela vítima e assistente Blanca Stela Sabalsagaray Curutchet, irmã da vítima de um homicídio em dependências militares em 29 de junho de 1974, Nibia Sabalsagaray. Um dos primeiros argumentos sustentados foi o de

16 “Artículo 1º.- Reconócese que, como consecuencia de la lógica de los hechos originados por el acuerdo celebrado entre partidos políticos y las Fuerzas Armadas en agosto de 1984 y a efecto de concluir la transición hacia la plena vigencia del orden constitucional, ha caducado el ejercicio de la pretensión punitiva del Estado respecto de los delitos cometidos hasta el 1º de marzo de 1985 por funcionarios militares y policiales, equiparados y asimilados por móviles políticos o en ocasión del cumplimiento de sus funciones y en ocasión de acciones ordenadas por los mandos que actuaron durante el período de facto”. 17 Registre-se como a relação entre tempo e direito pode ganhar novos contornos pela ação do legislador, como mencionado páginas atrás em relação ao caso húngaro de prolongamento da prescrição. Ost (2005, p. 169) cita outros exemplos: “Em outras circunstâncias, o legislador se dedicará a retardar o ponto de partida da prescrição da ação pública: é o caso notadamente de vários países em que, sob a pressão da opinião pública, a lei só permite a prescrição para os fatos de mau trato ou de abuso sexual cometidos contra as crianças, a partir do dia em que a vítima tiver atingido a maioridade. Ressalta-se, também, a imoralidade da prescrição clássica que se escoou há muito tempo, depois que a vítima tiver encontrado, por fim, os recursos morais e a força necessária para prestar queixa contra um sedutor, sob cuja dependência poderá ter vivido longos anos”.

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que a ordem constitucional uruguaia não se colocaria de acordo com o disposto na referida lei que indica ter a caducidade se assentado em um acordo político e não institucional, é dizer, na “lógica de los hechos”. Ou seja: nenhum acordo político e nem a ordem dos fatos (consistentes em estabelecer tal decadência por meio de imposições de uma ditadura militar) poderia se sobrepor à soberania popular materializada na Assembleia Nacional uruguaia (argumento este também pertinente para nosso contexto, como veremos). Além disto, segundo a Corte, a Lei 15.848/1986 não estabeleceu nem uma anistia, nem um indulto, mas simplesmente outorgou uma caducidade ou prescrição. Complementarmente, a Lei 15.848/1986 revestir-se-ia de inconstitucionalidades de caráter procedimental violadoras do devido processo legislativo. A uma, porque a matéria referente a uma “caducidade” já havia sido rejeitada na mesma sessão legislativa quando da aprovação da Lei 15.737/1986; portanto, seguindo os dispositivos constitucionais, só poderia ser objeto de nova deliberação na próxima sessão legislativa (1987). A duas, porque na Câmara dos Representantes não se alcançou a maioria absoluta de votos exigida. Mas a instituição de uma caducidade (ou prescrição) é também, por si só, inconstitucional, vez que ela não é da alçada do Poder Legislativo, mas do próprio Poder Judiciário em cada ação penal. Quanto ao referendo de 1989, e aqui a dificuldade contramajoritária ressurge, a Suprema Corte de Justiça do Uruguai ressaltou que o indeferimento da revogação pelos cidadãos não tem o poder de convalidar uma lei inconstitucional na sua origem. Aludindo a Ferrajoli, ela sustentou que os princípios e direitos fundamentais constituem um marco constitucional que orienta a maioria sobre o que não pode ser decidido e sobre o que pode ser decidido: Superando el rol que le asignaba el viejo paradigma paleoliberal, la jurisdicción se configura como un límite de la democracia política. En la democracia constitucional o sustancial, esa esfera de lo no decidible —que implica determinar qué cosa es lícito decidir o no decidir— no es sino lo que en las Constituciones democráticas se ha convenido sustraer a la decisión de la mayoría. Y el límite de la decisión de la mayoría reside, esencialmente, en dos cosas: la tutela de los derechos fundamentales (los primeros, entre todos, son el derecho a la vida y a la libertad personal, y no hay voluntad de la volume

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mayoría, ni interés general ni bien común o público en aras de los cuales puedan ser sacrificados) y la sujeción de los poderes públicos a la ley (URUGUAI, SUPREMA CORTE DE JUSTICIA, 2004, p. 34-35).

Reconheceu-se expressamente, também, que as normas de caducidade impediram o exercício pelas vítimas de um direito de acesso à Justiça para a identificação e responsabilização dos culpados por fatos acontecidos durante a ditadura. De outra parte, ficou do mesmo modo consignado que a Suprema Corte de Justiça aceita o entendimento de que convenções internacionais de direitos humanos integram o ordenamento constitucional uruguaio por intermédio do que dispõe o art. 72 da Constituição daquele país18. Assim, apesar de falar em um ultrapassado “jusnaturalismo”, a Corte marcou que a já superada doutrina da soberania não poderia ser invocada para se desconsiderar direitos humanos. No momento de edição da lei de 1986, podiam ser verificados diversos tratados internacionais que subsidiavam a proteção das vítimas, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos. A lei vinha sendo mencionada ano a ano em seus relatórios pelo Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas e pela Comissão Interamericana de Diretos Humanos. A Suprema Corte de Justiça fez diversas referências à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos nos casos Barrios Altos, Almocinad Arellano y Otros e La Cantuta. Ela também se referiu aos pronunciamentos da Corte Suprema argentina que caracterizam mencionadas normas como integrantes do jus cogens internacional. Os processos criminais no Uruguai sofreriam novo revés no início de 2013 com a declaração de inconstitucionalidade pela Corte Suprema dos dispositivos da Lei 18.831 de 1º de novembro de 2011 que permitiam o processamento atual. Em verdade, a decisão acabou deixando para cada processo a verificação da incidência de prazo prescricional, o que pode ser uma derrota para a caracterização de tais crimes como crimes contra a humanidade (AMNISTÍA INTERNACIONAL, 2013, p. 1). 18 “Artículo 72°.

La enumeración de derechos, deberes y garantías hecha por la Constitución, no excluye los otros que son inherentes a la personalidad humana o se derivan de la forma republicana de gobierno”.

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Voltando ao Chile, é preciso lembrar que logo após sua criação em 1974, a polícia secreta chilena DINA já contava com um Departamento do Exterior, que seria responsável por ações espetaculares na Argentina, nos Estados Unidos e na Itália. Alguns desses casos são narrados abaixo. Orlando Letelier foi Ministro da Defesa e das Relações Exteriores de Allende; em setembro de 1976, um carro bomba explodiu em Washington matando Letelier, Ronni Moffitt e ferindo seu marido Michael Moffitt. Três indivíduos foram condenados pelo crime; um foi apenas preso em 2004 no Panamá, em uma tentativa de assassinato de Fidel Castro. Outro seria preso em 1991 e um terceiro, cidadão americano, integraria um programa de proteção de testemunhas. O chefe da DINA, Manuel Contreras, acabou por não ser extraditado, mas foi condenado no Chile, em 1993, a sete anos de prisão. Até 2009, no Chile, Contreras contava com condenações que chegavam a 360 anos de privação de liberdade, respondendo a mais de 36 processos judiciais. Já Bernardo Leighton era um declarado opositor de Pinochet. Ele quase foi assassinado na Itália em 1975. Contreras e Raúl Iturriaga Neumann foram condenados na Itália, mas a Suprema Corte chilena denegou a extradição em 2001. Em outro caso, coube ao próprio Pinochet expressar a Contreras sua desconfiança em relação a seu antigo chefe e mentor, General Prats. Ele morreria em um atentado com um carro-bomba na Argentina em 1974. Após anos de lutas de suas filhas na justiça argentina, com pedidos frustrados de extradição, investigações e processamentos ocorreriam no Chile, com a responsabilização de diversos oficiais, em 2010, entre eles Contreras. Em setembro de 2000, a CIA admitiu que Manuel Contreras era uma conexão da mesma entre 1974 e 1977, inclusive recebendo pagamentos por isto. Um caso de relevo apontado por Roht-Arriaza (2005, p. 165) é o da morte de Winston Cabello-Barrueto, esfaqueado por Fernández Lario, um agente chileno. Sua irmã, Zita Cabello-Barrueto, radicada nos EUA, promoveu uma ação cível e foi indenizada em 4 milhões de dólares pela morte e tortura de seu irmão. O fundamento legal foi o Ato de Ações de Indenizações Estrangeiras (Alien Tort Claims Act), declarado constitucional pela Suprema Corte Norte-Americana em 2004. Mencione-se também que várias tentativas de processamento e oitiva como testemunha do ex-Secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger restaram infrutíferas. volume

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É preciso também considerar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos já reconheceu em relação ao Chile o caráter impositivo da imprescritibilidade dos crimes contra humanidade. O caso Almocinad Arellano y otros vs. Chile (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2006) envolvia a prisão e execução extrajudicial de Luis Alfredo Almocinad Arellano, professor, militante do Partido Comunista chileno e sindicalista. Ele foi preso em sua casa no dia 16 de setembro de 1973, levado à porta da mesma e ali fuzilado à vista de seus familiares. O Decreto-Lei chileno 2.191/1978 buscou anistiar tais crimes; depois de diversas tentativas infrutíferas de medidas judiciais internas visando estabelecer responsabilidades, a família de Arellano levou o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos que, posteriormente, provocou a Corte. Em seu julgado, a Corte Interamericana reconhece que a noção de crimes contra a humanidade é anterior ao próprio julgamento de Nuremberg: ela remonta à Convenção de Haia sobre Leis e Costumes de Guerra Terrestre de 1907 (número IV) e a expressão foi cunhada por França, Reino Unido e Rússia para remeter ao massacre dos armênios na Turquia em 1915. Para que se configure um crime contra a humanidade, segundo a Corte, basta que um único ato seja praticado no contexto de um ataque generalizado e sistemático contra uma população civil. O mais importante foi assinalar que todos esses elementos pré-existiam ao assassinato de Arellano. A “Ley de Amnistía”, Decreto-Lei n° 2.191/1978, auto-anistiou servidores de Estado que tivessem incorrido em delitos durante a vigência do Estado de Sítio (11 de setembro de 1973 a 10 de março de 1978). O “efeito Pinochet” contribuiu, ainda que a longo prazo, para uma reinterpretação desta lei. A Corte Suprema chilena manteve-se, inicialmente, fiel aos dispositivos da mesma, para só em setembro de 1998, julgando o caso que envolvia o sequestro de Pedro Poblete Córdoba (CHILE, CORTE SUPREMA DE JUSTICIA, 1998), determinar a reabertura de inquérito trancado pela Justiça Militar com base no decreto-lei de anistia. Ela considerou que as Convenções de Genebra impediam que o Estado do Chile, no longo período de Estado de Sítio, adotasse medidas que pudessem amparar crimes praticados contra pessoas determinadas ou garantissem impunidade. É certo que o caminho seguido pela Corte Suprema foi cheio de contradições: ela declarará a sujeição à prescrição dos crimes contra a humanidade 172

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de desaparecimento forçado praticados contra Ricardo Rioseco Montoya e Luis Cotal Álvarez (CHILE, CORTE SUPREMA DE JUSTICIA, 2005). Apenas em dezembro de 2006 ela declararia como crimes contra a humanidade execuções sumárias perpetradas por agentes de Estado (CHILE, CORTE SUPREMA DE JUSTICIA, 2006), fundando sua decisão no julgado da Corte Interamericana de Direitos Humanos – caso Almocinad Arellano. Esta mesma jurisprudência se manteve firme no caso José Matías Ñanco (CHILE, CORTE SUPREMA, 2007). É certo que a Corte Suprema Chilena formou posteriormente uma tortuosa jurisprudência a respeito da matéria prescricional. Recorrendo ao art. 103 do Código Penal chileno19, a Corte Suprema passou a considerar uma “prescrição gradual” não incompatível com a noção de imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade. A explicação estaria em que tal “prescrição gradual” seria uma “minorante qualificada de responsabilidade penal”, compatível com a imprescritibilidade em vista de um caráter “humanitário” por ela detido, já que não faria sentido apenar tão gravemente crimes há muito tempo ocorridos20. Ora, logicamente, tal atenuante mostra-se impossível de ser aplicada de forma concomitante à imprescritibilidade; por outro lado, não se está aqui a reconhecer a incidência total de uma prescrição. É certo que em janeiro de 2007, ao julgar o caso Puente Loncomilla, a Corte Suprema reconheceu a incidência de uma prescrição plena em favor do Coronel de Exército Claudio Lecaros Carrasco: contudo, a Corte reconheceu os crimes de homicídio por ele perpetrados e, apenas diante do fato ter ocorrido em 15 de setembro de 1973, a prescrição incidiria. Portanto, sua responsabilidade mostrou-se incontroversa, ainda que, contraditoriamente, a Corte Suprema tenha reconhecido a prescrição. Além disto, as Convenções de Genebra não foram aplicadas ao caso por não terem sido naquele momento assinadas pelo 19 “Art. 103. Si el inculpado se presentare o fuere habido antes de completar el tiempo de la prescripción de la acción penal o de la pena, pero habiendo ya transcurrido la mitad del que se exige, en sus respectivos casos, para tales prescripciones, deberá el tribunal considerar el hecho como revestido de dos o más circunstancias atenuantes muy calificadas y de ninguna agravante y aplicar las reglas de los artículos 65, 66, 67 y 68 sea en la imposición de la pena, sea para disminuir la ya impuesta. Esta regla no se aplica a las prescripciones de las faltas y especiales de corto tiempo.” 20 Decisões de tal modalidade foram tomadas nos casos S.C.S. de 30.07.2007, Rol: 3808-06, e S.C.S. de 05.09.2007, Rol: 6525-06. volume

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Chile21. Este e outros julgados, contudo, constituem jurisprudência minoritária na Corte Suprema do Chile. A jurisprudência dominante ainda é pela aplicação da “prescrição gradual”. Veja-se: Al margen de estos fallos aislados y diametralmente distintos, la Corte Suprema continúa, en la mayoría de los casos, aplicando la prescripción gradual y otorgando la libertad a los responsables de tan graves crímenes. Llama la atención el fallo pronunciado por la Corte Suprema en el caso seguido por el homicidio de David Urrutia Galaz, toda vez que había sido declarado prescrito por el tribunal de primera y de segunda instancia y la Corte Suprema acogió las casaciones de fondo presentadas por la parte querellante y el Programa de Derechos Humanos del Ministerio del Interior y que tenían por fundamento las normas integrantes del Derecho Internacional de los derechos humanos. Sin embargo, la Corte Suprema, tras declarar la imprescriptibilidad del delito, aplica la prescripción gradual otorgándoles la libertad vigilada a cuatro de los cinco autores, todos integrantes del Comando Conjunto, incluso al General de la Fach Freddy Ruiz Bunger quien, no obstante haber sido condenado como autor de homicidio en tres ocasiones, continúa siendo beneficiado por la Corte Suprema con la libertad vigilada 22.

8. conclusões Em termos da responsabilização de agentes públicos por crimes cometidos durante a ditadura brasileira de 1964-1985, é preciso verificar que o Brasil chega tarde. Não se desconhece que os processos de justiça de transição são extremamente contextuais e dependentes de variáveis peculiares a cada momento histórico. Mas não se pode ignorar que, no caso brasileiro, a luta de familiares, antigos resistentes, órgãos de defesa de direitos humanos e setores do próprio Estado já é bem antiga. Pelo menos, contemporânea à Constituição de 1988. A produção mais profícua de resultados ficou a depender de um transcurso de 21 “Los magistrados del voto de mayoría consideraron que existen 16 antecedentes en el proceso que comprueban que las víctimas fueron asesinadas en la fecha indicada, por lo que no es posible aplicar la figura del secuestro permanente en este caso, pese a que no se han encontrado los restos de las víctimas” (CHILE, PODER JUDICIARIO, 2011, p. 1). 22 NEIRA. Breve análisis de la jurisprudencia chilena, p. 486.

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tempo considerável; por outro lado, aberta a porta para a efetivação do Direito Internacional dos Direitos Humanos e para a consolidação da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade no contexto brasileiro, é necessário reconhecer que não se poderá dar passos atrás. Pode-se concluir, com isto, que a noção de crimes contra humanidade e de sua imprescritibilidade há muito faz parte da normativa do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Independentemente de um processo formal de construção do Direito dos Tratados, ela está muito mais ligada a uma assunção hermenêutica de um sistema constitucional capaz de, de fato, lidar com a efetivação dos direitos humanos. O posicionamento daquelas categorias normativas no âmbito do costume e do jus cogens internacional é claramente retratado por uma jurisprudência ofensiva que procura efetivá-las por meio da justiça transnacional. Esse “desbordar” de fronteiras mostra o quanto é essencial que o Estado brasileiro se debruce sobre os crimes que foram cometidos com o uso de seu aparelho e exerça sobre eles a correspondente persecução e responsabilização. 9. referências AMNISTÍA INTERNACIONAL. Uruguay: Fallo de la Suprema Corte ampara nuevamente la impunidad. Disponível em: . Acesso em 27 mai. 2014. ARGENTINA. Corte Suprema de Justicia de la Nación. S. 1767. XXXVIII. Símon, Julio Hector y otros s/ privación ilegítima de la libertad, etc. Causa n° 17.768. Fallos: 328:2056. Buenos Aires, 14 de junho de 2005. Disponível em . Acesso em 12 jul. 2012. BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria-Geral da República. 2ª Câmara de Coordenação e Revisão. Documento n° 1/2011. Brasília/DF, 21 de março de 2011. Disponível em: . Acesso em 12 mar. 2012. BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro. Denúncia referente ao Procedimento de Investigação Criminal nº 1.30.001.006990/2012-37. Disponível em: . Acesso em 15 jun. 2014a. BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro. Denúncia referente ao Procedimento de Investigação Criminal nº 1.30.001.006990/2012-37. Manifestação anexa. Disponível em: . Acesso em 15 jun. 2014b. BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro. Denúncia referente aos Procedimentos de Investigação Criminal nº 1.30.001.005782/2012-11 e 1.30.011.001040/2011-16. Disponível em: . Acesso em 15 jun. 2014c. BRASIL. Justiça Federal. 6a Vara Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro/ RJ. Recebimento de denúncia. Ação criminal nº 2014.51.01.017766-5. Juíza Federal Ana Paula Vieira de Carvalho. Disponível em . Rio de Janeiro, 13 de maio de 2014. Acesso em 15 jun. 2014a. BRASIL. Justiça Federal. 4a Vara Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro/RJ. Recebimento de denúncia. Ação criminal nº 0023005-91. 2014.4.025101. Juiz Federal Caio Márcio Gutterres Taranto. Disponível em . Rio de Janeiro, 26 de maio de 2014. Acesso em 15 jun. 2014d. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição nº 974. Requerente: Governo da República Argentina. Extraditado: Manoel Cordeiro Piacentini. Relator Ministro Marco Aurélio. Relator para o acórdão Ministro Ricardo Lewandowski. Brasília/DF, 6 de agosto de 2009. Disponível em: . Acesso em 12 mar. 2011. CHADE, Jamil. Itália julga crimes da Operação Condor. O Estado de S. Paulo. 3 de mar. 2014. Disponível em . Acesso em 27 mai. 2014. 176

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democr acia r acial e elementos de ódio na sociedade br asileir a Francisco Humberto Cunha Filho1 Thiago Anastácio Carcará 2

Resumo A miscigenação de tantas culturas proporcionou à sociedade brasileira uma vasta diversidade de grupos sociais, que se formaram em torno de características peculiares à sua matriz. A interação entre o direito e a sociedade será enaltecida com o propósito de evidenciar os elementos de ódio na sociedade brasileira. Analisando a formação e a construção da sociedade, dando ênfase nos elementos que são base para juízos provisórios que consubstanciam preconceitos e discriminação, fomentando principalmente o discurso do ódio. O presente artigo buscará analisar quais os elementos de ódio que alimentam as manifestações de pensamento que incitam a violência contra determinados grupos vulneráveis. A análise que se desenvolverá para perquirir os elementos de ódio, remetendo a sua formação, passando pelo índio, o negro e os imigrantes. A necessidade desta analise ocorre em razão dos atos discriminatórios praticados em toda a extensão do território brasileiro. Para conduzir com propriedade o estudo, é salutar averiguar os valores sociais que constituíram sua formação, indagando sobre as raízes ideológicas do Brasil, examinando o papel do índio desde a colonização com as intervenções e interesses da coroa portuguesa, do negro como força-motor dos primeiros passos da economia da colônia e a herança cultural, política e religiosa dos imigrantes europeus. As influencias dessas matrizes ganham destaque por serem atores principais na formação da cultura e da sociedade brasileiras, com afetações políticas e sociológicas que evidenciaram a quase ingênua crença na democracia racial, supostamente caracterizada pela convivência harmônica

1 Doutor e Mestre em Direito. Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza. Pesquisador-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais. Advogado da União. 2 Doutorando e Mestre em Direito. Discente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza. Advogado. volume

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entre todas as raças. No correr do estudo, observa-se que o desenvolvimento de pesquisas sobre as raças pretensamente acompanhava a evolução histórica do homem e se desenvolvia em multifacetadas perspectivas; assim, por exemplo, o conhecimento sobre a eugenia e o que ela representou no estudo científico das raças e na construção da democracia brasileira, também são frisados pela particularidade com que o racismo influi no comportamento humano; verificamse, ainda, as influências do nacional socialismo no país, com culminância em movimentos neonazistas na contemporaneidade.

Palavras-chave Ódio; Democracia Racial; Sociedade brasileira; Racismo.

Abstract The mixing of many cultures provided the Brazilian society a wide diversity of social groups that have formed around the characteristics peculiar to their mother. The interaction between law and society will be exalted in order to highlight the elements of hatred in Brazilian society. Analyzing the formation and reconstruction of society, with emphasis on the elements that are the basis for provisional judgments that embody prejudices and discrimination, especially promoting hate speech. This paper will seek to analyze which elements of hatred that feed the manifestations of thought that incite violence against vulnerable groups. The analysis to be developed to assert that the elements of hatred, referring to his training through to the Indian, and black immigrants. The need for this analysis occurs because of discriminatory acts to the fullest extent of the Brazilian territory. To conduct the study properly, is beneficial to ascertain the social values ​​that constituted their training, inquiring about the ideological roots of Brazil, examining the role of the Indian since colonization with the operations and interests o f the Portuguese crown, black as the motor force first steps of the colony economy and cultural, political and religious heritage of European immigrants. The influences of these matrices are highlighted because they are major players in the formation of Brazilian culture and society with political and sociological affectations that showed the almost naive belief in racial democracy, supposedly characterized by harmonious coexistence among all races. In the course of the study, it was observed that the development of research on breeds allegedly 182

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accompanied th e historical evolution of man and unfolded in multifaceted perspective; thus, for example, knowledge of eugenics and what it represented in the scientific study of race and the construction of Brazilian democracy, are also beaded with the particularity that racism influences on human behavior; also occur-the infl uences of national socialism in the country, culminating in neoNazi movements in contemporary.

Key words Hatred; Racial Democracy; Brazilian Society; Racism. 1. introdução A Constituiçã o Federal do Brasil consagra no rol de direitos e garantias fundamentais a liberdade de expressão, que tem como direitos ao mesmo tempo matriciais e decorrentes a inviolabilidade da consciência, a livre manifestação de pensamento, entre outros. A Constituição também ao assegurar a inviolabilidade de consciência busca proteger o pensamento dos cidadãos brasileiros, permitindo que todas as ideias possam permear a consciência, e cada um, em sua autonomia individual, d ecida se determinado pensamento é ou não verdadeiro, devendo ser a ideia a dmitida como parte da formação da pessoa enquanto membro da sociedade. A liberdade de expressão assegura a livre manifestação de pensamento de toda e qualquer ideia, inclusive as de ódio? Não se torna inviável a convivência humana diante da perturbação da ordem pública em um ambiente rodeado e permeado de ó dio? A existência do ódio perante os seres humanos deve ter a merecida atenção do direito brasileiro, pelo conflito iminente entre os indivíduos, bem como pelas duras consequências que poderão existir quando uma ideia desta natureza domina a nação. O presente artigo buscará analisar quais os elementos de ódio que alimentam as manifestaç ões de pensamento que incitam a violência contra determinados grupos vulneráveis. A análise que se desenvolverá para perquirir os elementos de ódio, remetendo a sua formação, passando pelo índio, o negro e os imigrantes. A necessidade desta analise ocorre em razão dos atos discriminatórios praticados em toda a extensão do território brasileiro. Para conduzir com propriedade o estudo, é salutar averiguar os valores sociais que constituíram sua formação, perquirindo volume

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as raízes ideológicas do Brasil, examinando o papel do índio desde a colonização com as intervenções e interesses da coroa portuguesa, o negro como força motor dos primeiros passos da economia da colônia e a influência cultural, política e religiosa dos imigrantes europeus. As influencias dessas matrizes ganham destaque por serem atores principais na formação da cultura e da sociedade brasileira, com afetações políticas e sociológicas que evidenciaram a crença na democracia racial de convivência harmônica entre todas as raças. O conhecimento sobre a eugenia e o que ela representou no estudo científico das raças e na construção da democracia brasileira, também são frisados pela particularidade com que o racismo influi no comportamento humano, verificando ainda as influências nazistas no país com culminância em movimentos neonazistas na contemporaneidade. A abordagem m etodológica nessa pesquisa é de cunho qualitativo, uma vez que será produzida com a utilização da legislação brasileira pertinente, das interpretações e construções doutrinárias existentes e de jurisprudência relevante para a temática. O material para a coleta e produção de dados, foi obtido em livros, artigos científicos publicados em revistas especializadas sobre a temática da pesquisa, decisões dos Tribunais pátrios, como também em artigos publicados na internet, anais de congressos e debates legislativos. Assevera-se ainda a realização de pesquisa sobre material acima descrito junto ao direito comparado, buscando sempre uma an álise critica do tema. Através dessa investigação teórica, serão descritos e interpretados os dados da investigação, produzindo assim um resultado que se pretende seja ao menos crítico, no sentido científico do termo. 2. r aizes ideologicas do br asil As matrizes s ociológicas do povo brasileiro “[...] são conformadas como variantes da versão lusitana da tradição civilizatória da européia ocidental, diferenciadas por coloridos herdados dos índios americanos e dos negros africanos.” (RIBEIRO, 199 5, p. 20). A miscigenação de tantas culturas proporcionou à sociedade bra sileira uma vasta diversidade de grupos sociais, que se formaram em torno de características peculiares à sua matriz. No ano de 1500, quando da chegada dos portugueses, o território correspondente ao Brasil era composto de um milhão de índios, organizados em tribos e aldeias, contando cada uma de 300 a dois mil habitantes, o que, à época do descobrimento, era equivalente à população de Portugal. 184

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Os lusitanos, ao adentrarem em solo americano, impuseram o espírito civilizatório e classista, estendendo o alcance da Igreja Católica e do Santo Ofício, introduzindo o conhecimento científico adquirido por séculos, iniciando um processo civilizatório dos indígenas, bem como colonizando o território até então desconhecido. A entrada dos escravos, oriundos principalmente da costa ocidental do continente africano, em verdade, para certos analistas, pouco influenciou a célula originária da matriz social do povo brasileiro, o que se agigantou com o passar dos tempos. A contribuição cultural do negro foi pouco relevante na formação daquela protocélula original da cultura brasileira. Aliciado para incrementar a produção açucareira, comporia o contingente fundamental da mão-de-obra. Apesar do seu papel como agente cultural ter sido mais passivo que ativo, o negro teve uma importância crucial, tanto por sua presença como a massa trabalhadora que produziu quase tudo por que aqui se fez, como por sua introdução sorrateira mas tenaz e continuada, que remarcou o amálgama racial e cultural brasileiro com suas cores mais fortes. (RIBEIRO, 1995, p. 114).

A formação da população indígena em tribos guardava similaridades à dos negros africa nos, ambos possuindo línguas, culturas e modos diversos. Essa miscigenação cultural, fortalecida e comandada pelos lusitanos, emergiu com a formação cu ltural do povo brasileiro em toda a sua diversidade étnica. A autoidentific ação do indivíduo como brasileiro percorreu um lapso temporal suficiente para a completa miscigenação entre as diferentes etnias existentes no território, não só física, mas intelectual. A formação da sociedade brasileira tem majoritariamente suas raízes ideológicas fun dadas nos índios, nos negros e nos lusitanos. Seus valores formam dististos fluxos que se entrelaçam, sobrepõe-se uns aos outros, ou permanecem intactos. A própria história determinou a conformação desses elementos sociais, sendo que alguns valores continuam contrapondo-se com outros, fazendo emergir conflitos culturais. A constatação das matrizes conflitantes na sociedade brasileira resulta na evidência de aspectos históricos que perduram pelo tempo sem qualquer alteração valorativa, persistindo dogmas na evolução cultural do país. Negros e índios eram vistos como entraves ao processo civilizatório. Para resolver tal problema, apostava-se na mestiçagem volume

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biológica e moral. Representativo desse ponto de vista é o pensamento de Sílvio Romero, que postulava uma escala ou um ranking de raças, onde o mais inferior era representado pelos índios, seguido dos negros, portugueses, vistos como mestiços de ibéricos e latinos, e, no topo, os arianos, isto é, germanos, eslavos e saxões. (MOREIRA, 2008, p. 70-71).

Perquirindo a etapa histórica da formação da sociedade brasileira, as principais matrizes devem ser analisadas em seus aspectos mais relevantes, com o propósito de evidenciar os elementos de ódio que foram constituídos e sob quais aspectos estes se sustentam. 2.1. índios e o interesse lusitano Os índios eram para os portugueses indivíduos que deveriam ser utilizados no processo civilizatório como trabalhadores e povoadores do território recémconquistado. O processo de submissão dos índios iniciou-se com os jesuítas, que não atendiam aos interesses da administração portuguesa, pois buscavam defender a Igreja com a propagação da religião católica. A proposta da coroa portuguesa, a princípio, não era eliminar os índios, mas torná-los úteis, consoante seus interesses. Leis pombalinas foram criadas no sentido de impedir tanto a escravização, quanto a segregação. Inobstante tal tentativa de inclusão do índio, a resistência aos usos e costumes europeus, decorrentes da submissão colonial propugnada, a ocorrência de conflitos ainda perdura até o século XXI. Quando do primeiro contato, as ferramentas vistosas e eficazes faziam do colono um aliado, mas que, com o tempo, tornava-se inimigo devido ao estilo de vida imposto ser totalmente diverso ao do indígena. O modo de vida baseado essencialmente na agricultura, na caça e na pesca, em que apenas se obtinha o suficiente para viver, sem uma organização estamental, ou política, levaram o índio a uma inóspita recepção ao estilo de vida da colônia, voltado para o lucro. O índio, acostumado a passar dias em reserva, com plena liberdade, trabalhando apenas quando era necessário, seria obrigado a trabalhar todo o dia, sem descanso, em troca de ferramentas, vestes e purificação divina. Alia-se a tal elemento a imposição de adaptação cultural, aos usos e costumes da colônia com total esquecimento da cultura indígena. 186

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Essas condições levaram à indisposição do índio com a colônia, devido à ocorrência de conflitos que quase conduziram ao extermínio indígena, com exceção daqueles que fugiram e ainda fogem, mata a dentro, do processo civilizatório. Em verdade, os índios que se refugiaram no seio dos sertões, das matas e das florestas são minoria dentre os inúmeros outros que foram dominados e os que preferiram se integrar ao estilo de vida colonial e até, muitas vezes, participando de guerras contra sua própria matriz cultural. As evidências de que a cultura indígena tenha sido mantida pelos próprios índios que se integraram à sociedade brasileira, adaptando-se aos ditames sociais da Coroa portuguesa persistem perante os séculos, possuindo características marcantes, cultura entrelaçadas com o sistema social existente. Índios e brasileiros se opõem como alternos étnicos em um conflito irredutível, que jamais dá lugar a uma fusão. Onde quer que um grupo tribal tenha oportunidade de conservar a continuidade da própria tradição pelo convívio de pais e filhos, preserva-se a identificação étnica, qualquer que seja o grau de pressão assimiladora que experimente. Através desse convívio aculturativo, porém, os índios se tornam cada vez menos índios no plano cultural, acabando por ser quase idênticos aos brasileiros de sua região na língua que falam, nos modos de trabalhar, de divertir-se e até nas tradições que cultuam. Não obstante, permanecem identificando-se com sua etnia tribal e sendo assim identificados pelos representantes da sociedade nacional com quem mantêm contato. O passo que se dá nesse processo não é, pois, como se supôs, o transito da condição de índio a de brasileiro, mas da situação de índios específicos, investidos de seus atributos e vivendo segundo seus costumes, à condição de índios genéricos, cada vez mais aculturados mas sempre índios em sua identificação étnica. (RIBEIRO, 1995, p. 113).

Verifica-se que a grande força colonial de impor uma cultura diversa da indígena logrou êxito em inseri-los, mas não foi capaz de destronar a cultura indígena de sua raiz cultural. Contudo, a arraigada e dogmática noção de que a população indígena é de uma cultura inferior perpassa por gerações na sociedade brasileira, não estando claro para muitos que esta matriz étnica é a única realmente oriunda e desenvolvida no Brasil, desde antes de seu descobrimento pelos lusitanos. volume

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2.2. o negro como força motor a do desenvolvimento Não menos importantes, os negros africanos têm sua influência na formação da sociedade brasileira, visto seu papel essencial na construção das riquezas do país, sendo força motora da economia, nos primórdios da efetiva construção da colônia. A origem da matriz étnica negra brasileira é proveniente do continente africano, não possuindo somente uma uníssona cultura, língua ou religião. A diversidade cultural africana inserida no Brasil decorreu justamente pela vinda de escravos procedentes de vários países, sendo que cada um possuía usos e costumes específicos. Não se conhecem, com segurança, nem os locais exatos de origem e nem o número dos escravos trazidos para o Brasil. Eram embarcados em portos alinhados numa larga extensão da costa ocidental (da Guiné a Angola) e num menor segmento da costa oriental (Moçambique) e, provavelmente, teriam sido capturados em áreas interioranas vizinhas dessas faixas. Provinham de diferentes “nações”, falavam línguas diferentes, tinham religiões e desenvolvimento cultural heterogêneos e, mesmo a um exame superficial, pareciam pertencer a diversas “raças”. Eram catalogados segundo denominações gerais (“preto”, “escravo”, “peças da África”, “fôlegos vivos”, etc.) ou mais particulares (“negro mina”, quando provinham da Costa da Mina; “negros da costa”, quando tinham sido embarcados entre Guiné e Angola, assim se diferenciando dos “da Contra-costa”, etc.), por mais diferentes que fossem suas línguas, tribos, costumes, religiões, etc. Considerados como coisas, eram vendidos e marcados a fogo, sem nenhuma consideração de outra ordem, além da estritamente econômica. Os negros brasileiros provêm, portanto, de diferentes “raças” e, tal como os brancos, derivam de uma extensa área caracterizada por grande diferenciação cultural e biológica. (FREIRE-MAIA, 1975, p. 22, grifo do autor).

A cultura africana se restringiu durante muito tempo apenas aos negros que, reclusos, cingiam-se a manterem vivos os seus costumes com a prática restrita de danças, de rituais e de condutas próprias aos ambientes fechados em que viviam alojados. Há de se frisar que havia entre seus senhores uma política de evitar manter juntos escravos provenientes de uma mesma etnia, para coibir fugas e motins, o que dificultou ainda mais a manutenção e a propagação da 188

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cultura africana. Assim, os negros sofriam um processo similar ao dos índios, de incorporar a cultura lusitana em detrimento da própria, mas não deixando ao esquecimento suas raízes. A melhor aceitação e absorção da cultura lusitana por parte dos negros, aliada à reduzida capacidade laboral do indígena, decorrente do seu modo de viver, proporcionou ao negro uma ascensão social do patamar de força motora para força colonizadora, tendo funções de perpassar para os outros escravos recém-chegados as técnicas de trabalho e os usos e costumes coloniais, sempre se utilizando da língua portuguesa como principal forma de comunicação. Tal fato proporcionou alterações na pronúncia da referida língua, o que ocasionou o surgimento de sotaques. Porém, a cultura negra, ainda constrita, emergia de uma sociedade subalterna paralela à sociedade colonial. Nas grandes plantações de açúcar, era mais fácil para os negros manterem uma cultura Africana híbrida porque os escravos negros constituíam a grande maioria. O número e a variedade das culturas afro influenciadas nas plantações em lugares como Rio de Janeiro, Pernambuco, e Bahia eram a razão pela qual a cultura afro-brasileira se tornou tão dominante. No sertão, os escravos estavam em proximidade das culturas indígenas e portuguesa. De muitas formas eles trabalhavam lado a lado com esses grupos, o que os negros não poderiam ter feito em outros lugares porque não havia grandes grupos de brancos ou índios nas proximidades. (MILES, 2011, p. 50).

A pretensão da colônia sempre foi a da prevalência de domínio da cultura lusitana sobre as demais; não foi à toa que jesuítas participaram nesse processo como difusores do catolicismo e da língua portuguesa. Não se pode deixar despercebida a função das Capitanias Hereditárias de povoar e de dominar a população indígena. Ocorre que o momento posterior às Capitanias asseverava a implantação de um modelo de sociedade, sendo os negros e os índios elementos que deveriam ser absorvidos, e não descartados. A miscigenação cultural no início da colonização do Brasil tinha, portanto, a cultura lusitana como dominante, mas que com o tempo ganhava a inserção de elementos próprios da cultura negra e indígena. O grande motor da economia brasileira, o negro, desempenhava múltiplas funções no sistema colonial português. O trabalhador braçal que rodava volume

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fazendas de diversas regiões do país estava mais maduro e desenvolvia a função de capataz, saindo mais da senzala e passando a frequentar a Casa Grande3, absorvendo novos hábitos. As mulheres escravas, que passariam a servir seus senhores e suas senhoras nas atividades domésticas, seriam cortejadas sexualmente pelos brancos, que as teriam como amantes ou iriam prostituí-las a outros brancos. O acesso a variadas funções pelos cativos ocasionou a abertura da cultura lusitana à cultura negra, mas nunca suficiente para alterar a preponderância daquela sobre as demais. Mas as influências da cultura negra repercutiram na sociedade brasileira; muitos elementos foram introduzidos por escravas que detinham a função de cuidar de crianças brancas e a elas passavam contos e histórias da cultura africana. Assim, os usos e costumes dos negros iam, pouco a pouco, entrelaçando-se com as culturas lusitana e indígena. Mas o grosso das crenças e práticas da magia sexual que se desenvolveram no Brasil foram coloridas pelo intenso misticismo do negro; algumas trazidas por ele da África, outras africanas apenas na técnica, servindo-se de bichos e ervas indígenas. (FREYRE, 2003, p. 105-106).

Sempre se deve ressaltar que o momento colonial não admitia o negro como parte da sociedade, mas apenas um elemento motor da economia, força trabalho. Uma máquina que poderia ser comprada da África para produção de café, açúcar, entre outros. O índio, de igual forma, possuía mesma função, mas, com o tempo, percebeu-se, na ótica do colonizador, sua fraqueza e reduzida capacidade laboral. A tímida inserção do negro e do índio como membro da sociedade somente ocorreria muito tempo depois, o que ainda se faz necessário e demanda a construção jurídica de elementos que assegurem a eles proteção contra discriminação e racismo. As circunstâncias nas quais os negros foram introduzidos no território brasileiro são as raízes dos juízos ultrageneralizados formadores das bases do preconceito. Expor o negro como minoria não condiz com os fatos históricos e com a realidade.

3 Residência do Coronel ou Fazendeiro que detinha a propriedade dos escravos, inclusive do capataz, que muitas vezes ao final de seus serviços, quando não mais tinha serventia era liberto.

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A força motora da economia do Brasil foi o negro que era trazido aos milhares da África como mercadoria, um objeto de valor que, no entender de seus algozes, não possuía qualquer tipo de cultura, considerado o padrão europeu, mas apenas força bruta. Ocorre que aos milhares, os negros continuavam devotados, na medida do possível, aos seus próprios modos de criar, fazer e viver, mesmo que de forma reservada e secreta, longe dos olhos dos jesuítas e dos demais brancos. A população negra cresceu muito nos séculos XVI a XVIII, não somente pela sua reprodução, mas pela crescente entrada de escravos para substituir os velhos e doentes ou os que morreram em razão de doenças e do excesso de trabalho. A quantidade exata é desconhecida pela ausência de dados estatísticos da época, entretanto em estimativa realizada com base em elementos que mesclam o volume da população com o seu crescimento vegetativo, ou seja, a diferença entre as taxas de natalidade e mortalidade, e, ainda, em dados retirados das cartas de navegação, pode-se estimar um número. Como resultado de seus cálculos, considerando uma taxa anual decrescente de reposição, que vai de 5% no século XVI a 2% no século XIX, admite um ingresso global de 75 mil negros para o século XVI, 452 000 para o XVII, 3 621 000 para o XVIII e 2 204 000 para o século XIX, o que soma um total de 6 352 000 escravos importados de 1540 a 1860. Esses números, de demografia hipotética, não contam com a quantidade geralmente admitida nas fontes primárias. (RIBEIRO, 1995, p. 162).

Outro elemento a ser considerado era o elevado número de mulheres escravas. A pretensão da entrada dos negros no Brasil dava-se com o intuito de desenvolver a força motora da economia, especialmente mão de obra. A razão de tal número decorria da lascívia dos brancos perante as negras, que as possuíam como amantes. De igual forma, mas com menos intensidade, as índias eram aliciadas, tendo muitas vezes relações com negros, proporcionando uma mescla de culturas e de etnias entre todos. As peculiaridades históricas das matrizes étnicas da sociedade brasileira reafirmam, portanto, claramente que o modelo a implantado tinha como foco a cultura do branco que advinha de Portugal como colonizador, sendo o negro a mercadoria emanada da África para trabalhar como escravo, desenvolvendo a economia, basicamente rurícola, e o índio considerado como selvagem nativo do território que deveria ser dominado e, quando não, exterminado. volume

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Com a evolução política do Estado brasileiro e a adoção de medidas abolicionistas, o papel do negro como força motora foi sendo alterado, mas a percepção de que esse somente teria função no trabalhado braçal persiste como juízo valorativo no seio de grupos que se apegam em tais evidências das matrizes étnicas para sustentar um pensamento odioso. O fim da escravatura não seria o ponto final para a efetiva inserção do negro na sociedade brasileira como membro. A passagem de escravo para cidadão necessita de uma série de elementos, entre os quais, as condições garantidoras da sua sobrevivência. Após a saída das terras do senhor, tendo sua liberdade assegurada, elemento que sempre almejou, não sabia como prover seu sustento já que somente possuía a força braçal e mais nada, não possuia terras e sequer ferramentas para cultivar. Depois da primeira lei abolicionista – a Lei do Ventre Livre, que liberta o filho da negra escrava –, nas áreas de maior concentração da escravaria, os fazendeiros mandavam abandonar, nas estradas e nas vilas próximas, as crias de suas negras, já não sendo coisas suas, não se sentiam mais na obrigação de alimentar. Nos anos seguintes à Lei do Ventre Livre (1871), fundaram-se nas vilas e cidades do estado de São Paulo dezenas de asilos para acolher essas crianças, atiradas fora pelos fazendeiros. Após a abolição, à saída dos negros de trabalho que não mais queriam servir aos antigos senhores, seguiu-se a expulsão dos negros velhos e enfermos das fazendas. Numerosos grupos de negros concentraram-se, então, à entrada das vilas e cidades, nas condições mais precárias. Para escapar a essa liberdade famélica é que começaram a se deixar aliciar para o trabalho sob as condições ditadas pelo latifúndio. (RIBEIRO, 1995, p. 232-233).

A situação de liberdade vivenciada pelo negro era apenas ilusória já que passaria a condições de trabalho idênticas a da servidão, tendo, entretanto, uma parca recompensa pecuniária por seus serviços. Capital que seria despendido com suas necessidades básicas, já que o latifundiário não teria obrigações de alimentação ou moradia, ou seja, a liberdade dos escravos trouxe apenas a possibilidade de escolher em viver a espreita da sociedade ou submisso às duras condições de trabalho. Estigma que perdura como juízo generalizado. O colono, então latifundiário, expandia sua prole na cidade, enquanto o negro expandia, em número menor pelo alto nível de mortalidade, nas zonas periféricas da urbe, não por escolha, mas pela condição que lhe foi imposta. Não havia outra possibilidade, já que a volta a 192

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sua terra natal, África, demandaria recursos que não possuía ou retornar ao status de escravo para buscar entrada em navios negreiros que por ventura retornassem ao país de origem, o que era improvável. 2.3. a miscigenação r acial e a sobreposição do br anco A evolução cientifica do século XVIII proporcionou avanço nos processos de manufatura, com a criação de máquinas que tornariam, em algumas etapas da produção industrial, obsoletos os escravos que, excluídos da lógica econômica, passaram ao ser considerados ociosos ou até inúteis. Assim, os negros e os índios restaram cada vez perseguidos, tendo que se refugiar, em quilombos ou em distantes aldeias, preferindo alguns, os que acreditavam na prosperidade, a viver nos arredores das cidades, fazendas e indústrias. Sem fornecer o que os portugueses buscavam - mão de obra especializada na condução das máquinas industriais - o labor braçal era a única forma de trabalho correlata. Naquele momento da história, o desenvolvimento de estudos científicos sobre as raças favoreceu o fomento ao racismo durante muitos séculos, atrelou-se à situação de isolamento social, político e econômico vivida pelos negros e pelos índios, o que somente contribuiu para fixação de estereótipos. Aquelas inovações tecnológicas, somadas às referidas formas mais avançadas de ordenação social a esses instrumentos ideológicos de controle e expressão proporcionaram as bases sobre as quais se edificou a sociedade e a cultura brasileira como uma implantação colonial européia. Uma e outra, menos determinadas por suas singularidades decorrentes de incorporação de múltiplos traços de origem indígena ou africana, do que pela regência colonial portuguesa que as conformou como uma filial lusitana da civilização européia. (RIBEIRO, 1995, p. 76).

O fomento à ideia da existência de raças perpassava a noção da necessidade de um processo de branqueamento da população brasileira em um prazo de três ou quatro séculos. Essa perspectiva era estigmatizada ao ponto de se expor a inviabilidade da nação por uma completa mestiçagem. A ideia de eugenia, ou higiene racial, corrente no mundo do século XIX, expandia-se como uma noção científica verdadeira, na qual os humanos seriam divididos em raças. Utilizava-se de uma compreensão do pensamento evolucionista que confundia a démarche volume

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biológica dos seres humanos a de quaisquer outros seres vivos, estabelecendo, assim, a noção de que haveria raças inferiores e superiores. Logo, os índios, passaram a ser considerados como selvagens de igual forma ao negro que, há muito, já vinha sendo escravizado pelo Velho Mundo, seriam raças inferiores, além dos amarelos e miscigenados, aos olhares dos estudos europeus que aduziam a necessidade da purificação da raça para melhor desenvolvimento da nação. O conde Gobineau (1816-82), autor de Essai sur l’inegalité des races humaines (1853), era também partidário de um determinismo racial absoluto e favorável à condenação do arbítrio do indivíduo, “cuja vontade nada pode” (1853/1983:1151). No entanto, ao mesmo tempo que compartilhava os pressupostos darwinistas sociais, introduzia a noção de “degeneração da raça”, entendida como o resultado último “da mistura de espécies humanas diferentes”. De fato, Gobineau cortava as últimas amarras com a explicação monogenista e evolucionista social, na medida em que seu argumento previa a impossibilidade do progresso para algumas sociedades compostas por “sub-raças mestiças não civilizáveis”. (SCHWARCZ, 1993, p. 64).

A perspectiva científica aduzia o racismo sob a perspectiva ideológica, na qual a conduta estatal deveria visar a melhor construção da raça da nação, com propósito de eficaz evolução do Estado. A melhor raça conduziria ao melhor Estado. O elemento humano, trabalhado como ciência, deveria atingir a perfectibilidade ideal para o alcance de uma nação rica e poderosa. Não deve ficar à margem a entrada de imigrantes europeus no Brasil, principalmente durante os anos de 1851 a 1960, tendo como principal ponto de acesso as regiões sul do país, onde lá se fixavam e cultivam sua cultura de modo não tão influente. Ao total, cerca de cinco milhões de imigrantes adentraram em solo brasileiro, fugindo de mazelas decorrentes da guerra e de crises outras, com principal objetivo de prosperar e fixar residência em solo brasileiro. Não havia uma uniformidade de procedência, sendo advindos de diversos países, principalmente de Portugal. É composto, principalmente, por 1,7 milhão de imigrantes portugueses, que se vierem juntar aos povoadores dos primeiros séculos, tornados dominantes pela multiplicação operada através do caldeamento com índios e negros. Seguem-se os italianos, com 194

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1,6 milhão; os espanhóis, com 700 mil; os alemães, com mais de 250 mil; os japoneses, com cerca de 230 mil e outros contingentes menores, principalmente eslavos, introduzidos no Brasil sobretudo entre 1886 e 1930. (RIBEIRO, 1995, p. 242).

Independentemente da influência que os imigrantes tiveram sobre a formação cultural do país, a principal matriz étnica e cultural do país já estava construída, contudo é inegável que o desenvolvimento de tais culturas em solo brasileiro proporcionou miscigenação étnica. Apesar de grande parte dos índios estarem concentrados nas hoje conhecidas regiões norte e nordeste do país, a multiplicidade de culturas proporcionou a formação de uma sociedade com padrões comportamentais diversos. O Brasil possui variadas matrizes ideológicas que formaram uma sociedade com características heterogêneas, possuindo elementos histórico-culturais marcantes, que são esteio para a construção de juízos ultrageneralizados desprovidos do real papel de cada etnia na construção do país. 3. democr acia r acial ou mito? A construção do Estado brasileiro ocorreu com a entrada de um modelo estatal dirigido a uma sociedade diversa da aqui existente, sendo índios e negros, meros figurantes nos planos lusitanos, bens de uso para desenvolvimento da economia. A situação que lhes foi imposta menosprezou a condição de ser humano, em boa parte pelo pensamento científico que predominava, cuja ideia de hegemonia branca legitimava a escravatura e a violência para a imposição de um modelo de ordem política, de cultura e de sociedade diversa da existente, em que índios e negros tinham, por serem considerados selvagens e de raças inferiores, que se submeter a tais atropelos. As ações de abolicionismo, principalmente entre o final do Segundo Reinado e o surgimento da República, somados aos ideais liberais advindos da América do Norte e da Europa, principalmente com a Revolução Americana e a Revolução Francesa, levaram à formação do pensamento da sociedade em estamentos, classes sociais bem divididas e hierarquizadas, possuindo ainda grande margem para segregação racial, já que muitos apenas possuíam a liberdade, nada mais. É no âmbito da crise que punha em cheque a escravidão e as hierarquias sociais que começou a se difundir, no Brasil, volume

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o evolucionismo, o positivismo e social-darwinismo. Parte significativa dos homens de ciência adotou a perspectiva das teorias racistas para pensar os dilemas e perspectivas da nação e para justificar, com base nas supostas diferenças raciais, as hierarquias sociais que ainda opunham senhores e escravos, mas também e principalmente a “boa sociedade” e a crescente população pobre e livre, formada por negros, índios e mestiços. (MOREIRA, 2008, p. 70, grifo do autor).

Os ideais liberais que fomentaram a abolição da escravatura não foram suficientes para impedir o desenvolvimento do pensamento racista no seio da sociedade brasileira que buscava construir a sua identidade. A diversidade de instituições que aprofundavam suas doutrinas a despeito do tema racial provocava uma maior cisão social, sendo a ciência base inquestionável de tal entendimento. O descobrimento de novos territórios e de novos povos inspirava os homens da ciência, que atribuíam de maneira imperiosa a soberania do homem branco em detrimento dos novos povos recém-descobertos. Os chamados selvagens, entendidos como seres primitivos, mereciam estudos detalhados sobre os impactos que para uma sociedade em formação acarretariam; também se questionava como e em quanto tempo o processo de miscigenação ocorreria, objetivando-se, ao final, o branqueamento da população. 3.1. eugenia O desenvolvimento de estudos sobre as raças acompanhava a evolução histórica do homem que estava dando passos largos para buscar o domínio nas ciências. O estudo sobre as espécies biológicas tinha a mesma intensidade. Uma das principais investigações sobre a evolução, que desencadeou uma enorme gama de outros estudos na área, foi “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin (2003), publicada em 1859. A obra em si não tratou do assunto, mas o citado autor em “[...]Descent of man, and selection in relation to sex (A descendência do homem e a seleção com relação ao sexo) de 1871, procurou estender também aos seres humanos os mesmos princípios da seleção natural.” (DEL CONT, 2008, p. 202, grifo do autor). Darwin (2003) analisou elementos que para a época afrontavam princípios e dogmas. Os Naturalistas e a Igreja Católica conduziam de modo uniforme o trato 196

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a despeito do tema, tendo como bandeira a imutabilidade das espécies, em que cada ser vivo seria criado separadamente e não possuía qualquer tipo de ligação. Com a perspectiva evolucionista, introduzida em 1859, os estudos voltavam-se, então, para a sua aplicabilidade sobre o homem, posto que o citado autor não se aprofundou no tema. Vários autores iniciaram então trabalhos nesse sentido, tendo como destaque Francis Galton (1865), que cunhou a expressão eugenia, palavra do grego que representa “bem nascido”, como ramo da ciência dedicada aos estudos das raças humanas. A partir desse momento, eugenia passou a indicar as pretensões galtonianas de desenvolver uma ciência genuína sobre a hereditariedade humana que pudesse, através de instrumentação matemática e biológica, identificar os melhores membros – como se fazia com cavalos, porcos, cães ou qualquer animal –, portadores das melhores características, e estimular a sua reprodução, bem como encontrar os que representavam características degenerativas e, da mesma forma, evitar que se reproduzissem. (DEL CONT, 2008, p. 202).

A seleção natural introduzida pela teoria evolucionista estava ganhando novos contornos, agora sob a égide da transmissão de características, em que hereditariedade deveria ser sistematizada. O desenvolvimento dos estudos realizados por Galton (1865) estava voltado a sistematizar a transmissão de características. Contudo, comparando-se os estudos de Darwin (2003) e Galton (1865), o primeiro autor se ateve aos elementos que pudessem interferir na formação das espécies para alcance da melhor forma física. Ocorre que as referidas espécies eram não humanas. Já Galton (1865) buscava, além da melhor forma física, a melhor forma mental do homem, demandando, consequentemente, maior sistematicidade, o que pretendeu suprir principalmente por meio de questionários, com enquetes que adentravam em subjetividades. Entretanto, ambos os trabalhos concluíram que a seleção natural das espécies advém da transmissão das características. Assim, os métodos reprodutivos tinham maior impacto na melhoria da população, porem eram nulos quanto ao aprimoramento das condições sociais. What is true for the entire race is equally true for its varieties. If we were to select persons who were born with a type of character volume

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that we desired to intensify, - suppose it was one that approached to some ideal standard of perfection – and if we compelled marriage within the limits of the society so selected, generation after generation; there can be no doubt that the offspring would ultimately be born with the qualities we sought, as surely as if we had been breeding for physical features and not for intellect or disposition.4 (GALTON, 1865, p. 321).

O pensamento colacionado representa uma perspectiva que durante muito tempo se arraigou no seio da ciência como uma teoria válida, predominando na cultura da sociedade e fomentando a cisão social e dando suporte a teorias racistas. No Velho Mundo, esses estudos passavam cada vez mais a serem considerados na aplicação de políticas, utilizando práticas de separação social ou miscigenação ou, muitas vez, de extermínio, com o propósito de extirpar da população raças inferiores que poderiam interferir no crescimento. Medidas como exames pré-nupciais, restrição à procriação em idade avançada, portadores de doenças degenerativas, ou de pessoas com alcoolismo além de outros transtornos mentais, eram indicadas aos governos para um maior controle biológico, a fim de possibilitar à população um nível de perfeição racial que proporcionasse o crescimento do país. A condução de tais propostas aos governos era considerada quando da análise de políticas imigratórias, de saúde, de educação e outros, posto que, cientificamente, não haveria avanços na população com políticas sociais. A análise apontada pela eugenia dispunha uma ineficácia de tais elementos como métodos de avanço na melhoria da população. Assim, as medidas de reprodução, indicadas pela eugenia, seriam o melhor caminho para o alcance de uma população perfeita. Os estudos das raças humanas, advindos da Europa, tinham por gênese epistemológica o mesmo que se aplicava aos animais, como já asseverado. A

4 Tradução livre: O que é verdadeiro para toda a raça é igualmente válido para as suas variedades. Se fôssemos selecionar pessoas que nasceram com um tipo de característica que desejamos intensificar – suponha que foi um que se aproximou para algum padrão ideal de perfeição – e se nós compelimos o casamento dentro dos limites da sociedade tão selecionada, geração após geração; não pode haver dúvidas de que, finalmente, a prole nasceria com as qualidades que procuramos, como certamente como se nós tivéssemos a reprodução de características físicas e não para o intelecto ou alienação.

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utilização de tais métodos decorre da constatação de que a hereditariedade era apontada como fator principal de transmissão de características, boas e ruins, físicas e intelectuais. Procedia-se como na criação do melhor cavalo de corrida, que demanda cautelas e manipulação de toda a linhagem do qual se origina. Last but not least, we may identify a third field in which the concept of “race” was omnipresent before the eighteenth century. It is this field which we should look to in order to study some of the main elements that constituted the concept of “race” in natural history. This field, however, was also deeply connected to nobiliary practices. I am referring to breeding practices , and especially to horse breeding. Breeders considered race to be a specific object of knowledge and power. Through a variety of practices, they attempted to control the reproduction of the animals they had chosen in order to produce the best descendants, thus obtaining a good race. Issues such as the reproduction and conservation of a race’s qualities were thus fundamental to breeders, and in this field, “race” was mainly reduced to mere natural characteristics (which was not the case in questions of nobility). A race’s improvement and preservation consequently implied taking care of the entire range of animals’ natural functions: reproduction, nutrition, and living conditions.5 (DORON, 2012, p. 80).

A política governamental, então, verteu para a cisão entre os membros da população considerados perfeitos e os selvagens recém-descobertos, incluídos nesse grupo aqueles que teriam condições sociais que os impediriam de ser igualados aos perfeitos. A segregação quando não possível, levava à adoção de

5 Tradução livre: Último, mas não menos importante, pode-se identificar um terceiro campo em que o conceito de “raça” era onipresente antes do século XVIII. É neste campo que devemos olhar a fim de estudar alguns dos principais elementos que constituíam o conceito de “raça” em história natural. Este domínio, no entanto, foi também profundamente ligado às práticas nos palácios. Estou me referindo a práticas de criação e especialmente à criação de cavalos. Criava-se a raça considerada para ser objeto de conhecimento e poder. Através de uma variedade de práticas, eles tentaram controlar a reprodução dos animais que tinham escolhido a fim de produzir os melhores descendentes, obtendo assim uma boa corrida. Questões como a reprodução e conservação das qualidades de uma raça, portanto, foram fundamentais para criadores, e neste campo, “uma raça” foi principalmente reduzida a meras características naturais (que não era o caso nas questões da nobreza). Melhoria e a preservação de uma raça consequentemente implícita cuidando de toda a gama de funções naturais dos animais: reprodução, alimentação e condições de vida. volume

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medidas mais extremas como o extermínio, o abandono, entre outros. A eugenia, como ciência dedicada a perseguir a melhor raça humana, dividiu-se em positiva, pela necessidade de perseguição de linhagens perfeitas com utilização de métodos reprodutivos; e eugenia negativa, pela forma de tratamento perante os humanos considerados imperfeitos, sendo necessária a prática de medidas segregatórias que deveriam, em tese, proteger a raça perfeita das características negativas carregadas por indivíduos imperfeitos. A análise científica do conceito de raça humana, no final do século XVIII, teve uma polarização quando emergiu a hipótese de degeneração das raças, “[...] chamavam-se de degeneradas espécies consideradas inferiores, porque menos complexas em sua conformação orgânica” (SCHWARCZ, 1993, p. 46), o que com a virada do século passou a ser conhecido como desvio patológico. Os estudos avançavam para perspectivas deterministas em que a antropologia criminal ganhava corpo na análise física dos criminosos, expondo traços biológicos como elementos objetivos de constatação de assassinos e outros tipos de criminosos. A busca incansável do homem pela melhor compleição física e mental dele próprio e de sua descendência culminou com a tentativa de sistematização da eugenia com base em argumentos científicos e a esperança de melhorar e aperfeiçoar a espécie humana através do controle reprodutivo dos indivíduos. (MAI; ANGERAMI, 2006, p. 252).

O pensamento sobre as raças humanas se espalhou e predominou durante muito tempo em todo o mundo. As consequências da eugenia foram sendo sentidas ao longo do século XIX, no qual as teorias racistas, a segregação social, o arraigado sentimento de preconceito, discriminação e racismo se desenvolviam no seio da sociedade, que absorvia de forma plena as análises científicas, introduzindo, ainda no decorrer do século XIX, elementos religiosos e sociais nas características biológicas. 3.2. república democr ática r acial do br asil Ocorre que, enquanto a ciência, em especial a eugênica, perquiria as razões pelas quais existiam seres humanos com múltiplas características, a evolução social fazia com que os estamentos se marcassem e criassem um grande vazio 200

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intransponível entre diferentes tipos de classes. Nos Estados Unidos, a cisão social era caracterizada por uma divisão cristalina entre estados do sul e do norte, uns liberais e outros conservadores, fato que ainda hoje gera muitas celeumas, de todas as espécies. Em igual cisão, a Europa mostrava suas peculiares aversões aos judeus, não se escusando do arraigado sentimento de superioridade perante os selvagens recém-conquistados e em estudo. Entretanto, o sentimento perpassado pelos viajantes e estudiosos que transitavam pelo Brasil era de que aqui não havia cisão social. A mensagem recebida pelo mundo, e inclusive acriticamente recepcionada pelo povo brasileiro, era a de que o negro ou o índio, diante das políticas abolicionistas poderiam ascender socialmente. A miscigenação étnica, existente à época na sociedade brasileira, perpassava essa perspectiva de inexistência de discriminação racial. Evidente que durante o século XIX a cultura da cisão social em razão da cor da pele, sedimentada por supostas noções científicas de diferentes raças, escalonando-as, redundava numa hierarquização de classes. Cada classe possui sua composição bem distinta uma da outra, não sendo, contudo, no plano imaginário, como nos outros países, impossível a ascensão social. O negro, por exemplo, durante o período colonial estava restrito ao seu local de escravidão, ficando sua cultura delimitada àquele espaço. Com a abolição da escravatura, sua posição de escravo passou à de assalariado, mas com pouco poder de barganha. Essa perspectiva em nada correspondia com pensamento europeu e americano, levando a crer que no Brasil existia uma sociedade de harmonia racial. Entretanto o negro, em especial, não deixou de sofrer com o estigma da escravidão com a vigência da República no Brasil. As legislações criminais se dirigiam com enfoque, não por acaso, a atos que representavam sua existência na sociedade. O Código Criminal do Império, de março de 1830, estabelecia penas severas aos negros em virtude prática de atos, como a capoeira, que hodiernamente, ao contrário, é duplamente reconhecida como patrimônio cultural do país, tanto pela roda que a caracteriza, bem como pelo ofício dos mestres que a transmitem (FERREIRA NETO; CUNHA FILHO, 2013). De igual modo, o Código Penal de 1890 apenas aboliu a pena de morte, mas estabelecia, entre outras, penas contra a prática da mendicância e da vadiagem. Com igual restrição, os direitos políticos dos negros foram inicialmente tolhidos pela imposição da volume

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alfabetização como elemento para o exercício do direito a votar e ser votado, o que poderia abranger inclusive os brancos, mas a intenção era a de isolar politicamente os negros. Ademais, a institucionalização do pensamento escravocrata estava marcada na sociedade e nas repartições públicas. A principal guinada para uma mudança no pensamento brasileiro fora promovida pelos próprios negros, que empunharam movimentos populares, greves e protestos contra as práticas escravocratas ainda empregadas nos ambientes de trabalho, reivindicando a inserção política e social no país. No início do século XX, o Brasil passava por uma grande agitação social, surgindo movimentos populares de vários matizes: o cangaço, as romarias de Padre Cícero, a Guerra de Canudos e o Contestado. A participação de pessoas negras era expressiva nesses movimentos, confrontando-se com a República Oligárquica. Em 19 de novembro de 1907, Rui Barbosa publicava um despacho que ordenava a queima de livros e documentos referentes à escravidão negra no Brasil. A capoeira foi criminalizada. Tecnologias disciplinares como os castigos corporais na Marinha, que haviam sido abolidos um dia após a proclamação da República, foram legalizados um ano depois, sendo autorizadas pela lei das 25 chibatadas para as penas mais graves. (SALES JUNIOR, 2009, p. 38).

As investidas da população contras as práticas escravocratas estigmatizadas na sociedade e na República não eram recebidas de bom grado, tendo sempre fortes retaliações que culminavam muitas vezes em grandes castigos, levando a várias mortes. Um destaque a ser dado, para enfatizar o avanço negro na luta pelos seus direitos, é a Revolta da Chibata, ocorrida em 1910, no Rio de Janeiro, liderada pelo marinheiro negro João Cândido, contra o modo de punir os marujos faltosos com 250 chibatadas de corda com agulhas de aço, em frente a toda a tripulação. Nessa mesma época, a população brasileira, em especial a do estado de São Paulo, recebeu imigrantes de distintas as origens étnicas, mas todos advindos da Europa, e que traziam consigo o pensamento eugênico; por serem melhores capacitados aos desafios laborais de então, assumiram posições importantes dentro dos estamentos operários e burgueses, criando ares separatistas, já que os negros e, os próprios brancos aqui radicados e nascidos, sentiam-se excluídos em seu próprio ambiente. 202

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O desenvolvimento dos debates sobre a questão racial no Brasil, contudo, dava-se quase que apenas entre os negros, haja vista a sua parca organização política, que pouco reverberava na imprensa. Raros membros dessa comunidade ascendiam econômica e intelectualmente, saindo do grupo da diáspora negra, criando a própria hierarquia social. Com o acontecimento de eventos como o Congresso da Mocidade Brasileira, o perfil de desagregador revestia-se contra o próprio movimento, criando um racismo por parte do próprio negro. Esses movimentos serviram para reforçar entre “brancos” e “negros” sentimentos de lealdade com a ordem social vigente e fazê-los tomarem consciência da conveniência de regular formalmente as garantias de igualdade jurídica e política perante a lei, conduzindo à inclusão de um dispositivo de combate ao preconceito de cor na Constituição de 1934. (SALES JUNIOR, 2009, p. 45).

Com o despertar desse processo, a integração do negro ao país teve início. A sua inserção seria mais ampla, abrangendo todos os aspectos da vida em sociedade, religião, trabalho, economia, política, todos os setores do país, em especial, as próprias instituições passariam a ter a política integracionista como norte a ser aplicado em seus atos. Com o governo de Getúlio Vargas, o Estado Novo, a implantação de políticas populares que assegurassem essa inserção avançou, principalmente pela via legal com o advento da legislação trabalhista que beneficiou, principalmente, a classe operária em grande parte formada por negros, índios e mulatos. A proposta de inserção racial absoluta não teria êxito se o pensamento da sociedade dominante não se revertesse. Muitos setores ainda relutavam na aceitação dos negros como membros da sociedade brasileira, a identidade nacional ainda não estava construída. As atitudes de cordialidades perante os negros passariam a ser assumidas, mas estigmatizadas. A participação dos intelectuais da época para o desenvolvimento de uma identidade nacional que proporcionasse a criação de um ambiente social de inclusão foi massificada, tendo como obra marcante “Casa-grande & Senzala”, de Gilberto Freyre (2003). O aporte intelectual, legal e as políticas de integração, preconizavam um ambiente de inserção racial. Contrastando com as ações institucionais, a sociedade não absorvia com bom grado e de forma plena e absoluta essa perspectiva, agindo volume

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ainda com práticas racistas perante negros, índios e mulatos. Não seria um processo de indução pacífico, mas as ações constituídas visavam fazer eclodir uma democracia racial. Meu entendimento, [...] é que devemos ver na “democracia racial”, também, um compromisso político e social do moderno Estado republicano brasileiro, que vigeu, alternando força e convencimento, do Estado Novo de Vargas até a ditadura militar. Tal comprometimento consistiu na incorporação da população negra brasileira aos mercados de trabalho, na ampliação da educação formal, enfim na criação das condições infra-estruturais de uma sociedade de classes que desfizesse os estigmas criados pela escravidão. A imagem do negro enquanto povo e o banimento, no pensamento social brasileiro, do conceito de “raça”, substituídos pelos de “cultura” e “classe social”, são suas expressões. (GUIMARÃES, 2002, p. 110,).

Efetivamente viam-se esforços desenvolvidos por todas as áreas institucionais com o propósito de construção da democracia racial no Brasil, o que gerou resultados propícios para o desenvolvimento da identidade nacional da população brasileira. O sentimento idealizado por muitos ecoou em outros solos a ponto de muitos acreditarem que “O Brasil é conhecido através do mundo pela sua democracia racial. O preconceito e a discriminação raciais são relativamente moderadas [...].” (FREIRE-MAIA, 1973, p. 7). Por outro lado, os estigmas enraizados, da época recém-encerrada do período escravocrata, nas classes mais abastadas se sustentavam incrédulos na pretendida democracia racial, não olvidando esforços para destituir qualquer tipo de ascensão social das outras classes que consideravam inferiores. A conjuntura real se mostrava voltada para colidir com essas manifestações racistas ainda persistentes; os esforços institucionais foram evoluindo após o Estado Novo, e até na ditadura militar6, todas dirigidas a expor, de forma evidente, que o negro, o índio e o mulato eram parte da sociedade, da história do país e constituíam a identidade nacional do povo brasileiro. 6 Na oposição ao regime militar constituído, os movimentos sociais se intensificaram e luta anti-racista também se incorporou com a formação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU) e o Grupo de Negros do MDB (Movimento Democrático do Brasil) (SALES JUNIOR, 2009, p. 70). Colocar o significado de MDB.

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As ações afirmativas ainda ecoam estranhas em pleno século XXI, tanto em suas consequências, quanto em novas formas de políticas de inclusão social, e ainda persistem sentimentos estigmatizados que se apossaram de um ideário escravocrata. Contudo, a necessária revisão histórica perpetrada remete à evidência de que a democracia racial não representa um status que restou presente, durante determinada época política do país, mas, sim, uma condição necessária para convivência pacífica e para a formação da identidade nacional. Como imaginário social, o Mito da Democracia Racial é um horizonte: não é um objeto entre outros objetos, senão um limite absoluto que estrutura um campo de inteligibilidade e que é, assim, a condição de possibilidade da emergência de todo e qualquer objeto. Portanto, o Mito da Democracia Racial não é meramente uma crença, ou falsa consciência, mas um modo de funcionamento das práticas discursivas, um mecanismo. (SALES JUNIOR, 2009, p. 87).

O desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a inserção do negro, do índio e do mulato no seio da sociedade como membros reconhecidos da identidade nacional no século XXI representam nada mais do que a busca da plena implantação da democracia racial, que desde a abolição da escravatura vem ganhando corpo e se fortificando nas estruturas políticas e sociais, avançando na derrubada do preconceito e na desconstrução de juízos generalizados que geram estigmas quem alavancam a prática do racismo. O termo democracia racial sobressaiu-se em 1944, nos jornais, e, em 1952, junto à literatura acadêmica, mas as ações e condutas que consumaram esse termo há muito já vinham sendo praticadas. A maior consequência desse pensamento foi a mudança de paradigma no tocante ao trato com negros, com índios e com mulatos, que não seriam mais vistos pela cor, ou pela raça, mas, sim, pela classe econômica. De forma miscigenada, o povo brasileiro conduziu-se a abandonar essa circunstância eugênica para adotar noções de povo de múltiplas etnias, consubstanciadas em classes sociais. O que não obsta da existência de condutas racistas e discriminatórias por parte da classe hegemônica que não aceitava, socialmente, a nova classe. O contraste entre a democracia racial, representada pelas práticas e discursos políticos, e as atitudes racistas da sociedade aduziam a uma total incongruência entre a sociedade volume

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e o governo. Enquanto muitos intelectuais praticam o discurso da democracia racial, outros o rejeitam por nele perceberem nada além de um mito. Ou seja, ao que parece, a denúncia do “mito da democracia racial”, [...], que respaldou toda a mobilização e protestos negros nas décadas seguintes, sintetizando a distancia entre o discurso e a prática dos preconceitos, da discriminação e das desigualdades entre brancos e negros no Brasil, finalmente se esgota enquanto discurso acadêmico, ainda que como discurso político sobreviva com alguma eficiência. (GUIMARÃES, 2002, p. 164-165).

A real expressão democracia racial sobrevive, então, como elemento simbólico e objetivo contínuo, pois de fato o que existia, e ainda existe, é uma proposta política, válida, de inserção e miscigenação social, mas que na prática não pôs fim aos atos preconceituosos e racistas. As ações políticas desembocam no século XXI, assim como o sentimento de ódio que rodeia algumas classes, ainda contaminadas pelo pensamento eugênico que dominou grande parte dos séculos XVIII e XIX. 4. neonazismo: do judeu ao nordestino A sociedade brasileira, formada por brancos, negros e índios, tinha como brancos os lusitanos e imigrantes, advindos das mais diversas regiões da Europa. A miscigenação racial era iminente, bem como a propagação das culturas dos povos inseridos no Brasil. Dentre os mais diversificados elementos culturais transportados, a ideologia fascista contaminou o cenário político, e transmutouse, para muitos, em ações que aderiam à política nazista do antissemitismo. Sendo desnecessário perquirir todas as diferenças entre o fascismo e nazismo, um elemento de destaque a ser evidenciado nessa separação é o antissemitismo. Não houve um governo nazista no Brasil, mas, sim, um governo fascista que desenvolveu uma política imigratória antissemita, não evidenciando, portando, um governo nazista, além de outros fatores que contornam sinuosamente as peculiaridades de cada regime. 4.1. antissemitismo na er a vargas Precedendo a emersão do Estado do Novo, a preocupação com a identidade nacional brasileira animou no início do século XX estudos sobre a população, 206

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equacionando, em particular, ideais eugênicos e antissemitas que despertavam no ambiente autoritário que se formava. A população de judeus em 1920 no Brasil era constituída de 15 mil pessoas e cresceu para 75 mil na década de 1940, resultado de uma onda imigratória decorrente das perseguições antissemitas perpetradas pelos regimes autoritários da Europa. Destarte essa evidência populacional, as ações para contenção da imigração judaica eram visíveis. O incremento dessas ações ocorreu justamente pelo ambiente político existente no Brasil. Assim, a partir da Revolução de 30, com a ascensão e a participação de uma burguesia comercial e industrial nas esferas do poder, com a emergência de grupos políticos de extrema-direita e com a formulação de um pacto Igreja-Estado, podemos verificar, serpenteando por entre os valores liberais exaltados, a recuperação de ideias raciais. (CARNEIRO, 2001, p. 56).

O trilhar do percurso político fascista brasileiro é decorrente da proximidade existente à época entre o Brasil e a Itália. Os italianos desenvolviam uma política voltada para o problema do excedente demográfico ocorrido nos anos 1920, buscando justamente realizar acordos internacionais de emigração com o país que estava em fase de industrialização agrícola. Mas não somente a emigração seria o objetivo da política italiana, que pretendia dar todo o suporte cultural e ideológico aos italianos radicados no exterior, para que esses pudessem difundir o pensamento italiano pelo mundo. Nos anos 1930, os movimentos separatistas dos estados do sul do Brasil cresceram, e a Itália estava propensa a apoiar esses movimentos, já que a maioria da população de origem italiana se concentrava nessa parte do país. A Ação Integralista do Brasil, movimento com status de partido político, que emergiu em 1932, alinhava-se com a doutrina fascista, recebendo o apoio italiano no que era chamado de fascismo latino. Assim, o fascismo percorria o âmbito político que antecedia o Estado Novo, o sentimento de reconstrução política emergiu com o nacionalismo como base forte de sustentação do novo governo que iria emergir. Do lado oposto o comunismo e o judaísmo se opunham aos integralistas. A imprensa, ao mesmo tempo, divulgava os fatos ocorridos na Guerra Civil espanhola apresentando os comunistas à sociedade brasileira identificandoos a terroristas, bem como fazendo uma relação com o bolchevismo e com os volume

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judeus. Em decorrência, Ação Nacional Libertadora sofreu repressão e perdeu espaço como movimento esquerdista, além de absorver o estigma de comunista e judia, significando, à época, por desarrazoada metáfora, ser contrária à pátria e a paz social. O autoritarismo emergiu com o nacionalismo, culminado com o Golpe de 1937, levando à ascensão de Getúlio Vargas, que buscou tornar o Estado forte e centralizado na pessoa do chefe supremo, adotando em muitas ações a doutrina fascista, sendo acolhido como parceiro pela Itália, da qual recebeu o apoio. Os estudos eugênicos prevalecentes na Europa ainda ecoavam em solo brasileiro e muitos intelectuais do governo os aplicavam em políticas públicas, principalmente no que concerne ao controle imigratório antes da segunda guerra mundial. Ademais, o sentimento nacionalista se arraigou no seio da sociedade que se sentia ameaçada com a inserção de imigrantes nos centros urbanos que ascendiam comercialmente, derrubando os brasileiros de seus postos. O receio de que mais imigrantes adentrassem nos centros urbanos e impedissem o avanço comercial dos nativos se aliou à política imigratória, ao pensamento eugênico e à inclusão da religião judia como elemento inerente à cultura dos filhos de Israel. Por outro lado, o fortalecimento da política antissemita se difundia pela Europa se irradiando numa difusão de perseguições que impeliam os judeus a embaixadas e consulados de outros países em busca de um refúgio, sendo o Brasil um excelente lugar para ter como lar, pela sua evolução agrícola, industrial e comercial. O Brasil, entretanto, fechou-lhes as portas adotando medidas restritivas em nome da “construção de uma nação forte, de uma raça eugênica e de proteção aos sem trabalho.” Oficialmente enumerou os “inimigos da Pátria” colocada em perigo com a presença de elementos tidos como indesejáveis, nocivos à constituição de uma identidade nacional. Juntamente com os representantes da raça amarela e da negra, os judeus (genericamente denominados de “semitas” e tratados como raça) passaram a fazer parte da lista dos elementos tidos como nocivos do ponto de vista racial, étnico, político, social e moral. (CARNEIRO, 2001, p. 105, grifos do autor).

O tratamento dispensado aos semitas, coibia a imigração desses por meio de critérios objetivos de concessão de vistos, sendo restritos a turistas, dependendo da procedência e com quantidade limitada. O estereótipo do judeu comunista, 208

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raça inferior e que advinha ao país para retirar o emprego do brasileiro estava arraigado no seio político e também na sociedade, ocasionando um elemento de ódio que repercute no século XXI com movimentos neonazistas que difundem o antissemitismo e perseguem judeus. Apesar das ações do Estado Novo voltadas a impedir a imigração do judeu, muitos conseguiram burlar as regras imigratórias brasileiras, conseguindo um refúgio no país. De toda forma, o sentimento antissemita estava presente e fortalecido na era Vargas, tanto politicamente quanto no seio da sociedade. As elites brasileiras acreditavam que a inserção do judeu no Brasil se daria com o propósito de ocupar a lacuna comercial existente na economia agrícola, tanto que o projeto de imigração era voltado para as regiões de produção agrária do sul do país, mas a sua inserção ocorreu, também, nos grandes centros urbanos, onde ascenderam economicamente em outros setores. Ademais, os usos e costumes dos judeus, principalmente no que concerne a aspectos relativos à sua religião, permaneciam sendo praticados sem nenhum tipo de preocupação com a peculiar identidade brasileira com o catolicismo, o que elevou o grau de rejeição dos judeus perante a elite brasileira. 4.2. influências nazistas e o neonazismo Ainda sobre o Integralismo, no período que antecedeu o Estado Novo, há quem esboce a influência da ideologia nazista no que concerne ao ódio ao judeu, tanto pelo fato de que grande parte dos imigrantes alemães estava radicada no sul do país, berço do movimento integralista, quanto pelo sentimento nacionalista, sustentado pelos nazistas que se alinhavam ao momento político de busca da identidade nacional por que passava o país. Na década de 1920, o Partido Nazista contava com cerca de 500 filiados dentre os 25.000 imigrantes da Alemanha radicados em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. As práticas de disseminação da ideologia nazista ocorriam nas escolas e em jornais, mas não se restringiam ao sul do país, já que a visibilidade econômica do regime autoritário alemão se disseminou mundo afora com a crise de 1929. A crise da democracia liberal, os bons resultados que vinham alcançandos os regimes totalitários e a oposição destes ao Comunismo contribuíram para a popularidade dos fascismos volume

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entre luso-brasileiros. Pode-se dizer que grande parte da imprensa catarinense era simpática aos fascismos, ao menos até 1938, pois as relações entre Brasil e Alemanha eram bastante profícuas. Exemplo disso foram às relações comerciais entre os dois países, que, com a ascensão de Hitler, desenvolveram-se de modo considerável, tanto que em 1936 a Alemanha superava os Estados Unidos nas importações para o Brasil e as exportações catarinenses tinham os alemães como o seu segundo melhor comprador, só perdendo para a Argentina. (ZANELATTO, 2001, p. 5).

A roupagem nazista nos ideais fascistas praticados no Brasil teve declínio com a Segunda Guerra Mundial, mas não se dizimou. O sentimento nacionalista guardou-se em movimentos de extrema direita que se espalham pelo mundo. Reemergiram, sobremodo, com os “cabeças raspadas”, ou na língua inglesa skinheads. Nesse caso, havia um sentimento demasiado de pertença a determinado país ao ponto de eclodir na violência contra grupos estrangeiros ou que tivessem qualquer tipo de característica diversa da sua. A influência desses movimentos não tardou para chegar ao Brasil, com grupos intitulados de Carecas do subúrbio e White Power. As conotações políticas são pormenores que não lhes interessavam, apesar de alguns grupos praticaram uma ideologia excludente introduzida pelo pensamento nazista muito utilizado no que concerne à perspectiva de raça, mas as peculiaridades no que concerne à organização e à prática da violência sem pudor eram grafadas e repercutidas como elementos característicos. Existem cerca de 12 grupos neonazistas no Brasil, espalhados sobretudo por São Paulo (capital e interior), Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Brasília, e indicações de que estariam começando a se organizar também em algumas capitais do Nordeste. Suas origens têm duas vertentes diferentes: 1) os que se intitulam herdeiros direitos dos antigos integralistas dos anos 30, seguidores de Plínio Salgado, que bebem diretamente nas fontes de Benito Mussolini e Adolf Hitler – incluem profissionais liberais, como advogados e jornalistas, também militares reformados, comerciários, donas de casa, universitários, podem ser jovens ou mais velhos, geralmente de visual conservador, ascético; 2) os novos “carecas” / skinheads, cujos primeiros grupos apareceram no final da década de 70 – 210

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na maioria jovens de origem proletária ou da baixa classe média, que atuam em gangues, de visual agressivo, usando coturno, cabelo muito curto ou raspado, jeans puídos, bonés, capuzes e com tatuagens (dragões, bandeiras e cachorros) espalhadas pelo corpo. Eles portam correntes, soco-inglês e revolveres como armas; habitualmente praticam halterofilismo, musculação e lutas marciais (kung fu, caratê, chutebox, etc.), em permanente culto a forma física; são contra o consumo de bebidas alcoólicas e drogas. (SALEM, 1995, p. 43-44).

Os movimentos neonazistas não possuíam um cunho político, mas um extremismo que pregava a defesa do grupo considerado como elemento único de identidade nacional, não admitindo qualquer tipo de elemento díspar. A conjugação dos movimentos rebeldes dos anos 1960 até os anos 1990 se desenvolveu em um ambiente em que o mundo vivia a Guerra Fria e as revoluções culturais e sociais, em que os valores eram objeto de mutação a todo o momento e o alinhamento a uma linha ideológica representava para o jovem o sentimento de pertença ao processo, muitas vezes, significava ter uma identidade nacional. A proliferação dos movimentos neonazistas ganhou o placo político com a formação de partidos radicais, tanto de direita quanto de esquerda, nos quais os grupos de violência se alinhavam. Na Europa, o discurso de antiimigrante ainda ecoa pelo temor de recessão da economia, proporcionando a formação de grupos voltados à discriminação de estrangeiros, com alinhamento aos partidos de Frentes Nacionais, como Faisceux Natiotialistes Européens (FNE), Parti Nationaliste Français e Phalange Française além do grupo de ramificação internacional National Front. O movimento também ecoa nos Estados Unidos onde, diante do tratamento jurídico dado à liberdade de expressão e pelo sistema faticamente político bipartidário, os grupos neonazistas se restringem a propagandas e manifestações de cunho racista. National Allience, American Nazi Party e Klu Klux Klan, são exemplos de grupos neonazistas norte-americanos que, por meio de atos de violência e discursos inflamados de racismo, disseminam o ódio a grupos, principalmente de negros e judeus, como nesse trecho do discurso de um dos líderes do Klu Klux Klan em que expõe: “Pessoalmente, acredito que os pretos deveriam ser devolvidos à África, e os judeus a Israel”. Ressaltando que nesse caso não houve qualquer tipo de condenação, cível ou penal, ao orador. Um volume

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episódio a destacar da participação política desses grupos nos Estados Unidos foi a candidatura a governador da Louisiana do chefe do Klu Klux Klan, David Duke, em 1991, obtendo 39% dos votos. A constatação de grupos neonazistas espalhados pelo mundo assevera a existência do ódio na sociedade, colhido das mazelas históricas da eugenia e de movimentos como o nazismo. Pela própria denominação, a proximidade entre nazismo e neonazismo se vincula essencialmente no sentimento nacionalista extremado e arraigado na cisão de grupos. No entanto, alguns estudiosos afirmam que o neonazismo se difere do nazismo por não defender a dicotomia usada pelo nazismo original baseada na discriminação: superioridade/inferioridade racial. Segundo esta linha teórica o neonazismo se fundamenta na diferença cultural contida no discurso de segregação dos povos. Tal preceito sustenta a idéia de que cada povo deve manter sua identidade cultural e nacional em seu determinado meio. Assim, o neonazismo defenderia a incompatibilidade entre grupos distintos. A discriminação que era racial agora seria cultural. Esta nova linha discriminatória chamada de “novo racismo” é baseada na premissa de que “todas as raças e culturas possuem o direito ao desenvolvimento pleno e irrestrito, porém, devem se manter separadas e independentes, ou mais precisamente, este desenvolvimento deve se dar dentro dos limites bem definidos, no interior da cultura própria a cada uma delas”. (JESUS, 2003, p. 2003).

A noção eugênica, baseada em elementos científicos que buscava a sistematização e a evidência da existência de raças entre os humanos, que sedimentou o racismo durante séculos e cujos efeitos ainda estão arraigados em parte da sociedade que adota preceitos conservadores e extremistas passa, agora, à raiz cultural. Para muitos, a definição de classe social pelas variantes de procedência nacional, regional, poder, riqueza, cultura, prestígio ou status evidencia a desigualdade ocasionando o preconceito, a discriminação e o racismo. As noções brasileiras de racismo ainda repercutem em atitudes nas quais “Negros são ainda descritos por meio de supostos traços ‘lombrosianos’, os nordestinos ainda são (mal) caracterizados por conta do determinismo geográfico – e da incidência do sol sobre seus cérebros”. No Brasil, os grupos neonazistas se dirigem 212

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a elementos de cor, religião, orientação sexual e procedência nacional. Cada grupo possui característica e organização própria, mas, em sua maioria, praticam atos de violência e propagandas dirigidas aos negros, aos judeus, aos homossexuais e aos nordestinos. Cada grupo neonazista tem as suas peculiaridades. Por exemplo: dois fanzines do White Power, intitulados Orgulho Paulista e Raça e Pátria, ostentam frases como: “Temos orgulho de ser (sic) brancos, descendentes de europeus e não devemos abrir mão disto”; e “vida longa à raça branca”. O primeiro número do Raça e Pátria, de maio/junho de 1989, que foi apreendido pela Polícia Federal em São Paulo, afirmava em seu editorial: “O migrante nordestino/ nortista somente atrasa nosso lado, FORA NORDESTINOS, estas terras são nossas!!!”. (SALEM, 1995, p. 49, grifos do autor).

A sociedade brasileira é composta das mais diversas etnias, com os mais diversos tipos de comportamentos sociais e ideológicos, os atritos existentes no que concerne ao preconceito, à discriminação e ao racismo, têm raiz em fatos históricos vivenciados pelo país em sua formação, passando pelo período da escravatura e extermínio de índios, ascensão do número de imigrantes, políticas institucionais de antissemitismo, ao neonazismo. Os valores evidenciados pelos grupos neonazistas são diversos do nazismo, mas se apossam de elementos históricos para evidenciar disparidades que passam a ser falseadas como características impuras e prejudiciais ao grupo. 5. conclusões Na sociedade brasileira do final do século XX e início do século XXI, os movimentos de ódio existentes fomentam sorrateiramente condutas discriminatórias e racistas, culminando em atos de violência dirigidas a grupos minoritários. Desde o seu descobrimento, o Brasil foi contemplado com uma multiplicidade étnica formada por índios que possuíam ampla diversidade cultural, sendo, em sua grande maioria, dominados pela colonização portuguesa, que dizimou incontáveis tribos, e, para tanto, inclusive estreitou os laços com outras, sempre deixando claro seu domínio sobre os que chamava de selvagens, que deveriam ser subjugados ou perecer. Como justificativa para tais atos, o índio foi estigmatizado por seu estilo de vida, a partir de pechas como preguiçoso e volume

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sem condições de realizar trabalhos mais árduos, já que não possuía propensão ao lucro, passando a ser visto, desde então, como incapacitado para gerir a própria vida e as terras que habitava, ou seja, um verdadeiro problema. De todo esse quadro ideológico emergiram os estereótipos, preconceitos, discriminação e racismo de que ainda hoje são vítimas os povos autóctones. Em igual forma, os negros trazidos como escravos durante os períodos colonial e imperial eram considerados produtos descartáveis, utilizados na mão de obra por fazendeiros, e não possuíam qualquer tipo de participação social a não ser o papel de subalterno de seu senhor. Com a abolição da escravatura, a liberdade então desejada não traria o espaço político e social que se imaginara conquistado. Também por causa de estigmas preconceituosos, mesmo após a Lei Áurea, o negro foi considerado como indivíduo incapaz de desenvolver atividades que não fossem as braçais. Deste modo, a decantada miscigenação cultural proporcionaria para a sociedade brasileira a divisão em classes, onde índios e negros estavam abaixo e os brancos acima Aos olhos do mundo, contudo, o Brasil possuía uma esplêndida democracia racial com a inserção de várias matrizes étnicas na sociedade e uma ideia de convivência pacífica entre estas. Ocorre que a corrente científica dominante, principalmente no século XIX, expunha a existência de raças humanas distintamente capacitadas, o que demandava providências públicas no sentido da melhoria genética, designada como eugenia, que, corolário, tinha por finalidade a busca da melhor linhagem Assim, os atos de discriminação e de racismo eram comuns, sendo inacessível para muitos o exercício de direitos. Em países como Estados Unidos, o negro era perseguido em alguns Estados ao ponto de serem presos, torturados e mortos. No Brasil, pela exist~encia mais dissimulada de práticas de racismo, a imaginada da democracia racial levou à crença da convivência pacífica, mas isso não se refletia na realidade. O preconceito incutido no seio da sociedade perante o negro e o índio não fora mitigado, sendo a própria lei instrumento para perseguição de grupos minoritários. Os movimentos negros, pela mudança no pensamento da sociedade brasileira, proporcionaram o amadurecimento do país sobre este ponto, possibilitando o exercício de direitos políticos e civis de forma igualitária; contudo, os estigmas criados não foram combatidos, ensejando o surgimento e o desenvolvimento de 214

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estereótipos fincados nas ideias eugênica e escravocrata, culminando com atos de ódio. A evolução política com a República viabilizou mudanças, mas com a emersão do Estado Novo, a busca pela identidade nacional equacionou outro elemento de ódio, o religioso. Nesse particular, por conta da perseguição sofrida por judeus em toda a Europa e pela ideia de democracia racial, muitos vieram para o Brasil procurando um lar, e quando em terras brasileiras conseguiram muito mais, prosperaram economicamente. O avanço econômico dos judeus em grandes centros urbanos era visto como uma invasão já que eles ocupavam espaços comerciais que seriam dos brasileiros. Desse modo, o governo de Getúlio Vargas, alinhando-se com a ideologia fascista italiana deu início a uma política antissemita nos corredores imigratórios, além da própria sociedade desenvolver estigmas contra os judeus em decorrência de usos e de costumes adotados de forma diversa da cultura local. Vale lembrar que muitos imigrantes não eram judeus e advinham de toda parte do velho mundo, e com eles, suas culturas e estilos de vida. Muitos desses eram, aliás, antissemitas, cultuando a Alemanha nazista que tinha em uma de suas linhas ideológicas a superioridade da raça ariana. Radicada especialmente no sul do país, a política nazista espalhouse pelo Brasil e ganhou nova roupagem. Os estigmas existentes na formação da sociedade brasileira, que recaiam sobre o negro e o índio, passaram a incluir o judeu e grupos considerados nocivos, criando estereótipos, por exemplo, para homossexuais e nordestinos. Percebe-se, então, que os valores históricos, sociais, sexuais, religiosos e nacionais são extremados por indivíduos que se alinham a uma ideologia que historicamente sustenta a existência de raças, com superioridade de uma sobre as outras. Ademais, os juízos de valor são ultrageneralizados, criando estereótipos dos quais emergem situações de preconceito que não mais se restringem a grupos neonazistas, mas a toda a sociedade que pode absorvê-los, culminando, não raro, em atos de discriminação e de racismo. Os elementos de ódio existentes na sociedade brasileira desenvolveram-se desde o processo de formação, com o índio, o negro e o judeu, e ainda se formam perante as novas estruturas sociais emergentes, como homossexuais e nordestinos, sendo a conduta odiosa sempre baseada na ideologia da raça superior, agora não somente em razão da cor da pele, mas da religião, orientação sexual e procedência nacional. volume

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democr acia representativa, cidadania e participação social Liton Lanes Pilau Sobrinho1 Bárbara Guasque2

Resumo A democracia moderna padece de mazelas que comprometem sobremaneira sua eficácia e legitimidade. Embora a Constituição Federal contemple inúmeros mecanismos de participação, o exercício da cidadania, atualmente, ainda se restringe ao momento eleitoral. Esta inércia dos cidadãos coloca em xeque a concepção moderna de democracia representativa. O principal e maior passo para o amadurecimento da cidadania é a compreensão de que o escrutínio é apenas um nuance da democracia e que a cidadania se traduz em um exercício constante de participação contínua na vida política do Estado e da avaliação permanente de nossos governantes. É necessário sim aprimorar os instrumentos de controle e também que os mecanismos de participação já existentes sejam amplamente divulgados e acessíveis. Mas também é imprescindível a conscientização de todos os cidadãos de que a participação não é apenas uma letra morta presente em nossa Carta Magna e que ao povo é dada não somente a prerrogativa, mas a obrigação de participar, a fim de resguardar os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados e fortalecer a cidadania e os ideais democráticos.

Palavras-chave Democracia representativa; Cidadania; Controle social. 1 Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS (2008), Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC (2000). Possui graduação em Direito pela Universidade de Cruz Alta (1997). Professor dos cursos de Mestrado e Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí. Professor da Universidade de Passo Fundo. 2 Doutoranda em Ciência Jurídica no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade do Vale do Itajaí com bolsa PROSUP da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2011/2013). Pós-Graduada em Direito Ambiental pela Universidade Positivo - UP (2009). Advogada graduada em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (2003). volume

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Resumen La democracia moderna sufre de enfermedades que comprometen en gran medida su eficacia y legitimidad. Aunque la Constitución contempla numerosos mecanismos para la participación, la practica de la ciudadanía, en la actualidad aún se restringe a las elecciones. Esta inercia de los ciudadanos pone en cuestión la concepción moderna de la democracia representativa. El paso principal y más grande en la maduración de la ciudadanía es un entendimiento de que la votación es sólo un matiz de la democracia y la ciudadanía se traduce en un ejercicio constante de la continua participación en la vida política del Estado y de la constante evaluación de nuestros gobernantes. Es muy necesario mejorar los instrumentos de control y también que los mecanismos de participación existentes sean extensamente divulgados y accesibles. Pero también es esencial la conciencia de todos los ciudadanos de que la participación no es sólo una letra muerta presente en nuestra Constitución y que al pueblo se da no sólo el privilegio, sino el deber de participar, con el fin de proteger los derechos constitucionales fundamentales consagrados y fortalecer la ciudadanía y de los ideales democráticos.

Palabras clave Democracia representativa; Ciudadanía; Control social. 1. introdução O modelo democrático representativo contemporâneo contêm máculas que atentam contra a sua eficácia e legitimidade. Se por um lado a Constituição prevê uma democracia representativa e participativa, incluindo em seu bojo um rol de instrumentos que possibilitam a participação social, é fato que esta se ainda se limita ao momento eleitoral. Esta realidade é um atentado aos preceitos democráticos. Faz-se necessário analisar o real papel do cidadão no exercício da cidadania e, consequentemente, no fortalecimento da democracia e os meios de participação que foram colocados pela nossa Constituição ao alcance da sociedade. A participação popular pode ser considerada como a contribuição fundamental dos 220

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cidadãos na busca pela efetividade dos direitos e garantias fundamentais inscritos na Constituição de 1988 e, consequentemente, de uma democracia plena. 2. democr acia representativa: origens históricas Atribui-se o nascimento da democracia à Grécia antiga, mais especificamente o período compreendido entre os séculos VI e IV a.C. A democracia protagonizada pelos Gregos podia ser interpretada literalmente como o poder do povo, do demos, a despeito de muitas pessoas serem excluídas das decisões políticas e do exercício da cidadania, a exemplo dos escravos, das mulheres e dos estrangeiros. Bobbio elucida que: “Para os antigos a imagem da democracia era completamente diferente: falando de democracia eles pensavam em uma praça ou então em uma assembleia na qual os cidadãos eram chamados a tomar eles mesmos as decisões que lhe diziam respeito. “Democracia” significava o que a palavra designa literalmente: poder do demos e não, como hoje, poder dos representantes do demos”. (BOBBIO, 2000, p. 372).

As decisões eram tomadas diretamente pelos próprios cidadãos, sem quaisquer intermediários, o que era alvo de inúmeras críticas, conforme elucida Bobbio, exatamente em razão de sua natureza de poder dirigido pelo povo ou pela massa, ao qual foram habitualmente atribuídos os piores vícios da licenciosidade, do desregramento, da ignorância, da incompetência, da insensatez, da agressividade, da intolerância. O sufrágio universal, pelo qual exsurgiu a soberania do povo, só foi posto em prática a partir do século XIX, todavia, é inegável a contribuição grega para a ideia de que todos devem participar das decisões políticas. Já a ideia de representação, Hanna Pitkin elucida que os glosadores da antiga Roma propagavam a ideia de que o príncipe ou o imperador atuavam pelo povo romano, em seu lugar, cuidado do seu bem estar. No entanto não era a utilizada a palavra “representação”. A autora narra que: “até o século XVI não se encontra um exemplo de “representar” com o significado de “tomar ou ocupar o lugar de volume

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outra pessoa, substituir”; e até 1595 não há um exemplo de representar como “atuar para como seu agente autorizado ou deputado””. (PITKIN, 2006). A palavra representação passou gradualmente a ser utilizada em conexão com duas outras tradições de pen­samento: de que todos os homens estão presentes no Parlamento vez que este, considerado um tribunal e não uma agência legislativa, tinha o consentimento e a participação de todos os contribuintes; e de que o governante simboliza ou encarna o país como um todo, assim como a Igreja está encarnada em Cristo ou no Papa, depois Dele. (PITKIN, 2006). Pitkin explica que um bom exemplo do nível que estas ideias tornaram no século XIV é o livro De republica Anglorum, de Sir Thomas Smith. A obra contempla uma das primeiras aplicações conhecidas da palavra inglesa “represent” ao Parlamento, utilizada ao escrever que: “o Parlamento da Inglaterra, que representa e tem o poder de todo o reino, tanto a cabe­ça quanto o corpo. Pois, entende-se que todo inglês está presente ali, seja em pessoa, seja por procuração ou por meio de delegados (...) e o consentimento do Parlamento é considerado como o consentimento de todos os homens” (PITKIN, 2006). Em 1651, na obra O Leviatã, Hobbes traz o primeiro exame da ideia de representação na teoria política, onde o soberano figura como o representante do povo mediante um pacto social. No século 18, James Madison e Emmanuel Sieyès atuaram decisivamente na defesa do instituto da representação, introduzindo-o como superior e distinto à democracia. Para Madison, “a eleição de poucos governantes, cuja sabedoria, patriotismo e amor à justiça podem melhor discernir o interesse público e universal dos interesses parciais e temporários, institui um mecanismo de mediação necessário para ampliar e refinar as visões públicas em questão”. (MENDES, 2007). Seguindo esta mesma linha, Emmanuel Sieyès afirma a superioridade dos governos representativos sobre a democracia e defende a representação como uma característica central e inerente a todas as nações modernas. Sieyès defende que a todos os cidadãos pertence o direito de produzir as leis, uma vez que todos serão obrigados a cumpri-las, e salienta a existência de duas formas para o exercício deste direito: a mediata através da representação, e a imediata, por meio da participação 222

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direta do cidadão. Embora Sieyès considere a forma imediata como a “verdadeira democracia”, defende que, visando o bem comum, faz-se necessário a nomeação de representantes mais capazes e preparados que os próprios cidadãos. Montesquieu também defendia a eleição de representantes escolhidos pelo povo, uma vez que não acreditava na capacidade dos cidadãos em conduzir diretamente os negócios públicos, de conhecer as leis e as oportunidades. Para ele, a vantagem da representação estava exatamente “no exercício da gestão pública por homens capazes e preparados para tanto” (MENDES, 2007). Outra questão levantada em O Federalista, escrito por Hamilton, Madison e Jay, na defesa do instituto da representação, era a existência de algo maior e mais objetivo, “o bem público”. Para eles: “A representação é superior à democracia direta precisamen­te porque pode assegurar o bem público sem a distração de vários interesses particulares conflitantes, ou “facções””. Os autores afirmam que a representação funcionaria como uma espécie de filtro que refinaria os anseios populares passando por um corpo de cidadãos eleitos, sábios e aptos a “discernir melhor os verdadei­ros interesses de seu país, e cujo patriotismo e amor pela justiça serão menos suscetíveis a sacrificá-la em nome de considerações temporárias ou parciais”. (PITKIN, 2006). No entanto, Pitkin elucida que Madison não tinha muita convicção do preparo e esclarecimento dos que estarão no comando, atribuindo maior certeza ao defender o instituto por tornar possível uma república grande. Numa república grande, os interesses serão múltiplos e diversos; portanto, será menos provável a combinação de interesses para uma efetiva ação facciosa. (PITKIN, 2006). A defesa de referidos autores da forma representativa não advém somente da inviabilidade da democracia em sua forma direta para os governos modernos, mas porque acreditavam que a forma representativa, de fato, seria a mais apropriada para a condução da coisa pública, quer na interpretação do bem comum ou na garantia dos direitos individuais. Já Rousseau contrapunha-se veementemente à ideia de representação, defendendo que a participação direta dos cidadãos na elaboração das leis era de rigor. Para Rousseau só há liberdade quando as pessoas se autogovernam e que os cidadãos só estariam legitimamente obrigados a cumprir as leis que eles próprios ratificaram, atuando diretamente. volume

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Cruz e Bodnard definem o pensamento de Rousseau acerca da Democracia Representativa, para o qual: “consistiria, essencialmente, na vontade geral, e a vontade geral não se representa para nada. É ela mesma ou é outra. Não tem meio termo. Os deputados do povo não são nem podem ser seus representantes, pois são apenas seus comissários. Nada podem concluir definitivamente. Toda lei que o povo, pessoalmente, não tenha ratificado, é nula”. (CRUZ e BODNARD, 2012, p. 87). No entanto, a despeito das ideias de Rousseau, o instituto da representação acabou se firmando na modernidade, e as ideias de Rousseau foram veementemente rechaçadas pelos estudiosos posteriores, vez que para todos os entusiastas da democracia, a representação exsurgiu como sua forma possível e moderna. Insta trazer à calva que, embora filósofos liberais dos séculos XVII e XVIII, a exemplo de John Locke, já pregassem que o direto ao poder só poderia advir de um mandato popular, da mesma forma que acontecia na antiga Grécia, a representação popular era elitista. O voto era censitário, ou seja, dependia do pagamento de um imposto para se adquirir a condição de eleitor. Portanto, uma vez mais, a maioria da população estava excluída do processo de escolha de seus governantes, o qual estava adstrito aos possuidores de renda e propriedades. Por isso que Mendes defende que nos séculos XVII e XVIII não se estabeleceram democracias representativas, mas governos representativos. No entanto, a despeito de ter sido concebida como contraposta à democracia, a defesa de governos representativos reintroduziu premissas democráticas fundamentais, como a existência de um governo das leis, a igualdade perante a lei, o princípio da publicidade e a participação no poder. Em consonância com a ideia moderna de indivíduo, calcada na percepção deste como um ente anterior ao Estado e dotado de direitos inalienáveis, tais premissas contribuíram para a consolidação da ideia de um Estado de Direito. (MENDES, 2007) Apenas no século XX, mais precisamente após a Segunda Guerra Mundial foi que o instituto da representação foi incorporado aos preceitos democráticos, estabelecendo as democracias representativas. Bobbio, em sua obra intitulada “O Futuro da Democracia”, define que: “democracia representativa significa genericamente que as deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dizem respeito à coletividade inteira, são tomadas não 224

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diretamente por aqueles que dela fazem parte mas por pessoas eleitas para esta finalidade”. (BOBBIO, 2000, 56). Acrescenta ainda, que é essencial no instituto da democracia representativa que o direito de participação seja garantido a um número elevado de cidadãos; a existência de regramento procedimental; e que seja garantido a possibilidade de escolhas, numa referência à atribuição de peso igual ao voto de cada cidadão sem a existência de quaisquer distinções econômicas, sociais, étnicas ou religiosa. A Constituição Federal de 1988, ao afirmar em seu artigo 1º, parágrafo único, que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, consagrou o princípio da democracia semidireta ou representativa em nosso país. 3. cidadania, democr acia e participação social A discussão acerca da abrangência do termo cidadania remonta a tempos antigos e assumiu várias formas ao longo da história, a depender do contexto cultural em que estava inserido. A moderna concepção de cidadania, traduzida perfunctoriamente como o direito a ter direitos, desenvolveu-se quando das revoluções francesa e americana, nos idos do século XVIII, e teve como corolário o sentimento de pertença à uma nação, a um Estado. Uma das mais conhecidas concepções de cidadania foi trazida por T.H. Marshall, que com fulcro na experiência inglesa, separou a acepção da cidadania em três dimensões: civil, política e social, todas interdependentes. A cidadania civil foi a primeira a ser conquistada, justamente com as já mencionadas Revoluções Americana e Francesa do século XVIII que trouxeram em seu bojo os direitos individuais como a liberdade, a igualdade, propriedade, direito de ir e vir, dentre outros direitos que embasaram a concepção liberal clássica. Mediante estas garantias que foi possível a luta e a conquista da cidadania política, no século XIX, e suas consequentes prerrogativas de permitir aos indivíduos o direito de participar da vida política do Estado, o direito de votar e de ser votado, de liberdade de associação e reunião, de organização política e sindical. Essa abertura de participação aliada às lutas dos movimentos operários e sindicais que abriram as portas aos direitos sociais como trabalho, saúde, educação – a cidadania social, a qual só foi conquistada no século XX. volume

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Carvalho aponta que no Brasil, esta ordem cronológica ocorrida na Inglaterra e descrita por Marshall, foram invertidas. “Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Depois vieram os direitos políticos, de maneira também bizarra. (...) Finalmente, ainda hoje muitos direitos civis, a base da sequência de Marshall, continuam, inacessíveis à maioria da população. A pirâmide dos direitos foi colocada de cabeça para baixo” (CARVALHO, 2001). No entanto, apregoa o autor que é pueril e obtuso acreditar que existe apenas um caminho para a cidadania e que a história de países como Inglaterra, Alemanha, França, Estados Unidos etc., mostra que não é assim. A Constituição Federal de 1988, maior expoente democrático já experimentado pela nação brasileira, único texto constitucional a contemplar tamanha gama de direitos civis, políticos e sociais – a nossa Constituição Cidadã – infelizmente, ainda dotada de baixíssima efetividade no que concerne a maioria dos direitos sociais nela encartados o que acarreta os denominados “cidadãos de papel” de Gilberto Dimenstein. A educação, embora conste como direito social é mais do que isso. Ela é a condição de existência e possibilidade para o exercício da cidadania civil e política e para a garantia de concretização dos demais direitos sociais. A ausência de uma população com grau de educação satisfatório é o principal obstáculo a concretização de todas as dimensões da cidadania, uma vez que somente a educação possui o condão de esclarecer e inteirar os cidadãos acerca de seus direitos e possibilitar que se organizem e lutem pela concretização dos mesmos mediante todos os meios que lhes são disponibilizados e garantidos constitucionalmente. A despeito do histórico colonial brasileiro que contribuiu de maneira decisiva para a deficiência educacional e a consequente cidadania deficitária existente até os dias de hoje, é certo que essa situação se perpetua e impede que vivenciemos o real sentido de cidadania. Carvalho aponta em seus estudos que dos direitos que no Brasil, dentre os direitos inerentes ao conceito de cidadania, os direitos civis são os que apresentam as maiores deficiências no que concerne a seu conhecimento pela população, 226

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extensão e garantias. Um uma pesquisa apontada pelo autor, realizada na região metropolitana do Rio de Janeiro no ano de 1997 (o livro de referido autor é de 2001, portanto as estatísticas devem ter tido alguma melhora), mostrou que: 57% dos pesquisados não sabiam mencionar um só direito; 12% mencionaram algum direito civil e quase a metade achava que era legal a prisão por simples suspeita. “Os dados revelam ainda que educação é o fator que mais bem explica o comportamento das pessoas no que se refere ao exercício dos direitos civis e políticos. Os mais educados se filiam mais a sindicatos, a órgãos de classe, a partidos políticos” (CARVALHO, 2001). Estamos em um Estado Democrático de Direito, único modelo estatal que possibilita o exercício ativo da cidadania já que concentra constitucionalismo, separação de poderes, força normativa da constituição, direitos fundamentais e mecanismos que garantem a participação popular. Não se pode prosseguir limitando o exercício da cidadania à pertencer a uma nação e ao escrutínio. Devemos nos afastar da limitada circunscrição da cidadania em seu viés político e nos aproximarmos ao máximo de seu âmbito constitucional que pressupõe o exercício de todos os direitos fundamentais e garantias que caracterizam o Estado Democrático de Direito, para que se faça possível a busca pela concretização da cidadania em suas três dimensões: civil, política e social como meio de fortalecimento ou, porque não, de (re) construção dos ideais democráticos. Cidadania e Democracia estão intimamente ligadas uma vez que só se faz possível a existência de uma real democracia ante o acesso e à efetiva garantia do exercício da cidadania em todas as suas acepções; do contrário coloca-se em risco a própria possibilidade de escolhas racionais fundadas na autonomia e na liberdade de ação dos indivíduos. A cidadania depende da democracia e inexiste fora de seu interior da mesma forma que uma democracia com o exercício da cidadania deficitário e inerte proporciona, nas palavras de Paulo Bonavides: “uma democracia mutilada, uma democracia sem povo; o que, aliás, é singular contradição de forma e substância, porquanto se suprime aí o passivo das liberdades e dos direitos humanos”. (BONAVIDES, 2008). Está inserido no conceito de cidadania não somente o direito como o ônus de participar da vida política do Estado, não somente através do escrutínio, mas também mediante referendo, plebiscito, na apresentação de projetos de lei de iniciativa popular, na fiscalização da coisa pública e dos atos de nossos govervolume

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nantes, na apresentação de ação popular com o fim à moralidade, e à legalidade dos atos administrativos. Um povo que não se utiliza de suas prerrogativas enquanto cidadão põe em xeque o sistema representativo, vez que relega o interesse político a uma pequena parcela da população que o utiliza conforme seus próprios interesses. Para o teórico liberal John Stuart Mill, defensor dos governos representativos, o sucesso deste modelo de governo depende do caráter ativo ou passivo da cidadania. O caráter ativo consubstancia-se naquele cidadão que não se mantém inerte ante as circunstâncias, enquanto que o passivo aceita. Acrescenta o autor que: “nada é mais certo do que o fato de que todo progresso em assuntos humanos é obra unicamente dos caracteres insatisfeitos” e “Não pode haver agora nenhuma dúvida de que o caráter do tipo passivo é preferido pelo governo de um ou de poucos. Governantes irresponsáveis necessitam da aquiescência dos governados muito mais do que de sua atividade, a não ser aquela que podem controlar”. (TAVEIRA, 2009 apud MILL, 1981). Para a construção democrática da cidadania no Brasil contemporâneo é de rigor uma cidadania instituinte da democracia mediante um exercício constante de participação contínua na vida política do Estado e da avaliação permanente da pessoa eleita para governar. Imprescindível a conscientização de todos os cidadãos de que a participação não é apenas uma letra morta presente em nossa Carta Magna e que ao povo é dada não somente a prerrogativa, mas a obrigação de participar a fim de resguardar os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados e fortalecer a cidadania e os ideais democráticos. É de suma necessidade a participação da sociedade no afã de concretizar os direitos fundamentais insculpidos no texto constitucional. 4. a carta magna de 1988 e os institutos participativos Além do direito ao sufrágio, inúmeros dispositivos constitucionais contemplam institutos de participação social na Administração Pública, os quais associam, de forma inequívoca, a cidadania ativa às políticas sociais. O Brasil democrático é conhecido por suas instituições participativas. Perez afirma que, na realização das tarefas estatais de bem-estar, ou na efetivação dos 228

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direitos fundamentais de caráter social, a Administração Pública e a sociedade interagem cada vez mais, por meio de variados institutos participativos. (PEREZ, 2006). Como exemplos práticos da participação social na elaboração das políticas públicas têm-se as audiências e as consultas públicas. Como meios de participação da sociedade no processo de decisão, temos os institutos do plebiscito administrativo, o referendo e as comissões de caráter deliberativo. Além disso, o art. 29, inciso XII determina a participação popular no planejamento municipal, assegurando às associações representativas o direito de cooperar conjuntamente com o Poder Público. O art. 187 estabelece que a atividade administrativa de planejamento da política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes. O art. 194 prescreve que a “seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. Em seu parágrafo único, esse artigo determina que a organização da seguridade social obedecerá a um critério democrático e descentralizado da Administração, “mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados”. O art. 198 dispõe que “as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (...) III – participação da comunidade”. O art. 204, II, estipula: “As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes: (...) II – participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis”. O art. 205 dispõe que: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade ...”, e o volume

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art. 206, VI, aduz que o ensino será ministrado com base no princípio da “gestão democrática do ensino público...”. O art. 216, § 1º, determina que: “O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”. O art. 225 prescreve que: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. O art. 227,§ 1º, estabelece que: o Estado admitirá a participação de entidades não governamentais na execução de programas de assistência à saúde da criança e do adolescente. Também merece destaque a Ação Popular, prevista no art. 5º, LXXIII, o qual prevê: “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise anular o ato lesivo ao patrimônio público ou entidade que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico cultural, ficando o autor, salvo comprovada má fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”. Esse dispositivo possibilita que todo cidadão fiscalize os atos e contratos administrativos, baseando-se no princípio da legalidade e da moralidade dos atos administrativos e também no conceito de que a coisa pública é patrimônio do povo. Uma última ênfase é dada ao § 3º do art. 37 da Constituição Federal, porquanto a Emenda Constitucional n. 19/98, recepcionada como a emenda da reforma administrativa, instituiu uma norma geral sobre a participação popular na Administração Pública: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) § 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: 230

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I - as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII III - a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública.

Toda esta evolução normativa instituiu a participação popular na Administração Pública. Perez resume este acontecimento dispondo que: “Do nascimento de um novo modelo de atuação para a Administração Pública, fruto da superação do paradigma weberiano; da ineficiência dos mecanismos tradicionais de atuação da Administração baseados na edição de atos unilaterais imperativos, bem como na fiscalização e imposição de sanções; da necessidade, afinal, de atuar como mediadora dos poderes ativos no tecido social, impulsionando a atuação da sociedade sobre ela mesma, como forma de lograr o atingimento dos escopos do Estado de Bem-Estar, erigem-se os institutos de participação popular na Administração Pública.” (PEREZ, 2006).

Conforme se vislumbrou, a Constituição Federal de 1988 institucionalizou inúmeros dispositivos contemplando a participação social, fomentando o exercício da cidadania. Este fato tem o condão de exercer grande influência no formato e conteúdo das políticas públicas mediante a participação do cidadão nos espaços públicos brasileiros. Hoje existem, no Brasil, aproximadamente 20.000 conselhos nas diferentes áreas de políticas públicas, entre elas a assistência social e as políticas de desenvolvimento rural. Sem dúvida esses conselhos implicaram a mobilização e a construção de uma cidadania mais ativa. (PEDRINI, ADAMS E SILVA, 2007). Todavia, ainda longe do necessário. Todos estes mecanismos de participação são essencialmente salutares, uma vez que as eleições estão longe de ser um mecanismo que realmente assegure a realização da vontade popular. Os mandatos, tanto no executivo, quanto no legislativo duram quatro anos, e durante todo este lapso temporal os cidadãos volume

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ficam de mãos atadas e a mercê das decisões tomadas pelos governos, as quais afetam diretamente a vida de toda a população. É exatamente neste sentido que os institutos de democracia participativa contemplados na Carta Magna assumem papel decisivo, quer na definição das políticas públicas, quer no controle dos representantes eleitos. Existem instrumentos a exemplo do plebiscito, do referendo, o projeto de lei mediante iniciativa popular, os conselhos gestores de políticas públicas e o orçamento participativo, os quais possibilitam um ambiente de deliberação pública, exercitando a prática política e a cidadania e fortalecendo a democracia representativa. A despeito da importância e necessidade do instituto da representação na democracia moderna, a participação direta do cidadão não pode se restringir tão somente ao voto. É salutar e imperioso que o cidadão atue também diretamente mediante os mecanismos que lhes são colocados a dispor, vez que a representação se mostra insuficiente para assegurar a democracia em sua dimensão mais profunda. “Daí a importância dos conselhos setoriais, associações civis, orçamentos participativos e outros espaços que podem vir a ser criados, pautados pelo debate de questões morais e éticas, pela discussão e proposição de novas políticas públicas e pelo controle e fiscalização das políticas implementadas, bem como pelos princípios da publicidade, deliberação pública e prestação de contas permanente, que devem informar os governos democráticos”. (MENDES, 2007). 5. a atual crise da democr acia participativa A sociedade hodierna está presenciando uma crise profunda não deste ou daquele governo, mas da própria Democracia representativa em todas as suas formas. As instituições democráticas brasileiras estão em crise, caíram no descrédito da população por não corresponderem, sequer minimamente, aos anseios sociais dos cidadãos representados. Bobbio demonstra que o modelo clássico de democracia representativa, conforme a sua formulação inicial, distancia-se consideravelmente do vivenciada nos dias atuais. A concepção inicial do instituto apresenta-se antiquado perante a complexidade da sociedade atual. Exatamente por este motivo é que está em voga falar-se em crise da democracia representativa, uma vez que o instituto encontra232

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se incapacitada a lidar com o atual contexto social e global. Não se trata de uma crise pontual, mas multifacetada, destacando-se dentre os fatores motivadores de referida crise os seguintes: a) Burocratização do aparelho Estatal. Tendo em vista a ineficiência demonstrada pela mão invisível de Adam Smith e, portanto, do liberalismo, surgiu, entre 1950 e 1960, um novo paradigma estatal denominado de Estado de bem-estar, pautado pela intervenção maciça do Estado, nomeadamente na econômica e na promoção de direitos sociais. Contudo, a intervenção direta e volumosa do Estado gerou estagnação, inflação, altíssima carga tributária em decorrência da necessidade de o Estado desenvolver políticas sociais, além de uma administração excessivamente burocrática e ineficaz. Boaventura, em sua obra “Democratizar a Democracia: os caminhos”, explica que quanto mais o Estado se comprometia e, consequentemente, se expandia, mais burocrático se tornava, afirmando que à medida que os países foram se democratizando, da mesma forma foram se torando mais burocráticos. Para este autor, no antigo modelo do Welfare State, o cidadão abria mão do controle sobre as atividades públicas em favor da burocracia. (SANTOS apud ROMAGNOLI E MELO, 2011). Esta burocratização propõe que o poder seja exercido por àquele dotado de capacidade técnica e especializada em detrimento da participação dos cidadãos e, portanto, dos preceitos democráticos. O constituinte brasileiro de 1988 , uma vez mais desatento aos acontecimentos mundiais, acabou por consagrar um legítimo Estado de Bem-Estar na Carta Magna de 1988 e, a despeito das reformas da Administração Pública aplicadas a partir de 1995, o Estado brasileiro não conseguiu deixar se livrar da pecha da burocratização excessiva e o consequente baixo rendimento. O Estado toma para si a obrigação de realizar os anseios da sociedade, que por sua vez é uma fonte inesgotável de demandas, o que acaba por gerar ineficiência estatal e uma crise de governabilidade. Segundo Nogueira: “é fato que a sociedade contemporânea se situa num momento histórico de grandes transformações, cuja sua representação volume

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política ainda mal conseguiu compreender a complexidade da situação, quanto mais oferecer respostas de governo para tais problemas. Exemplos como a financeirização do capital, a mundialização da economia, a revolução tecnológica e dilemas da globalização e a independência dos Estados são amostras do grau de dificuldade com que os representantes da república são obrigados a lidar, sem o devido sucesso esperado”. (NOGUEIRA, 2005 apud ROMAGNOLI E MELO, 2011).

b) Crise de soberania A soberania tida como o pilar que sustenta toda a estruturação e funcionamento de um Estado está, atualmente, como jamais em toda a história, em crise, em virtude da globalização e a consequente internacionalização da economia. Não faltam alertas a demonstrar que os grandes conglomerados econômicos, as grandes corporações dominam não somente o meio econômico, como apoderaram-se, também, do poder político. Esta realidade “coloca em xeque os limites territoriais e simbólicos do EstadoNação” (ROMAGNOLI E MELO, 2011). Cruz qualifica o atual domínio exercido pelas empresas transnacionais como uma nova política, por ele denominada de “parapolítica”. Essa atividade “parapolítica”, gerada a partir dos centros financeiros, está permitindo que as corporações transnacionais ocupem, de forma imperceptível, sem revolução, sem mudanças na lei nem nas constituições, através do simples desenvolvimento da vida cotidiana, os centros materiais vitais da Sociedade. (CRUZ, 2006). Boron qualifica estas grandes corporações como “os novos leviatãs” e salienta que: “A realidade é que nossos estados são muito mais dependentes hoje do que antes, oprimidos como estão por uma dívida externa que não para de crescer e por uma “comunidade financeira internacional” que na prática os despoja de sua soberania ao ditar as políticas econômicas docilmente implantadas pelos governos da região”. (BORON, 1999).

Como bem elucida Nogueira, o fato é que do Leviatã de Hobbes ao Contrato Social de Rousseau, passando pelo Estado Constitucional de Locke e chegando 234

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ao governo representativo de Stuart Mill, a questão da democracia sempre esteve vinculada ao Estado nacional, ao território, sendo, portanto, inevitável que a democracia em seus diferentes modelos, tenha sofrido alterações e mudança de paradigma com a “desterritorialização” do mundo promovida pelo capitalismo. (NOGUEIRA, 2005 apud ROMAGNOLI E MELO, 2011). c) Exclusão Social O autor Paulo Márcio Cruz, em artigo intitulado “Democracia e Pós Modernidade”utiliza-se da expressão “Reação em cadeia da exclusão” para definir e englobar todas as formas de exclusão: “que se materializa pela exclusão econômico/ financeira e até pela exclusão jurídica (negação da proteção jurídica e dos direitos humanos, etc.), passando pela exclusão social, cultural e política”. Para o autor, a exclusão social não se refere somente à pobreza ou a marginalização, mas a todos estes tipo supra referidos de exclusões, as quais impedem que um Estado possa ser denominado de democrático (CRUZ, 2006). É praticamente uma unanimidade dentre os estudiosos ao longo da história que não é possível a existência de uma democracia real em um quadro de desigualdades sociais. Essa premissa, aliás, foi a base dos estudos protagonizados por Tocqueville ao relatar o clássico “A Democracia na América” – a igualdade de condições e oportunidades como garantia de que dispõe o indivíduo a fim de constituir-se livremente como cidadão em toda a sua potencialidade (TOCQUEVILLE, 2005). Nessa esteira Boron corrobora: “um dos requisitos mais importantes da democracia é a existência de um grau bastante avançado de igualdade social. Nenhum teórico da democracia se enganou tanto de modo a sustentar que esta só poderia funcionar depois de eliminadas todas as diferenças de classe. Mas todos sem exceção - qualquer que fosse sua orientação e as simpatias que despertasse neles este regime político, desde Platão até Marx, passando por Maquiavel, Hegel e Tocqueville - coincidiram num prognóstico: a democracia não pode sustentar-se sobre sociedades assinaladas pela desigualdade e a exclusão social. Para que o regime democrático funcione é preciso haver sociedades bastante igualitárias, e a igualdade, como lembrava o próprio Adam Smith, devia ser de condições e não só de oportunidades”. (BORON, 1999). volume

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Resume bem Arnaldo Miglino ao dispor que: “a Democracia não poder mais ser uma forma de proceder. Ela é, acima de tudo, um valor que pressupõe a aplicação de outros princípios, como o da liberdade de expressão e opinião, liberdade de obtenção de informação imparcial e correta e publicidade dos fatos que se referem à esfera pública. Considerando que um dos momentos fundamentais da democracia é a escolha dos governantes, seria impossível, de maneira eficaz, que o povo possa fazer uma escolha do gênero sem gozar da liberdade intelectual e sem poder dispor de informações sobre a realidade”. (MIGLINO apud CRUZ).

Considerando que o Brasil detém um dos maiores índices de desigualdade social do mundo3, é de fácil percepção que esta problemática fere de morte a democracia nacional. Estamos entre as sociedades mais desiguais do mundo. Sem alcançar a almejada erradicação da pobreza e da marginalização social é impossível fazer funcionar regularmente o regime democrático. Todos estes fatores, aliados à corrupção política e à inércia da população criam máculas na moderna concepção de democracia que acabam comprometendo a sua eficácia e, principalmente, a sua legitimidade. O resultado desta somatória, nas palavras de Boron, é uma democracia carcomida pela polarização social, pela crise e/ou dissolução institucional, pela corrupção política, pela indiferença governamental diante das necessidades da sociedade civil e o consequente desencantamento da cidadania. (BORON, 1999). d) Democracia como procedimento Em que pese o mundo globalizado e a heterogeneidade da sociedade tenham relegado a democracia a mero procedimento, expressão utilizada por Cruz, é certo que, no que concerne ao Brasil, soma-se a referidos fatores, a falência (no sentido de descrédito, ineficiência) de nossas instituições democráticas e representativas. Os representantes eleitos exercem um mandato “livre ou independente de seus representados, no duplo sentido de não estar vinculado ao mandato destes 3 São 28 milhões de pessoas ou 15,32% dos brasileiros considerados miseráveis. Fonte Portal de Microfinanzas. Disponível em: http://www.portalmicrofinanzas.org/p/site/s//template. rc/1.1.11033

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nem sujeitos, salvo algumas raras exceções, à possibilidade de serem revogados ou substituídos em qualquer momento que os representados o decidam. O mandato é quase intocável, salvo casos excepcionais, dentro da lógica do Estado Constitucional Moderno”. (CRUZ, 2012, p. 76). O autor em referência aduz que a democracia representativa hodierna transformou-se em uma democracia parlamentar, em apenas um procedimento em vez de um valor apto a representar as expectativas atuais; que as atuais sociedades complexas, heterogêneas e com tamanha discrepância social, são produtoras de grande número de demandas sociais e das mais variadas, o que culmina em uma representação essencialmente genérica além da adoção da figura do representante fiduciário – sem caráter revogável. (CRUZ, 2012, p. 76). Ainda somos detentores de uma sociedade inerte e desorganizada o que favorece a prevalência dos interesses corporativos. A representação política não se presta para resolver as carências e necessidades da ampla maioria da população. Os legisladores têm seu protagonismo limitado à troca de emendas parlamentares aptas a garantirem a reeleição, pela aprovação de projetos de lei de interesse do executivo. O Executivo e o Legislativo não se vinculam aos direitos sociais constitucionalmente garantidos, mas aos interesses econômicos das empresas financiadoras das suas campanhas milionárias. A nação assiste inerte, meio que anestesiada, a sucessivos escândalos de corrupção, à indiferença governamental diante das necessidades da sociedade civil. Uma das maiores cargas tributárias do mundo sem nenhum retorno que a justifique. Obras superfaturadas e estruturas precárias e sem serem concluídas. Essa utilização da democracia como procedimento, adverte Cruz, põe em risco a própria democracia “como um modo de vida social através dos mais diversos governos de legitimidade discutível e que subordinam os valores cívicos universais aos seus interesses”. (CRUZ, 2012, p. 83). Para Carlos Santiago Nino as eleições e novas constituições não são suficientes sem o desenvolvimento de uma nova cultura democrática que não seja só a do procedimento. A atual cultura democrática está marcada com a pecha da pobreza do debate público. A discussão sobre os princípios dos sistemas políticos, das visões gerais da Sociedade e de soluções para poder lidar com problemas sociais é, normalmente, substituída por imagens pictóricas dos candidatos, com posições volume

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extremamente vagas e apelos aos motivos mais emotivos. Existe uma marcada falta de seriedade em todo o processo e isto faz com que os candidatos eleitos não se sintam obrigados a seguir o resultado do debate público (GODOY, 2012). Um possível meio apto a superar este cenário de crise da Democracia Representativa, será o maior engajamento e a participação da sociedade não somente no momento eleitoral, mas também na fiscalização da gestão dos governantes através das prestações de contas nos portais da transparência; na discussão e proposição de novas políticas públicas e pelo controle e fiscalização das políticas implementadas, nos orçamentos participativos e no maior interesse pela vida política como um imperativo de cidadania e forma de reformular a democracia. 6. conclusões Com a premissa do artigo 1º da Constituição Federal foi introduzido no país um modelo de democracia representativa e participativa. Além deste princípio da democracia semidireta, inúmeros dispositivos que contemplam a participação social estão insertos no texto constitucional. Isto quer dizer que, além de ser representado, o cidadão é chamado a participar da gestão pública. Infelizmente, a democracia moderna padece de mazelas que comprometem sobremaneira sua eficácia e legitimidade. O exercício da cidadania, atualmente, ainda se restringe ao momento eleitoral. Esta inércia dos cidadãos coloca em xeque a concepção moderna de democracia representativa. É necessário um maior amadurecimento do exercício da democracia participativa por parte dos cidadãos brasileiros. Isto quer dizer que o cidadão deve passar do papel de mero consumidor de serviços públicos e objeto de decisões políticas a um papel ativo, exercendo sua cidadania em todas as suas concepções, fiscalizando e cobrando responsabilidade na condução da res publica. O principal e maior passo para o amadurecimento da cidadania é a compreensão de que o processo eleitoral é apenas um nuance da democracia e que a cidadania se traduz em um exercício constante de participação contínua na vida política do Estado e na avaliação permanente da pessoa eleita para governar. Com razão aduz Paulo Cruz que: “O inimigo mortal que ameaça a democracia é a indiferença e a passividade do cidadão” (CRUZ, 2006). 238

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A despeito de a realidade brasileira ser incipiente no que se refere a uma participação social realmente efetiva, o fato é que as bases de sua construção foram lançadas com a promulgação da Carta Magna de 1988. São inegáveis os progressos, todavia há um longo caminho a ser percorrido. É necessário sim aprimorar os instrumentos de controle e também que os mecanismos de participação já existentes sejam amplamente divulgados e acessíveis. Mas também é imprescindível a conscientização de todos os cidadãos de que a participação não é apenas uma letra morta presente em nossa Carta Magna e que ao povo é dada não somente a prerrogativa, mas a obrigação de participar a fim de resguardar os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados e fortalecer a cidadania e os ideais democráticos. 7. referências BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Ed Paz e Terra. 6ª ed. BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. São Paulo: Malheiros, 3ª ed. 2008. BORON, Atílio. Os novos leviatãs e a polis democrática: neoliberalismo, decomposição estatal e decadência da democracia na América Latina. In GENTILI, Pablo e SADER, Emir (org.) Pós neoliberalismo II – que Estado para que democracia? Petrópolis, RJ: Paz e Terra, 1999. BUCCI, Maria Paula Dallari (org). Políticas Públicas: reflexos sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. CRUZ, Paulo Márcio. Democracia e Pós Modernidade. Disponível em: acesso em 15. Jan. 2013. CRUZ, Paulo Márcio e BODNARD, Zenildo. Globalização, transnacionalidade e sustentabilidade. Itajai: Univali, 2012. ebook http://siaiapp28. univali.br/LstFree.aspx volume

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GODOY, Miguel Gualano de. Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella. São Paulo: Saraiva, 2012. MENDES, Denise Cristina Vitale Ramos. Representação política e participação: reflexões sobre o déficit democrático. Disponível em: acesso em 20. Mar. 2013. NOGUEIRA, Marco Aurélio. Um Estado para a sociedade civil: temas éticos e políticos da gestão democrática. 2ª Ed. Ed. Cortez. São Paulo, 2005, pág. 98. apud: ROMAGNOLI, Alexandre J. e MELO, Martiniano Borges. Os problemas da democracia representativa: a crise do representado. Disponível em acesso em 20. mar. 2013. PEDRINI, Dalila Maria, ADAMS, Talmo, SILVA, Vini Rabassa (orgs). Controle Social de Políticas Públicas: caminhos, descobertas e desafios. Vários autores. São Paulo: Editora Paulus, 2007. PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições, idéias (sic). Disponível em: acesso em 20. set. 2013. RITT, Caroline Fockink e COSTA, Marli M. Moraes. Cidadania no Brasil: Sua construção a partir de uma ótica humanista, voltada aos direitos humanos e a necessária superação de velhos paradigmas. Disponível em: acesso em 20. mar. 2013. ROMAGNOLI, Alexandre J. e MELO, Martiniano Borges. Os problemas da democracia representativa: a crise do representado. Disponível em acesso em 15. set. 2013. TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América: Leis e Costumes de Certas Leis e Certos Costumes Políticos que Foram Naturalmente Sugeridos aos Americanos por seu Estado Social Democrático. Tradução Eduardo Brandão. Prefácio, Bibliografia e Cronologia François Furet. São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Livro 1 – Leis e Costumes). 240

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VIEIRA, Rejane Esther. Democracia e Políticas Públicas: O novo enfoque da gestão pública na construção de espaços públicos de participação no Estado de Direito no Brasil. Disponível em: acesso em 20. mar. 2013.

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desafios e perspectivas do direito internacional contempor âneo e a ideia de sustentabilidade Tânia Lobo Muniz1 Elve Miguel Cenci2 “O homem reconstrói seu mundo a cada fato relevante que incorpora ao conjunto de vivências que consegue ter. Em suas mais profundas crises, o ser humano reúne suas crenças, seus fatos, suas teorizações e se reconstrói de modo mais pleno...” (PUGLIESE, 2001, p.30)

Resumo A partir da ideia de função ampliada do Direito Internacional, suas tendências e problemas, a explanação aborda a identificação de seu objeto e influência na vida e na estruturação normativa internacional considerando, ainda, o fenômeno da fragmentação. Com destaque para a proteção do ser humano e para as questões econômicas, analisa a dinâmica de transformação do cenário internacional de uma perspectiva de predomínio da política para o domínio do direito, e de uma visão estatizante para uma projeção global e humanizante. Identifica a ideia de desenvolvimento sustentável como exemplo emblemático no tratamento deste processo de transformação e conjugação dos ideais de paz e na busca da segurança jurídica.

Palavras-chave Direito Internacional Contemporâneo; Sustentabilidade; Desenvolvimento; Direitos Humanos. 1 Professora associada da Universidade Estadual de Londrina. Docente dos cursos de graduação, especialização e mestrado em Direito. Reflexões pertinentes ao projeto de pesquisa Perspectivas do Direito Internacional Contemporâneo nas Relações Sociais, Políticas e Sociais na Atualidade. 2 Graduado em Filosofia pela UPF/RS, graduado em direito pela FML/PR, mestrado em filosofia pela PUCRS/RS e doutorado em filosofia pela UFRJ/RJ. Atualmente é professor associado B pela UEL, no lato sensu e stricto sensu. Avaliador de Instituições de Educação Superior e cursos de graduação. Consultor ad hoc da fundação araucária. Advogado. volume

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Resumen A partir de la idea de función ampliada del Derecho Internacional, sus tendencias y problemas, la explicación se refiere a la identificación de su objeto y su influencia en la vida y en la estructura normativa internacional, sin embargo, teniendo en cuenta el fenómeno de la fragmentación. Con énfasis en la protección de los seres humanos y para cuestiones económicas, analiza la dinámica de la transformación del escenario internacional desde la perspectiva de la dominación política hacia el campo del Derecho, y, además, de una visión estatista hacia una proyección integral y humanizante. Identifica la idea del desarrollo sostenible como un buen ejemplo en el tratamiento de esta transformación y la combinación de los ideales de paz y en la búsqueda de la seguridad jurídica.

Palabras clave Derecho Internacional Contemporáneo; Sustentabilidad; Desarrollo; Derechos Humanos. 1. introdução A sociedade internacional e o Direito Internacional passaram, a partir de meados do século passado, por transformações marcantes que levaram a uma reestruturação das noções da extensão desse direito de suas estruturas e mecanismos de atuação. Nessa direção a análise do objeto buscado pelo Direito Internacional permite identificar o surgimento de perspectivas, parâmetros e por meio destes princípios que tem movido a sociedade internacional de uma visão clássica e estatizante para uma visão contemporânea e humana. Por essa ótica a pesquisa analisa os desafios e traços marcantes de conformação da atual sociedade e direito internacional a partir da identificação de seu objeto e trajetória de sua transformação, em especial da proteção ao ser humano e do desenvolvimento econômico, que, devido ao fenômeno da fragmentação, tratadas a início isoladamente, vão, gradativamente, se aproximando até o encontro, ao menos conceitual, de lógicas distintas ao tratar da concepção atual do desenvolvimento adjetivado pela sustentabilidade. 244

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2. o direito internacional e sua função A sociedade internacional tem como característica a horizontalidade das relações entre seus agentes fazendo com que seja fundamental para a harmonia e estabilidade das relações internacionais o estabelecimento de padrões de comportamento, aceitáveis ou verificáveis, que importem em um sistema passível de estabelecer e manter a confiança recíproca entre os atores, o direito internacional. Esse ambiente de coordenação, que não apresenta estruturas de poder constituídas, demanda uma abordagem própria das noções de Direito e de jurisdição exigindo que os considere a partir das novas configurações das relações internacionais e das diferentes dimensões envolvidas, uma vez que as teorias jurídicas analisam esses conceitos em ambientes de subordinação, o Direito interno. Assim, nas relações internacionais é essencial a confiabilidade do sistema e nos parceiros envolvidos, fazendo com que o processo decisório de ação dos atores internacionais, em especial dos Estados, principais sujeitos, dependa dos resultados aguardados, expectativa essa que se lastreia na probabilidade de comportamento dos demais, construída a partir das possibilidades de opção destes no cumprimento das normas internacionais. Tendo como foco essa ótica, pode-se avaliar o cenário internacional verificando algumas transformações ocorridas no Direito Internacional, partindo de uma visão clássica (século XIX até meados do século XX), centrado na figura Estatal e em sua soberania, historicamente preocupado com a guerra e a garantia da paz, entendida como a simples ausência daquela ou como a condição resultante do equilíbrio do poder entre as superpotências bélicas, e pouco se referindo ao indivíduo ou denotando preocupação em estruturar as questões não estatais. Nesse período, as normas estabelecidas se caracterizavam por serem normas de reconhecimento, por identificar quais normas possuíam o status de jurídicas, e por apontar regras substanciais, mas sem enfrentar o problema dos conflitos advindos das mesmas, nada ou pouco instituindo sobre soluções de controvérsias, coercitividade, coatividade ou sobre normas de adjudicação que possibilitassem o tratamento dos conflitos e as mutações e adaptações necessárias às normas volume

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estabelecidas, essenciais à estabilidade de uma sociedade em coordenação. (GATTEI, 2002, p. 114) Essa ausência trouxe a predominância da política internacional em detrimento ao direito, uma vez que a obediência às normas lastreava-se na vontade dos Estados e não na existência de um sistema confiável e respeitável, predominando o modo político de solução de conflitos (negociações bilaterais, bons ofícios, conciliação, mediação) baseado nas pretensões e aspirações estatais e na habilidade de seus representantes diplomáticos. Trouxe, também, as duas grandes guerras mundiais. A percepção da necessidade de transpor de um sistema eminentemente político para um sistema jurídico traz a compreensão da urgência de se promover a uniformidade na aplicação e interpretação das mesmas, o que só é possível com mecanismos que garantam confiabilidade às condutas e à sua exigibilidade; o que redundou na premência de criação de um sistema de solução de controvérsias que garantisse a real integração entre os agentes. Ou seja, agregar ao direito internacional mecanismos equivalentes de jurisdição internacional. O Direito Internacional Contemporâneo (a partir de meados do século XX) expande sua atuação e traz como algumas de suas características a ampliação de seus agentes e atores, a predominância e proliferação de tratados sobre os mais diversos aspectos das relações humanas e a criação de mecanismos, sistemas e cortes internacionais voltados a tratar os conflitos de normas. Passa-se a analisar a sociedade internacional e o direito internacional, não somente a partir do Estado, mas, principalmente, a partir da humanidade, da urgência de existir um futuro, de se ajustar os interesses coletivos por meio do arrefecimento dos interesses individuais estatais, ou que os interesses de muitos prevaleçam sobre os de alguns. Passa-se a se reavaliar a sociedade, a comunidade, cada povo, o Estado, intrafronteiras e soberania, mas também na esfera global e na inegável intercomunicação, interdependência e intercorrelação dos efeitos das ações locais que afetam em maior ou menor grau, de forma mais positiva ou negativa, a toda a humanidade, que tem o direito de ver preservados seus interesses no espaço e no tempo. As ideias de solidariedade, de cooperação, de desenvolvimento, de democracia, de paz se tornam parte da teoria jurídica internacional e com elas toda uma 246

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geração de padrões de comportamento voltados a efetivar esse ideário que passa a considerar o Interesse Comum da Humanidade, não como forma de exterminar o Estado e a soberania, mas de adequar e flexibilizar os interesses estatais, dando relevância aos interesses de continuidade e preservação da humanidade. Não se trata de garantir o direito de alguns, mas de buscar o interesse geral, a justiça social, a distribuição de riquezas, o acesso ao desenvolvimento, a proteção do meio ambiente, a liberdade, a igualdade... Pode-se entender que a função central do Direito Internacional Contemporâneo continua a ser a estabilidade e a paz na sociedade internacional, porém voltada a solucionar pacificamente os conflitos, a prevenir seu surgimento e a monitorar o seu desenvolvimento; passa-se a compreender a paz a partir de novos conceitos: antes ligada a situações extremas, como a ausência da guerra, contemporaneamente a partir da noção de situações e estágios intermediários. Tem-se, então: i) paz negativa, a ausência da guerra, e ii) paz positiva, que se ocupa em tratar as causas dos conflitos, as situações que levam à predisposição para a violência ou à violência estrutural da sociedade. (GALTUNG, 1995) Esse novo olhar estende a função do Direito Internacional de buscar a paz não somente como a prevenção da guerra, a presença de conflitos interestatais e internos de um Estado com o emprego da força militar, que passam a constituir o núcleo de um conceito dinâmico de paz, mas inclui o manejo de outros campos de conflito, a atuação nos fatores desestabilizantes3, que vão além do emprego da força. A atuação implica em promover ajuda mútua, educação e interdependência dos povos, a construção de uma sociedade melhor, na qual a diminuição das diferenças e a ampliação das oportunidades tragam o equilíbrio às relações sociais. Assim, a paz passa a ser entendida baseada em três frentes: a proteção aos direitos humanos, a promoção da democracia e o fomento ao desenvolvimento; objetivos que não devem ser vistos e construídos isoladamente, mas em conjunto, interligados na busca, no alcance e na garantia da paz. Esse um dos grandes desafios. 3 Dentre estes, o terrorismo, o genocídio e outras formas de violações patentes dos direitos humanos, as guerras civis, mas também a supervisão das questões econômicas e financeiras internacionais, as questões ambientais.... volume

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Os Direitos Humanos compreendem um mínimo para que os seres humanos possam buscar a cidadania e alcançar à dignidade, uma base valorativa para que o indivíduo tenha a possibilidade de desenvolver sua autonomia, sua liberdade de estabelecer e procurar seus objetivos, e para que tenha garantida sua inviolabilidade; a democracia, como base política essencial à valorização do ser humano e da sociedade; ideais que não são factíveis sem desenvolvimento, como capacidade do homem controlar seus destinos, o que requer um mínimo de igualdade social, combinada a um aumento progressivo da riqueza das nações e a elevação do bem estar da sociedade (SAMPAIO, 2006). A partir de então, a paz e o controle dos conflitos por meio do Direito Internacional passam a ir além da figura do Estado, passam a pressupor a atuação de fóruns comuns, as Organizações Internacionais, sua aplicação às organizações não governamentais, aos indivíduos e às pessoas por eles criadas, mas, essencialmente, a exigir uma atuação Estatal efetiva e comprometida na reconstrução de suas estruturas sociais e normativas internas a partir do desenvolvimento das normas de Direito Internacional. O alcance desses objetivos, no decorrer do último quartel do século XX, passou a ter como complicador o fenômeno humano da globalização; fenômeno de transformação da sociedade, de governos, da economia e do cotidiano social, que traz decorrências e questionamentos, prós e contras, efeitos em relação ao Direito Internacional. A globalização pode ser vista como uma tendência antropológica, tecnológica4 e econômica que acarreta a aceleração do estreitamento das relações mundiais. Essa proximidade faz com que os fatos, as ideologias, os modismos, as invenções, o consumismo, as transformações, as grandes catástrofes, as crises sociais e econômicas, tudo esteja próximo, “ao lado”, tornando mais rápida a propagação de ideais e ideologias como democracia e direitos humanos, como liberdade e autodeterminação, cidadania e participação, como desenvolvimento e sustentabilidade, mas ainda como xenofobia e terrorismo, como fundamentalismo religioso e exclusão. 4 As tecnologias de comunicação renovadas a ritmo acelerado (mídia, internet, telefonia) fazem com que o mundo se torne a cada dia mais imediato, mais próximo, mais acessível, “à mão de todos”.

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Essa proximidade permite que se tenha maior percepção e consciência da interdependência dos povos e da fragilidade das estruturas sociais estratificadas existentes; a afetação de conceitos jurídicos como a soberania, a jurisdição, a cidadania, a dignidade humana, a livre concorrência, a defesa do consumidor, a propriedade, a boa fé, a função e a responsabilidade social, entre outros, impõem a necessidade de uma nova concepção, de uma transformação de mitos, processos e conceitos, e da incorporação de novos, de onde temas antes diametralmente opostos passam a ser trabalhados conjuntamente, aproximando lógicas distintas e constituindo um novo perfil para as normas internacionais. No entender de Celso Furtado (1996) a “Globalização é uma força acima de tudo... o problema é a maneira de se integrar a ela”. Eis outro desafio atual da sociedade internacional. Nesse cenário, as Organizações Internacionais passam por um processo de fortalecimento e ampliação, assumindo um papel indispensável na condução da vida internacional e no desenvolvimento do Direito Internacional. Seu desempenho torna-se mais objetivo atuando na obtenção da estabilização das expectativas e centralizando a autoridade normativa e decisória. Agem, ainda, na construção de foros permanentes de discussão e decisão, propiciando a mudança e ampliação das temáticas a serem tratadas e do espectro de situações, pessoas e ações atingidas por esse Direito, assim como na transformação do modelo clássico de sistema de solução de controvérsias. (GATTEI, 2002, p. 115) Em suma, as Organizações Internacionais assumem competência crescente na produção de normas e promovem a mutação, ampliação e multiplicação dos mecanismos de solução de controvérsias, denotando o surgimento de normas de adjudicação no plano internacional, promovendo a transição do sistema predominantemente diplomático (power orient) para um sistema com base em regras jurídicas (rule orient). A nova diretriz e conformação passam a auxiliar na estabilização das relações, almejada pelo Direito Internacional, que, por meio da promoção da repetição proporciona o conhecimento entre os atores globais ampliando as probabilidades de busca e alcance do melhor resultado. Implica em que, expondo as situações em que há o descumprimento das normas e a má fé dos envolvidos, acarreta a perda de credibilidade que redunda no afastamento do violador das relações volume

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internacionais, muitas vezes no não cumprimento das normas pactuadas em relação àquele ou no não estabelecimento de novas relações. Isso proporciona a redução dos efeitos das assimetrias existentes, influi no processo de decisão Estatal, incrementa e estimula a obediência às normas e o valor atribuído aos resultados, amplia a confiabilidade no sistema e, com isso, valoriza a cooperação mútua. Essa dinâmica no plano internacional denota algumas tendências: a universalização, a regionalização, a institucionalização, a funcionalização, a humanização, a objetivação, a humanização e a jurisdiconalização. (MIRANDA, 2000, p. 23) A universalização importa na mudança gradativa do perfil euro-americano para um direito que alberga de forma cosmopolita as diferentes estruturas e manifestações da humanidade, dando margem à autodeterminação dos povos. A regionalização significa a criação de espaços regionais de solidariedade e de cooperação qualificadas, voltados a congregar os interesses econômicos, políticos, estratégicos ou culturais. A institucionalização indica que o Direito Internacional deixou de ser um Direito construído nas relações bilaterais ou multilaterais, para estar presente cada vez mais nos organismos internacionais. Manifesta-se na ótica das soluções de conflitos no processo de substituição dos meios diplomáticos por mecanismos específicos estabelecidos nos tratados, conforme os temas deliberados, ou, até mesmo, na consignação de convenções próprias à tratativa desses5. Essas normas tornam perceptível a procedimentalização de tais mecanismos, o ajuste detalhado que retira espaço das atuações políticas. 5 Para ilustrar: a Corte Internacional de Justiça, órgão das Nações Unidas com competência para julgar os conflitos entre Estados-membros da organização; a Corte Marítima Internacional – Tribunal do Mar, criada com base na Convenção sobre o Direito do Mar da ONU, para resolver controvérsias internacionais sobre a utilização do alto mar; o Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio, criado pelo tratado de Marrakeshi, para solucionar questões no âmbito das relações comerciais; o Tribunal Penal Internacional, no âmbito das Nações Unidas, instituído pelo Tratado de Roma para julgar a macrocriminalidade internacional; o Tribunal das Comunidades Europeias, que tem desempenhado um importante papel no processo de integração europeu; o Corte Interamericana de Direitos Humanos, no âmbito da Organização dos Estados Americanos, com competência para analisar os caso de violação dos Direitos Humanos nas Américas...

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A funcionalização, ao lado da institucionalização, denota a própria internacionalização do direito com o Direito Internacional extravasando o âmbito das meras relações externas e entre os Estados e adentrando matérias antes reguladas exclusivamente no âmbito interno (como a saúde, o trabalho, o ambiente). Aponta, assim, para a criação de organismos internacionais capazes de exercer essas competências e buscar soluções, de maneira complementar à própria atuação Estatal nacional. O maior diferencial se dá no fenômeno da humanização. “O Direito Internacional torna-se, também, um Direito Internacional dos Direitos do Homem”, que se traduz na ideia de que a soberania não prevalece quando usada contra os direitos fundamentais da pessoa humana a qual pode e deve ser defendida, não só em relação aos demais membros da sociedade, mas também em relação ao próprio Estado. A objetivação indica a superação da ideia de vontade Estatal para a concepção de que o Direito Internacional é o Direito da sociedade internacional, é um conjunto de princípios que torna possível a convivência internacional, a proteção das normas convencionais e o desenvolvimento de todo um regime dos tratados internacionais. E a codificação, relacionada à objetivação, implica na tradução do Direito Internacional em normas convencionais. Finalmente, a jurisdicionalização é consequência dos demais aspectos, pela qual se procura a superação dos regimes de cláusula facultativa, evoluindo para criação de um sistema com força de per se, com o estabelecimento de mecanismos cujo emprego independente de qualquer outro, verdadeiramente decidem o conflito, deixando de ser mero aconselhamento ou pressão política, com a aplicação das sanções possíveis e estabelecidas, de forma relativamente independente da vontade ou colaboração dos envolvidos. Assim, apesar de não conseguir agir de maneira definitiva nas assimetrias de poder entre os agentes, o que desequilibra os instrumentos de confiabilidade e cooperação, o sistema das Organizações Internacionais por meio do fomento a jurisdicionalização e da determinação de normas internacionais substâncias e de adjudicação adquire mais força impositiva, dependendo menos da vontade Estatal, o que permite uma maior automaticidade às decisões e torna o sistema volume

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internacional e as relações internacionais mais democráticas, vez que as sanções advêm de um processo que as legitime e não de uma decisão unilateral. Em suma, o novo desenho permite às Organizações Internacionais que desempenhem o papel de fomento da discussão e da reflexão em relação às questões internacionais; de ampliação da ordem normativa internacional; de centralização da interpretação da mesma, reduzindo o espaço para a violação do Direito e promovendo uma mudança nas politicas Estatais; e, por meio de repetições, incrementar as bases da cooperação internacional, motivando a estabilidade e a segurança jurídica e a tratativa das questões essenciais ao cumprimento de sua função. Contudo, é importante frisar que esse desempenho tem sido comprometido e questionado, principalmente pela dinâmica e atuação de alguns Estados que resistem em manter o controle das decisões em determinados ambientes organizacionais internacionais, proporcionando redutos de manutenção do ambiente orientado pela força e pela política (power oriente). Indicando mais um desafio: a mudança de perspectiva e organização desses ambientes. É preciso destacar, também, que ao longo do século XX, a partir da expansão considerável da atividade legal internacional em diversos novos campos, a diversificação de seus objetos e técnicas, atendendo às novas diretrizes das relações internacionais e seguindo o rumo e a demanda de avanço do comércio e da tecnologia e seus reflexos nas relações sociais, assim como a expansão da jurisdicionalização dos conflitos, pode-se perceber como efeito o processo de crescente especialização de partes da sociedade e a relativa autonomização destas partes e, em especial, do Direito Internacional, denominado de diferenciação funcional.(COMISSÃO DE DI, 2012) O fenômeno foi gerado e ocasionou o aprofundamento do aparecimento de normas, complexos de normas, instituições jurídicas ou esferas de prática jurídicas igualmente especializados e relativamente autônomos, ou seja, a divisão do direito em nichos especializados que reivindicam relativa autonomia entre si e em relação ao direito em geral. A produção destas legislações e instituições sem a devida coordenação passou a ocasionar conflitos entre normas ou sistemas de normas, bem como a perda de 252

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uma perspectiva geral do direito, resultando, em uma diminuição da almejada segurança jurídica, decorrente da dificuldade de prever a reação de instituições oficiais e a tomada de decisões de acordo com estas. Dentre os fatores que desencadearam essa fragmentação, em especial após o fim da Guerra Fria, e que podem ser relacionados às próprias tendências acima apresentadas, estão: i e ii) o aumento significativo na criação de normas internacionais aliado ao elevado nível de especialização das mesmas, gerando verdadeiros subsistemas com alto grau de independência entre si; iii) a expansão da atomização política agregada ao crescimento das relações regionais e globais e incremento da interdependência - econômica, ambiental, energética, social, da saúde- e ao risco iminente gerado pela utilização massiva e inconsequente dos recursos naturais e pela ampliação de armas de destruição em massa etc.-; iv) a regionalização do direito internacional voltado a tratar das questões internacionais com base em parâmetros mais próximos aos envolvidos; e v) a autonomia individual, fruto dos processos de democratização.(COMISSÃO DE DI, 2012) Esse crescimento confuso ocasionou um sistema não homogêneo, com diferentes níveis de interação, desordenado e muitas vezes sem coerência sistêmica, o que trouxe, como alternativa de enfretamento, a busca da harmonização, uniformização e unificação do direito e a constatação da necessidade de maior coordenação da jurisdição internacional. Preocupação que se percebe refletida na evolução dos objetos, função, estruturas e conceitos do Direito Internacional Contemporâneo, em busca da garantia da segurança jurídica e da estabilidade social, promovendo a interação entre as lógicas e éticas distintas que permeiam os diferentes âmbitos da vida internacional, para se alcançar a paz. Nessa perspectiva, a análise dos Direitos Humanos e do Direito ao Desenvolvimento, culminando com o ideal do Desenvolvimento sustentável. 3. a perspectiva de proteção do homem Diante da constatação de que o maior violador do homem foi o próprio Estado, e que continua sendo em diversas ocasiões, idealmente responsável pela promoção do ser humano e por punir e remediar as violações contra aqueles, advêm à ideia de Direitos Humanos. volume

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Esse ideário tem seu desenvolvimento marcado pela transformação no cenário internacional que se seguiu à Segunda Guerra Mundial e a preocupação de estabelecer novos parâmetros voltados a “tratar” os aspectos que ocasionam a ruptura da paz e seus reflexos e que trouxeram para a seara do Direito Internacional a proteção do indivíduo colocando-o como sujeito de normas internacionais voltadas a garantir sua integridade, segurança e desenvolvimento, em toda e qualquer circunstância, principalmente frente à atuação Estatal e por isso mesmo limitadoras de seu poder6. Como se denota, a noção de ordem jurídica é indispensável em qualquer situação em que se encontrem os seres humanos, pois, é a partir do reconhecimento do homem como pessoa pelo direito que se possibilita seu tratamento como ser humano. Assim, o reconhecimento dos indivíduos como pessoas é um pressuposto da existência dos Direitos Humanos e esse reconhecimento só acontece positivamente quando há uma ordem jurídica que consagre determinados valores, dentre eles a democracia. O ideal de proteção perpassa pela necessária popularização dos padrões adotados a fim de garantir sua efetividade material ou popular, sua inserção no consciente coletivo, assim como o estabelecimento de mecanismos legais garantidores da efetividade formal, voltados a combater o descaso com o ser humano (BAPTISTA, 1998). 6 As relações internacionais implicam de maneira fundamental na existência dos Direitos Humanos; nas épocas de paz é que estes se inserem e afirmam na ordem jurídica internacional. Na esfera internacional as relações desenvolvem-se em planos diferentes onde cada tema repercute de forma distinta, assim também em relação aos Direitos Humanos. No plano dos assuntos estratégicos militares destaquem-se os direitos de primeira geração, como o direito à vida e à integridade - primeiros ameaçados em conflitos-, e os de terceira geração, como a autodeterminação, a paz internacional e o desenvolvimento. No plano das relações econômicas aparecem distintos os direitos de segunda e terceira geração como condições de sobrevivência, meio ambiente, desenvolvimento das pessoas e coletividades, questões ligadas ao trabalho, à remuneração justa, à alimentação, ao desenvolvimento econômico, à solidariedade etc. E no plano dos valores pode-se destacar a ideia essencial do ser humano como um fim em si mesmo e não um meio que possa ser instrumentalizado pelos demais de acordo com seus interesses, denotando uma visão kantiana em relação ao conteúdo das normas, que convive e coaduna com a ideia de que a política internacional é composta pelo confronto, mas também pela cooperação, dando destaque a integração e a criação das organizações voltadas a implementála, destacando a visão grociana na condução e operacionalização da vida internacional. (BAPTISTA, 1998)

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Essa concepção levou ao surgimento de inúmeras normas que possibilitaram a construção de um sistema de proteção ao homem, nascido do trabalho desenvolvido pelas Organizações Internacionais, políticas e especializadas, e com a participação de Organizações não Governamentais, como porta-vozes da cidadania mundial. Processo esse, aliás, que desenvolve papel essencial no aperfeiçoamento, promoção e proteção dos Direitos Humanos, levando à descentralização do Estado, com a multiplicação e a diversificação de espaços públicos não governamentais, bem como com a participação mais ativa das organizações e redes da sociedade civil. Além disso, destaca Cançado Trindade (2007, p.72-90 passim), o Direito Internacional Contemporâneo tem experimentado manifestações de humanização por meio de construções conceituais que permeiam todos os seus aspectos. Dentre as expressões que demonstram, respaldam e esclarecem esse processo histórico corrente estão os conceitos de direito ao desenvolvimento, direito a paz, de patrimônio comum da humanidade e de interesse comum da humanidade plasmados em instrumentos internacionais diversos, dentre eles os relacionados ao meio ambiente. Assevera, ainda, que esta nova ótica constitui-se atualmente na nova ética dos nossos tempos. Diante dessa nova realidade, aos operadores do direito, os Direitos Humanos, como inegável avanço no processo de construção da humanidade, permanente e contínuo, exigem uma nova postura frente às discussões e bases para a promoção, interpretação e mudanças nas concepções jurídicas, econômicas, sociais e políticas das relações internas e internacionais. Além disso, exigem que se perceba que o contexto internacional e interno, marcados pelas conjunturas sociais, culturais, políticas e de segurança, agravadas por fatores econômicos e que nos remetem às temáticas ambientais, trazem circunstâncias que se constituem em pontos de tensão7 e que impactam diretamente na compreensão, assimilação e proteção dos Direitos Humanos. 7 Para ilustrar o panorama presentado, pode-se analisar os Direitos Humanos a partir de questões como sua vocação universal e as diferenças culturais, o fundamentalismo religioso, a intolerância, o terrorismo (em sua antiga e nova face), a carência de democracia e autonomia, a globalização, as crises econômicas, as assimetrias globais, a poluição, a devastação a desertificação, a contaminação e mudança no regime das águas... Dentre essas temáticas, a processo de globalização tem trazido inúmeras consequências aos Direitos Humanos, como se denota nas mutações sofridas pela soberania, pelo exercício do poder, em âmbitos antes de controle Estatal e que passam a fugir de sua esfera, como a informação e a moeda. volume

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Essa nova perspectiva se mostra imperativa ao se considerar o formato adotado pelos tratados de Direitos Humanos que atribuem o dever de implementar, fiscalizar e respeitar as normas pactuadas aos próprios Estados, cujo impacto se faz notar na maioria dos textos constitucionais contemporâneos que além de trazerem expressos muitos desses dispositivos, adotam regras de incorporação dos direitos garantidos no plano internacional, fazendo com que haja uma maior aproximação, integração e materialização desse novo Direito. Apesar de se denotar e destacar os avanços nessa área, que podem ser percebidos no simples fato de se reconhecer a existência de direitos que estão acima do próprio Estado e que são pertinentes a toda humanidade, não se pode “fechar os olhos” a violação promovida pelos Estados aos direitos mais básicos dos indivíduos e a fragilidade do Direito Internacional em dar uma resposta eficaz. Para superar estes fatos, é essencial o desenvolvimento da cooperação internacional, não somente para monitorar o cumprimento das obrigações assumidas pelo Estado, mas, para indo além da condenação, buscar mecanismos de superação dos obstáculos econômicos, sociais e políticos que impedem uma maior simetria global com o acesso a níveis dignos de existência por parte de parcelas significativas da população mundial. A consciência dessa interdependência, da conexão entre os diferentes fatores sociais, aponta outro desafio da humanidade e dos Direitos Humanos: conservar a liberdade, mas uma liberdade construída num padrão de igualdade que respeite as diferenças. Ou seja, é necessária a observância do Estado Democrático de Direito e maior simetria das oportunidades econômicas, para que essa proposta da sociedade internacional para a humanidade seja viável. Assim, se a proposta de novos domínios para os Direitos Humanos pode partir do indivíduo, das Organizações não Governamentais, Organizações Internacionais e Estados sua proclamação, positivação e efetividade depende, em última instância, dos Estados, cuja atuação esta sujeita e deve estar lastreada a uma mudança cultural que promova uma ruptura com as concepções discriminatórias, intolerantes, excludentes e que construa uma cultura de igualdade e liberdade, de respeito, de dignidade e de paz. 256

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4. a perspectiva econômica do desenvolvimento e do comércio internacional Como já destacado anteriormente, a administração do conceito contemporâneo de paz, função do Direito Internacional, traz o tratamento das questões ligadas à democracia, aos Direitos Humanos e ao desenvolvimento. Esses primeiros questionamentos em torno do desenvolvimento ocorreram, principalmente em razão da dimensão dos problemas de desigualdade política, econômica e social à época. Como elementos de fomento ao desenvolvimento, entre as áreas das relações internacionais, o Comércio Internacional e a economia interna dos Estados foram destacados. Isso se deveu e se deve à constatação de que as questões econômicas, principalmente as ligadas ao comércio, são grandes focos de conflitos e a ausência de normatização gera maior insegurança ao diminuir as expectativas dos atores na economia internacional promovendo o aumento da conflituosidade. O enfrentamento dessas questões econômicas ocorreu por meio da estruturação de organismos internacionais ou assemelhados e de tratados, que aliado à complexidade característica de suas regras, foram um dos motores de transformação do perfil do sistema - do modelo clássico para menos política e mais segurança. As bases da construção dessas diretrizes passam pela compreensão do complexo conceito de desenvolvimento construído ao longo das últimas décadas, mas que apresenta expressivas divergências de entendimento sintetizadas por Veiga (2005) em três correntes: i) desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico, defendida pelos fundamentalistas, é, ainda, a corrente prevalente, apesar dos debates atuais que questionam o cálculo ou a representação fiel do desenvolvimento por meio do Produto Interno Bruto, considerando apenas variáveis econômicas; ii) desenvolvimento como mito, representada pelos pós-modernistas (Giovanni Arrighi, Oswaldo de Rivero, Majid Rahnema e Gilbert Rist), que negam a sua existência; iii) desenvolvimento como liberdade, compreendendo não somente as questões econômicas, mas também as sociais e culturais, ou seja, há desenvolvimento quando existem garantias, a todos, de seus direitos individuais e sociais, o que consequentemente efetivaria a liberdade, que se destaca no Relatório do Desenvolvimento Humano de 1990 e no trabalho de Amatya Sen. volume

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O desenvolvimento visto inicialmente como um inevitável e evolucionário processo de crescimento econômico, de diferenciação social capaz de promover o surgimento de instituições econômicas, políticas e sociais semelhantes e, como resultado, a criação de um sistema de mercado livre, de instituições políticas democrático-liberais e do chamado império do direito (rule of law) (TAMANAHA, 2009, p 189), passa a ser compreendido, gradativamente, como capacidade do homem de controlar seus destinos, sendo necessário para tal um mínimo de igualdade social aliada a um aumento progressivo da riqueza dos Estados e a elevação do bem estar da sociedade. Essa nova leitura do conceito de desenvolvimento alia à dimensão econômica, as dimensões social, cultural, política e ambiental (SACHS, 2004), denotando a influência do ideário humanizante nas questões econômicas. Apesar de considerar o “progresso” econômico e as benesses dele advindas - impulsionadas na sociedade contemporânea pela globalização e pelo “progresso” tecnológico - como um dos responsáveis pelo incremento das condições econômicas dos Estados, não se abstêm do fato de que igualar crescimento econômico a desenvolvimento deixa de lado o enfretamento de inúmeros problemas existentes à época e persistentes na atualidade e os agregados pela complexidade das relações humanas contemporâneas8. Nesse sentido, Amartya Sem (2000, p. 17) explana que o desenvolvimento com enfoque nas liberdades humanas contrasta com a ideia de desenvolvimento como crescimento do Produto Interno Bruto, aumento de rendas pessoais, industrialização, avanço tecnológico ou modernização social. O desenvolvimento econômico não pode ser um fim em si mesmo, apesar de essencial como meio de ampliar as liberdades desfrutadas pela sociedade, estas dependem de determinantes assecuratórios, que permitam o gozo desse crescimento pela sociedade, como as disposições sociais, econômicas, civis e políticas. A visão mais ampla de desenvolvimento, que deixa de envolver simplesmente questões econômicas e alia a consideração das dimensões sociais, culturais 8 Nesse sentido, o meio ambiente, a persistência das assimetrias estatais, de problemas como a pobreza, a desigualdade social, o não atendimento das necessidades básicas, a violação de liberdades (econômicas, políticas e sociais) (SEN, 2000).

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e ambientais revela o que hoje se debate sobre desenvolvimento sustentável (SILVA, 2006) e denota outra grande inquietação do Estado contemporâneo: conciliar crescimento econômico, desenvolvimento social e preocupações ambientais. Desafio esse que compreende fazer frente a problemas duráveis e crescentes como a pobreza, a desigualdade social, o não atendimento das necessidades básicas, a violação de liberdades (econômicas, políticas e sociais) (SEN, 2000), entre outros. Nessa busca, o direito tem sua atuação na definição das regras necessárias ao desenvolvimento, na estruturação de mecanismos e instrumentos de políticas públicas e na construção de normas jurídicas que definam deveres de edificação, preservação e incentivos ao desenvolvimento. A respeito dessa relação entre direito e economia, Schapiro (2010, p.214) explica: O retorno desta agenda tem como particularidade o relevo atribuído ao ambiente jurídico-institucional, no âmbito tanto das agências multilaterais de fomento, como dos governos nacionais. Desde meados da década de 1990, sob a rubrica de Rule of law, têm se difundido, nos mais diversos países em desenvolvimento, programas de qualificação institucional, voltados a um universo variado de propósitos, que inclui desde a reforma do poder Judiciário até a incorporação de novos códigos legislativos, passando ainda pela promoção de novas regulações no ambiente financeiro e pela adoção de boas práticas de governança corporativa. O traço comum dessa agenda, cujos desdobramentos podem ser identificados em países tão diferentes como os latino-americanos e os da África subsaariana, é a confiança na promoção do desenvolvimento a partir da promoção de boas regras do jogo, capazes de amparar um ambiente econômico estável e seguro para as transações privadas.

Contudo, somente a atuação do direito não é suficiente para se alcançar tais metas, é imprescindível a “boa vontade” e comprometimento de toda a sociedade, interna e internacional, Estados e cidadão, para o enfrentamento dos desafios decorrentes da responsabilidade em relação ao desenvolvimento, de forma adjetivada, com sustentabilidade. Nesse sentido o pensamento de Lopes9 (2005, p. 174) ilustra o desafio: 9 Em outro momento, também significativo, o alerta para a importância de se considerar as nuances do comportamento humano: Significado e propósito são conceitos importantes para volume

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As leis não crescem em árvores, crescem na imaginação coletiva e o imaginário coletivo não é para ser considerado de forma superficial. Essa discussão, por isso, tem lugar em um histórico e sistema legal existentes, em que as pessoas (cidadãos comuns e profissionais do direito) já atuam, existem, acreditam em coisas e se comportam de acordo com isso. Regras existem e têm sido usadas por um longo tempo. A cultura de fundo legal [...] é uma tradição liberal em que a forte proteção de interesses privados é dominante [...] [tradução livre].

Assim, a fim de serem alcançados os objetivos propostos é necessário compreender e agir em conformidade com a realidade social com as especificidades institucionais de cada ambiente social em que se pretende implantar esses conceitos de tal forma que se possa ultrapassar a resistência política à realização das reformas institucionais e se alcance a efetividade das medidas propostas, vez que lastreadas na trajetória histórica local. Nesse sentido expõe Tamanaha (2010, p.178): Ao menos uma lição clara se destaca em meio à névoa: a sociedade é o centro de gravidade absoluto do Direito e Desenvolvimento. O termo “sociedade” é aqui usado em um sentido amplo – abrangendo a totalidade da história, a cultura, os recursos humanos e materiais, as composições religiosas e étnicas, a demografia, o conhecimento, as condições econômicas e a política. Nenhum aspecto do Direito e Desenvolvimento opera ou pode ser entendido isoladamente em relação a esses fatores circundantes. As qualidades, o caráter, os efeitos e as consequências do direito são completa e inescapavelmente influenciados pela sociedade circundante. Visto que cada contexto jurídico presente em cada sociedade envolve uma reunião única de forças e fatores, pode não haver nenhuma fórmula padrão para a regulação; uma lei que seja boa em um lugar pode apresentar efeitos ruins ou ser disfuncional em outro; consequências inesperadas podem vir a ocorrer. lidar com a ação humana. Quando falamos de propósito, vamos supor que um determinado comportamento não é simplesmente o resultado da reação cega. Trata-se de um tipo de escolha, intenção, etc. Quando mencionamos o que significa, assumimos que a pessoa vai ser capaz de dar as razões. Significado e propósito nos ajudam a responder a pergunta “por quê?” Podemos responder também “porque ...” ou “a fim de ...” A pergunta “por que”, nesse sentido, exige que a resposta será dada em termos de compreensão. “O entendimento é equivalente a: a apreensão interpretativa do sentido ou conexão de sentido”. (Weber 1977, p.9) [tradução livre] (LOPES, 2005, p. 174).

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Em outras palavras, para alcançar os efeitos desejados, o desenvolvimento adjetivado, a atuação do Direito deve se adaptar às necessidades daqueles a quem se dirige. É necessário encontrar respaldo nos arranjos nacionais, como estratégia de promoção do desenvolvimento, possibilitando lidar com alternativas institucionais de organização econômica e financeira, de acordo com os modelos sociais e econômicos pertinentes a cada Estado; alinhar os parâmetros internacionais às necessidades e características locais. 5. a perpectiva conjugada do desenvolvimento sustentável O conceito de desenvolvimento sustentável, desponta com o Relatório Brundtland, intitulado “Nosso futuro comum” (COMISSÃO..., 2012, p. 49) como sendo aquele “[...] que procura atender às necessidades e aspirações do presente sem comprometer a possibilidade de atendê-las no futuro[...]”, ou ainda, [...] em essência, o desenvolvimento sustentável é um processo de transformação no qual a exploração dos recursos, a direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a mudança institucional se harmonizam e reforçam o potencial presente e futuro, a fim de atender às necessidades e aspirações humanas.

O documento aponta também dimensões e objetivos que embasam estratégias de promoção da harmonia entre os homens e entre a humanidade e a natureza e representa um marco na evolução dos parâmetros e na ideia de desenvolvimento sustentável (SACHS, 2004, p. 36) por traduzir a compatibilidade entre o crescimento econômico e a conservação ambiental, possível em um contexto de inevitável mudança das relações internacionais, apregoando a cooperação, sentido oposto ao denominado “ecodesenvolvimento”, delimitado pela Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente de Estocolmo, 1972.10 10 Dentre as estratégias e objetivos que alteram o senso de desenvolvimento sustentável, estão a atuação em busca de um : (1) sistema político que assegure a efetiva participação dos cidadãos no processo decisório; (2) sistema econômico capaz de gerar excedentes e know how técnico em bases confiáveis e constantes; (3) sistema social que possa resolver as tensões causadas por um desenvolvimento não equilibrado; (4) sistema de produção que respeite a obrigação volume

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As diversas críticas e definições quanto ao conteúdo e significado do termo provocou o refinamento de seu entendimento e de sua extensão, garantindo importante avanço epistemológico (SACHS, 2004, p.36). Refinamento que pode ser percebido nas disposições da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986 que caracteriza tal direito como um direito do homem, como um processo em que todos os Direitos Humanos devem ser garantidos e realizados e o coloca como tema condutor para as Nações Unidas, avocando para tal a redução das desigualdades e da pobreza como objetivos centrais do processo de desenvolvimento e, além disso, ao não retomar os temas de perfil meramente econômico, afasta sua vinculação exclusiva ao crescimento (SOUZA, 2010, p. 426). A Declaração denota, ainda, a tendência de humanização do Direito Internacional Contemporâneo, promovendo a conjugação do objetivo econômico com o objetivo de proteção do ser humano. Nos últimos anos, os trabalhos desenvolvidos no âmbito da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) com o “crescimento verde” e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) com a “economia verde” denotam propostas voltadas a tratar a economia aliada à preservação ambiental, as quais, ainda que de apelo ecológico, se colocam como instrumentos para o alcance do desenvolvimento sustentável e apontam a indissociabilidade para tal do tratamento das questões sociais e culturais e da atuação Estatal, principalmente por meio de políticas públicas. Essas propostas serviram de base para os trabalhos desenvolvidos durante a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) a qual, apesar das críticas quanto aos avanços alcançados, ou não alcançados, redundou no documento “O Futuro que Queremos”, o qual aponta a economia verde como um dos motores do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza. 11 de preservar a base ecológica do desenvolvimento; (5) sistema tecnológico que busque constantemente novas soluções; (6) sistema internacional que estimule padrões sustentáveis de comércio e financiamento; e (7) sistema administrativo flexível e capaz de se autocorrigir (COMISSÃO ...2012, p. 53). 11 Como consequência do documento “O Futuro que Queremos”, em 2013 se iniciou a Parceria para Ação pela Economia Verde (PAGE) entre agências da ONU (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), a Organização Internacional do Trabalho

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Contudo, frisa-se que diante da noção de indissociabilidade das questões econômicas, ambientais, sociais, culturais e políticas, pode-se afirmar que paradoxalmente, tão simples e tão complexo, o conceito de desenvolvimento indica a função de poder levar adiante uma vida digna (BRAVO, 2008, p. 91). Significa: não é só de verde que se faz a sustentabilidade. Evolutivamente, a partir da revolução industrial, o progresso passou a ser entendido como o aumento do produto, índice de crescimento da produção, sendo quatro os objetivos da civilização: democracia política, bem-estar social, progresso científico e desenvolvimento econômico – vetores que interagiam entre si e que passaram a ter que conviver com outros três: a descoberta da necessidade de equilíbrio ecológico; a superconcentração de renda e a independência do sistema financeiro, que passou a gerar renda por si próprio, tornando o modelo insustentável. (BUARQUE, 2012) Na impossibilidade de sinergia entre estes fatores, surge a necessidade de optar pela prevalência de alguns como a democracia, o bem-estar, o progresso científico e tecnológico em detrimento de outros como o crescimento econômico. Assim, o Desenvolvimento Sustentável pressupõe atualmente cinco dimensões - ambiental, econômica, política, social e cultural - que exigem a redefinição das relações da sociedade entre si, sociedade e Estado, com a produção e o consumo e com a natureza. Dimensões que podem ser manejadas com base na teoria das cinco cores da economia sustentável: verde, vermelha, branca, amarela e azul. Do ponto de vista ambiental, demanda a construção de um sistema de produção que respeite a obrigação de preservar a base ecológica do desenvolvimento, um sistema administrativo flexível e capaz de se autocorrigir a otimização e eficiência do uso dos recursos ambientais e sua preservação - procurar fazer com que sejam (OIT), a Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (UNIDO) e o Instituto das Nações Unidas para Formação e Pesquisa (UNITAR)) para apoiar Estados na criação de estratégias nacionais de promoção da Economia Verde. O objetivo é criar novos empregos e áreas de atuação, promover tecnologias limpas e reduzir a pobreza e os riscos ao meio ambiente, incentivando os Estados participantes a criarem condições que favoreçam o investimento em ativos econômicos verdes, incluindo tecnologias limpas, estruturas para utilização eficiente de recursos, conservação de ecossistemas, mão de obra qualificada para empregos verdes - garantindo a criação de mais e melhores empregos e de benefícios para toda a sociedade - e boa governança. (BOLETIM..., 2013.) volume

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evitados danos aos ecossistemas e impedir o esgotamento de recursos essenciais. A economia verde relaciona-se à racionalização do sistema produtivo com base na ética e não na lógica pura. É a mutação da chamada economia marrom com a utilização de novos insumos, opção por energias renováveis, consideração de externalidades (como destruição de florestas12 e outras perdas geradas que provocam danos ambientais com o esgotamento de recursos e o aquecimento global), incremento da cooperação e da solidariedade norteados pela compreensão de que o mundo está interligado, no qual as ações individuais repercutem na coletividade. As estratégias que buscam assegurar a edificação de um sistema tecnológico, que busque constantemente novas soluções a cooperação e o fomento na busca e difusão do conhecimento e das inovações tecnológicas e que os produtos da ciência e tecnologia tragam benefícios para todos, se associam à cor amarela. Por sua vez, o desenvolvimento econômico, além dos acima citados, exige um sistema internacional que estimule padrões sustentáveis de comércio e financiamento, um sistema econômico capaz de gerar excedentes e “know how” técnico em bases confiáveis e constantes, e demonstra a insuficiência dos critérios tradicionais de mensuração do grau de aperfeiçoamento que desprezam as consequências negativas dos modelos adotados. Deve, portanto, ser acompanhado da atuação de um sistema social que possa resolver as tensões causadas por um desenvolvimento não equilibrado. Significa que o econômico deve se ater ao aspecto social, que demonstra a essencialidade da posição do ser humano no processo, o qual não pode ser esquecido como destinatário das políticas econômicas voltadas ao desenvolvimento, representado pela economia vermelha. Em outras palavras, objetiva a harmonização dos interesses das atividades econômicas tornando-as viáveis em longo prazo e possibilitando a geração de benefícios a todos os agentes (oportunizando geração de emprego, distribuição de renda, investimentos, serviços sociais, justiça e educação às comunidades) e consequente redução da pobreza com a inclusão das camadas mais carentes da sociedade na economia verde. 12 “O PIB não considera perdas de florestas, mas apenas o aumento da produção de soja. Uma árvore em pé só tem valor para a economia se for fruteira”. (BUARQUE, 2012.)

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Na busca e manutenção da paz, a economia branca combina a geração de riqueza com a necessidade de estabilidade social, deixando de considerar para o cálculo da riqueza Estatal gastos com segurança e passando a considerar a totalidade do ser humano e sua capacidade de alcançar a felicidade como parâmetros para se auferir o grau de desenvolvimento de um povo.13 Relevantes, os aspectos político - relacionado à criação de um sistema político que assegure a efetiva participação dos cidadãos no processo decisório - e cultural implicam no respeito às diversidades culturais, revelam a necessidade de se acatar a autenticidade sócio-cultural das comunidades locais, conservar sua arquitetura, seus valores tradicionais e contribuir para o entendimento e tolerância entre os diferentes. É a economia azul, ligada ao aspecto individual e político, ao bemestar das pessoas, à remoção dos obstáculos na busca individual da felicidade, com a promoção da democracia e da liberdade, da paz social, da inclusão da social, da diversidade cultural, da tolerância, da consciência coletiva da importância da sustentabilidade, da promoção das estruturas físicas, econômicas, legais, políticas necessárias a permitir aos indivíduos buscarem seus objetivos e conformarem uma sociedade mais atuante, presente e sustentável. Ou seja, a busca do desenvolvimento sustentável deve trabalhar a partir de um enfoque holístico as estratégias de redistribuição, as mudanças nas tecnologias da estrutura produtiva, dos padrões de consumo e dos estilos de vida, incorporando esse conceito no planejamento e implantação de políticas locais, setoriais e interdependentes das diversas atividades econômicas e sociais a fim de tratar das assimetrias econômicas e sociais, locais, regionais e globais, que deixam grande parte da população mundial vivendo na pobreza. Nesse sentido é o Relatório da Conferência Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL/NU), intitulado Mudança estrutural para a igualdade: Uma visão integrada do desenvolvimento (CEPAL, 2012). O documento apresenta propostas para a mudança do paradigma desenvolvimento, tendo como eixo central “a mudança estrutural como caminho, as políticas públicas como 13 “É uma estupidez pensar que a fabricação de um tanque de guerra aumenta o PIB”, afirmou o senador. Ele explicou que, por esse raciocínio, quando um assaltante dispara uma arma, ele está contribuindo para o aumento do PIB por causa do consumo da pólvora. “E se acertar o coração e matar aumenta a renda per capta”, provocou. (BUARQUE, 2012.) volume

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instrumento e a igualdade como valor subjacente e como horizonte ao qual se orienta esta mudança.” As proposições são divididas em cinco eixos, destacando seu perfil e atuações necessárias e demonstrando suas interconexões. Primeiramente, aponta a necessidade de articulação e sinergia entre a política macroeconômica e a política industrial e tecnológica, entre macroeconomia e estrutura, entre estabilidade e crescimento, em um enfoque integrado, que priorize de maneira explícita a mudança estrutural e nivele para cima as capacidades e oportunidades sociais. Em seguida, no eixo econômico, destaca que as políticas industriais devem estar no centro da orientação do desenvolvimento, apontando em duas direções complementares: dotar os setores com potencial de crescimento e incorporação de progresso técnico de maiores capacidades e competitividade e diversificar a estrutura produtiva com a criação de novos setores de alta produtividade e de maior sustentabilidade e eficiência ambiental. Indicando a promoção da produtividade das micro, pequenas e médias empresas (PME), geradoras de emprego com potencial de se converterem em centros de difusão do conhecimento e de apropriação da tecnologia. Em terceiro lugar, no braço científico tecnológico, enfatiza a importância de se investir em pesquisa e desenvolvimento que ampliem a produtividade, denotando o contexto da revolução industrial que abrange as novas tecnologias da informação e das comunicações, a biotecnologia e a nanotecnologia e a necessidade de inserção e interação da política industrial com a fronteira técnico-científica. Na sequência, aponta o eixo ambiental, destacando a necessidade de vinculação entre a política industrial e a sustentabilidade ambiental na agenda do desenvolvimento, sendo imprescindíveis pactos sociais em que o Estado desempenhe a promoção do meio ambiente dentro das políticas industriais. Isto implica em redefinição da estrutura industrial predominante, dos setores e tecnologias, da matriz de produção e do foco da pesquisa, desenvolvimento, inovação e aprendizagem, abrindo espaço de legitimidade e cooperação internacional. Em quinto lugar, no braço social, apresenta como imperativo um papel mais ativo e decidido do Estado em políticas de vocação universalista no social, um 266

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papel deste e da fiscalidade de prover sistemas mais inclusivos e integrados de proteção social; que determinem padrões mínimos de bem-estar, progressivos no tempo e conectados aos efeitos positivos da mudança estrutural. Aponta que investir no social é imprimir ao desenvolvimento um viés igualitário, mas também é mais consistente com uma economia dinâmica, permitindo elevar a produtividade média da sociedade mediante capacitação e educação, assim como manter os níveis de demanda interna para reativar a atividade econômica. O Relatório alerta que o processo de mudança estrutural para a igualdade proposto não se constitui em uma fórmula fechada ou uma lista de ações válidas para qualquer tempo e lugar, mas oferece propostas concretas de política cuja implementação deve considerar as especificidades econômicas, institucionais e políticas Estatais. Nesse sentido, Sen (2000, p. 276) explica que para tratar as desigualdades, respeitando as características peculiares dos Estados, cada sociedade deve buscar seu modelo de desenvolvimento, pois não existe um critério único, o que deve se dar com a observância de suas diferentes necessidades, pois as sociedades têm diferentes imperativos, alguns em grau de urgência, segundo o qual se expliquem as distintas experiências. A essas questões se acrescem as bases para a ampliação significativa da responsabilidade social, norteadora dos processos de desenvolvimento sustentável no mundo contemporâneo e que contribui para produzir progresso impactante nas políticas públicas, nas decisões empresariais, em alianças comunitárias, demonstrando que é imprescindível conciliar desenvolvimento, competitividade e sustentabilidade. Assim, ainda que parece contraditório, a humanização do desenvolvimento que transfere gradativamente seu âmbito de abordagem campo interestatal econômico para o campo dos direitos humanos, não o enfraquece, mas lhe confere características das quais era desprovido, como legitimidade política, arcabouço jusfilosófico e aceitação de tendência universal. (SALCEDO, 1985, p.197) O desenvolvimento sustentável, sua evolução conceitual e legal, exemplificam a interpenetração dos objetivos que norteiam o Direito Internacional Contemporâneo na busca da paz, colocando a Humanidade e os princípios e volume

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valores que a amparam como bases para a atividade econômica, demandando uma releitura e reestruturação normativa e institucional, num processo de interação entre o sistema internacional e o Direito Interno. Ação, contudo, ainda influenciada e condicionada ao jogo político. 6. conclusões A vida internacional passou e continua passando por inegável e acelerado processo de transformação e edificação de suas estruturas, o que tem gerado um câmbio nas suas perspectivas e o surgimento de desafios a serem superados. Um dos desafios surge em relação às alterações no âmbito do Direito Internacional que apresenta uma mudança de perspectiva e ampliação de seu objetivo sobrevindo a perseguir três braços distintos, mas dependentes, que não podem e não devem ser vistos e construídos isoladamente, mas em conjunto, interligados na busca, no alcance e na garantia da paz: a democracia, a proteção do ser humano e o desenvolvimento. Atuação que implica a cooperação mútua, a educação e a interdependência dos povos, a construção de uma sociedade melhor, na qual a diminuição das assimetrias e a ampliação das oportunidades tragam o equilíbrio às relações sociais. Esse caminho é influenciado pela globalização, como fenômeno antropológico, político e econômico que aponta o agravamento daquele desafio ou o despontar de outro: de que maneira a sociedade internacional deve se integrar a ela. Ao perseguir seus objetivos, a participação das Organizações Internacionais passa a ser crucial nesse cenário de ampliação, afirmação e efetivação do Direito Internacional. Porém, com a multiplicação normativa, institucional e pela jurisdicionalização, aliado à escassez de coordenação, propiciou distintos tratamentos outorgados aos diferentes aspectos das relações internacionais, o que se constitui em fator de instabilidade na busca da segurança almejada, dando margem à fragmentação do Direito Internacional e a consequente necessidade de aproximação e tratativa desse cenário e de coordenação de suas atividades. Nesse panorama, os Direitos Humanos, destacam-se como parâmetro para a construção normativa e interpretativa das normas internacionais. É a tendência de humanização do Direito Internacional, cuja perspectiva permite perceber um 268

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movimento de interpenetração entre as bases traçadas por aquele e a as bases para a condução da atividade econômica e da estruturação do Direito ao Desenvolvimento, setores construídos a partir de éticas distintas, mas que tem gradativamente aproximado seus parâmetros, ao menos jurídica e doutrinariamente, a partir da tendência e do princípio da prevalência da humanidade. Essa consciência e interdependência, essa conexão entre os diferentes fatores sociais, aponta outro desafio da humanidade e dos Direitos Humanos: conservar a liberdade, mas uma liberdade construída num padrão de igualdade que respeite as diferenças, a necessidade da observância do Estado Democrático de Direito e de maior simetria das oportunidades econômicas. A conjugação das perspectivas econômicas e humanas constroem a visão mais ampla de desenvolvimento, que não mais se envolve exclusivamente de questões econômicas, mas também das dimensões sociais, culturais, políticas e ambientais, apontando para desenvolvimento sustentável e denotando outra grande inquietação do Estado contemporâneo: conciliar crescimento econômico, desenvolvimento social e preocupações ambientais, que compreende fazer frente a problemas duráveis e crescentes como a pobreza, a desigualdade social, o não atendimento das necessidades básicas, a violação de liberdades (econômicas, políticas e sociais); compreende levar adiante uma vida digna Essa nova perspectiva de organização e condução traz reflexos aos ordenamentos jurídicos Estatais impelidos a adaptações e mudanças, assim como ao universo das relações sociais, em especial, no tema proposto, às relações econômicas que tem que se adaptar aos novos paradigmas dando prioridade aos seres humanos e às condições para sua existência e continuidade, ainda que em detrimento dos aspectos econômicos, forjando o ideal do desenvolvimento sustentável. Esse ideal exemplifica o panorama, apontando a trajetória da ideia de proteção ao homem e de promoção do crescimento econômico que gradativamente, inexoravelmente e irremediavelmente vão se aproximando conceitualmente, estruturalmente, culturalmente e legalmente. Esse caminho de interconexão denota também a busca de se contornar as discrepâncias e problemas gerados pela multiplicação de normas e instituições e, principalmente, que a perspectiva da função ampliada do Direito Internacional se faz perceber na construção da vida internacional. volume

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desenvolvimento e direito ao desenvolvimento: par a onde caminha a america latina? José Alberto Antunes de Miranda1 Sergio Urquhart de Cademartori2

Resumo A partir da evolução histórica do debate sobre o desenvolvimento e o direito ao desenvolvimento refletidas em algumas teorias econômicas, observam-se neste artigo as mudanças ocorridas na América Latina. Se expõe forte crítica ao emprego do termo “desenvolvimento” utilizado sem uma clara definição pelas políticas econômicas dos países desenvolvidos repassadas aos menos avançados e que influenciaram a região Latino-americana. A extensiva utilização do termo “desenvolvimento” para delinear políticas que se presumiam ser necessariamente boas também ajudaram a construir novos esquemas de percepções por parte dos países que compõem a região. Novos princípios éticos-morais que refletem no tipo de desenvolvimento que se quer passam a ser delineados a partir das Constituições da Bolívia e Equador.

1 Possui graduação em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1996), Especialização em Integração e Mercosul pela UFRGS (1999), Mestrado em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004) e Doutorado em Estudos Estratégicos Internacionais pela UFRGS (2012). Atualmente é Assessor de Assuntos Interinstitucionais e Internacionais e professor permanente do Mestrado em Direito e Sociedade além de integrar o corpo docente do Curso de Relações Internacionais do Centro Universitário La Salle. Tem experiência na área de Relações Internacionais, com ênfase em Política Externa e Análise da Política Externa, Integração Regional, Organizações Internacionais, Direito Internacional, Constituição e Relações Exteriores e Internacionalizacão da Educação Superior. 2 Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (1976), mestrado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1990) , doutorado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1997) e pós-doutorado junto à Unisinos (RS). Atualmente é professor visitante do doutorado da Universidade de Granada e da Universidade Técnica de Lisboa, professor permanente do Centro Universitário La Salle Canoas, Consultor ad hoc da CAPES. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Epistemologia, atuando principalmente nos seguintes temas: democracia, garantismo, direitos fundamentais, constituição e administração pública. Professor vinculado ao projeto de mestrado em Direito e Sociedade da Unilasalle. volume

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Palavras-chave Desenvolvimento; Direito; América Latina.

Abstract The historical evolution of the debate about development and the right to development that were expressed in some of economical theories we indentify changes that occurred in Latin America. The term development is strongly criticize in the way it is used by political economy of the develop countries to Latin America, as it isnt clear whem go over to underdevelop world. The extensive meaning of the term development to conduct presume good policys helped to construct new ways of countries perceptions in the region. New ethical and moral principles that reflects the type o development that is wanted start to be outline from Equador and Bolívia Constitutions.

Key words Development; Law; Latin America. 1. introdução No sistema internacional, os problemas do desenvolvimento dos países considerados mais atrasados, antes dos anos cinquenta foram raramente discutidos. Grande parte das abordagens até então eram direcionadas ao desenvolvimento das colônias, pois muitas eram controladas pelos países europeus. A partir do processo de descolonização as pesquisas sobre desenvolvimento ganharam fôlego em uma escala internacional maior. Os novos Estados utilizaram as Nações Unidas para levantaram suas vozes clamando pela necessidade ao direito ao desenvolvimento. A Guerra Fria contribuiu para que cada lado instituísse um discurso diferente com intuito de promover as vantagens do desenvolvimento em suas respectivas áreas de influencia.3 3 Em 1973 a Assembléia Geral da ONU coloca o debate sobre o desenvolvimento como uma questão chave para o terceiro mundo. O Presidente argelino Houari Boumedienne, presidente em exercício dos países não-alinhados, provoca a convocação da Assembléia para estudo dos problemas das matérias-primas e do desenvolvimento; em 74, este fórum consigna, na Carta dos Direitos e Deveres Econômicos dos Estados, toda uma série de reivindicações dos países

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O objetivo deste trabalho é examinar a evolução histórica do debate sobre desenvolvimento e o direito ao desenvolvimento e as mudanças que se delinearam sobre o debate presentes em algumas constituições da América Latina. Os liberais serão os pioneiros na área de estudo de desenvolvimento no ocidente a partir de suas contribuições na chamada “Teoria da modernização”. Os teóricos da modernizacão criaram um coerente e influente “corpus” de idéias e doutrinas. Ao serem confrontados com a diversidade do terceiro mundo eles presumiram que estas sociedades estariam destinadas a passer pelas mesmas transformacões pelos quais passaram as sociedades do ocidente industrializado. Criaram assim a estrutura conceitual perpassada pela fé no progresso, na possibilidade de todos os povos alcancarem a modernidade. A idéia básica era de que os países do terceiro mundo seguiriam o mesmo processo de evolução das nações desenvolvidas do ocidente. O desenvolvimento estava associado à superação de barreiras de produção pré-industrial, de instituições atrasadas e de sistemas de valores limitados que dificultariam o processo de crescimento e modernização. As estratégias predominantes de desenvolvimento nos anos cinqüenta seguiam a lógica das concepções teóricas discutidas no âmbito da teoria da modernizacão. A industrialização era concebida como motor do crescimento que iria puxar todo o resto da economia. O setor industrial era designado como dinamizador, o contrário do setor agrícola que era visto como um setor passivo a ser comprimido. Se percebia a indústria como o setor líder que iria oferecer alternativas e oportunidades de emprego à população agrícola. A industrialização iria também oferecer um aumento de demanda por produtos alimentícios e materiais brutos promovendo, com isso, investimentos para agricultura. Enquanto a doutrina do desenvolvimento nos anos cinqüenta implicitamente reconhecia a existência de parte da economia atrasada, complementando o setor moderno, não explicava a estrutura dualística dos papeis recíprocos dos dois setores. (THORBECKE, 2009, p.6- 7) do Sul, que vão desde a exigência de um melhor acesso dos seus produtos aos mercados dos países industrializados, a uma ajuda mais substancial à sua produção agrícola. A Carta dos Direitos Econômicos e Direitos dos Estados (COORDENADORIA ECUMÊNICA..., 2003) volume

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Os liberais, no debate sobre o desenvolvimento, salientavam teorias focadas em identificar os vários obstáculos à modernização, assim como os fatores que a promovem. Assim, enfatizam a necessidade de uma economia aberta, livre de interferência política, para geração de investimentos, considerados essenciais para produção do desenvolvimento e do crescimento duradouro. O comércio internacional é visto como um caminho para a expansão do mercado e para um maior crescimento do setor moderno. Os investimentos estrangeiro em países menos desenvolvidos por meio de corporações transnacionais introduz as capacidades de produção e a tecnologia necessária. A interpretação liberal foi criticada nos anos 60 e 70, muito em função da constatação da falta de progresso de muitos países do terceiro mundo nesse período. A Teoria da modernização não beneficiava todos. Na América Latina a Teoria da Dependência4 surge como crítica aos liberais econômicos. A sua finalidade não era elaborar modelos de desenvolvimento alternativos aos do capitalismo ou do liberalismo econômico, mas de preferência criticar a forma de dependência do desenvolvimento capitalista no terceiro mundo. A Teoria da Dependência faz crítica ao capitalismo tardio. Seria um esforço pela constituição de instrumentos teóricos que possam ser utilizados pelos países do terceiro mundo em sua defesa contra o capitalismo globalizante. A “dependência” como explicação para se atingir o desenvolvimento surgiu na América Latina como uma doutrina importante e teve várias interpretações. Segundo Fernando Henrique Cardoso (2010, p. 100-101) houve dois tipos de inserção das economias da América Latina no sistema internacional. Um, quando a produção exportadora se manteve sob controle de produtores nacionais. Outro, quando houve inversão estrangeira. Historicamente essa diferenciação dependeu de muitos fatores, como a abundancia de terra ou produtos minerais. Dependeu também, desde o período colonial, de existir ou não uma população numerosa, da capacidade dos grupos e classes locais para estruturar-se em sis4 A Teoria da Dependência fazia um diálogo com as principais interpretações sobre o tema desenvolvimento. Propunha uma abordagem conhecida como estruturalismo americano para os estudos sobre desenvolvimento econômico. O principal formulador dessa teoria foi Raul Prebisch, tendo apresentado vários desdobramentos. (CARDOSO, 2010, p. 96101)

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temas de poder eficientes, para negociar com os setores externos, e assim por diante. Não havia a inevitabilidade de uma forma específica de dependência, pois esta não decorria de mera imposição externa, mas da combinação de fatores externos e internos e das alianças entre eles.5 Nos anos 70 a Teoria da Dependência foi criticada e declinou. Se observou que vários países do sudeste asiático, os chamados “Tigres Asiáticos”6 tiveram um rápido crescimento econômico associado à integração ao mercado mundial. Isso representou um golpe à Teoria da Dependência. A mesma subestimava de modo crítico fatores domésticos em sua análise, como o papel do Estado e das forças sociais nacionais. A receita do “mercado” para enfrentar os novos “Tigres Asiáticos” era produzir trabalhadores esforçados, ambiciosos, relativamente bem educados e dispostos a aceitar a diminuição de suas renumerações e o corte dos direitos trabalhistas. No entanto, abraçar a causa dos valores e atitudes “competitivos” não representaria, necessariamente, uma garantia de sucesso. Esforços paralelos de adaptação aos desafios da competitividade foram realizados no mundo inteiro, pelo que a América Latina não passou despercebida. Nesse contexto, a capacidade operacional dos diferentes Estados da região, para formular estratégias e implementar políticas de alcance nacional, e o poder de pressão de cada país nos organismos que regulam a concorrência global marcam profundas diferenças que antecipam, na maioria dos casos, o desfecho muitas vezes negativo na luta pelo progresso na região. (AYERBE, 2002, p. 243) A analise de sistemas–mundo de Immanuel Wallerstein (1996) responderá às críticas na formulação de ideias a partir da teoria da dependência sobre trocas desiguais e o subdesenvolvimento na periferia. Segundo ele, a hierarquia e a troca desigual permanecem como características fundamentais da economia mundial capitalista. Seu ponto de partida está no conceito de sistema-mundo, que apresenta o sistema internacional como uma única estrutura integrada, econômica e politicamente, sob a lógica da acumulação capitalista.7 5 No livro escrito por Fernando Henrique Cardoso e Faletto era salientado o raciocino estruturalista. (CARDOSO; FALETO, 1969). 6 Os Tigres Asiáticos eram formados por Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong. 7 Ao contrário dos demais marxistas que preferem abordagens centradas na forma de organização econômica e política dos Estados e nas relações de dominação e subordinação resultantes volume

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Ao longo da evolução histórica, se produz uma organização espacial do sistema mundo, estratificada segundo a divisão internacional do trabalho e a concentração de renda nas diferentes esferas da acumulação. Os Estados de situariam em três áreas distintas: centro, a semiperiferia e a periferia. O centro concentraria as atividades econômicas mais intensivas em capital, mais complexas e sofisticadas tecnologicamente. A periferia, ao contrario, se caracteriza na produção de bens primários e a semi-periferia registraria um certo nível de industrialização, ainda que restrita a bens de consumo não duráveis e produtos tecnologicamente menos sofisticados. Segundo Wallerstein, as três áreas do sistema mundial capitalista formam uma hierarquia de poder tanto econômico quanto político. Os países do centro exercem sua dominação sobre a semi-periferia e a periferia, seja por meio da força, quando necessário, ou das alianças com as burguesias locais dependentes do mercado mundial. A semi-periferia desempenha um papel importante porque representa a possibilidade de ascensão dos países pobres a um patamar mais elevado de renda, via industrialização. Ela então contribuiria para moderar as contradições entre centro e periferia. A existência da semiperiferia demonstra que a tese dependentista de que a distancia entre ricos e pobres sempre aumentará não é necessariamente verdadeira. Por outro lado, isso não significa que o sistema permite uma mobilidade ascendente para qualquer país, mas sim que uma zona intermediária de acumulação e de regulação política torna-se necessária para contrabalançar a tendência à instabilidade da economia política mundial. Os momentos de crise seriam propícios para que as potências emergentes reivindiquem maiores espaços de poder nas relações internacionais e maior participação nos fluxos de desenvolvimento. Na perspectiva de Wallerstein o capitalismo tem um enfoque atravessado por contradições, mas ainda assim, em constante expansão há cinco séculos. Ele acredita, como Marx, que tais contradições levarão a crises cada vez mais profundas até o ponto em que não será mais possível retomar o processo de acumulação, de sua natureza capitalista, Wallerstein se aproxima bastante das teorias convencionais das Relações Internacionais, como o neo-realismo na medida que identifica como objeto de análise o sistema mundial.

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fazendo com que o sistema entre em colapso. A teoria do sistema mundo tem o mérito de combinar a analise marxista das contradições do capitalismo com uma consideração da dimensão política das relações internacionais. O autor desenvolve sua teoria no nível do sistema superando as limitações das demais contribuições, muito centradas nos tipos de formação estatal e suas conseqüências internacionais como fizeram Marx, Lênin e os teóricos da dependência. (NOGUEIRA; MESSARI, 2005, p. 123-127) Observa-se que Wallerstein reconhece a importância do Estado na mediação entre o espaço doméstico e o sistema mundo, seja para avançar os interesses das classes dominantes em sua competição com outros grupos nacionais seja para reduzir as contradições decorrentes da luta de classes. A década de oitenta na América Latina será influenciada pela revitalização as idéias liberais econômicas no pensamento sobre desenvolvimento. Governos como o de Reagan nos EUA e Margaret Thatcher no Reino Unido promoveram políticas liberais enfatizando o papel das forças do mercado e a redução das burocracias e das regulamentações estatais. Países do terceiro mundo eram incentivados a seguirem políticas similares como fórmula para atingirem o pleno desenvolvimento. (TOYE, 1987, p.55-60) Nos anos 90 o Consenso de Washington8 como manifesto liberal virou regra. O Consenso segundo alguns críticos era obcecado pelo desenvolvimento econômico e negligenciava o desenvolvimento social. Grande parte dos indicadores sociais da América Latina foram simplesmente descartados. O termo desenvolvimento nesse período foi perversamente utilizado para expressar a busca pelo progresso da região como algo natural que iria ocorrer. Gilbet Rist (2007, p. 486) expõe forte crítica ao emprego do termo desenvolvimento utilizado sem uma clara definição pelas políticas econômicas dos países desenvolvidos repassadas ao menos avançados. Segundo o autor, 8 O Consenso de Washington não tratou questões sociais como educação, saúde, distribuição da renda, eliminação da pobreza. Não porque as veja como questões a serem objeto de ação numa segunda etapa. As reforma sociais, tal qual as políticas seriam vistas como decorrência natural da liberalização econômica. Isto é, deverão emergir exclusivamente do livre jogo das forças da oferta e da procura num mercado inteiramente auto-regulável, sem qualquer rigidez tanto no que se refere a bens quanto ao trabalho. Um mercado, enfim, cuja plena instituição constituiria o objetivo único das reformas. (BATISTA, 1994, p. 13) volume

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qualquer medida desde investimentos estrangeiros, instituição de barreiras comerciais, campanhas de alfabetização dentre outros eram justificadas “em nome do desenvolvimento” fazendo com que mesmo a mais contraditória das políticas pregadas iria melhorar a vida da população pobre. A extensiva utilização do termo desenvolvimento para delinear políticas que eram presumidas a ser necessariamente boas também ajudaram a construir novos esquemas de percepções de realidade.9 Rist (2007, p. 486) salienta “Desenvolvimento não era mais considerado uma construção social ou o resultado de um desejo político, mas ao contrário a conseqüência de uma “ordem mundial natural”. A certeza quanto ao desenvolvimento, instituída por alguns teóricos e tecnocratas no estudo da riqueza das nações fez com que se mudasse a denominação de países pobres. Antes de surgirem as teorias de desenvolvimento, os países pobres que não haviam passado pela revolução industrial capitalista eram chamados de países atrasados; depois, nos anos 60, inventaram para esses países a expressão em via de desenvolvimento, indicando que eles caminhavam para obtenção de altos níveis de vida. Mas a expressão refletia ainda alguma incerteza quanto à efetiva culminação dessa caminhada. Por isso, ela foi aperfeiçoada, optandose por países em desenvolvimento, deixando mais claro que os países estavam a caminho do progresso material e de altos índices de vida. O desenvolvimento se apresentava como um processo natural, como uma certeza evolutiva.10 (RIVERO, 2002, p. 124-125) Ainda nos anos oitenta contribuições como a chamada “Nova economia institucional” e ação coletiva salientavam o comportamento estratégico 9 Grande parte das medidas de ajustes implementadas durante os anos oitenta na América Latina não cumpriram com o esperado, controle da inflação, mas provocaram o aprofundamento da recessão, perda de empregos e um agudo empobrecimento. O objetivo específico era iniciar as mudanças estruturais para facilitar o estabelecimento de um regime de acumulação para fora baseado nas exportações manufatureiras. 10 Segundo Oswaldo de Rivero (2002), o mito do desenvolvimento iniciou-se a partir da ideologia do progresso de nossa civilização ocidental. Uma ideologia que surgiu no século das luzes mas foi vigorosamente impulsionada pela Revolução Industrial. O maquinismo demonstrou uma capacidade até então desconhecida pelas sociedades agrícolas para criar riqueza suficiente e, pela primeira vez, reduzir consideravelmente a pobreza nas nações. Essa ideologia do progresso também foi reforçada pela concepção da teoria evolucionista de Darwin, ao proclamar implicitamente que a espécie humana era mais apta as espécies do planeta graças à sua capacidade de adaptar-se a qualquer meio natural e sempre progredir.

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pelos indivíduos e grupos organizados no contexto dos chamados mercados incompletos. As teorias das informações imperfeitas e assimétricas, mais especificamente, os custos das transações deram lugar à lógica com relação ao papel das instituições como instrumentos para reduzir o custo das transações. O sistema neo-institucional, além de fazer lembrar a comunidade de desenvolvimento que instituições apropriadas e regras do jogo são essenciais para fornecer estratégias pró-desenvolvimento, também incentivava a não corrupção e, da mesma forma, fornecia direção em construir instituições que reduzem o escopo de comportamentos oportunistas. (THORBECKE, 2009, p. 17) Pela sua natureza, as teorias do desenvolvimento implicam receitas de política econômica. Na prática não é fácil testá-las e raramente uma estratégia é implementada de forma completa: a avaliação dos resultados é sempre discutível. Imaginar que receitas de política econômica visem ao bem geral e criem solução para todos os problemas de desenvolvimento é ingênuo. Geralmente essas receitas terão efeitos completamente diferentes nos vários grupos testados. As discussões sobre o direito ao desenvolvimento chegaram nas Nações Unidas no final dos anos setenta. O direito ao desenvolvimento era abordado na perspectiva da necessidade de balanceamento entre mundo desenvolvido e o em desenvolvimento e a necessidade de integrar os direitos humanos a questões de desenvolvimento econômico. As Nações Unidas tem dedicado ao longo de mais de 30 anos aprofundar o debate e em 1993 tornou o direito ao desenvolvimento um direito universal, inalienável e parte integrante dos direitos fundamentais. (BUNN, 2000) Para a Organização das Nações Unidas o desenvolvimento é um processo compreensivo econômico, social, cultural e político no qual aponta a constante melhora do bem-estar da população e de todos os indivíduos na base de uma participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na justa distribuição dos benefícios resultados pelo mesmo. Ainda que a fluidez da definição de desenvolvimento junto a Organização das Nações Unidas não é particularmente problemática, extraindo a exata substancia do direito, a mesma tem sido criticada legalmente. A declaração possui linguagem muitas vezes vaga, refletindo a complexidade da matéria e a demanda por compromisso político. volume

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O conceito do direito ao desenvolvimento possui algumas questões legais. Há argumentos quanto ao seu apropriado lugar como direito junto ao corpo das normas de direitos humanos. Há dificuldades em identificar os beneficiários e os portadores do direito pois a Declaração do Direito ao Desenvolvimento assegura dimensões individuais e coletivas. Da mesma forma, há duvidas quanto ao fazer cumprir e ao fazer justiça e de como o direito pode ser defendido nacionalmente e internacionalmente. O que se identifica hoje é um conjunto complexo de problemas quando se debate o direito ao desenvolvimento. No período do pós-guerra em que as normas foram criadas para o gerenciamento da ordem econômica se tinha um cenário muito diferente do atual. Na América Latina, a distribuição de renda e a história da conquista do poder político pela força desacreditam a ideia de que os governantes desejam agir no interesse da maioria. Geralmente as políticas adotadas refletem uma lógica econômica que pode ser correta ou não: o contexto global é sempre cambiante, bem como as lealdades daqueles que as impõem. Historicamente grande parte das teorias sobre desenvolvimento na América Latina costumam recair sobre duas categorias: o intervencionismo e o laissezfaire. Os modelos intervencionistas tendem a acentuar a necessidade da ação governamental para vencer a barreiras que impedem o desenvolvimento. Uma das justificativas utilizadas na América Latina para a ação governamental é a posição de que na América Latina há pontos de estrangulamento na disponibilidade de recursos, que limitam o crescimento. O Modelo do laissez-faire também foi defendido na América Latina como um modelo que favorecia os pobres. Os defensores desse modelo geralmente argumentam que o desenvolvimento na América Latina foi prejudicado pela interferência do Estado nos mecanismos naturais do mercado.( HELWEGE; CARDOSO,1993, p. 85) Na América Latina o Estado não tem uma boa reputação. Quase sempre é tido como demasiado incompetente, corrupto ou direcionado por questões políticas para ser um instrumento confiável ou eficiente na consecução dos objetivos. Por causa desse desprestígio o mercado ganhou muito espaço nos últimos anos, provocando algumas mudanças e orientações acertadas mas também provocando muitos estragos na região. 282

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A descoberta do mercado não demorou a forçar os países sul americanos a redescobrirem o Estado. A manutenção e o aprofundamento das mudanças positivas decorrentes da guinada para o mercado exigirão que os Estados ampliem sua capacitação técnica e gerencial para muito além dos níveis atuais. Na maioria dos países da região, até mesmo aqueles que mais avançaram na adoção das reformas de mercado, o Estado continua a desempenhar funções que são mais condizentes com o setor privado, ao mesmo tempo em que demonstra uma espantosa incompetência em se desincumbir de funções públicas que lhe são essenciais. (NAIN, 1997, p.212) O processo de desmonte do Estado e de definição dos limites de seu caráter intervencionista está ainda longe de ser concluído. Em pleno século XXI observamos isso ocorrer na América Latina, onde decisões pela manutenção do controle do Estado em setores específicos representaram decisões acertadas.11 A difícil tarefa de criação e reabilitação de instituições indispensáveis do setor público está muito aquém das exigências tanto das novas estratégias econômicas de alguns países latino-americanos quanto dos imperativos políticos impostos pelas frágeis democracias da região.12 A fragilidade institucional e, muitas vezes, a pouca eficiência da administração pública são um forte obstáculo ao progresso dos países menos desenvolvidos na região. Essa realidade foi ofuscada pelo fascínio da relativa simplicidade, da elegância intelectual e dos rápidos resultados do gerenciamento macroeconômico, bem com pela aversão de soluções centradas no Estado. A ilusão de que se poderia manter o progresso acelerado sem a superação das barreiras institucionais que historicamente bloqueavam o desenvolvimento levou à subestimação da 11 O exemplo clássico foram as diferentes opções tomadas por Brasil e Argentina nos anos noventa na região. Enquanto a Argentina mergulhava completamente nas reformas liberalizantes, diminuindo o controle do Estado a patamares mínimos, o Brasil, por outro lado, não permitiu que a loucura liberalizante atingisse setores considerados estratégicos para o controle do Estado. O resultado foi a completa privatização do Estado Argentino, levando ao completo desmonte do pequeno setor industrial existente e o aumento da exclusão social nunca antes imaginado no país. O Brasil, por outro lado, apesar de sofrer alguns efeitos das receitas liberalizantes conseguiu manter o Estado suficientemente forte para determinar as direções a serem seguidas no âmbito econômico, mesmo com a forte pressão de organismos estrangeiros. 12 Outro problema grave que enfrentam muitos dos países latino-americanos é o patronato e o clientelismo político. São hoje ainda predominantes e estão fixados nas estruturas burocráticas de grande parte desses países. volume

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necessidade premente de uma melhoria radical na administração da coisa pública. (NAIN 1997, p. 255) A América Latina ainda tem dificuldade de enfrentar essas barreiras, pois mudanças em áreas essências não foram realizadas - entre elas a melhoria na educação e a diminuição da grande disparidade social. 2. o debate sobre o direito ao desenvolvimento nos últimos anos O debate sobre o direito ao desenvolvimento tornou-se mais complexo nos últimos anos. As principais teorias discutidas anteriormente acreditavam que poderiam ser aplicadas aos problemas do desenvolvimento em toda parte. Muitas regiões e países, no entanto, apresentam problemas específicos, provenientes de experiências históricas particulares sob condições locais. África, partes da Europa, América Latina e Leste europeu são exemplos de regiões com trajetórias históricas de desenvolvimento muito desiguais e características locais muito diferentes. O atual pensamento sobre desenvolvimento está mais consciente de tais diferenças e, consequentemente, se torna cada vez mais complexo. Não é real pensar que questões e propostas a serem transferidas e implementadas em uma determinada região possam ser aplicadas à la lettre em outra. Como resultado dessa elevada complexidade o conceito de desenvolvimento foi revisado. Sempre houve críticas ao conceito predominante do desenvolvimento mas nos últimos anos isso se intensificou recentemente. Os críticos não são um grupo unificado. Alguns posicionam-se frontalmente contra o desenvolvimento, isto é, toda idéia de desenvolvimento como progresso. Estes defendem que as condições de vida deveriam ser decididas por comunidades autônomas locais que buscam o seu próprio rumo (SACHS, 1992). Já outros críticos favorecem alguma forma de desenvolvimento alternativo (HETTNE, 1995). Embora os pontos de vista sejam diferentes, há características comuns - uma visão cética da modernidade e da industrialização; uma atitude favorável em relação a valores e práticas tradicionais da sociedade pré-industrial; o antimaterialismo e a aceitação de valores ultra democráticos, que supõem um alto grau de controle e de participação popular. 284

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A história do subdesenvolvimento e a busca pelo direito ao desenvolvimento na América Latina é a história do sistema capitalista mundial. Portanto, a compreensão segura da evolução e dos mecanismos que caracterizam a economia capitalista mundial proporciona o quadro adequado para se analisar a situação latino-americana. No caso do Brasil junto a sua Constituição Federal o direito ao desenvolvimento econômico é, nessa linha de raciocínio, direito fundamental que vincula os três poderes constituídos. No título da Ordem Econômica está explicitado que o desenvolvimento das riquezas e bens de produção nacionais deve ser compatível com a qualidade de vida de toda a população na perspectiva de compatibilizar a ordem econômica com a ordem social. Acrescenta-se, ainda, que a produção de riquezas orienta-se sob o princípio distributivo da ação interventiva do Estado na ordem econômica, observado o princípio fundamental de desenvolvimento nacional. (PEIXINHO; FERRARO, 2007) Ainda que não esteja expressamente previsto na Constituição Federal de 1988 entende-se que o direito ao desenvolvimento é um direito fundamental conforme expresso nos termos da inciso 2 do art. 5 da Constituição da República. No preâmbulo da Constituição Federal está indicado que ao Estado Democrático cabe assegurar o desenvolvimento. (OLIVEIRA, 2009) Durante a Guerra Fria, o mito do desenvolvimento era traduzido pelos modelos rivais: o comunista e o capitalista. Ambos ecologicamente insustentáveis. Se observa que a partir do momento em que o comunismo decai, substituído pelo mercado e pelo planejamento central da escassez, emerge um capitalismo global que transforma o mercado em uma espécie de lei natural suprema e eticamente neutra desconsiderando aspectos sociais e ecológicos no qual se deve submeter com resignação. Esse é o único modelo que hoje promete o desenvolvimento para América Latina e para o globo como um todo. A globalização procura reproduzir sociedades capitalistas modernas na maioria dos países atrasados. No entanto, a esperada prosperidade ante o triunfo do capitalismo fica em compasso de espera. 13 13 O debate sobre globalização econômica é vasto e conhecido. As contribuições abrangem as principais tradições de análises econômica sendo os pontos principais de discordância o grau de globalização da atividade econômica, a nova forma de capitalismo refletida na terceira revolução industrial, como vem se impondo no globo, até onde a globalização volume

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Apesar de se identificarem espaços de prosperidade em áreas do globo e mesmo na América Latina a partir do modelo capitalista global, a possibilidade do modelo atingir a todos está longe por acontecer. Grandes segmentos da população mundial e na América Latina em particular permanecem excluídos da economia global. Os excluídos ficam alheios à prosperidade por um processo de seleção darwiniana do mercado e da tecnologia moderna, que vão dispensando as matérias-primas e a mão de obra abundante, únicas vantagens da maioria dos países ditos em desenvolvimento. (RIVERO, 2002, p. 127) A América Latina tem dificuldade em defender um modelo concebido de acordo com a região. A promessa do desenvolvimento impregna ainda os nossos tomadores de decisão com promessas de esperança e salvação da pobreza. A reprodução das sociedades industrializadas capitalistas prósperas de regiões específicas do norte, que pode em determinados casos ser positiva, reproduz em muitos casos específicos sociedades de consumo nacionais insustentáveis. 14 O chamado mundo em desenvolvimento tem inúmeros países que não possuem uma classe capitalista moderna, nem quadros científicos e tecnológicos capazes de aproveitarem a liberalização da economia e a ajuda externa para se modernizar tornando-se competitivos. A economia global demanda cada vez mais produtos e serviços com alto conteúdo tecnológico ao passo que as economias subdesenvolvidas não conseguem superar a produção com escasso valor agregado e sem mutação tecnológica. O poder das empresas transnacionais impulsiona a globalização sem trégua, abrindo mercados para padrões de consumo ecologicamente insustentáveis e forçando os países pobres a importarem mais, aumentando o seu déficit externo e seu endividamento, mas sem fazer investimentos produtivos para que esses países se modernizem e possam competir na economia global. econômica continua sujeita a administração nacional e internacional e o que a competição global equivale ao fim das estratégias econômicas nacionais e do Estado do bem estar social. (HELD; MCGREW, 2000, p. 49) 14 Os estudos de Economia Política Internacional como subárea das Relações Internacionais como um todo levaram muito tempo até incluir discussões que incluíssem o sul. Políticas globais sobre o meio ambiente, gênero e problemas de saúde mundial geraram importantes trabalhos com questões que dizem respeito ao sul. Livros como o de Gilpin (1987) The Political Economy on Internacional Relations, dedicou capítulo específico ao chamado terceiro mundo. (THOMAS; WILKIN, 2004)

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Surge na América Latina o conceito de “ Bem Viver ” como alternativa a outros conceitos convencionais de desenvolvimento. O mesmo está acima do conceito de desenvolvimento sustentável,15 hoje bastante perseguido pelos países da região mas que mantém a lógica capitalista. É um conceito em desenvolvimento que faz referencia a qualidade de vida com ênfase tanto na vida das pessoas como na natureza. Esse conceito rompe com a ideologia do progresso em sua expressão atual de desenvolvimento econômico. Se defende articulação entre a multiplicidade de culturas e uma nova relação com a natureza. (CARDEMATORI; CARDEMATORI, 2013) O conceito de “Bem Viver” se apresenta nas normas constitucionais de países latino americanos com a Bolívia e o Equador. No Equador o conceito é parte da procura por alternativas de vida iniciadas pelas lutas populares, mais particularmente dos povos indígenas. Já na Bolívia a idéia do “vivir bien” era uma expressão reivindicatória de líderes indígenas, militares e intelectuais16. Esse conceito é uma crítica clara que incide na ausência de projetos de desenvolvimento que levem em consideração atores sociais que estão relegados por parte do Estado, em especial alguns povos indígenas. Esses atores rechaçam a própria idéia de desenvolvimento. 3. conclusões A presença da pobreza, da indigência e da fome ainda em muitas partes da América Latina está atrelada a alguns fatores alarmantes como a contínua 15 O desenvolvimento sustentável foi definido como o “desenvolvimento que satisfaz as necessidades das geracões atuais sem comprometer as capacidades das geracões futuras para satisfazer as suas próprias necessidades.” (SEN, 2011, p.283) 16 O princípio do Viver Bem está na Constituição boliviana de 2009 em seu artigo 8 como um dos princípios éticos-morais da sociedade plural que deverá ser assumido e promovido pelo Estado. O artigo ainda traz que são fundamentais para este princípio, os seguintes valores: igualdade, inclusão, dignidade, liberdade, solidariedade, reciprocidade, respeito, complementariedade, harmonia, transparência, equilíbrio, igualdade de oportunidades, equidade social e de gênero na participação, bem estar comum, responsabilidade, justiça social, distribuição e redistribuição dos produtos e os bens sociais. Na Constituição do Equador se encontra expresso no artigo 11, número 6 e ocupam a mesma hierarquia dos outros conjuntos de direitos, dentre os quais estão os direitos da pessoas e grupos de atenção prioritária, comunidades, povo e nacionalidades, participação, liberdade, da natureza, e proteção, e por sua vez, este conjunto tem um correlate em uma seção dedicada às responsabilidades. volume

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elevação dos níveis de desemprego e informalidade no mercado de trabalho nas ultimas décadas, mesmo que se esteja vivenciando um momento de crescimento econômico positivo. A tendência ao aumento da precariedade do emprego delineou-se com o aumento na proporção de pessoas ocupadas nos setores informais ou de baixa produtividade que atingiu uma porcentagem importante da força de trabalho. Em zonas rurais e urbanas o número de homicídios na década de 90 atingiu números alarmantes se comparados com os da Europa Ocidental. A violência provocada pela exclusão é alarmante em algumas áreas da região. A América Latina segue sendo a região mais desigual do globo.17 Observa-se nos últimos anos uma reavaliação crítica da consolidação de conceitos e técnicas tidos anteriormente como pré-condições do desenvolvimento e o direito ao desenvolvimento. O novo enfoque da economia política do desenvolvimento depende extensamente no papel das instituições. Da mesma forma, a compreensão e explicação da relação crescimento-desigualdade-pobreza como um processo essencialmente indivisível. Crescimento é importante mas não suficiente, não seria uma condição essencial para o desenvolvimento ocorrer. A desigualdade pode ser pensada como filtro entre o crescimento e a pobreza. Também se apresenta uma definição muito mais abrangente e multidimensional do bem estar humano do que o previsto anteriormente. (THORBECKE, 2009, p. 28-30) A formulação da estratégia de desenvolvimento e do direito ao desenvolvimento nessa década necessita ser repensada junto ao contexto da economia mundial que está fortemente globalizada. Uma questão chave será examinar até que ponto a globalização e a integração na América Latina estão conduzindo o processo de crescimento com transformações estruturais, no qual é capaz 17 Os estudos sobre desigualdade latino-americana tem dificuldade em medir, com maior ou menos precisão a grandeza da desigualdade em diferentes países e em diferentes períodos de tempo. As medições nunca foram perfeitas, o que limita o uso dos números da desigualdade na comparação dos países. A situação mudou a partir da proliferação de estudos detalhados por país nos últimos 20 anos. Existem hoje 50 estimativas nacionais de desigualdade para 20 países latino-americanos. A desigualdade tende a ser maior em países andinos, do que em países com níveis mais baixos de desenvolvimento (América Central e Caribe) ou de renda mais alta (México ou Cone Sul).

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de sustentar e construir crescimento econômico que beneficie os mais pobres favorecendo uma distribuição conseqüente. Grande parte das soluções para o encaminhamento de nosso desenvolvimento e com isso a conquista de maior autonomia na região passa por questões além das sistêmicas e que também são fundamentais para qualquer nação madura. Parte dessa solução está na própria América Latina, uma vez que a elite regional continua a não ter sensibilidade em relação à importância estratégica da necessária diminuição da desigualdade social dos países que compõem a região na busca pelo crescimento e modernidade. No mesmo sentido, os tomadores de decisão não vislumbram uma reforma educacional apropriada a gerar massa pensante de alto nível com responsabilidade para pensar o lugar da América Latina no mundo. Há necessidade de capacitação de profissionais aptos a conduzirem os objetivos da região em diferentes fóruns. As instituições internacionais terão um papel chave e os atores emergentes deverão estar preparados para defenderem seus interesses. O momento é nebuloso para economia mundial. O modelo capitalista dá sinais de esgotamento em algumas regiões do globo; com isso talvez haja a possibilidade de uma infiltração mais rápida dos novos atores nas organizações mundiais quebrando um ciclo de hegemonias instituído desde Bretton Woods, representando a América Latina – o Brasil pode ser um ator chave na condução desse processo de modernização das estruturas vigentes. Por fim, observa-se que a América Latina sempre buscou no contexto histórico por mais desenvolvimento e o direito de conquista-lo de forma autonoma. Essa autonomia e desenvolvimento só serão possíveis se formos capazes de desenvolver no plano interno uma poupança interna, uma maior distribuição de renda, incorporando no mercado regional os ainda milhões de excluídos, seja como produtores seja, sobretudo, como consumidores sustentáveis efetivos. Aí sim teremos capacidade e ousadia para buscar o devido respeito frente ao sistema internacional. A conquista de espaço na ordem internacional passa diretamente pela resolução do desequilíbrio social na América Latina. A elite política e econômica da região parece ainda não ter compreendido a importância dessa questão para o futuro da região. Se identifica o esgotamento de modelos de desenvolvimento anteriores, onde se percebe na crise econômica atual como produto de um modelo com pouca sustentabilidade ao longo prazo. volume

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Ao longo dos anos, apesar de alguns avanços, há muito desprezo pelo problema do desequilíbrio social, o que poderá já ter causado estragos irreversíveis ante a possibilidade estratégica da região atingir níveis de autonomia com relação ao sistema internacional mais confortáveis. A busca pelo desenvolvimento está condicionada à maturidade da elite latino- americana, que hoje tem dificuldade de pensar o futuro da região. Novos debates como aqueles trazidos pelo conceito de “Bom Viver “ instituídos nas constituições de Bolívia e Equador, ainda que em construção, apresentam-se como alternativas ao desenvolvimento a serem considerados. 4. referências ALMEIDA, Paulo R. A Economia internacional no século XX: um ensaio de síntese. Revista brasileira de política internacional, v. 44, n. 01, p. 112136. AYERBE, L. Estados Unidos e América Latina. São Paulo: Unesp, 2002. BATISTA, Paulo Nogueira. O consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-americanos. 1994. Disponível em: . Acesso em 17 jun. 2011. BUNN, Isabella. The right to development: implications for internacional economic law. American university internacional law review, v.15, n. 6, 2000. p. 1425-1467 CADERMATORI, D. M. L; CARDEMARTORI, S. U. Apontamentos para uma concepção marxista de desenvolvimento e a alternativa do Vivir Bien/ Buen Vivir. In: CONGRESSO DIREITO E MARXISMO, 2, 2013, Caxias do Sul. Anais..., Caxias do Sul: UCS, 2013 CARDOSO F. H. Xadrez internacional e a social-democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2010. CARDOSO, F. H.; FALETTO, E. Dependencia y desarollo em America Latina, ensaio de Interpretacion sociológica. Mexico: Siglo XXI, 1969. COORDENADORIA ECUMÊNICA DE SERVIÇO. Declaração universal dos direitos humanos. 6. ed. São Paulo, 2003. Disponível em: . Acesso em: 01 jun. 2014. HELD, D.; MCGREW, A. Prós e contras da globalização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. HELWEGE, A.; CARDOSO, E. A economia da América Latina. São Paulo: Ática, 1993. HETTNE, B. Development theory and the three worlds. Harlow: Longman, 1995. NAIN, Moises. Transição para o Regime de Mercado na América Latina: dos Choques Macroeconômicos à Terapia Institucional. In: LANGONI. Carlos. A Nova América Latina. FGV, Rio de Janeiro, 1997. p. 211-238. NOGUEIRA, J. ; MESSARI, N. Teoria das relações internacionais: Correntes e Debates, Rio de Janeiro: Campus, 2005. OLIVEIRA, Gustavo Henrique. Direito ao Desenvolvimento na Constituição Brasileira de 1988. Revista eletrônica de direito administrativo econômico, n. 16 nov/dez/jan, 2009. Disponível em:< http://www.direitodoestado. com/revista/REDAE-16-NOVEMBRO-2008-GUSTAVO%20JUSTINO. pdf>. Acesso em: 01 jun. 2014 PEIXINHO, M.; FERRANO, S.. Direito ao desenvolvimento como direito fundamental. In:CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, 16., 2007, Belo Horizonte, MG. Anais ... [Recurso eletrônico]. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008. p. 6952-6973. Disponível em: . Acesso em: 24 maio 2014. RIST, Gilbert. Development as a buzzword. Development in practice, v.17, n. 4-5, 2007, p.485-491. RIVERO de, Oswaldo. O mito do desenvolvimento, os países inviáveis no século XXI. Petrópolis: Vozes, 2002. SACHS, W. The Development Dictionary. London: Zed, 1992. SEN, Amartya. A idéia da justica. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. volume

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direito à educação básica de qualidade: um direito ainda a ser conquistado1 Ivan Simões Garcia 2 Sandra Filomena Wagner Kiefer3

Resumo Este trabalho busca analisar o direito à educação, como direito social que é, e a dificuldade na sua implementação e garantia. A educação básica4 brasileira, tanto no ensino público, quanto no ensino privado, não se encontra em boas colocações em análises internacionais, quando comparada a outros países. Internamente, também, a qualidade da educação não reflete o quanto almejado pelo texto constitucional. É preciso garantir a educação de qualidade para todos, incluindo não só o direito de acesso à educação, mas também a permanência do aluno na escola, em condições de aprendizado. Trata-se de questão que envolve urgência no debate e na mobilização dos profissionais envolvidos, do meio acadêmico e da sociedade em geral, para exigir do Estado providências para a efetiva garantia desse direito, o qual, em se tratando de educação básica, envolve direitos de crianças e adolescentes, que reclamam proteção integral e prioridade absoluta.

Palavras-chave Direito à educação; Direitos Fundamentais; Educação.

1 Este trabalho tem por base a pesquisa realizada para a elaboração da dissertação de Mestrado intitulada “A Aplicabilidade das Parcerias Público-Privadas na Concretização da Educação Inclusiva: ensino fundamental”, cujo tema abrangeu, dentre outros, o direito à educação, com uma abordagem revisitada. 2 Advogado. Mestre em Direito Constitucional pela PUC-Rio. Doutor em Direito do Trabalho pela PUC-SP. Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFRJ e da Faculdade de Direito da UERJ. Professor do Programa de Pós-graduação da UERJ e do Programa de Mestrado em Direito da UCAM. e-mail: [email protected]. 3 Advogada formada pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento pela Universidade Candido Mendes (UCAM), Rio de Janeiro. Doutoranda em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá (UNESA), Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]. 4 Não foi objeto de pesquisa a educação superior. volume

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Abstract This paper analyzes the right to education which is a social right, and the difficulty in its implementation and warranty. The Brazilian basic education, in both public and the private education, is not in good placements in international analyzes, when compared to other countries. Internally also the quality of education does not reflect the constitutional text as desired. It is needed to ensure a quality education for all, including not only the right of access to education, but also the remaining in school, under learning conditions. It is an urgent matter that requires discussion and mobilization of professionals, academia and society in general, to require the State the measures to effectively safeguard this right, which, in the case of basic education, involves children and adolescents’ rights, claiming absolute priority and full protection.

Key words Right to education; Fundamental rights; Education. 1. introdução Este artigo versa sobre o direito à educação de qualidade para todos, no âmbito da educação básica brasileira5, o qual, apesar de positivado, encontra, na prática, dificuldades e resistências à sua plena garantia. Previsto em documentos internacionais firmados pelo Brasil, bem como na Magna Carta e em extensa legislação infraconstitucional, o direito à educação merece estudo e debate, especialmente porque, apesar de cristalinamente previsto, na prática, as dificuldades para a sua garantia são imensas, como se abordará no decorrer deste trabalho. A educação brasileira é ofertada pelo Poder Público e pela iniciativa privada, a qual, mediante obtenção de autorização, deve cumprir as normas gerais da educação nacional e está sujeita à avaliação de qualidade pelo Poder Público (artigos 170, parágrafo único e 209 da Constituição). Pesquisas nacionais e 5 A educação básica, nos termos do artigo 21 da Lei nº 9.394/1996, é composta pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio.

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internacionais demonstram que a qualidade do ensino no Brasil não é aquela almejada no texto constitucional, e isso também inclui as escolas privadas. Tratando-se de um direito fundamental de crianças e adolescentes6, que têm direito à proteção integral e prioridade absoluta, é urgente que políticas públicas voltadas à educação, bem como mecanismos de controle e acompanhamento de sua implementação sejam postos em prática, visando a efetiva concretização do direito à educação de qualidade para todos. 2. direitos fundamentais e direitos humanos Nos dias de hoje, após inúmeros debates, discussões e transformações, o maior problema enfrentado com relação aos direitos humanos e aos direitos fundamentais, não se encontra na sua definição ou em seu reconhecimento. Parece ser mais premente, e apresentar as maiores dificuldades, a garantia e aplicabilidade prática de tais direitos. A exemplo, tem-se que a educação é um dos direitos mais previstos nas constituições dos países, mas em nem todos eles a educação é realmente implementada e garantida. Cumpre ressaltar que, para fins do presente, adota-se a expressão “direitos fundamentais” para designar os direitos previstos constitucionalmente, enquanto “direitos humanos”, para designar os direitos relacionados em documentos internacionais, de validade universal e caráter supranacional, nos termos ensinados por Sarlet (2013, p. 260-263). Sob o prisma dos direitos fundamentais, a Constituição Federal de 1988 representou um avanço em termos de reconhecimento e garantias, embora na prática, passados mais de vinte e cinco anos de sua promulgação, ainda se encontrem problemas na implementação das garantias desses direitos. Nos dizeres de Barroso: Em inúmeras áreas, a Constituição de 1988 consolidou ou ajudou a promover avanços dignos de nota. No plano dos direitos fundamentais, a despeito da subsistência de deficiências graves em múltiplas áreas, é possível contabilizar realizações. A centralidade

6 Objeto deste estudo, que se volta para a educação básica. volume

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da dignidade da pessoa humana se impôs em setores diversos. Para que não se caia em um mundo de fantasia, faça-se o registro indispensável de que uma idéia leva um tempo razoável entre o momento em que conquista corações e mentes até se tornar uma realidade concreta. (BARROSO, 2008, p. 23)

A educação revela-se como direito fundamental não só pelo seu caráter matricial, ou seja, por consistir em condição de possibilidade para o exercício de inúmeros outros direitos, mas principalmente por seu sentido ontológico de constituir a humanidade do homem; de concorrer para elevá-lo frente aos demais seres vivos, como ser que se pensa a si mesmo (ser autoconsciente), em relação à natureza e em relação aos outros homens. Mulheres e homens, somos os únicos seres que, social e historicamente, nos tornamos capazes de aprender. Por isso, somos os únicos em que aprender é uma aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que meramente repetir a lição dada. Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito. (FREIRE, 2011, p. 76)

Certamente, já é hora de se voltar as atenções, inclusive o debate acadêmico, para aqueles direitos fundamentais que não podem ser relegados a um segundo plano, posto que implicam diretamente na dignidade do ser humano, no seu desenvolvimento social e econômico, dentre eles, a educação. 2.1. direitos sociais No tocante aos direitos sociais na Constituição de 1988, o constituinte, como destaca Vicente Barreto, “ao listar os valores supremos do estado democrático de direito, considerou os direitos sociais como categoria jurídica essencial do estado democrático de direito e, portanto, pertencentes à mesma categoria hierárquica dos direitos civis e políticos.” (2003, p. 118). Os Direitos Fundamentais sociais, ou de segunda dimensão, visam, precipuamente conquistar a igualdade material entre os membros da comunidade, individualmente considerados, através dos quais o Estado, reconhecendo o desequilíbrio e a desigualdade entre particulares em determinadas relações 296

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fáticas, bem como a existência de pessoas que não podem suprir suas necessidades básicas por si, desce de seu pedestal, de sua posição absenteísta, para intervir com prestações positivas, diretamente nas relações econômicas e sociais. O direito à educação7 se encontra previsto no rol dos direitos sociais, também chamados de direitos de segunda dimensão. De acordo com o artigo 6º da Constituição, são direitos sociais, além da educação, “a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.” Não se quer dizer, com isso, que a garantia efetiva dos direitos sociais seja algo fácil, que dependa apenas de boa vontade. No geral, a realização dos direitos sociais enfrenta os mais diversos desafios e dificuldades. Vale destacar: Ainda mais importante e amplíssima é a tarefa dos sociólogos do direito no que se refere ao outro tema fundamental, o da aplicação das normas jurídicas, ou do fenômeno que é cada vez mais estudado sob o nome por enquanto intraduzível [para o italiano] de implementation. O campo dos direitos do homem — ou, mais precisamente, das normas que declaram, reconhecem, definem, atribuem direitos ao homem — aparece, certamente, como aquele onde é maior a defasagem entre a posição da norma e sua efetiva aplicação. E essa defasagem é ainda mais intensa precisamente no campo dos direitos sociais. [...] (BOBBIO, 2004, p. 37)

É certo que, quanto aos direitos sociais, “A essência dessa dimensão é, não obstante, instrumental, porque se exige mais do que na categoria da primeira dimensão, que o Estado cuide para que – efetivamente – estejam à disposição as condições materiais para a concreta fruição desses direitos (PEIXINHO; FERRARO, 2007, p. 6956-6957). Nesse sentido, o mesmo Bobbio: Falei das dificuldades que surgem no próprio seio da categoria dos direitos do homem considerada em sua complexidade. Cabe ainda mencionar uma dificuldade que se refere às condições de realização desses direitos. Nem tudo o que é desejável e merecedor de ser perseguido é realizável. Para a realização dos direitos do homem, são freqüentemente necessárias condições objetivas que não

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dependem da boa vontade dos que os proclamam, nem das boas disposições dos que possuem os meios para protegê-los. [...] Sabe-se que o tremendo problema diante do qual estão hoje os países em desenvolvimento é o de se encontrarem em condições econômicas que, apesar dos programas ideais, não permitem desenvolver a proteção da maioria dos direitos sociais. (2004, p. 25)

De qualquer modo, mesmo reconhecendo a dificuldade na concretização dos direitos sociais – incluindo o objeto deste estudo, a educação - ainda mais em países em desenvolvimento como o Brasil, não se pode deixar de alertar para os graves problemas enfrentados, em especial pela educação pátria, e para a urgência em seu enfrentamento, consoante se abordará. 3. direito à educação O direito à educação é previsto no âmbito internacional, inclusive em diversos documentos firmados pelo Brasil. Além disso, é previsto na Carta Magna nos artigos 6º; 23, inciso V; 205 a 2148 e em extensa legislação infraconstitucional. Destacam-se, para fins do presente estudo, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Lei nº 8.069/1990; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN) - Lei nº 9.394/1996 e a Lei nº 10.172/2001, que dispõe sobre o atual Plano Nacional de Educação (PNE), ressalvando-se que um novo PNE se encontra em fase final de aprovação no Congresso Nacional, quando da elaboração deste trabalho9. Importante característica da educação brasileira é o fato dela não ser privativa do Estado, podendo a iniciativa privada explorar referida atividade (artigos 206, incisos III, IV e 209 da Constituição). Neste caso, o particular deve obter autorização do Estado, ficando sujeito ao cumprimento das normas gerais da educação nacional e à avaliação de qualidade pelo Poder Público (artigos 170, parágrafo único e 209 da Constituição). 8 Não é possível aqui, por limitação formal, maior análise a respeito dos artigos da Constituição e da legislação infraconstitucional pertinente. 9 PL nº 8.035/2010, que “Aprova o Plano Nacional de Educação para o decênio 2011-2020 e dá outras providências.” Aludido projeto, foi enviado, em 05 de junho de 2014, à sanção presidencial, consoante andamento constante no sítio da Câmara dos Deputados. Disponível em: . Acesso em: 15 jun. 2014.

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Cumpre salientar que no novo constitucionalismo, os direitos fundamentais deixam de ser compreendidos apenas em sua dimensão subjetiva, mas também passam a ser concebidos em sua dimensão objetiva, como valores dotados de força irradiante que os permitirá penetrar em relações jurídicas distintas das que originalmente foram desenhadas. Desta forma, a chamada eficácia irradiante e o direito de proteção dos direitos fundamentais, permite sua capilarização por todo o sistema, inclusive em relações entre particulares, como as regras de Direito Educacional, influenciando e orientando a aplicação de suas normas. Cabe lembrar a urgência e importância na garantia do direito à educação, em especial, às crianças e adolescentes, objeto deste trabalho. Cite-se o disposto no artigo 227 caput10: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Nesse âmbito, além dos princípios constitucionais aplicáveis, imperam os princípios especialmente voltados a esse público, dentre os quais se destacam a proteção integral e o princípio da prioridade absoluta dos direitos da criança e do adolescente11. Além disso, importante ressaltar que é garantida uma educação de qualidade para todos (inciso VII, do artigo 206 da Constituição). Assim, não basta o acesso à escola e a garantia de matrícula; é necessária a garantia de permanência do aluno na escola, em condições de aprendizado.

10 O artigo 205 da Constituição também estabelece que a educação é um “direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” 11 Em especial, os artigos 1º; 3º; 100,§1º, II da Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA). volume

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Utilizando as palavras de Bobbio, a educação é um direito que se tem, positivado, em que há uma norma válida que o reconhece. Mas tal direito deve ser garantido na prática, sendo certo que o Estado e a sociedade civil em geral devem atuar – de forma contundente e urgente - para a sua real concretização. [...] o importante não é fundamentar os direitos do homem, mas protegê-los. Não preciso aduzir aqui que, para protegê-los, não basta proclamá-los. [...] O problema real que temos de enfrentar, contudo, é o das medidas imaginadas e imagináveis para a efetiva proteção desses direitos. E inútil dizer que nos encontramos aqui numa estrada desconhecida; e, além do mais, numa estrada pela qual trafegam, na maioria dos casos, dois tipos de caminhantes, os que enxergam com clareza mas têm os pés presos, e os que poderiam ter os pés livres mas têm os olhos vendados. Pareceme, antes de mais nada, que é preciso distinguir duas ordens de dificuldades: uma de natureza mais propriamente jurídicopolítica, outra substancial, ou seja, inerente ao conteúdo dos direitos em pauta. (BOBBIO, 2004, p. 22)

4. educação no br asil de hoje A educação no Brasil enfrenta os mais diversos problemas. É fato que o ensino público, a não ser (poucos) casos excepcionais, não apresenta boa qualidade. Há falta de estrutura física, de equipamentos e de pessoal qualificado. Os professores, geralmente mal remunerados e com formação inadequada, por mais que se esforcem, não podem ser os únicos responsáveis pela baixa qualidade de ensino e de aprendizagem dos alunos. Por sua vez, no ensino privado, a situação não é de todo diferente. Numa primeira abordagem, tende-se a pensar que a qualidade da educação nas escolas privadas é “superior” àquela do ensino público. Mas isso não corresponde à realidade12. Na verdade, muitas escolas regulares privadas apresentam problemas, os quais nem sempre são levados ao conhecimento das autoridades, da imprensa e do grande público. 12 A respeito, v. “A Aplicabilidade das Parcerias Público-Privadas na Concretização da Educação Inclusiva: ensino fundamental” (KIEFER, 2008, p. 46).

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Como exemplo, há escolas privadas que funcionam em instalações e condições precárias, com corpo docente despreparado e muitos outros problemas, ao passo que outras, apesar de serem consideradas em diversas listas como “melhores escolas”, mantêm práticas questionáveis e apresentam inúmeros problemas que, no entanto, acabam não sendo de conhecimento do grande público, nem das autoridades competentes. Demais, formar alunos que obtém boas classificações em vestibulares e outros exames, como o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), não representa, por si só, o oferecimento de uma educação de qualidade [...]. Educação de qualidade é muito mais que isso. (KIEFER, 2013, p. 46-47)

Importante mencionar que o direito à educação, assim como os demais direitos fundamentais, também devem ser observados nas relações privadas. Assim sendo, as escolas particulares também devem respeitar e fazer garantir o direito à educação, nos termos previstos pela Constituição e pela legislação infraconstitucional pertinente. Cabe citar Daniel Sarmento: [...] No contexto da economia capitalista, o poder crescente de instâncias não estatais como as grandes empresas e associações, tornara-se uma ameaça para os direitos do homem, que não poderia ser negligenciada, exigindo que a artilharia destes direitos se voltasse também para os atores privados. [...] Se a opressão e a injustiça não provém apenas dos poderes públicos, surgindo também nas relações privadas travadas no mercado, nas relações laborais, na sociedade civil, na família, e em tantos outros espaços, nada mais lógico do que estender a estes domínios o raio de incidência dos direitos fundamentais, sob pena de frustração dos ideais morais e humanitários em que eles se lastreiam. Diante da brutal desigualdade material que se verifica na sociedade, torna-se imperativo condicionar os atores privados – sobretudo os investidos de maior poder social – ao respeito aos direitos fundamentais. [...] (2004, p. 42)

Assim sendo, é preciso que providências sejam tomadas para que, aos alunos da educação básica, seja realmente oferecida uma educação de qualidade, com garantia de acesso e permanência em escolas com estrutura minimamente adequadas, e com possibilidade real de aprendizado, seja no ensino público, seja no privado. O Estado, tanto na função de prestador direto da educação (pública), volume

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quanto na função de regulador da educação privada, deve atuar para que a qualidade da educação seja observada e garantida. E, por isso, cabível o debate acadêmico, bem como mobilização social, para lembrar e cobrar a boa prestação dos serviços de educação com qualidade, garantia de acesso e permanência nas escolas, com condições de aprendizagem. Esta negligência com que a qualidade da educação é tratada provém, entre outras coisas, da ausência de mobilização social reivindicando tal direito. Isto porque, não existem ações, e nem mesmo dimensão social, de que a qualidade da educação é um direito inerente a todos os cidadãos, e, portanto, pode e deve ser pleiteada pelos mesmos. Pouco se tem notícia de reivindicações administrativas sob a melhora da qualidade da educação, o que dirá de reclamações judiciais. Se o Estado efetivamente fosse compelido a cumprir com o que vem disposto na Carta Magna e demais ordenamentos jurídicos brasileiros que dispões [sic] sobre a obrigatoriedade de qualidade na educação, talvez tivéssemos outro panorama educacional atualmente. (CABRAL, 2008, p. 68).

É inacreditável que até hoje a questão da educação não se encontre equacionada, sendo certo que o direito à educação, embora reconhecido formal e constitucionalmente no Brasil, na prática, a sua garantia, efetividade e implementação ainda não ocorrem plenamente. [...] Um direito cujo reconhecimento e cuja efetiva proteção são adiados sine die, além de confiados à vontade de sujeitos cuja obrigação de executar o “programa” é apenas uma obrigação moral ou, no máximo, política, pode ainda ser chamado corretamente de “direito”? (BOBBIO, 2004, p. 37)

De notar que, repita-se, não basta o oferecimento de escolas, porquanto a educação, para ser de qualidade13, também precisa necessariamente resultar em aprendizado. Os resultados da Prova ABC (Avaliação Brasileira do Final do Ciclo 13 Não há um consenso sobre o que é educação de qualidade. É mais fácil saber e definir o que é uma educação sem qualidade: professores mal preparados, falta de professores, falta de estrutura da escola em termos de construção, recursos administrativos e pedagógicos.

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de Alfabetização)14, divulgados no ano de 2013, demonstram que “mais da metade das crianças brasileiras do 3º ano do ensino fundamental de escolas públicas e privadas não aprendeu os conteúdos esperados para esse nível de ensino.”15. Por sua vez, no trabalho “Uma Escala para Medir a Infraestrutura Escolar”, os autores analisaram, com base no Censo Escolar da Educação Básica de 201116, a infraestrutura de escolas federais, estaduais, municipais e privadas, tanto rurais quanto urbanas. Aludido estudo estabeleceu quatro categorias para a análise dos itens analisados (elementar, básica, adequada e avançada), tendo sido feita uma análise comparativa da infraestrutura escolar por região do país e por dependência administrativa (SOARES NETO et. al., 2013, p. 78; 82). A análise da infraestrutura se deu porquanto “É importante proporcionar um ambiente físico, aqui denominado infraestrutura escolar, que estimule e viabilize o aprendizado, além de favorecer as interações humanas.” (SOARES NETO et. al., 2013, p. 78). A título de exemplo, vale destacar os dados obtidos a respeito das dependências administrativas das escolas analisadas: Observa-se que 62,5% das escolas federais estão nas categorias Adequada e Avançada, 51,3% das escolas estaduais estão na categoria Básica, 61,8% das escolas municipais estão na categoria Elementar e 72,3% das escolas privadas estão nas categorias Elementar e Básica. [...] (SOARES NETO et. al., 2013, p. 93)

14 Exame aplicado no final do ano letivo de 2012, que avaliou 54 mil crianças de 2º e 3º ano do ensino fundamental de escolas públicas e privadas de 600 municípios, em todos os estados. Seu objetivo é “traçar um diagnóstico da alfabetização dos alunos nos primeiros anos do Ensino Fundamental, com base em exames de leitura, escrita e matemática.”, consoante retratado no sítio da “Todos pela Educação”. Vale destacar que a Prova ABC é “uma iniciativa do Todos Pela Educação, em parceria com a Fundação Cesgranrio, o Instituto Paulo Montenegro e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), com apoio do Instituto Ayrton Senna, da Fundação Itaú Social, da Fundação Educar DPaschoal, do Instituto Gerdau e do Instituto Península/Grupo Pão de Açúcar.” Os resultados da prova de 2012 podem ser encontrados em . Acesso em: 08 jun. 2014. 15 Conforme explicou Priscila Cruz, diretora executiva do Todos pela Educação, na matéria de Paulo Saldaña “Mais da metade dos alunos do 3º ano não sabe o adequado”, publicada no sítio Estadão Educação. Disponível em: . Acesso em: 08 jun. 2014. 16 Que é realizado anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). volume

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Ou seja, o “mito” de que as escolas privadas seriam melhores que as escolas públicas nem sempre se confirma. E mais, em termos de distribuição do número de escolas por nível da escala de infraestrutura escolar para cada região geográfica do país, o trabalho ressaltou que, “Para qualquer uma das regiões, a porcentagem de escolas no nível avançado é sempre menor que 2%.” (SOARES NETO et. al., 2013, p. 92). Destaquem-se, ainda, os seguintes dados obtidos: “mais de 44% das escolas da educação básica brasileira ainda apresentarem uma infraestrutura escolar elementar, apenas com água, sanitário, energia, esgoto e cozinha.” e “somente 0,6% das escolas apresentam uma infraestrutura considerada avançada.” (SOARES NETO et. al., 2013, p. 89). Verificou-se que há “um percentual alto de escolas que não possuem requisitos básicos de infraestrutura, como sala de diretoria, sala de professor e biblioteca.” (SOARES NETO et. al., 2013, p. 97). O estudo em questão conclui pela existência de desigualdades de infraestrutura entre as escolas pesquisadas, demonstrando que o Brasil nem de longe oferece garantia de “um padrão mínimo de qualidade”. E mais: Assim, fica transparente a necessidade de políticas públicas que visem a diminuir as discrepâncias e promover condições escolares mínimas para que a aprendizagem possa ocorrer em um ambiente escolar mais favorável. (SOARES NETO et. al., 2013, p. 97)

Por sua vez, na comparação com outros países, a educação brasileira também demonstra sua fragilidade. Para ilustrar, cita-se a publicação da UNESCO, “Education for All (EFA) Global Monitoring Report 2011”, em que o Brasil ficou em 88ª posição, dentre cento e vinte e sete países (2011, 264). A comemoração merecida dos vinte anos da Constituição brasileira não precisa do falseamento da verdade. Na conta aberta do atraso político e da dívida social, ainda há incontáveis débitos. Subsiste no país um abismo de desigualdade, com recordes mundiais de concentração de renda e déficits dramáticos em moradia, educação, saúde, saneamento. A lista é enorme. Do ponto de vista do avanço do processo civilizatório, também estamos para trás, com índices inaceitáveis de corrupção, deficiências nos serviços públicos em geral – dos quais dependem, sobretudo, os mais pobres – e patamares de violência que se equiparam aos de países em guerra. (BARROSO, 2008, p. 46) 304

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Como bem cita Barroso, a universalização do acesso à educação representou um avanço nos últimos anos. No entanto, ainda restam inúmeras questões a serem enfrentadas. De nada adianta ampliar o acesso à escola, oferecer um maior número de escolas, se ainda são encontrados analfabetos funcionais, se a permanência nas escolas não é garantida, se a qualidade do ensino deixa a desejar... Os direitos sociais têm enfrentado trajetória mais acidentada, sendo a sua efetivação um dos tormentos da doutrina e da jurisprudência. Nada obstante, houve avanços no tocante à universalização do acesso à educação, apesar de subsistirem problemas graves em relação à qualidade do ensino. [...] (BARROSO, 2008, p. 23)

Até porque, com uma educação de qualidade, as chances do país como um todo ser beneficiado com seus melhores resultados é enorme. Reflexos na cultura, na área social e no âmbito econômico interno e com relação ao exterior são mais que esperados. E reflexos individuais, para com os seus cidadãos e suas famílias também poderão ser vistos. A educação (e a falta dela também) produz impactos consideráveis na vida de um indivíduo e, de outro ponto de vista, causa impactos na trajetória de um país. Consequências na formação da personalidade, na aquisição de conhecimento, na socialização, na definição do futuro profissional (e consequente impacto na sua questão econômica e qualidade de vida), são apenas alguns dos fatores que podem ser delineados em conformidade com a educação que cada indivíduo recebe (ou não), especialmente se a referência for a educação formal, oferecida pelas escolas. (KIEFER, 2013, p. 34)

A constituição humana realizada pelo processo educacional não determina apenas sua personalidade individual ou a sua qualificação profissional e sua inserção econômica na sociedade. Permite o próprio reconhecimento nesta sociedade (o que inclui a consciência sobre seus direitos), mas vai além: diante da possibilidade de reflexão sobre esse quadro social, enseja a possibilidade de transformação dessa sociedade. Assim sendo, o país deve rever a sua educação pública e privada, sua respectiva regulamentação, fiscalização, financiamento e estrutura, através de políticas públicas que sejam efetivamente implementadas e garantidoras. “Até porque, [...] volume

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o Estado tem o poder-dever de garanti-la, tanto pelas normas internas quanto perante a comunidade internacional, em função dos tratados e convenções internacionais que ratificou.” (KIEFER, 2013, p. 33). Os recursos políticos e jurídicos para a efetivação da educação nos termos constitucionais, mesmo que de forma ainda muito lenta e incipiente, parece que a cada dia se ampliam. E devem se ampliar ainda mais. Porém, a educação pelo seu papel estratégico que exerce nos deslindes da estrutura social, pode servir a distintos interesses. Durante séculos foi mantida hermeticamente restrita aos filhos de uma elite, para a reprodução de seus próprios interesses. Quando o discurso da educação como direito se tornou impossível de conter, seu papel passou a ser organizar e qualificar uma mão de obra adestrada e desprovida de capacidade crítica, posta à serviço das mesmas elites dominantes. Ressaltou-se, então, seu caráter instrumental de dominação e poder, servindo para naturalizar tal ideologia dominante, especialmente na incorporação das ideias de hierarquia, submissão, divisão do tempo e do trabalho – incapazes de suscitar qualquer reflexão crítica17. Eis uma das principais explicações da causa de muitos problemas experimentados pela educação fornecida até hoje no Brasil. A chave para que a educação não reverta o rumo histórico desse processo é o aprofundamento democrático. A participação popular efetiva em todas as fases da elaboração, construção e execução da educação pelo povo, desde o momento inicial de perscrutar e delinear as efetivas necessidades, passando por todo o processo orçamentário de reserva e aplicação de recursos, até, principalmente o diálogo constante imprescindível entre pais, professores e estudante, no processo educacional propriamente dito. Era ir ao encontro desse povo emerso nos centros urbanos e emergindo já nos rurais e ajudá-lo a inserir-se no processo, criticamente. E esta passagem, absolutamente indispensável à 17 A esse respeito, é essencial a obra de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron. A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino.

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humanização do homem brasileiro, não poderia ser feita nem pelo engôdo, nem pelo medo, nem pela força. Mas, por uma educação que, por ser educação, haveria de ser corajosa, propondo ao povo a reflexão sobre si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades, sobre seu papel no novo clima cultural da época de transição. Uma educação, que lhe propiciasse a reflexão sobre seu próprio poder de refletir e que tivesse sua instrumentalidade, por isso mesmo, no desenvolvimento desse poder, na explicitação de suas potencialidades, de que decorreria sua capacidade de opção. Educação que levasse em consideração os vários graus de poder de captação do homem brasileiro da mais alta importa no sentido de sua humanização. (FREIRE,1967, p. 57)

5. conclusões Como abordado, o direito à educação, previsto como direito fundamental pela Constituição de 1988, além de diversos documentos internacionais firmados pelo Brasil e pela legislação infraconstitucional, é um direito social que enfrenta dificuldades para sua real garantia. Apesar de reconhecido e previsto e, ainda, apesar dos avanços obtidos nos últimos anos, especialmente no tocante à universalização do ensino, a educação de qualidade para todos não é uma realidade no Brasil. Os ensinos público e o privado enfrentam diversos problemas e isso se confirma através de pesquisas e estudos nacionais e internacionais, conforme antes citado. Não é razoável que esse estado de coisas permaneça ad eternum. O debate acadêmico, a mobilização da sociedade em geral e uma postura mais ativa de órgãos como os Conselhos Tutelares, Ministérios Públicos e também o Judiciário devem “cobrar” do Estado mais empenho e atitudes efetivas com relação à concretização do direito à educação. Ainda mais se for considerado tratar-se de questão que, no âmbito deste estudo, envolve direitos de crianças e adolescentes, que exigem absoluta prioridade e proteção integral. Porém a sorte do progresso da efetividade do direito à educação, como direito fundamental está inexoravelmente imbricado com o desenvolvimento do processo político democrático e com o processo democrático na própria realização da educação, como condição para a efetivação de uma educação que realize o homem em todas suas potencialidades e da forma mais livre possível. volume

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6. referências BARRETO, Vicente de Paulo. Reflexões sobre os Direitos Sociais. Boletim de Ciências Econômicas.v. XLVI. Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. 2003. (p. 117-139). Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2014. BARROSO, Luís Roberto. Vinte Anos da Constituição Brasileira de 1988: o Estado a que chegamos. 2008. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2014. BOBBIO, Norberto. COUTINHO. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson. 10. ed. 7. tir. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BOURDIEU, Pierre. PASSERON, Jean-Claude. La Reproducción: elementos para uma teoría del sistema de enseñanza. 2. Ed., Cidade do México: Fontamara, 1996. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: . Acesso em: 09 jun. 2014. _______. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências (ECA). Disponível em: . Acesso em: 09 jun. 2014. _______. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: . Acesso em: 24 maio 2014. _______. Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001. Aprova o Plano Nacional de Educação (PNE) e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 17 maio 2014. CABRAL, Karina Melissa. A Justiciabilidade do Direito à Qualidade do Ensino Fundamental no Brasil. Dissertação (Mestrado em Educação). 308

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direito à mor adia e à democr acia participativa: uma experiência na elabor ação do plano estadual de habitação, tocantins, br asil João Aparecido Bazolli1

Resumo Este estudo objetivou analisar o processo de elaboração do Plano Estadual de Habitação de Interesse Social do estado do Tocantins, Brasil, para constatar a aplicabilidade da garantia do direito constitucional à moradia e compreender o processo participativo na sua construção. Constatou-se que no Tocantins as iniciativas locais de construção de habitações populares, para atender a sua grande demanda, estavam desarticuladas do planejamento do território, em razão da ausência de políticas públicas efetivas em desenvolvimento urbano. Esse fator contribuía para o aumento da irregularidade urbana e enfatizava a segregação socioterritorial, gerando crescimento desordenado das periferias nas cidades tocantinenses. A elaboração do Pehis do Tocantins, segundo os relatórios emitidos, obedeceu aos procedimentos metodológicos que previam, em todas as suas etapas, a integração dos trabalhos técnicos ao processo participativo. Esse processo estaria vinculado ao envolvimento dos municípios e das demais entidades interessadas e relacionadas ao tema Habitação Popular. Os trabalhos de elaboração do Plano foram divididos em três etapas básicas: proposta metodológica; diagnóstico do setor habitacional; e criação de estratégias de ações. A metodologia aplicada ao estudo foi a de observação participante das atividades relacionadas à elaboração do Plano, análise dos documentos produzidos e legislação correlata, revisão bibliográfica sobre o tema e análise do documento que traduziu o resultado do trabalho. Concluiu-se com o estudo que este, embora o Pehis do Tocantins tenha sido elaborado com o uso dos critérios técnicos exigidos pela legislação e 1 Pós-doutorando pelo IGOT/Universidade de Lisboa, Portugal. Prof. Adjunto do Curso de Direito e Docente permanente do Programa de Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da Universidade Federal do Tocantins–UFT, Brasil. Membro do NEUCIDADES/ UFT. Bolsista da Capes Proc. BEX 1685/14-7. E-mail: [email protected] volume

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cumpridas as etapas metodológicas propostas, não demonstrou possibilidade de eficiência na sua implantação futura, comprometendo, dessa forma, as garantias constitucionais do direito à moradia e da democracia participativa. A conclusão se fundamenta na ausência de demonstração da efetiva participação popular no processo de construção do Plano, que deveria ficar demonstrada por meio de intervenções concretas da população nas discussões públicas, desenvolvidas em quantidade insuficiente e realizadas com qualidade metodológica duvidosa.

Palavras-chave Plano de Habitação; Participação Popular; Constituição Federal.

Abstract This study aimed to analyze the process of elaboration of the State Plan for Social Interest Housing of Tocantins State, Brazil, in order to verify the applicability of constitutional right guarantee to housing and also in order to understand the participatory process in its construction. It was found that in the State of Tocantins local initiatives for affordable housing building, aimed to meet its great demand, were disjointed from the territory´s planning, due to the absence of effective public policies in urban development. This factor was contributing to the increase in urban irregularity, emphasizing the social and territorial segregation generating this way a disorderly growth of suburbs in Tocantins’ cities. The elaboration of Pehis Tocantins, according to issued reports, followed the methodological procedures, which envisioned along all its phases the integration of technical works to the participatory process. This process would be linked to the involvement of municipalities and other interested and related entities to the theme of low-income population housing. The Plan elaboration works were divided into three basic steps: methodological proposal; diagnosis of the housing sector and the creation of action strategies. The methodology used for the study was the participant observation in related activities to the Plan’s elaboration, analysis of generated documents and correlated legislation, bibliographic review on the subject and the analysis of the document that reflected the result of this work. It was concluded with the study that although the Pehis Tocantins has been elaborated using the technical criteria required by law and the methodological steps proposed were accomplished, it has not shown the possibility of efficiency in 312

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its future implementation, committing the constitutional guarantees of the right to housing and participatory democracy. The conclusion is based on the absence of demonstration of effective popular participation in the Plan’s elaboration process, which should be demonstrated through concrete interventions of the population in public discussions that were developed in insufficient quantity and performed with questionable methodological quality.

Key words Housing Plan; Popular Participation; Federal Constitution. 1. introdução A Política Nacional de Habitação (BRASIL, 2004a), elaborada sob a coordenação do Ministério das Cidades em 2004, é considerada como o principal instrumento para se alcançar o direito à moradia2, tendo como enfoque o planejamento habitacional articulado às demais políticas públicas, a fim de possibilitar a criação de condições para um desenvolvimento justo e igualitário do território. Nesse viés, os Planos de Habitação de Interesse Social (Phis) – estadual (Pehis) ou local (Plhis) – devem induzir à ocupação ordenada do território, de modo a otimizar a utilização da infraestrutura existente e democratizar o acesso a terra urbanizada. Esses Planos, com a origem no Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (BRASIL, 2005), devem estabelecer objetivos, princípios e diretrizes verticalmente à Política Nacional de Habitação (BRASIL, 2004a) e horizontalmente ao Plano Nacional de Habitação (BRASIL, 2009). Verificam-se então, como condição elementar para o tratamento da questão habitacional no Brasil, a aplicação de estratégias de implantação de Planos e Programas, tanto habitacionais como de regularização fundiária, e a articulação horizontal nas esferas nacional, estadual e local. 2 A Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, que alterou a redação do art. 6º da Constituição Federal de 1988, elevou a moradia ao status de direito constitucional. volume

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O Plano Estadual de Habitação de Interesse Social do Tocantins (PEHIS-TO, 2012) integra o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (BRASIL, 2005), juntamente com o Conselho Estadual e o Fundo Estadual de Habitação. Esse Sistema complexo foi regulamentado pela Lei Federal n° 11.124, de 16 de junho de 2005 (BRASIL, 2005), a qual estabelece os seguintes objetivos: viabilizar para a população de menor renda o acesso a terra urbanizada e habitação digna e sustentável; implementar políticas e programas de investimentos e subsídios, de modo a promover e viabilizar o acesso à habitação voltada à população de menor renda; e de articular, compatibilizar, acompanhar e apoiar a atuação das instituições e órgãos que desempenham funções no setor da habitação. Esse Plano Estadual é um instrumento que deve articular as políticas: nacional, estadual e as municipais de habitação de interesse social e, ainda, considerar o Planejamento Urbano local e a integração do território, na vertente das políticas voltadas ao Desenvolvimento Regional. Justifica-se a elaboração deste Plano Habitacional ao se constatar que o estado do Tocantins convive com um déficit habitacional de 43,9 mil (IBGE, 2010) e com 136.370 moradias classificadas como inadequadas. Portanto, esses dados demonstram a necessidade de sistematização de uma política pública de habitação a ser coordenada pelo Estado, tendo em vista que essa demanda, além de sua constância, tende a dobrar nos próximos vinte anos (PEHIS, 2012). De outro modo, é interessante pontuar que as políticas públicas (por melhor aparelhamento dos governos estaduais e locais) e os estudos acadêmicos (pela concentração de universidades e destinação de recursos), voltados para essa temática, concentram-se nas metrópoles das regiões sul e sudeste do País (BONDUKI, 2008, 1998; MARICATO, 2006, 2005, 1997, 1996, 1987, 1982; VILLAÇA, 2001), onde os problemas urbanos se apresentam em maior escala, mesmo já havendo considerável deslocamento populacional para a região central do País. Porém, já se constata que os debates sobre as cidades médias se ampliaram e têm atraído adeptos, em face do justificado aumento populacional dessas localidades, motivo do crescimento da importância dada aos estudos sobre essa categoria municipal (ANDRADE e SERRA, 2001; AMORIM FILHO e RIGOTTI, 2002; CASTELLO BRANCO, 2006; SPOSITO, 2004). 314

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Importante destacar que esses estudos de cidades médias assumiram importância ao despertar atenção ao fato de que a localização da habitação social, também em cidades menores, neste caso aplicável às cidades do estado do Tocantins, está diretamente relacionada ao planejamento e à gestão da cidade. Outro aspecto indlével é a interferência dos agentes públicos locais na decisão sobre a localização periférica da habitação de interesse social. (CAPEL, 1974; CORRÊA, 1989; CORREIA, 2002). Essa realidade mostrou a necessidade de se elaborar um Plano de Habitação no Tocantins com a finalidade de mitigar e conter essa interferência maléfica, que compromete a qualidade de vida da população e diretamente a produção de unidades habitacionais. Nesse contexto, o Plano Estadual de Habitação de Interesse Social do Tocantins foi elaborado durante dois anos, entre 2010 e 2012. Porém, mesmo tendo obedecido aos procedimentos previstos, essencialmente à integração dos trabalhos técnicos ao processo participativo popular a qual seria justificada pelo envolvimento dos municípios e das demais entidades estaduais e locais relacionadas ao tema habitacional, não aprofundou o debate da questão, em face de não realizar as discussões públicas em número suficiente, e as que foram realizadas penderam de qualidade metodológica. Os trabalhos de elaboração do Plano foram divididos em três etapas básicas: proposta metodológica; diagnóstico do setor habitacional para conhecer a situação atual desse setor no Estado; estratégias de Ações com a finalidade de favorecer a integração das políticas e planos setoriais existentes e a integração entre os Municípios, Estado e a União. Este estudo analisou a elaboração do Pehis do Tocantins e tentou compreender a participação popular no seu processo de construção, qual seja, constatar a aplicabilidade da garantia do direito constitucional à moradia e compreender o processo participativo na sua construção. Nessa linha de observação, considerou-se o aspecto legal de haver obrigatoriedade do debate público do Plano, estabelecido pelo art. 43 da Lei nº 10.2573, de 10 de julho de 2001, que regulamentou os arts. 182 e 183 da Constituição Federal de 1988. 3 Ficou conhecida como Estatuto da Cidade e incluiu a “ordem urbanística” como bem jurídico tutelado. volume

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Verificou-se, na elaboração do Plano, a adoção das seguintes estratégias: reuniões entre as equipes técnica, de supervisão, a do Governo Estadual e a do Conselho Gestor, a fim de discutirem os conteúdos do Plano, levados a seminário preparado para essa finalidade; realização de dois seminários (um preparatório e outro para apresentar e discutir o conteúdo do Plano), organizados pelas equipes técnica, de supervisão e a do Governo do Estado, que aconteceram no município de Palmas, onde se encontra a sede do Governo Estadual. Por fim, promoveu-se discussão com os atores interessados sobre o Projeto de Lei Complementar resultante desse conteúdo do Plano, posteriormente encaminhado à Assembleia Legislativa. Concluiu-se, com o estudo realizado, embora, segundo os relatórios técnicos, o Pehis do estado do Tocantins tenha sido elaborado dentro dos critérios técnicos exigidos pela legislação e mesmo sendo cumpridas as etapas metodológicas propostas, não ter sido demonstrada a real possibilidade de eficiência na sua implantação futura, o que compromete as garantias constitucionais ao direito à moradia e participação popular. A conclusão foi fundamentada na ausência de demonstração da efetiva participação popular no processo de construção do Plano, que deveria ocorrer por meio de intervenções concretas nas discussões públicas, a fim de se garantir o exercício da democracia participativa. Porém, essas discussões públicas ocorreram em números reduzidos e insuficientes, com baixa qualidade e em locais que dificultaram o acesso ao público diretamente interessado na questão. 2. plano nacional de habitação de interesse social A Política Nacional de Habitação (BRASIL, 2004a) se constituiu como elemento básico da política fundiária de implementação dos Planos-Diretores Municipais para garantir a função social da propriedade, a regularização fundiária de interesse social e a revisão da Legislação Urbanística e Edilícia, pelo seu papel estratégico de possibilitar o acesso a terra urbanizada. Essa política foi fundada em princípios e diretrizes, para cumprir a função de assegurar o direito constitucional à moradia (BRASIL, 1988, art. 6º). Assim, teve como meta principal garantir à população, especialmente à de baixa renda, o acesso à habitação digna. Para a implantação dessa política considerase fundamental, a fim de atingir seus objetivos, a sua integração com a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU, 2004b). 316

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A sua construção se deu a partir de um arcabouço conceitual qualitativo com a finalidade de fundamentar seus argumentos, de estruturar ações concretas no campo da habitação, e, como consequência, promover a integração entre os agentes de atuação na sua implementação, como se observa no excerto abaixo. Coerente com a Constituição Federal, que considera a habitação um direito do cidadão; com o Estatuto da Cidade, que estabelece a função social da propriedade; e com as diretrizes do atual governo, que preconiza a inclusão social, a gestão participativa e democrática, a Política Nacional de Habitação visa promover as condições de acesso à moradia digna a todos os segmentos da população, especialmente aos de baixa renda, contribuindo, assim, para a inclusão social. (BRASIL, 2004a, p. 29).

A Política Nacional de Habitação (BRASIL, 2004a) previu a organização de um Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, criado por Lei Federal (BRASIL, 2005). Este Sistema instituiu os Planos de Habitação (PlanHab), que deu origem ao Plano Nacional de Habitação (BRASIL, 2009). Nessa linha da consolidação do Sistema, o Governo Federal estabeleceu mecanismos de financiamento para a elaboração dos Planos de Habitação de Interesse Social, estadual e local, com a adesão integral pelos estados e municípios brasileiros. Cabe salientar que enquanto os países europeus trataram a reforma urbana com o olhar na habitação social (SILVA, 2008), no Brasil, a política habitacional esteve desvinculada da política urbana. Para entender a questão da habitação social no Brasil, permanentemente estudada, inúmeros autores apontam a exclusão social provocada pela luta desigual na conquista do espaço urbano na cidade (BONDUKI, 2008, 1998; MARICATO, 2005, 1997, 1996, 1987, 1982; VILLAÇA, 2001; ROLNIK; CYMBALISTA; NAKANO, 2011). Embora a Constituição Federal de 1988 tenha descentralizado competências, algumas exclusivas dos municípios, e tenha atribuído às três esferas governamentais a responsabilidade de prover habitação e oferecer melhores condições habitacionais à população, não se contabiliza avanço significativo nessa área; por esse motivo, o Governo Federal tem reunido esforços para incentivar os gestores a elaborarem seus Planos Habitacionais. Registram-se, entretanto, a partir de então, algumas conquistas políticas e sociais importantes à revisão da condução de processos urbanos, como: a aprovação volume

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do Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001) e seus instrumentos direcionados à função social da propriedade, dentre eles a instituição de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS); a obrigatoriedade dos Planos-Diretores para as cidades com mais de 20.000 habitantes; a implementação do orçamento participativo em alguns municípios; a criação do Ministério das Cidades, em 2003; a criação do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (BRASIL, 2005), entre outros. Ao se proceder à análise sobre a questão habitacional brasileira, deve-se mencionar o Programa Minha Casa Minha Vida, instituído pela Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, que tem como objetivo o incentivo à produção e à aquisição de novas unidades habitacionais, à requalificação de imóveis urbanos e à produção ou reforma de habitações rurais, com o duplo objetivo de reduzir o déficit habitacional e fomentar a economia na geração de emprego e renda. Entretanto, esse Programa tem se instituído como principal obstáculo ao acesso a terra urbanizada nas zonas centrais da cidade. A especulação imobiliária praticada pela retenção de terra urbanizada faz com que as regiões centrais das cidades se tornem cada vez mais valorizadas. Ocorre que o Programa possibilita que as empresas incorporadoras ofereçam terras, mas quase sempre são oferecidas terras localizadas em glebas distantes dos centros urbanos, onde o baixo valor do solo torna maior a margem de lucro das construtoras. Portanto, num processo vicioso e perverso, os processos de periferização e segregação socioespacial da população de menor renda estão sendo reforçados. Porém, isso não tem se reproduzido apenas nas metrópoles brasileiras, mas também nas cidades médias, em virtude do crescimento destas nas últimas décadas. A maneira de combater os vazios urbanos e imóveis ociosos e amenizar substancialmente o problema seria com a aplicação de instrumentos do Estatuto da Cidade, recomendada por Raquel Rolnik e autores: O combate aos vazios urbanos e imóveis ociosos, por meio da Utilização, Edificação e Parcelamento Compulsórios, IPTU Progressivo no Tempo e Desapropriação-sanção, também pode abrir possibilidades para aproveitar as glebas, lotes e edifícios desocupados para a produção de moradias populares. (ROLNIK; CYMBALISTA; NAKANO, 2011, p.154).

Nesse contexto complexo, os Planos de Habitação (PanHab) são elementos que compõem o Sistema Nacional de Habitação (SNH) com a finalidade de colocar 318

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em funcionamento uma rede de planejamento e gestão articulada entre os entes federativos. Esses Planos devem ser desenvolvidos com princípios que articulem ações do Estado, Municípios e União, e essencialmente procurem encontrar soluções para o problema do território urbano, entendendo-o como elemento essencial à produção habitacional, para assim universalizar o acesso à moradia. 3. o plano estadual de habitação no tocantins O estado do Tocantins foi criado em 5 de outubro pela Constituição Federal de 1988 e está localizado na Região Norte do Brasil (FIG. 1). A sua área é de 277.621km² o que representa 3,3% do território nacional, 7,2% da Região Norte e 5,4% da Amazônia Legal. A sua população atual é de 1.383.445 habitantes distribuídos em 139 municípios e com a densidade demográfica de 4,98 hab/km² (IBGE, 2010). A sua capital é Palmas (FIG. 1), instalada em 20 de maio de 1989. FIGURA 1: Mapa de localização de Palmas-TO elaborado por Patrícia Rezende, 2012.

Fonte: IBGE (2010); Prefeitura de Palmas (2012).

O estado do Tocantins apresenta atualmente um déficit habitacional de 49,3 mil. Embora o problema habitacional tenha reflexo em todo o Estado há volume

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concentração nos seus dez maiores municípios, em razão de representar 78,80% da população de 677.872 habitantes. O Estado reflete internamente a média nacional do déficit habitacional, concentrado na faixa de renda de até três salários mínimos equivalente a 91,2% (PEHIS, 2012). A capital Palmas, com 228.297 habitantes, tem a maior taxa média nacional de crescimento anual (medida entre 2000-2010) de 5,21% (IBGE, 2010). Assim, o Pehis do Tocantins foi construído com olhar nesse contexto, a partir de um plano de ações elaborado por técnicos consultores e pelo Governo Estadual, e discutido com as entidades ligadas à área habitacional. Os trabalhos de elaboração do Plano foram divididos em três etapas básicas: [1] Proposta metodológica: nesta etapa ocorreu o detalhamento das ações, atividades e responsabilidades, em cada uma, por meio dos trabalhos desenvolvidos; [2] Diagnóstico do setor habitacional para conhecer a situação atual deste no Estado: nesta etapa elaborou-se um estudo técnico da realidade habitacional no estado do Tocantins, a partir de dados e informações técnicas relacionadas à questão habitacional; e [3] Estratégias de Ações com a finalidade de favorecer a integração das políticas e planos setoriais existentes e a integração entre os Municípios, Estado e a União. E, ao final dos trabalhos, abordaram-se os objetivos, propostas e as atividades, com vistas a superar os problemas diagnosticados na etapa anterior, que se consolidou com o produto final do Plano (Projeto de Lei Complementar). O plano de ações com as atividades e responsabilidades pelas etapas dos trabalhos desenvolvidos foi construído pela equipe de consultoria técnica e pelo Governo do Estado; posteriormente discutido em Seminário temático, com a participação de entidades representativas que atuam na área de habitação, para a sua finalização, revisão e operacionalização. Desta feita, foram esses sujeitos que organizaram o plano de ações para a elaboração do Plano de Habitação de Interesse Social no estado do Tocantins. Demonstra-se com isso que, a partir da organização e da participação, os homens se põem com potencial de coordenar, na coletividade, os interesses de grupos específicos com objetivos políticos amplos. Sader (1988, p. 55) lembra que trabalhar o conceito de sujeito passa por duas questões, se por um lado considera-o como ator soberano, por outro pressupõe 320

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sua sujeição. E diz ainda que: “(...) a noção de sujeito coletivo é no sentido de uma coletividade onde se elabora uma identidade e se organizam praticas através das quais seus membros pretendem defender seus interesses e expressar suas vontades, constituindo-se nessas lutas”. Detecta-se, nesse ponto inicial da construção do Plano, que não se efetiva na plenitude a participação popular, mesmo nesse seminário de preparação realizado pelo seu esvaziamento em decorrência de agendas inadequadas, e por ter se dado em local de difícil acesso à população interessada na questão habitacional. Mesmo assim, a elaboração do Plano passou para a etapa posterior, com a efetivação do diagnóstico em que foram levantadas as características geohistóricas do Tocantins, destacando-se ano de criação, lutas correlatas, população (com a diversidade existente), densidade demográfica, número de municípios, tamanho e representação nacional do território tocantinense, clima, vegetação, relevo, hidrografia, áreas e tipos de etnias indígenas existentes, comunidades quilombolas, unidades de conservação e evolução populacional. Ademais, ressaltaram-se as características socioeconômicas do Tocantins, sendo citados os valores do Produto Interno Bruto, destacando os setores de atividade e os municípios com os dez maiores indicadores. Foram descritos ainda, conforme dados fornecidos pela Secretaria de Infraestrutura do Estado, os projetos de grande porte, previstos no Plano Plurianual 2012-2015. Em relação ao setor social, destacou-se no Plano o Trabalho e Renda, ficando demonstrado que o setor agrícola foi apontado como aquele que mais possui trabalhadores sem carteira assinada. O diagnóstico mostrou o reduzido Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) para justificar os principais problemas sociais do Estado, com ênfase nas precárias condições de saneamento básico e do atendimento na área da saúde pública. Outro ponto importante do diagnóstico foi a detecção dos conflitos fundiários urbanos, mostrando a necessidade de ações de regularização fundiária. Essas ações serão necessárias, além de atrelá-las na execução das políticas habitacionais locais. Foram apontadas, no relatório, as áreas em conflito e as áreas em processo de regularização. Nessa linha de discussão, incluíram-se, nos relatórios, marcos regulatórios e os diplomas legais sobre a temática fundiária. volume

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Também se relataram as condições institucionais e administrativas da Secretaria Estadual de Habitação, para a execução do Plano. Nesse âmbito, demonstrouse o pequeno quantitativo de funcionários, a falta de equipamentos eletrônicos e de veículos existentes para dar conta da tarefa exigida, qual seja, implantar o Plano. Além disso, evidenciaram-se as práticas necessárias para a melhoria da gestão, que deverão ser realizadas no sentido de atender com eficiência e eficácia essa demanda. No que tange às estratégias de ações, com a finalidade de favorecer a integração das políticas e planos setoriais existentes e a integração entre os Municípios, Estado e a União, estabeleceram-se os princípios, programas e diretrizes, além de metas, indicadores e estimativa de recursos necessários para a implantação do Plano. O Plano foi estabelecido por quatro eixos estratégicos. Em cada eixo foram estabelecidos programas, metas e prioridades. Destacam-se no (QUADRO 1) na página seguinte, os quatro eixos estratégicos, com alguns programas e metas e a prioridade estrutural do programa.

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quadro 1: eixos estr atégicos, progr amas, metas e prioridades EIXO (1) Produção e melhoria habitacional Objetivo Reduzir o déficit habitacional quantitativo e qualitativo e atender à demanda futura por novas unidades habitacionais, pela ampliação dos programas habitacionais no meio urbano e rural, em consonância com as políticas municipais de habitação. Estratégias e Programas • Execução de habitações de interesse social em áreas urbanas; • Habitação e desenvolvimento urbano; • Execução de habitações de interesse em social em áreas rurais; • Habitação Social e Desenvolvimento Rural; • Execução de melhorias habitacionais em áreas urbanas; • Melhoria Habitacional Urbana; • Execução de melhorias habitacionais em áreas rurais; • Melhoria Habitacional Rural.

EIXO (2) Desenvolvimento Institucional (Assistência. Técnica, Monitoramento, Avaliação e Gestão do Pehis do Tocantins) Objetivo Aprimorar a gestão do setor habitacional do estado do Tocantins para uma atuação integrada com os municípios, visando à melhoria da capacidade de gestão e ao desenvolvimento de ações multissetoriais voltadas para a redução do déficit habitacional quantitativo e qualitativo.

Estratégias e Programas • Reorganização do Setor Habitacional; • Desenvolvimento Institucional; • Desenvolvimento do sistema de gerenciamento de informações habitacionais; • Gerenciamento das Informações Habitacionais; • Implantação de Sistema Estadual de Assistência Técnica à Habitação de Interesse Social; • Assistência Técnica à Habitação de Interesse Social; • Capacitação e Assistência Técnica aos Municípios e Entidades da Sociedade Civil para a Implementação da Política Urbana e Habitacional; • Capacitação e Assistência Técnica aos Municípios e Entidades da Sociedade Civil.

Metas Metas • Produção de 90.000 unidades habitacionais • Reorganização institucional dos setores voltados à execução da política habitacional, desenvolvimento - 35% na zona rural; urbano e regularização fundiária, dois anos; • Desenvolvimento do SiGIH , dois anos; • Ampliação e implementação do cadastro imobiliário, integrado ao SiGIH, com a identificação e a constituição Fonte: (PEHIS, 2012, p.12) de um banco de áreas públicas e privadas adequadas ao desenvolvimento de programas habitacionais, quatro anos; • Atender 42.328 domicílios com reforma e • Implantação do Banco de Terras, quatro anos; ampliação, 35% na zona rural. • Implantação de estrutura física para o Conselho das Cidades e o Conselho Gestor do Fundo Estadual de Habitação de Interesse Social, um ano. Fonte: (PEHIS, 2012, p.13)

Prioridade Atendimento prioritário às famílias do grupo 1 (descrição do grupo no QUADRO: 3 na sequência). volume

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Prioridade Reorganização institucional dos setores voltados à execução das políticas habitacional, de desenvolvimento urbano e de regularização fundiária.

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quadro 1: eixos estr atégicos, progr amas, metas e prioridades “(conclusão)” EIXO (3) Regularização Fundiária

EIXO (4) Urbanização e Integração de Assentamentos Precários

Objetivo Objetiva a regularização fundiária das áreas em situação irregular existentes no estado do Tocantins, observando-se os aspectos urbanísticos, ambientais, sociais, cartoriais e jurídicos, com a integração dos assentamentos irregulares às áreas urbanizadas das cidades e a garantia da segurança da posse aos seus ocupantes.

Objetivo Integrar os assentamentos precários ao sistema urbano, por meio da adaptação da configuração urbana existente, com a implantação de infraestrutura, principalmente voltada para o acesso ao saneamento ambiental e às condições de acessibilidade e mobilidade urbana sustentável, com vistas a efetivar a inclusão socioterritorial e assegurar melhorias nas condições de vida da população.

Estratégias e Programas • Regularizar áreas nas cidades; • Regularização Fundiária Plena; • Capacitação e Assistência Técnica para Regularização Fundiária; • Criação de cursos de formação e qualificação.

Estratégias e Programas • Urbanização e Integração dos Assentamentos Precários.

Metas • Negociação e regularização de 844 lotes de domínio do estado de Goiás, no prazo máximo de três anos. • Conclusão da regularização de 879 lotes de propriedade do estado do Tocantins, no prazo de dois anos. • Negociação e regularização de 3.107 lotes no município de Palmas, no prazo de até dez anos. • Implantação das ações de capacitação para a Regularização Fundiária em um ano e manutenção do programa pelos próximos dez anos.

Metas • Implantação do Programa de Urbanização e Integração dos Assentamentos Precários no prazo máximo de dois anos, com ações continuadas. • Implantação de infraestruturas de saneamento ambiental, pavimentação e drenagem e energia elétrica, para atender 10.000 domicílios ao ano, em dez anos.

Prioridade Prioridade Conclusão da regularização de 879 lotes de Implantação do Programa de Urbanização e Integração propriedade do estado do Tocantins. dos Assentamentos Precários.

Fonte: Elaborado pelo autor com dados do (PEHIS, 2012, pp.11-18)

Ficaram definidos como recursos e fontes necessárias para o cumprimento das metas estabelecidas pelo Pehis do Tocantins, os valores conforme o (QUADRO 2): 324

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quadro 2: mapa de recursos par a implantação do plano Programa

Habitação e desenvolvimento urbano Melhoria Habitacional Urbana (com assistência técnica) Habitação e desenvolvimento rural Melhoria Habitacional Rural (com assistência técnica) Regularização Fundiária Urbanização de Assentamentos Precários

Meta 60.000 unidades habitacionais (incluindo infraestrutura) em 10 anos 30.000 domicílios com reforma e ampliação (incluindo assistência técnica) 30.000 unidades habitacionais (incluindo infraestrutura) em 10 anos 12.328 domicílios com reforma e ampliação (incluindo assistência técnica) Atender 4830 domicílios

Unitário

Valor total

R$ 55.000,00 R$ 3.300.000.000,00

R$ 11.000,00 R$ 330.000.000,00

R$ 30.000,00 R$ 900.000.000,00

R$ 11.000,00 R$ 135.608.000,00

R$ 15.000,00 R$ 72.450.000,00

Atender 100.000 R$ 15.000,00 R$ 1.500.000.000,00 domicílios em 10 anos

Fonte: (PEHIS, 2012, p.18)

Com base nos institutos normativos federais, destacam-se alguns princípios que nortearão o Pehis do Tocantins: universalização do acesso à moradia adequada e ao solo urbanizado e regularizado, com prioridade aos grupos socialmente vulneráveis; integração do planejamento e das políticas de desenvolvimento urbano e regional com a gestão e a política habitacional, considerando-se, ainda, a integração com as políticas de meio ambiente, mobilidade e saneamento ambiental; funções sociais da cidade e da propriedade urbana e rural, a fim de garantir o acesso a terra urbanizada e ao desenvolvimento sustentável das cidades; eficiência e eficácia da gestão pública com fins de promover o desenvolvimento volume

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institucional para melhorar a capacidade de gestão dos Municípios e do Estado, com vistas à promoção da política habitacional. Destacou-se no Plano o objetivo de atender aos grupos familiares (QUADRO 3), na seguinte ordem: primeiro, as famílias de extrema pobreza com renda per capita de até setenta reais; segundo, as famílias de maior vulnerabilidade social e/ou com rendimentos até um salário mínimo, residentes em áreas de risco e de preservação ambiental, em assentamentos precários, comunidades tradicionais (ribeirinhos, indígenas e quilombolas); e, finalmente, as famílias com rendimentos inferiores a três salários mínimos, residentes em as­sentamentos precários ou não, passíveis de assumir algum compromisso financeiro, mas com valor insuficiente para acessar uma moradia adequada e com alto risco de crédito. quadro 3: tipos de famílias e recursos disponibilizados Grupos Tipo de Famílias Grupo 1 Famílias com renda familiar per capita inferior a 70 reais Grupo 2 Famílias de maior vulnerabilidade social e/ou com rendimentos até 1 Salário Mínimo Grupo 3 Famílias com rendimentos inferiores até 3 Salários Mínimos

Fundos FNHIS FNHIS FGTS e FNHIS

Fonte: (PEHIS, 2012, p.18)

Em termos gerais, definiram-se como objetivos do Plano Estadual de Habitação de Interesse Social do Tocantins: estabelecer programas e metas para atendimento da demanda habitacional; assegurar o direito à moradia adequada e regularizada; assegurar a concessão de subsídios às famílias com renda inferior a três salários mínimos; garantir a segurança jurídica da moradia; garantir o processo participativo; promover a gestão da política habitacional em parceria com as prefeituras; maximizar a captação dos recursos dos programas federais, da iniciativa privada e terceiro setor; entre outros. O monitoramento e a avaliação do Pehis do Tocantins deverão ser periódicos e fazer parte da gestão governamental. Os resultados coletados servirão de base para as tomadas de decisão e para assegurar um processo contínuo de aperfeiçoamento da gestão da habitação no Estado. 326

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Ao final de cada ano, deverá ser realizado um relatório de gestão, a fim de medir o alcance dos resultados esperados. Nesse relatório, será necessário constarem as metas previstas e alcançadas, as ações realizadas e resultados ao longo do exercício, além dos meios orçamentários utilizados para a execução dos programas previstos. 4. participação popular e gar antia à democr acia participativa Entende-se por participação popular o estabelecimento institucional, pelo governo, de mecanismos que possibilitem à sociedade civil ficar próxima às decisões públicas. Importante destacar a distinção da democracia representativa, enunciada neste trabalho, com o papel do legislativo municipal no processo deliberativo exercido pela Câmara de Vereadores. Assim, a democracia participativa não se confunde com a democracia representativa, embora dependam da “coexistência e complementaridade” (SANTOS e AVRITZER, 2002, p. 75), como acontece no sistema constitucional brasileiro, em que o modelo de democracia representativa instituído convive com princípios e institutos da participação cidadã em processos decisórios governamentais. Pensando nesse modelo de democracia, Santos (1998, p. 153) definiu que a democracia participativa e a representativa são interdependentes, sendo que a primeira, por meio de seus complexos processos políticos, tem o papel de criar instâncias para a delegação da segunda, qual seja, a representativa. Pretendeu-se, neste estudo, realizar um esforço para compreender a democratização horizontal, comunitária, com conhecimento local, identidade e espaço de cidadania. Ao se referir à democracia participativa, Lyra (2000, p. 17) vinculou a sua eficácia social à participação popular efetiva. Assim, ela acontece a partir da apresentação de propostas, da realização de debates e das possíveis deliberações. Portanto, pode-se relacionar a participação ampliada de atores sociais em diversos tipos de tomada de decisões, não só às mudanças de curso, como também às de reformulações, ou mesmo à criação de cursos alternativos. A democracia participativa se organiza a partir de espaços deliberativos, como conselhos, audiências públicas, consultas públicas, orçamento participativo, e outros. Ela é vista como ingrediente indispensável para a transformação social. volume

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Weffort (1992, p. 85) defendeu a inter-relação da efetivação da cidadania a uma sociedade justa e igualitária, a ser concretizada pela estratégia cidadã e efetivada na luta pela consolidação da democracia participativa. Conforme ficará demonstrado neste trabalho, os espaços deliberativos se revelam como fortes estruturas competitivas controladas por grupos ou pelo mercado. Vários são os fatores que fortalecem essa conclusão, que começa pelo desequilíbrio (estrutura de poder desigual), inexperiência e desinformação da população, contaminação pela política de conformação e clientelismo, baixa qualificação na condução dos trabalhos, grau reduzido de efetividade dos resultados, mudanças constantes nas regras do jogo, caminhos de negociação precários, que são manipulados e tensionados, entre outros fatores. Em decorrência desses problemas enumerados, fica difícil desconstruir a imagem preconceituosa existente pela falta de efetividade na prática da democracia participativa. Evidente, entretanto, a existência de um grau de complexidade para obtenção de sucesso nessa prática, que perpassa pela distância entre o ponto de partida (proposta) e o consenso (resultado), adicionando ao contexto o melindre da própria análise da racionalidade que envolve o objeto de deliberação, considerando-se, ainda, que as sociedades envolvidas têm como traço característico a diferença. Observa-se que o processo participativo tem abrangência de “deliberação pública ampliada” na relação com os atores sociais e precisa “do adensamento da participação” (SANTOS e AVRITZER, 2002, p. 77), para que sejam manifestadas as influências políticas e sociais, nos diversos tipos de tomada de decisões. Nesse viés, Aragão (2013, p. 33) afirma que “(...) se pretendemos espaços de debates úteis, não podemos defender o diálogo pelo diálogo. O facto de os cidadãos se fazerem ouvir não basta”, ratifica a necessidade de alargar a visão acerca do processo participativo e diz que ao se tornarem espaços para diálogos inconsequentes nada resultam “porque não há garantia de que as preocupações expressas sejam levadas a sério, de que os pedidos formulados sejam atendidos, de que as queixas apresentadas sejam investigadas, de que as sugestões sejam seguidas.” (ARAGÃO, 2013, p. 31). Pode-se, então, afirmar que a democracia participativa tem como meio os arranjos institucionais criados pelo governo e depende de participação ampla 328

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das camadas sociais, decorrente do fortalecimento da cultura política e cívica de interesse ao coletivo, e tenha, também, como principal orientação política, o social redistributivismo. No tocante à participação popular no Pehis do Tocantins, verifica-se que, embora houvesse previsão metodológica de atuação ativa da população, ela não se concretizou na prática, em qualquer etapa. A “participação popular” designa o estabelecimento institucional, por parte de um governo, de critérios políticos que permitam à sociedade civil, de forma geral, participar das decisões públicas. Pela tradição da Ciência Política, a sociedade civil é compreendida especialmente na sua anteposição à sociedade política, ou mesmo Estado, para alguns teóricos desse campo, que é a esfera das relações sociais que possui a prerrogativa de definir os rumos da “res publica” (coisa pública, interesses do povo). Assim, a sociedade civil consiste na esfera privada das relações sociais, em que as pessoas tecem, individual ou coletivamente, as suas demandas e as estratégias de intervenção para a sua satisfação. Portanto a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), institui a democracia participativa ao atribuir o exercício direto do poder pelo povo. Nesse estudo especificamente se destacou, para fundamentação dos argumentos postos, a regulamentação do Capítulo da Política Urbana pelo Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001) que instituiu no seu art. 2º a gestão democrática da cidade e garantiu esse exercício pleno no seu art. 43 por meio das discussões públicas. 5. conclusões O processo de construção do Pehis do Tocantins deveria ser conduzido com maturidade política. Porém, pode-se concluir com o estudo realizado, embora, segundo os relatórios produzidos, tenha sido elaborado dentro dos critérios técnicos exigidos pela legislação vigente e cumprido as etapas metodológicas propostas, não ter sido demonstrada a real possibilidade de eficiência da sua implantação futura, o que compromete as garantias constitucionais do direito à moradia e da democracia participativa. Verifica-se, como consequência, excelente diagnóstico e interpretação técnica dos resultados, mas não há submissão pública de forma que se esgotem as questões conflituosas, senão buscando consenso, ao menos permitindo os registros das divergências. Nota-se, no processo de construção do Plano, a ausência da efetiva participação popular, que deveria volume

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ocorrer por meio de intervenções concretas nas discussões públicas. Porém, as chamadas discussões públicas preconizadas ocorreram em números reduzidos e insuficientes, com baixa qualidade, em locais que dificultaram o acesso ao público diretamente interessado na questão, e não contemplou os cânones da democracia participativa. 6. referências AMORIM FILHO, Oswaldo Bueno; RIGOTTI, José Irineu Rangel. Os limiares demográficos na caracterização das cidades médias. Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 13. Ouro Preto: Anais, 2002. Disponível em . Acesso em ago. 2012. ANDRADE, Thompson Almeida; SERRA, Rodrigo Valente. (Org.) Cidades médias brasileiras. Rio de Janeiro: Ipea, 2001. ARAGÃO, A. Ensaio sobre a construção europeia e a reinvenção da democracia, a propósito dos diálogos com os cidadãos. In: (Org.). CORREIA, F. A. et. al. Estudos em homenagem a António Barbosa Melo. Coimbra: Almedina, 2013. pp. 17-34. BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. Arquitetura moderna, Lei do Inquilinato e difusão da casa própria. São Paulo: Estação Liberdade: FAPESP, 1998. _______. Política habitacional e inclusão social no Brasil: revisão histórica e novas perspectivas no governo Lula. [on-line] In: Revista eletrônica de arquitetura e urbanismo. Universidade São Judas Tadeu. 2008. Disponível em . Acesso em jun. 2012. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. _______. Lei Nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal. Diário Oficial da República Federativa do 330

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Brasil, Brasília, DF, 11 jul. 2001. Disponível em: Acesso em 2 jun. 2014. _______. MINISTÉRIO DAS CIDADES. Política Nacional de Habitação. Brasília,. 2004a. 103 p. Disponível em: . Acesso em 5 jun. 2014. _______. MINISTÉRIO DAS CIDADES. Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. Brasília, 2004b. 85 p. Disponível em: . Acesso em 5 jun. 2014. _______. Lei Nº 11.124, de 16 de junho de 2005. Dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS, cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS e institui o Conselho Gestor do FNHIS. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 17 jun. 2005. Disponível em: . Acesso em 2 jun. 2014. _______. MINISTÉRIO DAS CIDADES. Plano Nacional de Habitação. Brasília, 2009. 211 p. Disponível em: . Acesso em 2 jun. 2014. CAPEL, Horácio. Agentes y estrategias en la producción del espacio urbano español. Revista de geografia. Barcelona, v.08, nº 1-2, 1974, pp.19-58. CASTELLO BRANCO, Maria Luísa. Cidades Médias no Brasil. In: SPOSITO, Eliseu Silvério; SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão; SOBARZO, Oscar. Cidades médias: produção do espaço urbano e regional. São Paulo: Expressão Popular, 2006. CORRÊA, Roberto Lobato. O espaço urbano. São Paulo: Ática, 1989. CORREIA, Paulo V. D. Políticas de solos no planeamento municipal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. volume

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direitos fundamentais sociais e feder alismo Rogério Luiz Nery da Silva1 Yuri Schneider2

Resumo Este trabalho foi realizado, no contexto do grupo de pesquisa em direitos sociais da UNOESC (Universidade do Oeste de Santa Catarina), a partir de pesquisa bibliográfica e estudo de campo sobre direito regional e federalismo, ainda em desenvolvimento, na Europa (Itália e Espanha), somados a outros já tradicionais como Estados Unidos, Brasil e Suíça e constitui uma primeira aproximação de uma investigação rica a ser desenvolvida com maior aprofundamento nos próximos meses. Ao tratar-se de efetividade de políticas públicas sociais, ultrapassada a discussão de a quem cabe prestá-los, recai, seja total, seja parcialmente, sobre o ente estatal. É nesse ponto em que se faz indispensável conhecer a complexa trama de inter-relação entre os entes federados e suas competências para que se possa melhor avaliar a quem cabe executar as prestações de efetivação dos direitos sociais. Em linhas gerais, volta-se o olhar à necessidade de se bem estudar o fenômeno federalista, como instrumento prestacional dos direitos sociais de conhecimento obrigatório. O Federalismo pode ser estudado a partir de diversas matrizes, desde a sua concepção associativa e seu duplo objeto: a um fortalecer o todo com a reunião das partes – pela soma das forças de diferentes entes federados; a dois, melhor representar o todo pela divisão em diversos núcleos autônomos de exercício do poder – confere-se maior visibilidade aos exercentes do poder e maior acesso aos que dele precisem se beneficiar. A vertente funcional, 1 Pós-doutor em Constitutional Law (New York Fordham University School of Law – EUA), Doutor em Direito Público (UNESA), Professor-doutor da Disciplina de Políticas Públicas de Efetivação dos Direitos Sociais, no Programa de Pesquisa, Pós-graduação e Extensão da Universidade do Oeste de Santa Catarina – Mestrado em Direito (UNOESC); Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Direitos Fundamentais Sociais da UNOESC; Professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) e da Escola do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (FEMPERJ). 2 Doutor em Direito (Unisinos-RS), Professor-doutor no Programa de Pesquisa, Pós-graduação e Extensão da Universidade do Oeste de Santa Catarina – Mestrado em Direito (UNOESC); Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Direitos Fundamentais Sociais da UNOESC volume

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materializada por sua adoção como forma de governo comporta múltiplas considerações; entretanto, a faceta que mais suscita maior palpitação no debate científico-acadêmico é justamente a adequação ou não da fórmula de distribuição de competências – receita de sucesso ou de desastre na gestão política de um Estado.

Palavras-chave Federalismo; Administração pública; Políticas públicas; Direitos fundamentais sociais.

Abstract This essay was done in the context of the research group on social rights at Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC), from literature and field studies on regional law, which is being conducted in Europe (Italy and Spain) in addition to

some classical models like The united States, Brazil and even Swiss, which means a first approach on a never ending challenge. When dealing with the effectiveness of social policies, most outdated discussion is about who should provide them, either full or in part, on the state entity. It is at this point that it is essential to comprehend the complex web of interrelationships between federal and skills so that they can better assess who should run the social benefit for the realization of social rights. This paper seeks to draw attention to the urgent necessity of studying the federalist phenomenon in

its solidarity as an social instrument of required knowledge. Federalism can be studied from several arrays, the associative one, from its conception and its double object: a strengthening of the meeting with all parties – the sum of the power from different federal states, the two best represent the whole by dividing nuclei in several autonomous exercise of power – it gives a higher visibility to those who work on it and also greater access to those who will be in need of its benefit. Still in the functional aspect, embodied by its adoption as a form of government it involves multiple considerations, however,

the aspect that raises more discussions in the higher academic-scientific debate is precisely the adequacy or otherwise allocation formula for competence division under the Constitution – recipe for success or disaster on state management policy.

Key words Federalism; Public administration; Public policies; Social fundamental rights. 336

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1. introduçao – inefetividade de direitos sociais constitucionais A controvérsia acerca da fundamentalidade dos direitos fundamentais sociais, em verdade, trabalha a serviço de quem deve pagar a conta das políticas sociais, portanto, da administração pública e da sociedade, mais marcantemente do empresariado, por outro lado, defendendo os direitos sociais tem-se os próprios destinatários das prestações, parte engajada da sociedade civil, sem deixar de mencionar também a sempre presente parcela de atores políticos a serviço de determinada ação a demagógica ou em busca de benefícios próprios, tais como dividendos políticos, eleitorais ou não. A arquitetura constitucional fornece rico material ao debate acerca de uma suposta deficiência da positivação dos direitos sociais: O artigo 5º, parágrafo 1º, por exemplo, menciona a aplicabilidade imediata das normas reguladoras de direitos fundamentais. Agrega-se a esse raciocínio o conteúdo do art. 5º, parágrafo 2º, que reconhece status constitucional fundamental, operando como “cláusula de abertura ou de resgate interpretativo”, aos direitos identificados com os princípios (fundamentais) e o regime (social-democrático) da Constituição Brasileira, assim como os decorrentes dos tratados internacionais (de direitos humanos – em conjugação com o parágrafo 3º, do mesmo artigo), em que a República Federativa do Brasil seja parte. Por mais reduzida que seja a sua densidade normativa, essas normas já são aptas à “aplicabilidade imediata”, mesmo aquelas de índole programática, sob pena de serem reduzidas a um compromisso irresponsável do constituinte originário, segundo posição do próprio STF, em voto do Min. Celso de Mello. Canotilho (2001, 371) assenta com esmerada clareza e lucidez que quanto aos direitos subjetivos públicos, sociais, econômicos e culturais: a um, “são independentes, quanto a sua irredutível dimensão subjetiva, das imposições constitucionais e da concretização legislativa”; e, a dois,” mesmo na parte em que pressupõem prestações do Estado, são direitos originários a prestações (fundados na constituição) e não direitos a prestações derivados da lei”. As normas programáticas, em que pese a falta de “eficácia jurídica positiva”, enquanto não regulamentadas por legislação infraconstitucional, o mesmo não se diga de sua “eficácia jurídica negativa ou interpretativa ou de bloqueio”. volume

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São efeitos concretos ou concretizáveis das mesmas: a um, a promoção da estrita vinculação do legislador aos parâmetros por elas preestabelecidos, como normas definidoras de direitos fundamentais prestacionais, sendo-lhe vedado agir em sentido contrário, o que comparativamente se aproxima do conteúdo axiológico e semântico do princípio da proibição do retrocesso; a dois, a “suspensão da eficácia” de leis e atos normativos editados na vigência da nova Constituição e que com elas conflitem, pelo mecanismo da necessária e vinculativa “declaração da inconstitucionalidade”; a três, a revogação tácita de leis ou dos atos normativos anteriores, cujo conteúdo se mostre contrário, pelo mecanismo da “não recepção”; a quatro, serem as referidas normas programáticas situadas como parâmetro interpretativo ou integrativo de normas jurídicas outras ou de lacunas do ordenamento. Canotilho aponta que “direitos subjetivos a prestações, mesmo quando não concretizados, existem para além da lei, por virtude da Constituição, podendo, podendo ser invocados (...), contra as omissões inconstitucionais do legislador.” Também é prestigiada pelo direito brasileiro a possibilidade de invocação ao cumprimento – bem defendida pelo dileto professor lusitano, quando identificada a omissão legislativa. Entretanto, por aqui, ela se opera com ainda maior desenvoltura, pois viável a arguição também em sede judicial. O constituinte brasileiro fez-se arrojado, ao oferecer soluções jurídicas, para além (ou depois) das políticas – é claro, que se põem a constituir o legislador em mora constitucional legislativa e notificá-lo para que adimpla seu dever constitucional, o que pode fazer por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) e do Mandado de Injunção (MI). Esses instrumentos: um de emprego concentrado e abstrato, o outro de emprego difuso e concreto, aqui serão pouco detalhados por não se constituírem objeto central do presente trabalho; quanto à forma operação, contrapõem-se: a Tese Não-concretista; a Tese Concretista Geral; a Tese Concretista Individual, esta última subdividida em: Concretista Individual Direta e Concretista Individual Indireta. Dentre os argumentos dos contrários à eficácia fundamental dos direitos sociais, um dos mais usuais é negar a fundamentalidade dos mesmos, pelo emprego alternado ou conjunto de 3 (três) argumentos topográficos, registre-se, de duvidoso embasamento teórico: 338

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O primeiro desses argumentos se põe quanto ao posicionamento físico, no texto da Constituição Brasileira, como cláusulas pétreas, apenas dos direitos individuais, sem menção expressa aos direitos sociais (art. 60, parágrafo 4º, inciso IV); a assertiva francamente combatível por simples análise igualmente literal da denominação do Título II, da Constituição, - “Dos Direitos Fundamentais”, que engloba a ambas as espécies: o capítulo 1 (artigo 5º) – Dos direitos individuais e coletivos e o capítulo 2 (artigos 6º e 7º) - Dos direitos sociais. O segundo argumento topográfico da divisão entre direitos individuais e direi-tos sociais também se desdobra sobre o fato de estarem posicionadas, na classificação operada por Bobbio, como diferentes gerações de direitos humanos, portanto, detentoras de também distintos graus de fundamentalidade, atribuindo-se aos sociais a caracterização como “direitos de 2ª ordem”; contra a referida estratégia, apresenta-se o princípio da historicidade dos direitos humanos, que reconhece a evolução do reconhecimento dos direitos humanos, segundo processo gradual que acompanhou a própria luta da sociedade, primeiro, pela liberdade (Sec. XVIII); depois, pela igualdade (Sec. XX), portanto, em nada se relacionando qualquer juízo comparativo de valor entre esse direitos. O terceiro argumento, também topográfico, ainda como variante dessa mesma linha de sustentação, reside no fato de os direitos individuais e sociais terem sido, quando objeto de pactuação pela Organização das Nações Unidas, posicionados em diferentes documentos, a saber: a um, o Pacto dos Direitos Civis e Políticos e, a dois, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais também é utilizado como justificativa de tratamento diferenciado em termos de cogência e fundamentalidade; igual sorte dos argumento anteriores se projeta sobre esse último manifesto denegatório da eficácia fundamental, pela simples invocação do princípio da indivisibilidade dos direitos humanos, que não admite segmentação axiológica entre os mesmos, qualquer que seja a razão taxionômica de organização dos mesmos em classes, espécies, tipos etc. Certo é que os direitos sociais tem assento constitucional e como tais são dotados de fundamentalidade, em diferentes graus e, segundo a relação de pertinência com cada indivíduo da sociedade, sendo compreensível que as limitações de recursos do Estado não permitem entregar todos os direitos sociais a todas as pessoas componentes da população (tese de reserva do financeiramente volume

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possível), o que seria utopicamente desejável que se pudesse prestar (tese da máxima efetividade das normas constitucionais dirigentes), mas, de outra sorte, tampouco se admite que determinada parcela dos indivíduos humanamente considerados possa viver abaixo do nível mínimo admissível de dignidade (tese do mínimo existencial). Sarlet (2005, 288) registra a efetiva dependência de fatores econômicos e jurídicos para o atendimento de direitos sociais prestacionais positivos, o que consubstancia verdadeira limitação fática à efetivação desses direitos, que por essa mesma razão, são ditos como dotados de relatividade, ao se verem condicionados: por vezes, à disponibilidade de recursos públicos; por outras, à necessidade de interposição legislativa para a sua regulamentação. Quando cabalmente demonstrada, por meio de fatos e balanços de custos e resultados administrativos, a Teoria da Reserva do Financeiramente Possível (de origem tedesca), pode apresentar-se como excludente de responsabilidade quanto à obrigação administrativa no financiamento dos direitos sociais, argumento segundo o qual, o Estado somente é dado por obrigado, dentro dos estritos limites que lhe sejam de razoável realização, sob a ótica material, em função da respectiva necessidade a ser suprida e do que ela representar em termos de interesses jurídicos legítimos dos indivíduos, isolada ou coletivamente considerados. Para o atendimento ao arranjo fático entre a necessidade de suprir as demandas sociais da população e de otimizar o necessário emprego de recursos sabidamente escassos, mais clara se mostra a inter-relação poder econômico versus efetividade; de outro lado, ante a observância obrigatória do Princípio Republicano da Eficiência, pela Administração Pública – direta, indireta ou descentralizada, a menor pujança econômica não serve de “salvo conduto” ao Estado ou seus representantes, face à omissão ou deficiência, no plano concreto, de seu dever prestacional dos serviços públicos, quer parciais, quer integrais. De tudo o que aqui se expõe quanto à efetivação dos direitos fundamentais sociais, resulta clara a imprescindibilidade do debate e a busca da harmonia, mediante a ação horizontal e conjunta – cooperativa, de todos os entes federados, em todos os níveis, conforme o esboço federativo do Estado considerado, pois certo também é que quanto à forma de federalismo, cada Estado acaba por desenhar, 340

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com os fatos, o seu próprio modelo, não sendo nada fácil – já pontuado na visão iheringiana – forçar o enquadramento da realidade aos standards preexistentes. O Federalismo não apresenta uma dimensão estática em dimensão e no tempo, ao contrário, comporta arranjos dinâmicos, aptos a adaptarem-se as necessidades de cada sociedades, a cada tempo, como forma intuitiva de cumprimento do mandamento de Lassale de conformação da realidade constitucional aos “fatores reais de poder”. 2. o arr anjo feder ativo Como o Federalismo pode ser estudado a partir de diversas matrizes, será na concepção associativa com seu duplo objeto: o de somar para fortalecer o todo pela resultante e o de dividir, por muitos centros de poder em busca da eficiência ótima, bem apropriada se mostra a lição extraída da aproximação entre Federalismo e Democracia por Oliveira (2010, 21), na qual se distingue o “federalismo para unir” do “federalismo para manter a união”, em que o primeiro protege os cidadãos do excesso de poder pelo ente central, em esforço contramajoritário antitirania, de modo a perseguir uma conjugação de forças capaz de limitar o poder central. Portanto, infere-se a paradoxal convivência entre dois aspectos aparentemente contrapostas: manter a coesão entre as partes e respeitar os particularismos de cada uma delas. Garcia-Pelayo (1984, 218), a seu turno, menciona a unidade dialética de duas tendências contraditórias: a unidade e a diversidade; também relativo a essa dicotomia, Torres (2004, 126) aponta a tensão estabelecida no pacto federativo, segundo a qual há uma conjugação de elementos para fortalecer o poder central e uma especial atenção em respeitar o teor autonômico dos entes federados (subnacionais). Realizada esta provocação inicial, vejamos a ideia de federalismo, que decorre do vocábulo latino “foederis”, a significar “associação”; também, de igual matiz, a relação entre o Estado Federal e seus entes políticos é estabelecida mediante o traçado de objetivos comuns, que por isso mesmo operam de forma integrativa, formando uma liga indissociável, com o intuito de constituir um único estado soberano, embora seus componentes guardem para si a prerrogativa de atuação com autonomia, cuja noção a federativa, por sua vez, se manifesta sob quatro volume

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vertentes predominantes: 1) auto-organização, 2) autogoverno, 3) autoorganização e 4) auto-administrarão. A um, auto-organizar-se significa realizar as escolhas, em termos de decisões políticas fundamentais, tais como a definição da forma de estado, da forma de governo, do regime de governo, segundo sua própria autodeterminação, mediante a identificação dos legítimos interesses dos governados. A dois, autogovernar-se engloba nomear seus governantes e servidores, criar seus órgãos e de realizar as escolhas políticas atinentes aos objetivos nacionais, pelo traçado de políticas públicas supremas – em nível de planejamento estratégico estatal (político, econômico e social) a orientar o desenho das gerais a estas subordinadas, conforme a política conjuntural. A três, auto-legislar refere-se ao exercício legiferante sobre temas de interesse regional, segundo a observância das normas legislativas insculpidas na Constituição, conforme as competências a si distribuídas, dentre as diversas esferas estatais: federal, estadual, municipal e distrital (esta última cumulativa das duas anteriores); pode dar-se de forma privativa, quando restrita a um único tipo de ente federativo ou concorrente, quando compartilhada por dois ou mais tipos de entes distintos. A quatro, por derradeiro, auto-administrar-se realiza a própria administração dos interesses públicos, conforme as modalidades de exercício objetivo ou material, segundo o magistério de Moreira Neto (2006, 300 et seq), ou seja: prestação de serviços públicos, aplicação do poder de polícia (regulatório, fiscalizatório e coercitivo), implementação de fomento público e intervenção do Estado na esfera privada. Equívoco, entretanto, é considerar sinônimos: federalismo e estado federal. Não resta dúvida que o Estado Federal adota formalmente as noções do federalismo, mas tal assertiva não torna isso uma exclusividade sua. Ao contrário, hoje, muitos estados tradicionalmente unitários exercitam uma descentralização do exercício do poder em seus territórios, patrocinado pelo próprio poder central ou, no mais das vezes, por meio de pressões e esforços de iniciativa regional, complementada pelo poder local (TORRES, 2012, 17). Na visão de Silva (2010, 550), entretanto, há uma distinção entre a descentralização operada nos estados federais – que seria político legislativa, e a dos 342

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estados regionais, em que a autonomia se faria predominantemente na vertente político-administrativa, portanto, em planos distintos, conforme a formalização do compromisso com a forma de governo. A Itália é um exemplo de estado regional, composto de 20 (vinte) regiões, com descentralização de autonomias legislativas e administrativas em geral, dadas por determinação da própria constituição italiana que, desde 1948, menciona “reconhecer, proteger e promover a autonomia local”, muito embora, tal previsão só tenha vindo a ser operacionalizada de modo geral, bem mais recentemente, no último quartel do século XX, pois inicialmente só as autonomias especiais existiam. Hoje, cada região possui um Conselho Regional, que se encarrega da legislar no interesse regional. O Executivo é exercido pela Junta Regional, cujo presidente é também o presidente da região. As regiões são compostas por Províncias, num total de 110 (cento e dez) e estas divididas em Comunas, em número total de 1810 (mil oitocentos e dez). A Itália caracteriza um estado regional heterogêneo, pois há duas classes de regiões com distintas autonomias. As que detêm autonomia com estatuto especial, em número de 5 (cinco), obtiveram suas autonomias por fatores étnicos, culturais, linguísticos ou geográficos e possuem uma espécie de lei orgânica, com status constitucional, que lhes garante ampla autonomia, podendo, por exemplo, arrecadar e reter consigo grande parcela da receita dos tributos, são elas: Sicília, Sardenha, Trentino-Alto Ádige, Veneza-Júlia e Vale D’Aosta. Já as que detêm autonomia com estatuto ordinário, no total de 15 (quinze), foram estabelecidas nos anos 1970, justamente com o fim de descentralizar o exercício do poder estatal pelo regional; muito embora a autonomia financeira ainda seja tímida, a reforma constitucional de 2001 ampliou a autonomia dessas regiões e reduziu os controles sobre as mesmas, como, por exemplo, pela retirada dos comissários do governo central. Também digno de nota é o caso da Espanha, enquadrada como “estado autonômico”, com modelo de descentralização proposto pela Constituição de 1978, no contexto da transição do regime franquista para a democracia, quando se passou a reconhecer o direito à autonomia das nacionalidades componentes do estado espanhol e das próprias regiões – Comunidades Autônomas (17) e cidades autônomas (2): Melilla e Ceuta, que, ao formularem os seus estatutos volume

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comunitários, propuseram o desenho e o alcance de suas respectivas autonomias, a fim de serem homologados pelo poder central e confirmadas as abrangências de suas autonomias, sendo as comunidades, portanto, protagonistas de sua própria autodeterminação – exemplo de perseverança política. Registra-se, hoje, um impasse em torno do debate político quanto a constitucionalidade do Estatuto da Catalunia, que segundo o poder central, teria extrapolado os limites conceituais da autonomia. Por esses dois exemplos é que entendemos não haver uma associação direta entre o grau de autonomia e a opção formal pelo modelo unitário ou federal, uma vez que, tanto na Itália como na Espanha – estados de índole regional, embora se tratem de estados unitários descentralizados, a noção de centralização do poder passa longe; possuídas por intenso pensamento federalista, sempre estimulado pelas elites intelectuais e políticas locais e regionais, pode-se dizer, sem embargo, que o grau de descentralização e de autonomia vivido por suas regiões, por vezes, ultrapassa sem margem a exagero o de muitos estados formalmente declarados repúblicas federativas, mas que apresentam uma concentração massiva de poder no ente central da federação, em detrimento da autonomia dos entes federados periféricos. A fim de demonstrar que o modelo federalista também não se aplica apenas aos estados de grande extensão territorial, colaciona-se o caso suíço, no qual, o exercício do poder se faz repartido pelas atuais vinte e seis unidades autônomas, denominadas “cantões”, que funcionam como estados federados. Apesar de historicamente denominado o estado suíço como Confederação Helvética, ao ponto de, nos dias atuais, ainda se empregar nos veículos automotivos a identificação pela sigla “CH”, isso não reflete na realidade uma “Confederação” – em sua concepção clássica, pois não mais por se vê “composta por entidades soberanas, ligadas entre si por um tratado, a formar um ente igualmente soberano”. A Confederação nasceu de reunião por intermédio da Carta de 1291, entre as regiões de Uri, Schwys e Unterwalden, depois ampliada pela adesão de Berna, Lucerna e Zurique. No século XV, a Confederação foi expandida a oito regiões, com a incorporação de Glarus e Zug, conquistadas pelos Helvéticos aos Habsburgos, depois, se agregaram como “condomínios”: o Aargau, o Thurgau e o Ticino, que seriam geridos em conjunto por mais de um Cantão. Posteriormente 344

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se associariam mais regiões como o Friburgo, Appenzell, Schaffhausen e Saint Gallen, dentre outras3. A reunião dos cantões, originalmente soberanos, sob um governo central, ao qual entregaram determinadas competências, mas, ainda assim, conservando significativas atribuições administrativas e legislativas, caracterizou marcante autonomia. Hoje são vinte e seis cantões autônomos, reunidos de forma federalista, cada qual com uma constituição e leis próprias, mas que, no entanto, não podem colidir com a legislação federal. Todos têm seus parlamentos próprios, governos e tribunais independentes. Entre os cantões isoladamente considerados, verificam-se sensíveis diferenças, desde os currículos escolares, passando pelas regras trabalhistas e previdenciárias até alcançar o sistema tributário. Nesse sistema4, o chamado Conselho Federal, os cantões e os municípios repartem as competências autônomas, administrativas, legislativas, de forma bastante semelhante ao que ocorre nas demais federações, dividem entre si as tarefas dos estados. Ao Conselho Federal competem tarefas expressamente atribuídas pela constituição federal, tais como a defesa externa. Já aos cantões, competem predominantemente os direitos sociais tais como saúde, educação e competência tributária; também os mais de dois mil e setecentos municípios exercem relativa autonomia local. O exercício do poder também registra uma respeitável atuação da população, pela adoção formal da democracia direta, como forma de governo. Além do direito de representação, pela eleição de parlamentares nos três níveis federais, os cidadãos podem deliberam sobre variadas matérias, tais como serviço postal, estrutura viária, custo dos serviços públicos e preço públicos, até mesmo a participação em organismos internacionais. Retomando a discussão pela ótica federalista, historicamente, a primeira manifestação federalista teve por berço a originária experiência norte-americana de formulação estatal, na sequência de sua libertação do domínio britânico, muito embora tenha adotado primeiramente o modelo confederativo, depois, substituindo-o pelo federativo. A iniciativa criadora oitocentista não teve referencial precedente na história humana, na busca da soberania, para preencher 3 Geschichte der Schweiz und der Schweizer, Schwabe & Co 1986/2004. 4 Disponível em: www.tugas.ch/guia-de-suica/federalismo-e-democracia-direta, acesso em 10.10.2013. volume

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os contornos do clássico trinômio estatal: povo, território e soberania, os colonos ingleses e o povo americano irromperam o movimento de separação do Estado inglês, tornando as treze colônias britânicas, instaladas na costa leste da América do Norte, independentes, sob a forma de um novo Estado confederado, modelo, até então, inédito. O modelo confederado, também identificado pela associação de diversos estados previamente existentes, tem por diferencial o fato de os entes formadores conservarem suas soberanias originárias e o aspecto jurídico-político de o liame de vinculação entre os mesmos se dar por intermédio de um tratado firmado entre os mesmos, acordo este que admite a possibilidade de denúncia, ou seja, autoriza a livre opção de retirar-se do grupo a qualquer dos entes formadores, hipótese caracterizadora da secessão da Confederação. Especial destaque à participação nesses episódios de Alexander Hamilton, James Madison and Jonh Jay, autores da obra The Federalist Papers, recentemente reproduzido em obra organizada por Kesler (1999, 27)5. “O Federalista”, em sua composição constou de 85 artigos, em que buscavam os autores convencer o povo de Nova York a aceitar a nova Constituição, fruto da Convenção da Filadélfia, com três aspectos centrais: a um, a adoção do Federação, em substituição à Confederação; a dois, discussões sobre a natureza humana e a necessária separação de poderes; a três, a conveniência da forma republicana de governo.

5 “After un unequivocal experience of the inefficacy of the subsisting federal government, you are called upon to deliberate on a new Constitution for the United States of America. The subject speaks its own importance; comprehending in its consequences nothing less than the existence of the UNION, the safety and welfare of the parts of which is composed, the fate of an empire in many respects the most interesting in the world. It has been frequently remarked that it seems to have been reserved to the people of this country, by their conduct and example, to decide the important question, whether societies of men are really capable or not of establishing good government from reflection and choice, or whether they are forever destined to depend for their political constitutions on accident and force. If there be any truth in the remark, the crisis at which we are arrived may with property be regarded as the era in which that decision is to be made; and the wrong election of the part we shall act may, in this view, deserve to be considered the general misfortune of the mankind. This idea will add the inducements of the philanthropy to those of patriotism, to heighten the solicitude which all considerate and good men must feel for the event. Happy will be if our choice should be directed by a judicious estimate of our true interests unperplexed and unbiased by considerations not connected with the public good.” (Hamilton, article 1)

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No caso americano, diversos episódios históricos, com especial destaque para a declaração da abolição da escravatura, constituíram vetores de estímulo à ruptura com o modelo vigente, fazendo eclodir sangrento conflito civil que perduraria por anos, como fator de pressão; também o exercício da soberania conservada pelos estados, sem limites bem definidos, contribuiria para o estabelecimento de sérias tensões entre os estados “tidos” por unidos, com a adoção de comportamentos que descumpriam os ditames da confederação, mas que restavam imunes a sanções pelo fato de serem os estados soberanos. Com isso, identificava-se a necessidade de os estados renunciarem às prerrogativas de soberania, para substituírem-na pelas da autonomia, submetida, portanto, hierarquicamente ao estado federado soberano. Renovava-se o desenho político dos Estados Unidos da América, agora, mediante novo instrumento amalgamador – a adoção de uma constituição nacional federal, revestida de características de indissolubilidade, portanto, inibidora de qualquer desiderato separatista. Verificou-se, desta forma, a instauração um liame de relacionamento vertical entre os entes federados, ou melhor, entre estes e o ente central, no qual apenas o somatório de todos se investe das características e prerrogativas de estado soberano, como se pode diretamente confirmar em consulta ao constante da Constituição dos Estados Unidos da América, de 1787, como por exemplo, o art. 1º, seção X, 1 e 2, ao cuidar das limitações impostas aos estados-membros e do art. 4º, este versante sobre o relacionamento entre os estados-membros (ALVAREZ et NOVAES FILHO, 2008, 42-60). Embora os entes componentes exercitem a autodeterminação, consoante as competências traçadas pelo constituinte originário e mesmo derivado, tal arcabouço será representado pela autonomia federativa, concretizada a partir das atribuições concernentes à auto-organização, ao autogoverno; à auto legislação e à auto-administração, que, ao menos em tese, não se subordinam ou não se subordinariam à União. Justamente será o grau de inter referência, interdependência e mesmo interferência entre a União e os estados-membros que determinará pela adoção de um federalismo de equilíbrio ou um federalismo com deslocamento de poder: se a polarização da força se concentrar sobre a União, temse o federalismo centrípeto, se, ao contrário, concentrar poderes e atribuições em volume

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favor de maior autonomia dos estados-membros, tem-se o federalismo centrífugo, que no caso americano, a doutrina é convergente em apontar como o adotado. No estado federal, a Constituição se sobrepõe a todos os entes federados, estabelecendo uma força conformativa, que cumpre essencialmente três papéis principais: a um, a criação do Estado, em sua gênese formal, fixadas as interrelações entre os poderes constituídos e os entes federados; a dois, a limitação do exercício do poder pelo Estado e, a três o estabelecimento dos fundamentos de existência e validade da ordem jurídica a vigorar no Estado, a saber: A um, a “criação” do Estado, traduzida em três verbos principais: instituir, estruturar e organizar o poder. O “instituir” traduz a adoção da “decisão política fundamental”, conforme a teoria schmidtiana, ao que se determina a forma de estado, a forma de governo e seu regime, além de outras orientações político e mesmo ideológicas. O “estabelecer” destina parcelas de atribuições, segundo sua maior aderência legiferante, administrativa ou jurisdicional, para exercício por grupos de servidores estatais distintos, denominados “Poderes”, Legislativo, Executivo e Judiciário. Por fim, o “organizar” que também distribui parcelas de atribuições, denominadas por atecnia de “competências”6, aos entes federados nos quais se desdobra o estado federal. A dois, o papel que é o de impor limites ao exercício do poder pelo Estado se materializa por via de três matrizes: a) a separação dos poderes estatais, com base em sua independência, mas compensada sob a forma de harmonia balanceada por pesos e contrapesos (check and balances)7, na própria visão de Madison in Kesler (1999, 317-322) b) o proteção e garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos e, c) pelo cumprimento dos ditamens de interesse coletivo, de busca do bem comum, sob a forma da adoção de políticas públicas vinculadas, no plano maior, aos delineamentos constitucionais sociais, positivados como objetivos e fins do estado. 6 É voz comum no meio jurídico que o termo “competência” é de atribuição exclusiva do Poder judiciário, porque inerente à jurisdição; aos demais deve ser empregado tão somente o termo “atribuição” para designar as tarefas em relação às quais tem o poder-dever de exercitar as prerrogativas, cumprir e fazer cumprir as determinações constitucionais. 7 Mas, o que é o próprio governo, senão a maior das críticas à natureza humana? Se os homens fossem anjos, não seria necessário governo algum. Se os homens fossem governados por anjos, o governo não precisaria de controles externos nem internos”. (MADISON, The Federalist, art. 51, p. 317-322)

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Por derradeiro, a três, seu papel constitucional de posicionar a carta política no ápice da pirâmide jurídica, a servir de fundamento de existência e validade à ordem jurídica, fixando no seu próprio conteúdo positivado o devido processo legislativo, a partir do qual estabelece a formação das regras legislativas e se controla a hierarquia entre as normas jurídicas, já que – predominantemente – originadas do Parlamento, devem respeitar a Constituição, sob uma noção de supremacia e rigidez constitucionais necessárias. Nunca é demasiado refrisar que o liame constitucional federativo é impositivo, petrificado, sob a forma de “aliança indelével e eterna”, como pacto proibitivo de retirada ou afastamento dos entes federados, já que presente a indissolubilidade dos laços federativos. Sob o título de “defesa do Estado e das instituições democráticas”, as constituições nacionais costumam delinear institutos materiais e procedimentais voltados a salvaguardar seus interesses maiores, tais como a intervenção federal, o estado de sítio e o estado de defesa, variando, por certo, quanto à denominação, de estado para estado, mas sempre voltados a autorizar, excepcionalmente, comportamentos de preservação e regeneração, ante eventual e concreto risco à integridade nacional ou de suas instituições. O cerne da ideia federativa está em descentralizar poder, por meio da divisão ou distribuição de atribuições (competências), o que, por via de regra, segue critério de identificação regional pela chamada “predominância do interesse”, a partir de pertinência e aderência materiais, e, desde que devidamente observadas – em última análise – favorecem a preservação dos laços de harmonia entre os entes federados. Conforme a forma de distribuição das atribuições no contexto do estado federal, Pinto Ferreira (1989, 395) classifica a modalidade de federalismo adotada: A um, tem-se o Federalismo Dual, Clássico ou de Equilíbrio, no qual a repartição confere atribuições nominadas à União e restam aos Estados as atribuições residuais (não enumeradas) – forma original do modelo norteamericano. A dois, tem-se o Federalismo Neoclássico, no qual se verifica uma gradual concentração de poderes em torno da União, conforme uma dinâmica centrípeta, modelo predominante na maioria dos países de pouca tradição federativa e de desenvolvimento recente. volume

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A três, tem-se o Federalismo Racional ou Hegemônico, no qual as atribuições em forma de competência legislativa se dividem, uma parte exclusivamente destinada à União e outra de forma concorrente entre a União e os estadosmembros – é o utilizado pela Alemanha, Índia e Canadá. A dinâmica da concentração de poderes pode se dar, tanto em relação aos estados (federalismo centrífugo), como em relação à União (federalismo centrípeto); pode ainda se verificar um equilíbrio entre a distribuição central e periférica no chamado Federalismo de Equilíbrio. 3. o feder alismo br asileiro – a evoluçao cooper ativa Enquanto os movimentos de independência ocorridos na América espanhola redundaram no surgimento de diversos estados, de origem comum, mas fundamentalmente distintos entre si, na América portuguesa, formou-se um único estado – o Império do Brasil, marcado pelo exercício centralizado do poder, a copiar o modelo de gestão colonial lusitano, em vigor por três séculos de dominação daquela corte. Tal opção, se de um lado, demonstrou favorecer a preservação da unidade territorial do novo país, ao contrário do ocorrido com os vizinhos de origem espanhola, que se fragmentaram em muitos estados de menor porte, por outro lado, dificultaria, o desenvolvimento regional, centralizando atenções, esforços, investimentos – e, por lógico, o crescimento – de determinadas áreas, onde se verificara maior efervescência política, econômica e cultural, para inconformismo das demais. Assim, embora historicamente centralista, o Brasil, com o advento da República, proclamada em meio às múltiplas crises políticas da monarquia centralista, tentava se afastar da instabilidade até ali reinante para buscar ingressar em nova realidade, inspirada nos auspícios da revolução industrial, aqui ainda incipiente, fora as iniciativas do Barão de Mauá. Contudo, o risco de eventual e até provável “contrarrevolução” conservadora, patrocinada pelos monarquistas, ali politicamente derrotados, foi decisivo para a escolha do novo regime de governo. Explica-se: O sistema federativo brasileiro, adotado pela República, era mais coerente com o extenso perfil territorial do novo Estado brasileiro, portanto, mais identificado 350

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com o atendimento das necessidades de exercício dos poderes regionais e locais e das necessidades do povo brasileiro, o que se firmou mediante o estabelecimento de um acordo costurado entre os republicanos “revolucionários” e as expressões políticas das províncias, dali em diante, alçadas à condição de estados-membros da federação. Os Estados, uma vez elevados à condição de unidades federativas autônomas, serviriam de cordão político de proteção da República, contra as potenciais iniciativas de se restaurar a monarquia, ainda latentes, pois, por certo, não admitiriam retornar à condição de meras províncias sem autonomia. Com isso, ao menos em tese, o exercício do poder estaria encaminhando-se para ser distribuído de forma mais equitativa pelo espaço territorial brasileiro, ou seja, fortalecia-se o Estado brasileiro, por manter-se unido – único, mas, desta feita, descentralizava-se a prestação das funções estatais por diversos núcleos de poder regionais, que seriam, certamente, os primeiros a reagir a qualquer inspiração de reinstalação monárquica, portadora da ameaça de redução de sua recém-conquistada autonomia, ante o retorno à condição de províncias imperiais desprovidas da mesma. Pretende-se, com isso, denunciar que a elevação das províncias ao status de estados-membros, historicamente, foi muito mais uma decisão estratégica, em termos de disputa do poder, do que, efetivamente, viesse a representar um amadurecimento da aptidão daquelas unidades para o exercício de uma autonomia autêntica e efetiva. A República federativa de 1889, embora representasse uma descentralização do poder pelos diversos núcleos estaduais, na prática, o faria de forma muito tímida, pela própria incapacidade dos novos estados em se firmarem como pólos atrativos do poder. A modéstia dos novos estados-membros foi, portanto, decisiva na configuração de uma federação de origem distribuidora, mas, de configuração final centrípeta, com notada distribuição centralista do poder. O Brasil ao adotar o modelo federal a partir de um estado unitário para reparti-lo em núcleos de exercício de poder regional, derivados das antigas províncias, atribuiu-lhes inédita autonomia federativa, para cujo exercício não se encontravam suficientemente amadurecidas; com isso, percorreu caminho volume

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contrário dos Estados Unidos, pois estes consolidaram o seu federalismo a partir de uma experiência revolucionária e convergente em torno de um poder central, com 13 Colônias que preexistiam separadamente, submissas à Coroa Britânica e que ali lutavam por sua soberania, segundo ideal confederativo. Ramos (2000, 162) considera o caso americano um exemplo de situação em que o povo precedeu ao poder; já no Brasil, o poder precedeu ao povo, pois a população brasileira recebera um pacote fechado, pronto, sem ter tido a nem a capacidade, nem a possibilidade de participar do processo gestacional da nova forma de governo, enquanto a americana viveu intensamente cada passo do processo de criação do estado norte-americano. Portanto, o Brasil era um estado independente, sob regime monárquico, com governo unitário e centralizador – daí verificar-se sua pouca vocação à autogestão por parte das províncias, acostumadas à concentração do poder sobre o Governo Central, este mesmo nitidamente ligado à metrópole originária; já os Estados Unidos eram colônias em busca de independência, pugnando pela liberdade – daí o espírito de autodeterminação muito mais instigado, sua opção buscava renegar a monarquia londrina e sua experiência de vida política, até ali, era de existência separada umas das outras e, embora fossem colônias, viviam separadas e com parcelas de poder descentralizado, o que também corroborava sua aptidão à autonomia. O Brasil adotou inicialmente o federalismo dual, com a tradicional atribuição de poderes à União, restando aos estados, as matérias não expressamente enumeradas (omissas) como forma de competência residual, o que de certo modo representou, ao menos formalmente, uma tendência à descentralização. Magalhães (2000, passim) considera que as Constituições mais democráticas desvelaram tendência descentralizadora em favor dos estados, mais abertas à participação dos estados, tal como se sucedeu com a constituição de 1934 – primeira a estabelecer competências concorrentes entre a união e os estados-membros ou a de 1946 que restaurou a democracia, após a ditadura varguista. Em sentido oposto, reitera o autor, a Constituição de 1937 – de natureza sóciofacista – fortaleceu de forma demasiada o poder central, alterando, como aparato de controle político, a repartição de competências, em favor da União e restringindo a participação dos estados na seara de matéria concorrente. Já a constituição de 1967 e a EC nº. 1/69 são consideradas nominais segundo a classificação löewenstei352

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niana, inspirando uma Federação igualmente nominal, com intensa concentração em favor da União, havendo quem considere uma regressão ao modelo unitário descentralizado, denominado por certos autores de “Federalismo de Integração”, levando a confundir as figuras da Federação e da União. A Constituição de 1988 remodelou de forma radical o federalismo brasileiro, ao adotar novos paradigmas democráticos, reconhecendo a autonomia aos municípios, que somam mais de 5.500 unidades de federação; tal medida, por si só, se mostrou razoavelmente discutível, desde seus obstáculos ao autofinanciamento do orçamento municipal, passando pela natural dificuldade de controle de accountability, até alcançar avaliação mais requintada quanto aos óbices à governabilidade; conferiu-se ampla liberdade, sem estipular proporcional sistema de controle, a entes, muitas das vezes, despreparados para a autogestão política. Ademais, se de um lado receber amplas competências pode soar como outorga de poder e certo grau de discricionariedade, por outro, também confere deveres vinculativos diversos, pelos quais os municípios passaram a ser chamados a responder, em solidariedade com os estados e mesmo com a União8 por diversos serviços públicos. Assim, detentores de orçamentos significativamente menores, os municípios também passaram a se ver responsabilizados9 também em caso

8 Exemplos do inter-relacionamento União-municípios são: a um, o Sistema Único de Saúde (SUS), conjugado pelas esferas Federal e Municipal, com repasse de recursos da União para as prefeituras; a dois, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), promotor do: Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e do Programa de Assistência Integral à Família (PAIF); a três, registram-se diversos convênios para expnsão da oferta de moradias e para fomento das atividades educacionais. 9 O Supremo Tribunal Federal assim decidiu a respeito: “O art. 30 da Constituição Estadual (CE) impõe aos Municípios o encargo de transportar da zona rural para a sede do Município, ou Distrito mais próximo, alunos carentes matriculados a partir da 5º série do ensino fundamental. Há aqui indevida ingerência na prestação de serviço público municipal, com reflexos diretos nas finanças locais. O preceito afronta francamente a autonomia municipal. Também em virtude de agressão à autonomia municipal tenho como inconstitucional o § 3º do art. 35 da Constituição estadual: ‘as Câmaras Municipais funcionarão em prédio próprio ou público, independentemente da sede do Poder Executivo’. Isso é amplamente evidente. (...) Por fim, é ainda inconstitucional o § 3º do art. 38 da CE, já que os limites a serem observados pela Câmara Municipal na fixação dos subsídios do Prefeito e do Vice-Prefeito estão definidos no inciso V do art. 29 da Constituição de 1988, não cabendo à Constituição estadual sobre eles dispor. Há, aqui, afronta à autonomia municipal.” (ADI 307, voto do Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 13-2-2008, Plenário, DJE de 1º-7-2009.) volume

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de prestação deficiente de certos serviços públicos, sobre os quais não teriam atribuição se não tivessem sido alçados à condição de autônomos. As alterações, portanto, não se mostraram suficientes para estimular uma repartição mais ajustada das competências entre os entes federativos, ao contrário, criou-se uma euforia pelas novidades, mas que em muito pouco representou avanço em termos de realidade social. As matérias de importância nodal permanecem cobertas pelo manto da exclusividade da União, em detrimento dos Estados e Municípios, o que, para massiva parcela da doutrina nacional, se compreende pelo histórico de presidencialismo adotado por regime de governo. A discussão sobre a eficácia da prestação dos direitos sociais previstos pelo texto constitucional de 1988 aos administrados, notadamente em relação ao desenvolvimento e implementação das políticas públicas de efetivação desses direitos, perpassa a questão de exercício do poder, seja quanto a sua distribuição horizontal – na separação entre as funções públicas: Legislativa, Administrativa e Jurisdicional, seja quanto a sua distribuição vertical – na separação entre as esferas dotadas de autonomia no Estado brasileiro: União, estados-membros, municípios e Distrito Federal –, a partir do modelo federativo sui generis da República Federativa do Brasil. A título de nota, as qualificadoras “horizontal” e “vertical” acima empregadas são racionalmente compreensíveis: a primeira, a partir da noção de equidistância e inexistência de hierarquia entre os poderes constituídos, que, mesmo independentes entre si, se veem equilibrados pelo sistema de freios e contrapesos (check and balances), podendo se entrelaçar em controle mútuo, cada um aos demais, pelo exercício de funções atípicas, expressamente autorizadas pela Constituição – daí, falar-se em horizontalidade, em prestígio a certa igualdade; já a segunda qualificadora, embora originariamente coberta pela mesma presunção de igualdade de forças entre as esferas federal, estaduais e municipais, em um contexto de federalismo dual tradicional, finda por se mostrar, paradoxalmente verticalizada, dada a concentração massiva da força nas mãos da União, em detrimento dos estados e municípios, o que se verifica mediante breve esforço de leitura histórica Ao longo deste mais de um século de República, o quadro político da federação sofreria alguns ajustes, notadamente com o advento da Constituição de 354

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1988, que elevou também os municípios ao status de entes dotados de autonomia federativa, mas, nem assim, se alterou o quadro de densificação do poder federal, já que a distribuição de atribuições federativas constitucionais prevê extenso rol de competências exclusivas (art. 21) e privativas (art. 22) da União, contra a improvável faculdade de delegação destas últimas (art. 22, parágrafo único), mediante a edição de lei complementar, em face de controvertida lista de atribuições legislativas que, embora concorrentes, se defrontam com um polêmico critério de suplementaridade, que, segundo a Constituição, em tese, autoriza os estados-membros (art. 24) e municípios (art. 30)10 a legislarem sobre aquelas matérias, em atendimento de suas particularidades. A União, em tese, ocupa-se das questões maiores, pelo exercício de poderes gerais relativos às políticas de governo, mas, mesmo em sede da sua competência privativa, em matéria tais como exportação, importação, seguridade social, educação e política monetária, pode-se trabalhar com a faculdade de delegar algumas dessas atribuições aos estados por meio de legislação complementar, consoante os preceitos do art. 22, parágrafo único da constituição de 1988, ultrapassando, portanto a noção de competências concorrentes do tradicional modelo de federalismo centrífugo, já insculpidas nos parágrafos 1º a 4º do artigo 24, da mesma carta, no qual concorrem matérias tais como as políticas econômica, financeira e tributária. Aos estados, portanto, além da prerrogativa de legislar suplementarmente à União para atendimento de suas peculiaridades regionais e locais, também poderá ser autorizado a legislar em matérias antes privativas à União. Além do que é de todo recomendável que ela trabalhe em conjunto com as unidades federativas, inclusive consultando-as quanto às questões que lhes possam afetar 10 O Supremo Tribunal Federal assim decidiu a respeito: “O Município pode editar legislação própria, com fundamento na autonomia constitucional que lhe é inerente (CF, art. 30, I), com o objetivo de determinar, às instituições financeiras, que instalem, em suas agências, em favor dos usuários dos serviços bancários (clientes ou não), equipamentos destinados a proporcionar-lhes segurança (tais como portas eletrônicas e câmaras filmadoras) ou a propiciar-lhes conforto, mediante oferecimento de instalações sanitárias, ou fornecimento de cadeiras de espera, ou, ainda, colocação de bebedouros. Precedentes.” (AI 347.717-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 31-5-2005, Segunda Turma, DJ de 5-8-2005.) No mesmo sentido: RE 266.536 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em 17-4-2012, Primeira Turma, DJE de 11-5-2012. volume

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direta ou indiretamente, respeitados os pontos de tangência com a competência municipal11. Surgida, portanto, a questão da busca do equilíbrio sobre como conciliar a manutenção da força central da União, sem nulificar a participação dos estados e, por outro lado, como conferir maior protagonismo aos Estados-membros, sem perder o foco dos objetivos e fins voltados à unidade nacional, a resposta que melhor se adequou foi pela implantação de um novo modelo federalista denominado Federalismo de Cooperação. No chamado Federalismo Solidário, superpõem-se as competências federais e estaduais, mas sob uma índole descentralizadora ou estimula-se a ação conjunta entre União e Estados-membros, segundo o chamado Federalismo Intergovernamental, no contexto do qual estes atores políticos atuam como parceiros para atendimento dos fins sociais, políticos e econômicos. O novo fundamento a compor o desenho federativo é o da cooperação, como forma inovadora de efetivar a descentralização, em maior ou menor grau, mas, sobretudo, pelo foco no fim a atingir: o interesse da coletividade. De forma concreta a cooperação se opera mediante a interação federal-estadual, em ideal de ajuda mútua e decisões consensualmente negociadas, superando o modelo dual originário de 1891, no qual se verificava certo antagonismo entre os entes federados, em disputa pela distribuição de atribuições, como forma de afirmação de seus poder e autonomia. Almeida (2005, 77) considera que a opção pelo federalismo de equilíbrio depende de diversas iniciativas e providências de governo para que possa frutificar da forma desejável. Assim, menciona, a um, a abertura aos estados das competências concorrentes, nos limites do preconizado pelo artigo 24 da Constituição, a fim de poderem legislar sobre temas que antes lhes estanques, como forma de 11 O Supremo Tribunal Federal assim decidiu a respeito: “Os Estados-membros são competentes para explorar e regulamentar a prestação de serviços de transporte intermunicipal. (...) A prestação de transporte urbano, consubstanciando serviço público de interesse local, é matéria albergada pela competência legislativa dos Municípios, não cabendo aos Estados-membros dispor a seu respeito.” (ADI 2.349, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 31-8-2005, Plenário, DJ de 14-10-2005.) No mesmo sentido: ADI 845, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 2211-2007, Plenário, DJE de 7-3-2008; RE 549.549 AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 25-11-2008, Segunda Turma, DJE de 19-12-2008.

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superação e estímulo à inovação; a dois, a descentralização de atribuições pelo estabelecimento de competências administrativas comuns também integra a noção de cooperação para o atendimento dos objetivos da federação; a três, a mitigação da supremacia da União para um maior equilíbrio entre as atuações administrativas e legislativas dos entes federados. Ocorre, para fins de triste registro, que isso nem sempre se dá mediante um amplo debate nacional. Em matéria de exportações, por exemplo, a edição da Lei Kandir suscitou severa insatisfação nos estados da federação, para o que a resposta mais ensaiada foi de que as medidas não foram adotadas pela União – em choque com os outros entes federados que lhe ombreiam em status hierárquico –, mas pela República Federativa do Brasil que nesse particular sobrepõe-se a todos eles. Além de outros nuances semânticos tais como a diferença doutrinária entre lei federal e lei nacional, embasada nos destinatários de cada lei aprovada no Congresso Nacional, quando tem por destinatários, a um, a esfera federal, ou seja, órgãos e interesses da União; a dois, a esfera nacional, quando se projeta em obrigatoriedade e executoriedade sobre todos na nação. A forma de administração adotada, desde a proclamação de República até a primeira quartel do século XX, portanto, se mostrou, mesmo com variações e matizes, centralista e burocrática, de postura privatista, com moldes europeus de rígida hierarquização financeira – política do “café com leite”. Em 1930, alterase a prevalência para o espaço público sobre o privado, inspirada no modelo rooseveliano, de origem norte-americana – de viés intermediário, permeado de ideário cooperativo, denominado New Deal – em razão da gestão inovadora e a índole interventora que promoveram resultados muito favoráveis nos anos seguintes à Crise de 1929. Em termos de auto-administração, em seguida verifica-se a introdução da noção de estado gerencial, sob as ondas do New Public Management e do estado gerencial europeu, por lá desdobradas com o pós II Guerra e serviriam para apresentar a alternativa de atuar como estado regulador, em substituição às noções de Estado liberal ou Estado-providência, dali já superadas. Essas inovações gerenciais implantadas na Europa também chegariam ao Brasil, embora com certo atraso (delay), pois, somadas ao quadro de sucessivas crises econômicas dos anos 70 (petróleo), 80 (mercado financeiro) e 90 (recessão econômica) do século XX, volume

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demonstrariam a necessidade de redução do tamanho da estrutura operacional do Estado e dos custos de funcionamento das máquinas estatais, cuja racionalidade financeira apontava para a inolvidável imposição de redução dos custos públicos. Nesse contexto, a dinâmica federalista brasileira, contudo, em que pese sua harmonia arquitetônica, provocou grandes descontentamentos os mais variados nos Estados-membros, desde o Sistema Político pela desproporcionalidade do sistema representativo em termos das regiões geográficas até quanto à questão de receita orçamentária, como por exemplo, a referente ao Fundo de Participação dos Estados na repartição das receitas dos tributos. Regis (2009, 1) consolida a título de sinopse histórica uma predominância de fraca concentração de poder em posse dos governadores, ao longo do período republicano, com especial destaque para o período do Estado Novo, regra só igualada pelo período de vigência do Plano Real, no governo Fernando Henrique, quando a concentração de poder nas mãos da União se fez mais intensa. Novo aumento apresentaria essa concentração de força em favor da União, durante os governos que se seguiriam, em dois mandatos de Luis Inácio Lula da Silva e no de Dilma Roussef, com a ampliação absurda do número de ministérios, explosão da máquina pública, superendividamento interno, com descontrolada emissão de títulos de dívida pública, maquiado pelo não endividamento externo, tradicional bandeira política empregada na crítica aos governos antecedentes. Os estados tem cada vez mais sua projeção encolhida, seja em termos do Fundo de participação respectivo, seja em termos de proeminência legislativa; poucas vezes se viu o poder tão concentrado. Exemplo da tensão federativa entre a União e os Estados-membros se viu, em 2005, alguns dos estados de maior força econômica, como os da região sul (RS, SC e PR) e o próprio Mato Grosso do Sul, ajuizaram perante o Supremo Tribunal Federal (STF) a ação cível originária nº 792 (Rel. Min. Carlos Veloso), a fim de discutirem como direito subjetivo à reparação pelas perdas financeiras, motivadas por desonerações de impostos sobre as exportações de produtos primários, pela consequente redução progressiva dos repasses da União aos estados, ferindo de modo letal os seus orçamentos estaduais, com risco à efetividade do próprio pacto federativo, ao caracterizar prática da concessão de isenção heterônoma, prática assaz vedada pela Constituição. 358

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A eficácia da política social (efetividade de direitos sociais), de certa forma, sofreu forte influência desse contexto histórico, mediante a intensificação de iniciativas voltadas a reformular a prestação dos serviços públicos, tais como saúde, educação e previdência, sob o aspecto financeiro, estimuladas pelo redesenho do arranjo federativo, em especial no tocante às responsabilidades atribuídas às distintas esferas governamentais no atendimento dos direitos sociais, tais como a educação, desde as muitas reformas administrativas pelas quais trilhou a nação, assim como pelas reformulações dos sistemas de saúde e educação, a guisa de exemplo, para cuja solução, agora, apontam como “moeda de troca”, o direcionamento dos royalties do pré-sal. O debate federativo tem uma potencialidade represada tão forte que constituiu tema dominante dos debates de tramitação da lei nº. 12.351/2010, reguladora da matéria, ao ponto de a concessão de compensações às indústrias petroleiras estrangeiras, em detrimento dos interesses internos, passar quase despercebida, diante da intensa e tensa guerra interna estabelecida pelas disputas entre os estadosmembros da federação pela repartição dos minguados 15%, quando o debate central deveria ter-se dado quanto à concessão ou não dos referidos campos de exploração, o qual deveria ter sido conduzido em nível nacional e permeado de maior transparência possível, especialmente, por se tratar de riqueza natural esgotável, tutelada pela via da preservação ambiental e constituir forma de exploração inédita, cujos risco ambientais são meras expectativas, sem estudos conclusivos. Em vez de, internamente, digladiar pela divisão dos ínfimos retornos em termos de royalties, poderiam os estados-membros, por intermédio do Senado da República, se contraporem à iniciativa da União de promover as rodadas de negociação dos lotes e áreas de exploração, sem que antes fosse consultada a nação sobre a conveniência de explorar ela própria os referidos campos, ainda que de forma mais distribuída no tempo, menos agressiva ao meio ambiente, e, por seguro, mais durável e quiçá também mais rentável para o povo brasileiro. 4. conclusões A vocação democrática do Pacto Federativo Brasileiro, detentor de uma arquitetura das mais arrojadas, com um elevado grau de abertura e visão inclusiva extremamente plural se fazem reconhecer hoje com amplitude sem precedente. volume

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A Carta Política também se mostra rica de previsões sobre a fundamentalidade de diversos direitos incluídos no patrimônio jurídico dos cidadãos. Desde os mais basilares e instintivos ou intuitivos direitos individuais aos complexos direitos difusos, da mais sofisticada concepção, extenso é o rol de direitos, que claramente prestigiam as tutelas prestacionais dos direitos sociais, a saber, direitos tais como: saúde, transporte, educação, moradia, previdência e assistência sociais, dentre tantos outros. A fim de responder pelo atendimento das necessidades dos cidadãos em termos de políticas sociais – de cunho prestacional de direitos sociais, a Carta Republicana estabeleceu uma repartição de atribuições, organizacionais, governamentais, legislativas e administrativas a cada um dos componentes do complexo chamado Estado. Portanto, faz-se assaz necessário dominar o conhecimento dessa intrincada estrutura estatal de governo e de administração pública, em seus variados matizes, a começar por seus agentes, pessoas e órgãos, de modo a bem estabelecer as particularidades entre cada um deles e poder deles retirar o melhor em termos de vocação institucional como atores de políticas públicas. Neste mister, o estudo da equação da distribuição de competências pelo texto constitucional se faz basilar e de importância central, e comparativamente se mostrou bem amplificado em relação às constituições que se lhe fazem anteceder, proporcionando uma evolução de um federalismo nominal para um federalismo efetivo e normativo. Os estudos de direitos sociais são recorrentes em apontar como óbices a sua efetiva realização, alguns componentes, tais como a baixa normatividade, associada à arquitetura inspirada em critérios de programaticidade; nesse jaez, o ponto central não será mais repetir a existência desse problema, mas apontar eventuais formas de resolvê-lo. Ausente a positivação, ou se sustenta que ela é desnecessária, por meio de bons argumentos principiológicos, de ordem pós-positivista ou aponta-se quem são os responsáveis por suprir a carência legislativa; no exemplo, como cabe ao Poder Legislativo prover a competente positivação dessas normas, então, uma vez identificado como responsável pela ação de política faltante (União, estado, 360

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Distrito Federal ou município), passa-se a desferir sobre o ator silente os estímulos hábeis a romper-lhe a inércia, sejam eles políticos, sociais ou jurídicos, se couber. Da mesma forma, se desvelada a limitação de ordem financeira ou orçamentária que inviabiliza o atendimento de um direito social tido como dotado de força subjetiva e, portanto, exigível, identifique-se quem detém a competência para provera prestação e, igualmente, projete-se contra o ator omisso as ações de ordem efetivadora, seja por via de pressão política – via sociedade civil; seja por pressão jurisdicional, via ações constitucionais competentes, para o que, muito necessário se faz bem identificar quem figurará no polo passivo: a União, o estado, o município, o Distrito Federal, o patronato, o terceiro setor detentor de concessões, o empresário ou a sociedade, sob pena de extinção do processo por carência das condições da ação, a saber: a legitimidade passiva. Constando a prestação faltante do rol de competências comuns ou concorrentes, a ideia geral de federação por cooperação entre os entes federados se apresenta como verdadeiro dever de Estado e autoriza a parte a parte exigir – em termos subjetivos – a prestação pelos entes alcançados em termos de competências comuns (administrativas) e concorrentes (legislativas). Deve-se, contudo, avaliar a conveniência ou eventual obrigatoriedade em constituir o litisconsórcio (facultativo ou necessário), devendo-se aferir se a eventual presença de um ou outro ente no polo passivo irá contribuir para a efetivação da tutela ou, ao contrário, por absurdo, irá processualmente beneficiar aos réus, disponibilizando fartas oportunidades para dilação de prazos e emprego de movimentos protelatórios. O discurso de efetivar direitos sociais, portanto, ultrapassa em muito o debate material acerca desses direitos, a dizer: sua resistida fundamentalidade e sua força cogente como direitos subjetivos, exigíveis em razão do dever constitucional; a coercitividade e o compromisso moral das constituições dirigentes, a lacunosa positivação desses direitos, o déficit de financiamento orçamentário – com a contraposição das teorias de máxima efetividade da Constituição, de reserva do possível ou de mínimo existencial. É verdade, sim, que todas essas provocações se revestem da maior importância, mas, segundo uma visão pragmática, a efetivação dos direitos sociais vai para além volume

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de demonstrar a sua existência, apresentar suas classes e sustentar sua cogência como direitos subjetivos. Necessário se faz enfrentar os mecanismos de efetivação e, nesse particular, segundo a visão processual, definir quem deve ser instado a cumprir tal ônus político e, se não cumprido, responder pelo dever jurídico. Em outras palavras: se os atores de políticas públicas – seus responsáveis – não estiverem claramente identificados, será necessário explicitá-los, seja na esfera pública, no âmbito mencionado genericamente Estado; seja na esfera privada, no âmbito da sociedade brasileira. É preciso definir mais claramente quem deve responder pelo que, em cada passo do desenvolvimento e aplicação das políticas sociais. Por isso, faz-se indispensável a detenção de uma noção mais densa acerca da órbita federativa, para que, compreendendo melhor as competências e atribuições de cada nível de estratificação federativa se possa definir com exatidão a quem compete cumprir qual tarefa prestacional, em vez de alardearem os textos, pura e simplesmente, para não dizer inocuamente, meramente a palavra “Estado” – sem melhor enfrentá-la, e que, nessa quadra, já parece dizer (ou fazer) muito pouco em termos de efetivação de direitos, quando não individualizada qual de seus componentes estatais estará submetido ao encargo. A Constituição de 1988, ao prever a convivência independente, mas harmoniosa entre os poderes constituídos, institui de forma clara e expressa a noção de cooperação entre poderes. De igual sorte, portanto, deve se dar a convivência entre as unidades da federação: União, Estados, Municípios e o Distrito Federal. Faz-se necessário rever o arranjo federativo, para redefinição da densidade distributiva de competências e, sobretudo, de fontes de recursos que financiem as correspondentes iniciativas, em termos de políticas públicas e de ações a realizar, entre os atores de políticas, no sentido de descentralizar atribuições e recursos para mais próximo de seus destinatários; da mesma ratio será a necessária expansão dos instrumentos de controle de accontability, afinal, quanto mais ampla a autonomia decisória, maior a responsividade, quanto aos resultados, e a responsabilidade, quanto aos repasses e dispêndios de recursos públicos ou de terceiros. Os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil instam de igual forma a força cooperativa, ao pugnar pela redução das desigualdades regionais e 362

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sociais; pela supressão da marginalização e da miséria e, sobretudo, pela construção de uma sociedade mais livre, justa e “solidária” (art. 3º), Se o infindável alcance da palavra “solidária” não for suficiente a instigar a operação conjunta (cooperação), recorra-se, então à expressa literalidade do art. 23, parágrafo único, que põe com todas as letras a “cooperação” como dever político, jurídico e social, a predizer que: “Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. 5. referências ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2005. ALVAREZ, Anselmo Prieto et NOVAES FILHO, Wladimir. A Constituição dos EUA – anotada. 2. ed. São Paulo: LTr, 2008. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. A Constituição Dirigente e a Vinculação do Legislador - contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: almedina, 2001. DIAS, Reinaldo et MATOS, Fernanda. Políticas Públicas – princípios, propósitos e processos. São Paulo: Atlas, 2012. GARCÍA-PELAYO, Manuel. Derecho Constitucional Comparado. Madrid: Alianza, 1984. HAMILTON, Alexander; MADISON, James and JAY, John. The Federalist Papers. New York: Signet Classic, 2003. LIMONGI, Fernando Papaterra. O Federalista: remédios republicanos para males republicanos. In: WEFFORT, Francisco (org.). Os Clássicos da Política. 14 ed. São Paulo: Ática, 2006. MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Pacto Federativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000. MELO NETO. Antonio Saboia. Federalismo e direitos sociais – reflexões sobre a possibilidade de conciliação. São Paulo. volume

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esforços institucionais da onu no apoio à mediação de conflitos e paz inclusiva Gilberto Passos de Freitas1 Simone Alves Cardoso2

Resumo A Carta das Nações Unidas afirma que um dos seus princípios fundamentais é o de “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra” e que para tanto deveríamos optar por soluções pacíficas de resolução de conflitos, como a Mediação. Para alcançar este mandamento, as Nações Unidas têm empreendido esforços significativos para aumentar o seu arsenal de ferramentas de pacificação. Dentre esses esforços, o incentivo ao uso da Mediação, que se concretizou por meio da Unidade de Apoio à Mediação, vinculada ao Departamento de Política da ONU. Diante da variedade de questões, que precisam ser abordadas nos conflitos contemporâneos, as Nações Unidas, por meio da Unidade de apoio à Mediação, têm a finalidade de suporte e gestão das iniciativas em Mediação preventiva e eficaz.

Palavras-chave ONU; Unidade de Apoio; Mediação; Paz Inclusiva.

1 Doutor em Direito, desembargador aposentado do TJ/SP, membro do conselho científico da Revista de Direito Ambiental, professor titular da pós-graduação (mestrado e doutorado) da Universidade Católica de Santos. É Coordenador do Grupo de Mediação e Resolução de Conflitos Socioambientais e Urbanísticos da Escola Paulista da Magistratura, Membro Consultor da Comissão Nacional do Direito Ambiental, do Conselho Federal da OAB. 2 Graduada em Direito, Mestre em Direito Urbanístico pela PUC/SP, Mediadora e Doutoranda em Direito Ambiental Internacional da Universidade Católica de Santos. Atualmente é professora de direito civil e Mediação, Coordenadora do Juizado Especial Civil e do Curso de Extensão de Capacitação de Conciliadores e Mediadores da UniSantos. Integra o grupo de pesquisa em Energia e Meio Ambiente, da Pós-graduação Mestrado e Doutorado da UniSantos. Compõe a Comissão de Ética e Disciplina da OAB/SP, Subseção Santos, têm experiência na área de Direito Urbanístico, Direito Civil, Direito Consumidor e Resolução Alternativa de Conflitos, com ênfase em Mediação Socioambiental. volume

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Abstract The Charter of the United Nations states as one of its fundamental principles “to preserve next generations from the scourge of war” and that for this we should prefer pacific solutions on conflict resolution, as mediation. To achieve this amendment, United Nations has been endeavoring significant efforts to increase its roll of pacification resources. Among these efforts, the incentive to use mediation, which became concrete by a Support to Mediation Unity, related to the UN Politics Department. In face of different issues that request approach in contemporary conflicts, the United Nations, through its Support to Mediation Unity, has the goal on supporting and managing initiatives on preventive and effective mediation.

Key words UN; Support Unity; Mediation; Onclusive Peace. 1. introdução O campo de resolução de conflitos foi submetido a uma série de mudanças desde o fim da Guerra Fria, que incluiu a participação de uma multiplicidade de novos pacificadores, passando pela iniciativa da diplomacia privada e negociações entre agentes políticos e não-governamentais. A resolução de conflitos, ao logo do tempo, ganhou destaque como atividade política realizada por representantes políticos, principalmente em nome dos Estados. Mediadores, eram, portanto, normalmente diplomatas, políticos ou outros representantes dos governos, ou da Igreja. No entanto, ao longo do curso das duas últimas décadas, temos visto um aumento significativo no número e variedade de atores envolvidos em tentativas de impedir, mitigar e resolver conflitos. Na atualidade, predominam conflitos sobre o controle do governo, assim como recursos naturais e econômicos. Essas controvérsias são carregadas de tensões éticas, socioeconômicas e gestão de governo que são agravadas por mudanças climáticas. Assim, implicam em uma rede complexa de objetivos e agentes, com dimensões locais, regionais e que vão além das fronteiras de um país, propagando instabilidade e problemas humanitários. 366

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O objetivo do artigo é descrever a Unidade de Apoio à Mediação, desde a sua criação pela Assembleia Geral, em 2005, destacando o seu papel de repositório de conhecimento em Mediação como instrumento estratégico de prevenção de conflito e de efetivação do princípio de paz inclusiva, pois a Unidade promove um trabalho concertado e em rede, entre Estados, organizações internacionais e outros atores em busca de fortalecer a capacidade de Mediação. Para tanto, na primeira parte, descreveremos o contexto da criação desta Unidade de Apoio, suas funções e atividades, segundo Resoluções da Assembleia Geral. No segundo item, abordaremos a equipe de Espera de Especialistas em Mediação e os projetos de destaque de responsabilidade da Equipe, como, por exemplo, a mediação de conflitos que envolvem recursos naturais e a formação de uma equipe de mediadores, que dão suporte aos projetos. No último item, as parcerias de Mediação na cooperação com organizações regionais e sub-regionais, instituições especializadas, outras organizações internacionais, assim como organizações não governamentais e sociedade civil. A metodologia do trabalho é descritiva, realizada por intermédio de estudo, análise, registro e interpretação dos dados da Unidade de Apoio à Mediação, do Departamento de Assuntos Políticos da ONU. A presente pesquisa é baseada exclusivamente nos documentos produzidos pela ONU, como Resoluções da Assembleia Geral, Relatórios do Secretário Geral, dentre outros trabalhos oriundos da Unidade de Apoio referenciada (MSU), além de obras de referência. 2. unidade de apoio à mediação A Cúpula Mundial de 2005, dentre seus valores, reafirmou a fé nas Nações Unidas e o compromisso desta com os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas e o Direito Internacional, que são fundamentos indispensáveis ​​de um mundo mais pacífico próspero e justo e reiterou a determinação em promover o respeito. Reconhecendo o importante papel dos bons ofícios do Secretário-Geral, inclusive na mediação de conflitos, expressando apoio ao Secretário para reforçar a sua capacidade nesta área (ASSEMBLEIA GERAL, 2005, p. 1 e 2). A Mediação da ONU ocorre segundo as diretrizes estabelecidas na Carta das Nações Unidas e do Direito Internacional. O § 3 º do artigo 2 º da Carta estabelece volume

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que os Estados Membros deverão resolver suas controvérsias internacionais por meios pacíficos. Já o § 1 º do Artigo 33 da Carta impõe aos Estados-Membros a obrigação de buscar uma solução pacífica para qualquer disputa em que são partes, principalmente quando a disputa é uma ameaça à manutenção da paz e da segurança internacional. Entre as opções que a Carta sugere para encontrar uma solução, a Mediação tem se mostrado promissora. 2.1. criação e funções segundo resoluções da assembleia ger al da onu Desde a sua fundação, a ONU tem desempenhado um papel útil na mediação de conflitos entre Estados e dentro deles. Os bons ofícios e esforços de mediação são realizadas pelo Secretário-Geral e representantes e enviados a pedido das partes, por iniciativa do Secretário Geral ou a pedido do Conselho de Segurança ou da Assembleia General. Em 1992, o Departamento de Assuntos Políticos foi estabelecido para fornecer assistência nesta área. A gestão do Departamento e suas seis divisões regionais trabalham em estreita colaboração com as suas missões políticas especiais. Em 2004, o Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudança observou em seu relatório que, enquanto a demanda por mediação da ONU cresceu rapidamente nos últimos 10 anos, os recursos destinados a essa função permaneceram mínimos (ASSEMBLEIA GERAL, 2004, p. 41). O Relatório recomendou ao Departamento de Assuntos Políticos que houvesse uma reestruturação para que o departamento pudesse oferecer mais recursos a fim de prestar um apoio mais consistente nas atividades de mediação profissional. Como parte dessa reestruturação, e tendo em conta que a Cúpula Global de 2005 reconheceu o papel importante dos bons ofícios do Secretário-Geral, inclusive na mediação de conflitos e os esforços suportados do Secretário-Geral para reforçar a sua capacidade neste âmbito, foi estabelecida no Departamento de Política (DPA), em 2006, um pequeno núcleo, denominado Unidade de Apoio à Mediação (MSU), após aprovação da Assembleia Geral (2005, p. 28). A Unidade, concebida como um prestador de serviços para o sistema das Nações Unidas, é o ponto focal para as lições aprendidas em desenvolvimento, 368

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orientação e melhores práticas, e base de dados com relatos de experiência da ONU com mediação. A Unidade também apoia as atividades de mediação feita por sócios das organizações das Nações Unidas, tais como organizações regionais e sub-regionais e Estados. Entre as suas funções, a MSU fornece suporte consultivo, financeiro e logístico para processos de paz; trabalha para fortalecer a capacidade de mediação das organizações regionais e sub-regionais; serve como repositório de conhecimento de mediação, lições apreendidas e melhores práticas. Dentro da unidade, foi criada uma Equipe de Espera de Especialistas em Mediação, que são responsáveis pelos projetos de mediação com foco em questões específicas como cessar-fogo, violência sexual e recursos naturais, e tem o objetivo de apoiar os atores relevantes para alcançar uma paz justa, inclusiva e sustentável, através da solução pacífica das controvérsias. O Departamento de Política da ONU desenvolveu e mantém uma ferramenta de suporte on-line de mediação, denominada peceamaker, destinada aos profissionais de pacificação, que inclui um extenso banco de dados com acordos de paz, material de orientação e informações sobre os serviços de apoio a mediação da ONU. 2.2. atividades nos termos previsto nas resoluções A Unidade de Apoio à Mediação (MSU) pode servir de modelo para outras organizações regionais que pretendam desenvolver ou reforças as suas próprias capacidades de apoio à mediação. Como parte do processo de paz inclusiva e diplomacia preventiva, os esforços globais do Departamento de Política da ONU, por meio da MSU, envolvem uma ampla gama de atividades, incluindo suporte operacional aos processos de mediação, facilitação de diálogo, fortalecimento e capacidade de mediação de parceiros e ainda desenvolvem as melhores práticas em mediação. Como mencionado, a MSU é uma prestadora de serviços para vários atores, incluindo o sistema da Nações Unidas, as organizações regionais, os EstadosMembros e as entidades de pacificação de grande relevância no cenário global. Ostenta serviços de suporte de mediação em três aspectos principais, a saber: volume

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a) Apoio Operacional aos processos de paz Consiste na área técnica e de apoio operacional aos processos de paz. A MSU oferece apoio durante as fases de um processo de mediação, desde planejamento, implementação e avaliação. O apoio operacional pode consistir em apoio prático, como briefings, reuniões, oficinas de estratégia; apoio analítico escrito e implementação de peritos e de financiamento de processos de Mediação. Para tanto, a MSU conta com uma equipe de 12 profissionais na Sede da ONU em Nova York e uma equipe de standy-by de especialistas no assunto a ser implantado, o que ocorre no prazo de 72 horas, após solicitação. b) Fortalecimento da Capacidade de Mediação Representa o fortalecimento da capacidade de mediação da Nações Unidas, e dos seus parceiros e partes de um conflito. A Unidade fornece treinamento sob medida para mediadores e equipes de mediação sobre técnicas e habilidades, desenvolvimento de estratégias, desenho de processos e questões temáticas de Mediação e Negociação. A capacitação é destinada a funcionários da ONU e organizações regionais. Um exemplo desta última é a parceria com a União Africana (UA), que levou esforços conjuntos à Somália, Quênia e Darfur. c) Desenvolvimento e disseminação de orientação e melhores práticas A MSU tem ainda como atividade o desenvolvimento e disseminação de orientação à mediação, além de lições aprendidas e melhores práticas em mediação. Em 2011, a gestão do conhecimento tornou-se o foco da MSU e foi criado um site peacemaker, destinado a harmonizar as informações e atividades da ONU. A gestão do conhecimento requer um equilíbrio entre a necessidade de transparência e de confiabilidade. Recentemente, foi publicado um guia de mediação eficaz, que identifica uma série de elementos que devem ser considerados nos esforços de Mediação, descreve alguns desafios e dilemas enfrentados pelos mediadores, mas principalmente oferece orientações. Embora existam vantagens claras da Organização das Nações Unidas para fornecer serviços de apoio à Mediação, deve-se reconhecer uma série de desafios que influenciam o seu modo de apoiar os esforços de mediação no âmbito 370

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mundial. Em algumas regiões do mundo, por exemplo, a ONU é percebida como uma organização que tende a ‘internacionalizar’ um conflito intra-estadual. Algumas questões são importantes para a ONU ampliar a complexa tarefa de apoio à Mediação, a fim de continuar a fornecer a liderança em orientação para apoio efetivo aos processos de mediação, independentemente de haver ou não um ator principal no processo de mediação a MSU, por meio de uma equipe de experts em Mediação, atua de forma flexível no processo de pacificação por meio da Mediação. 3. equipe de esper a de especialistas em mediação3 A Equipe de Standby de Especialistas em Mediação da Unidade de Apoio à Mediação (MSU) foi criada em abril de 2007. Este projeto foi financiado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros da Noruega e baseado em um Memorando de Entendimento (MOU) entre as Nações Unidas e Conselho Norueguês para os Refugiados (WILS; HERRBERG, 2011, p.5). A equipe de espera da MSU foi criada para fortalecer a capacidade das Nações Unidas na Mediação de conflitos e para melhorar a qualidade de apoio e experiência à disposição das Nações Unidas e apoiar os esforços de Mediação da ONU. É um recurso especializado que pode ser implantado rapidamente em campo em cima de uma base temporária, a fim de prestar assessoria técnica aos funcionários da ONU e outros levando os esforços da Mediação para prevenção e resolução dos conflitos. Os serviços da equipe estão disponíveis para atuais enviados das Nações Unidas, missões políticas e de manutenção da paz e as equipes nacionais bem como para as organizações regionais, os Estados-Membros e organizações nãogovernamentais com as quais as Nações Unidas trabalham em estreita colaboração na mediação de conflitos e de bons ofícios em todo o mundo. Os membros da equipe podem ser implantados em qualquer configuração, individualmente, em um grupo pequeno ou como uma equipe. Este modelo de espera foi estabelecido a fim de proporcionar alto nível de conhecimentos especializados, que pode se desenvolver dentro do sistema das Nações Unidas ou no campo. 3 Termo em inglês: Standby Team of Mediation Experts (SBT) volume

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Os elementos centrais do projeto comum entre a MSU e o Conselho Norueguês para Refugiados (NRC) são os membros da Equipe de Especialistas em Mediação (SBT), que são especialistas sênior com experiência em mediação. Inicialmente, de 2008 a 2009, a equipe foi composta de um núcleo de cinco especialistas. Já em 2011 era composta por sete membros. E, finalmente, em 2014, esta equipe chegou a oito membros. O Conselho Norueguês (NRC) é o empregador da equipe e é responsável pelo recrutamento e contratação dos membros do SBT (equipe de espera). A seleção é realizada em estreita cooperação e consulta com o MSU, organizando a implantação de acordo com o pedido da ONU. O papel da ONU e da Unidade de Apoio à Mediação inclui o planejamento do local de implantação de cada perito e a preparação dos peritos. Esta preparação inclui o fornecimento de informações básicas sobre o processo, informações e documentos disponíveis para o Especialista de Mediação. Por sua vez, o papel operacional do diretor da Equipe de espera é fornecer consultoria sênior especializada para funcionários da ONU ou parceiros, mediante solicitação. Isso geralmente é feito por meio da implantação do perito em atividade de campo, embora análise e aconselhamento sobre questões específicas possa ser fornecido remotamente. Este mecanismo de apoio é projetado para ser flexível e ágil e responder às necessidades da entidade requerente. Embora agindo através da prestação de especialização, a equipe de espera também, às vezes, fornece conselhos sobre questões processuais e de definição de agenda e análises técnicas, incluindo a identificação de possíveis pontos de convergência, bem como possíveis lacunas, na elaboração de textos de acordo de paz, levando oficinas para as partes sobre questões de fundo ou de processo na busca de prestar assistência técnica em geral (DEPARTAMENTO DE ASSUNTOS POLITICOS, 2014, p. 2). A MSU é fornecedora de serviços à ONU, Organizações Regionais, aos os Estados-Membros, dentre outros, e está encarregada de oferecer a equipe de espera como parte de seus serviços de apoio à Mediação. Desta forma, tal Equipe é uma das principais ferramentas que permitem que a MSU possa responder a uma demanda quando existe uma necessidade identificada. Os membros da equipe têm experiência em situações de mediação e são especialistas em uma série de questões que surgem frequentemente nas negociações de paz, incluindo a concepção geral dos processos, dispositivos de segurança 372

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(cessar-fogo), as questões constitucionais, de partilha de poder, recursos naturais, bem como de gênero e inclusão social. Quando não estiver atuando em campo, os membros da equipe estão de prontidão permanente, realizando pesquisas, além de coordenar revisões de melhores práticas em sua área de atuação. Ademais, os membros da equipe são responsáveis pela produção de notas de orientação operacionais e materiais de treinamento relacionados, auxiliando a MSU com o desenvolvimento de uma rede de especialistas em suas áreas de especialização (WILS; HERRBERG, 2011, p.2) A Equipe de Espera é um recurso totalmente financiado e o suporte é fornecido sem custo para as entidades solicitantes. Todas as decisões políticas em relação ao uso da equipe de espera são feitas pelo Departamento de Assuntos Políticos. O apoio administrativo e logístico para a equipe é fornecido pelo Conselho Norueguês de Refugiados (NRC). Além da Equipe de Espera de Especialistas em Mediação (SBT), a MSU também desenvolveu uma lista de peritos (especialistas) de mediação, que é um banco de dados de mediadores de alto nível, no aspecto operacional e técnico, administrados pela MSU, em nome da DPA, que estão disponíveis para dar suporte aos mediadores sêniores. O suporte pode ser visto em quatro camadas, no núcleo a experiência da MSU, a Equipe de Espera (SBT), especialistas da lista de mediadores da MSU e a rede de parceiros todos são relevantes e se complementam. A Cúpula de 2005 reafirma a importância vital de um sistema multilateral eficaz, coordenado com o Direito Internacional, para melhor resolver os problemas e as ameaças multifacetadas do século XXI. Demais disso, o sistema referenciado pretende alcançar o progresso nas áreas de paz e segurança, desenvolvimento e direitos humanos, sublinhando o papel central das Nações Unidas, empenhada em promover e melhorar a eficácia da Organização pela implementação das suas decisões e resoluções (ASSEMBLEIA GERAL, 2005, p. 2) 3.1. projetos de destaque de responsabilidade da equipe de esper a Com o objetivo de ampliar o conhecimento e a experiência de Mediação, a MSU tem desenvolvido projetos com foco em questões específicas que surgem volume

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na prevenção, gestão e resolução de conflitos. Os projetos atuais incluem enfrentamento de conflitos relacionados a violência sexual, cessar-fogo e de mediação em torno de recursos naturais. a) Violência Sexual A violência sexual é um dos problemas a serem enfrentados é uma das formas mais devastadoras e de extrema hostilidade travadas contra a sociedade civil. Ela é usada para provocar deslocamento de populações, impedir os movimentos de oposição e minar a coesão da comunidade. O seu uso humilha, domina, incute medo, quebra identidade e divide a comunidade. Na busca de combater a violência sexual relacionada a conflitos, a Unidade de Apoio a Mediação, lançou em 2012 um guia de orientação para mediadores neste assunto (DIVISÃO DE POLITICA E MEDIAÇÃO, 2012). b) Cessar-fogo A Unidade de Mediação em parceria com o Centro Internacional de Defesa Norueguês de Política e Mediação, organizou em conjunto um curso de formação de Mediação e gestão de cessar-fogo, que gerou um projeto de pesquisa em 2012, com duração de dois anos sobre a proteção de civis a partir de uma perspectiva voltada à mediação. Participam deste projeto 22 países, Organizações Internacionais, o sistema das Nações Unidas, bem como organizações nãogovernamentais, o que contribui para o sucesso da participação ampliada nos procedimentos de mediação relacionadas ao cessar-fogo. c) Recursos Naturais Recentemente, a questão de como mediar conflitos sobre recursos naturais ganhou atenção da Unidade de Mediação. O projeto sobre mediação de conflitos sobre Recursos Naturais foi previsto para ajudar a desenvolver orientações para mediadores que lidam com conflitos dessa natureza. Esse projeto foi desenvolvido em conjunto pela Unidade de Mediação, pelo Centro da Universidade de Columbia para Resolução de Conflitos Internacionais (CICR), o Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas (UNEP) e o Centro para Diálogo Humano (HD). O projeto em comento ainda recebe apoio da Organização das NaçõesEuropeia sobre Recursos Naturais e Prevenção de Conflitos, gerido pela equipe Quadro Interinstitucional de Ação Preventiva (MEDIATION SUPPORT). 374

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Em novembro de 2011, os parceiros do projeto reuniram cerca de quarenta profissionais de Mediação em Recursos Naturais, em um Workshop, em Nova York, a fim de compartilhar conhecimento e experiência. As ideias discutidas darão origem a um Manual intitulado “Mediação de Conflitos Recursos Naturais: Orientação para Mediadores¨, que está em revisão com o líder do projeto, Michael Brown e será lançado no segundo semestre de 2014. 3.2. a composição temática dos especialistas A composição temática dentro dos projetos é dividida entre os oito mediadores especialistas da equipe de espera, a seguir descritos de acordo com a ficha técnica de 2014, da equipe de especialista disponibilizada pelo Departamento de Assuntos Políticos e Unidade de Mediação da ONU, e elencada adiante. a) Questões de gênero e inclusão social Nas questões de Gênero e Inclusão Social Rina Amiri (Afeganistão) é a responsável. Com mais de 15 anos de experiência aconselhando os governos, servindo como uma analista política com as Nações Unidas e as principais iniciativas de ONG. Amiri traz um conjunto versátil de competências em processos de mediação e de construção da paz, com foco em gênero e inclusão social. Ela serviu como um dos membros fundadores da Segurança Inclusiva, uma coalizão de mais de 2000 mulheres construtoras da paz que defende a plena participação de todos os interessados, em especial as mulheres, nos processos de paz. b) Recursos Naturais Na temática de Recursos Naturais, o responsável é Michael Brown (Canadá), especialista em questões de Mediação, conflitos e construção da paz. Sua experiência profissional se estende por ações realizadas na América Latina, Ásia, África Ocidental, Europa Oriental e América do Norte. Brown também tem experiência em questões relacionadas com recursos naturais e partilha da riqueza, e tem trabalhado em questões de conflitos relacionados à mineração, petróleo e gás, além de recursos hídricos. Ele é professor de Prática de Mediação de Conflitos da Universidade McGill, e ocupou posições de liderança e consultoria com o PNUD, o Banco Mundial, missões políticas da ONU e da USAID. volume

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c) Constituição e Processo de Tomada de decisão Na área de Constituição e Processo de Tomada de decisão, o especialista Hassen Ebrahim (África do Sul) esteve intimamente envolvido nas negociações e na implementação da primeira Constituição democrática da África do Sul. Como membro da equipe de espera, ele atualmente auxilia a Missão das Nações Unidas na Somália, em apoio aos esforços de reforma constitucional. Ele traz experiências nas áreas relativas aos processos de consulta popular, de partilha de poder, religião e paz. d) Negociações de Paz Nos processos de Negociações de Paz, Sven Koopmans (Holanda) destaca-se como especialista em negociações de paz e desenho de processos, combinando as experiências como diplomata e conselheiro político, além de Direito Internacional. e) Arranjos de Segurança Nos projetos que envolvem arranjos de segurança, Jeffrey Mapendere tem papel ímpar (Zimbabwe) nos trabalhos desenvolvidos na África, Ásia e Oriente Médio, em uma ampla gama de conflitos. Foi nomeado várias vezes como um membro da equipe de espera de Mediação. Entre 2012 e 2013, foi conselheiro sênior Facilitador do processo de diálogo de Kampala. Além disso, Mapendere tem papel de relevo nas questões afetas ao cessar-fogo, desenho de processos e mediação. f ) Desenho de Processos No desenho de Processos, Pierre-Yves Monette (Bélgica) fornece conhecimentos nas seguintes áreas: mediação, desenho de processos; na elaboração da constituição; reconciliação comunitária e recursos naturais, com foco nas águas. Ele tem trabalhado para as Nações Unidas desde 2011, nomeadamente na República Centro-Africano (CAR), Chade, Mali e Maldivas. O Monette é professor no Colégio da Europa (Universidade de pós-graduação com base em Bruges em Assuntos Europeus), onde ensina “mediação internacional e resolução alternativa de litígios”, desde 2002. É advogado em Bruxelas e atuou como Mediador Federal de seu país (Bélgica), entre 1997 e 2005. g) Constituições Christina Murray (África do Sul) é professora de Direito Constitucional e Direitos Humanos da Universidade de Cape Town. Recentemente, ela fez parte 376

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da equipe de apoio constitucional do Assessor Especial do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas para o Iêmen. Em 2012, foi membro da Comissão de Constituição de Fiji. Entre fevereiro de 2009 e outubro 2010, atuou como membro da Comissão de Peritos queniano que elaborou a Constituição do Quênia 2010. h) Partilha do Poder Na temática de partilha de poder, Marie-Joëlle Zahar (Líbano) professora de Ciência Política e diretora de pesquisa da Rede de Operações de Paz da Universidade de Montreal, tem ênfase. Ela é especialista em conflitos no Oriente Médio, com experiência nos Balcãs (Bósnia e Herzegovina) e África Subsaariana (Sudão, Sudão do Sul, Mali, Angola e Moçambique). Sua pesquisa se concentra na dinâmica de partilha do poder em contextos de pós-conflito, bem como sobre a gestão da violência nos processos de paz. Como membro da equipe de espera, ela tem apoiado uma série de esforços de paz da ONU, incluindo a República Centro-Africano, Líbia, Mali e na Síria. 4. parcerias em mediação A Assembleia Geral, em sua Resolução 65/283, solicitou ao Secretário Geral que apresentasse um Relatório sobre a aplicação da Resolução intitulada “Fortalecimento da função de mediação e a resolução pacifica de controvérsias, da prevenção de conflitos e sua solução”. Neste documento, o Secretário Geral da ONU relatou que a ONU está em uma posição muito melhor para ajudar a resolver pacificamente os litígios e conflitos. Isso porque a atuação de mediadores perto de áreas de conflito confere a possibilidade de implementar rapidamente a mediação (SECRETARIO GERAL, 2012, p.4). Para alcançar flexibilidade e dinâmica, a MSU, com seu escritório e missões políticas regionais, funciona em conjunto com as organizações regionais e subregionais, bem como com os governos que têm interesse fundamental na resolução de conflitos. Segundo Andrew Marshal essa dinâmica de múltiplos atores envolvidos em rede na Mediação de conflitos é uma característica dos conflitos do século XXI e das relações internacionais atuais, o que leva a uma proliferação de pacificadores. volume

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The proliferation of peacemakers is due to the fundamental thaw in international relations, the complex nature of current conflicts and the realisation by many that not one, two or even three organisations or states can be everywhere all of the time and that different players with different skill sets are required to initiate, lead and implement the many component parts of a peace process. Finally, today it is also both good politics and fashionable to be involved in conflict resolution, which in turn has fuelled a degree of competition amongst those wanting to become involved. (2012, p.30)

A Resolução 65/283, aprovada por consenso, ampliou o apoio dos Estados Membros à mediação, complementando o foco sobre esta questão no Conselho Segurança (2009). O Relatório destaca que a Resolução reconheceu a importância da contribuição dos principais atores, que são os Estados-membros, o sistema Nações Unidas, as organizações sub-regional, regional e outras organizações internacionais e da sociedade civil, além de apontar novas perspectivas sobre o uso da mediação na resolução de disputas e conflitos contemporâneos. Assim, as principais parcerias e acordos de cooperação foram estabelecidos com organizações regionais e sub-regionais, bem como com instituições especializadas para melhorar o suporte da MSU em iniciativas de mediação. 4.1. organizações regionais, sub-regionais e instituições especializadas No relatório sobre o reforço da mediação e suas atividades de apoio (S/2009/189), o Secretário Geral enfatizou que as Nações Unidas não têm o monopólio da mediação. E, no Relatório de 2012, indicou algumas medidas adotadas pela ONU para colaborar com as organizações regionais, sub-regionais e outras organizações internacionais, bem como com os Estados-Membros, no plano nacional e local, a fim de desenvolver suas habilidades e o trabalho em conjunto para fazer face ao aumento cíclico dos conflitos (p.13). O trabalho de mediação da MSU é realizado em rede, com apoio das organizações regionais e sub-regionais. Nesse contexto, a ONU passou a conferir prioridade de apoio às instituições que tenham serviços de mediação próprios, com 378

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base em relações existentes entre os serviços das Nações Unidas e as organizações regionais. O Relatório em comento traz o exemplo da parceria da ONU, por meio da MSU, com a União Africana, que implementou uma estrutura inovadora no campo da paz, como o Painel dos Sábios e sua lista de pré-seleção para as tarefas de mediação. Grande parte deste trabalho é realizado em estreita colaboração com organizações não-governamentais, tais como a Iniciativa de Gestão de Crises, o Centro para o Diálogo Humanitário, o Centro Africano para a Resolução de Disputa Construtiva e a Academia Folke Bernadotte. As Nações Unidas têm compartilhado com a União Europeia experiências e lições aprendidas no apoio à mediação, criando um suporte de mediação através de uma série de seminários e sessões de treinamento breves para o pessoal da União Europeia. Em 2011, as Nações Unidas e a Organização dos Estados Americanos (OEA), estabeleceram um plano de trabalho de um ano para a parceria em mediação, em que se previa suporte da Unidade de Mediação para duas rodadas de treinamento de diálogo nacional. Estas atividades de formação, com a participação de representantes do governo de América Central (julho de 2011) e América do Sul (Novembro de 2011), centraram-se na utilização do diálogo como ferramenta para a prevenção de conflitos para gerenciar tensões sociais emergentes em âmbito nacional. Além disso, a ONU também ajudou a OEA na criação do seu sistema de lista dos especialistas em mediação. Representantes da OEA participam regularmente dos seminários sobre mediação organizados pelas Nações Unidas (SECRETARIO GERAL, 2012, p.14). O caráter das parcerias varia de programas plurianuais abrangentes, contendo procedimentos institucionalizados de cooperação, tais como interações mesaa-mesa, planos de trabalho, sem a necessidade de formalizar a relação. Todas as parcerias visam reforçar as capacidades de mediação dessas organizações, construindo ligações que permitam abordagens mais coerentes e complementares em processos de mediação. Garantir a cooperação e colaboração entre atores de apoio à mediação é essencial para o processo de mediação eficaz. Com esse objetivo em mente, a volume

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Unidade de Apoio de Mediação (MSU) tem estabelecido parcerias com diversas instituições especializadas. A propósito, houve uma aceitação crescente e um aumento de oportunidades para a iniciativa da diplomacia privada, que tem prestado um importante apoio de mediação para pacificadores institucionais ou estaduais. Estas parcerias proporcionam oportunidades para colaboração, tanto operacional como técnica e incluem treinamento e capacitação no âmbito das Nações Unidas. Atualmente, a MSU estabeleceu parceria formal com as seguintes instituições: Iniciativa de gestão de crise; Folke Bernadotte Academy, Equipe Consultiva do Setor de Segurança Internacional; Interpeace; NODEFIC; Conselho Norueguês para os Refugiados e Swisspeace (MEDIATION SUPPORT, 2014). 4.2. redes de apoio No § 14 da Resolução 65/283, a Assembleia destacou a importância das parcerias e cooperação de organizações internacionais, regionais e sub-regionais das Nações Unidas, incluindo a sociedade civil, bem como apontou mecanismos para melhorar o intercâmbio de informações, cooperação e coordenação. Essa cooperação se mostra vantajosa para o enfrentamento das dificuldades de um processo mediação. Vários mecanismos e redes cooperativas foram criadas para promover melhores esforços de mediação profissional, que doravante serão mencionadas: a) Formação de Rede de apoio à mediação A rede de apoio à Mediação (MSN) é uma pequena rede global das organizações não-governamentais que apoiam a mediação e processos de paz. A rede, criada em conjunto pela Organização das Nações Unidas e da Fundação Suíça para a Paz em 2008, é atualmente composta por 14 organizações, em diferentes regiões. Seu objetivo é conectar periodicamente as organizações de mediação em campo para compartilhar informações sobre suas atividades; promover e executar ações conjuntas e troca de informações acerca das tendências de problemas afetos ao campo da mediação. b) Grupo de Amigos da Mediação O Grupo de Amigos de Mediação, formado em setembro de 2010, promove e impulsiona a utilização da mediação na resolução pacifica de conflitos, bem como 380

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gera apoio para desenvolvimento da mediação. Atualmente, o Grupo é composto por 38 Estados-Membros e sete organizações regionais. Foi criada força-tarefa, pela Finlândia e pela Turquia, que teve como objetivo, entre outros, sensibilizar a opinião pública sobre a necessidade de resolver disputas pacificamente através da mediação, incentivando as partes interessadas a incluir em acordos regionais o caminho da mediação, além de destacar a importância da participação das mulheres em todas as fases e todos os níveis do processo de mediação (IBID, p. 17). c) O Conselho Consultivo Acadêmico O Conselho Consultivo Acadêmico de Mediação, vinculado ao Departamento de Assuntos Políticos da Nações Unidas (DPA), foi estabelecido em novembro de 2012 com o objetivo de promover o intercâmbio mais sistemático entre acadêmicos e instituições, que trabalham na prevenção e mediação de conflitos em diferentes regiões. O Conselho Acadêmico visa articular teoria e análise prática e apoiar a geração e disseminação do conhecimento para os profissionais de mediação e sua equipe de apoio, a fim de promover o debate entre acadêmicos e profissionais, construindo uma ampla rede entre acadêmicos em Mediação. O trabalho é organizado por um Comitê Gestor, composto pela MSU e oito acadêmicos de várias instituições mundiais. d) Redes de Mediação Emergentes A declaração do Secretário Geral no Relatório A/66/811 foi no sentido de intensificar aspectos necessários para reforçar a função e eficácia da mediação. A comunidade acadêmica, a participação de líderes religiosos e das mulheres são enxergados como pontos a serem reforçados, nessa perspectiva (IBID, p. 18). A atuação dos líderes religiosos e das organizações confessionais desempenham papel importante na mediação, pois que possuem conexões diretas com as partes envolvidas e geralmente gozam de confiança pelas comunidades locais. A ampliação e o fomento da participação das mulheres no processo de mediação ocupam um lugar de destaque nos planos do Secretário Geral. Atualmente, as Nações Unidas contam com a participação de mulheres com conhecimento em questões de gênero, com participação em quase todas as equipes de mediação. volume

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5. conclusões 1. Diante do relato feito acerca das questões que envolvem a atuação da Unidade de Apoio à Mediação e as parcerias realizadas para coordenar os esforços de mediação em busca de uma paz inclusiva, as Nações Unidas têm realizado grandes progressos para aplicar a mediação aos problemas contemporâneos. Embora tenha ocorrido avanços desde a criação da Unidade de Mediação, os esforços podem ir além, se associados à intensificação do papel e eficácia da mediação preventiva. 2. Há necessidade de uma vinculação mais estreita entre as capacidades nacionais e esforços de mediação locais com a comunidade internacional. Embora capacidades nacionais para a gestão de conflitos sejam essenciais para manter a paz, a falta de conhecimento ou investimentos para promovê-los pode minar o seu potencial de mediação global. É essencial que se forneça um apoio contínuo à capacidade nacional e local, incluindo a sociedade civil e líderes, para evitar que se reativem ciclos de violência e tensão. 3. Promover a participação das mulheres nos processos de mediação. É necessário um conjunto suficiente de recursos e vontade política para facilitar a inclusão das mulheres em todos os níveis de mediação. 4. Articular uma colaboração mais estreita com outras organizações, tanto intergovernamental, como não-governamentais, bem como com membros da sociedade civil e religiosos que participam de iniciativas de paz. Da mesma forma, uma relação mais fluida com a comunidade acadêmica, que aborda questões de Mediação para ajudar a aprofundar o conhecimento sobre a resolução de conflitos. 5. A experiência da MSU tem apresentado lições valiosas sobre como a mediação pode contribuir para a prevenção e resolução de conflitos. Com base nesta experiência e no estabelecimento de redes entre os participantes da mediação, a MSU apresenta repercussões positivas, quanto à participação ampliada de diversos atores na resolução de conflitos de natureza complexa. Comprova-se, com isso, o arranjo de governança global, que trabalha de maneira sistêmica, com foco na solução de conflitos e na concretização da paz inclusiva e duradoura que aborde as necessidades de todas as pessoas afetadas pelo conflito. 382

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6. referências WILS, Oliver; HERRBERG, Antje. Evaluation of the Mediation Support Unit Standby Team of Mediation Experts. Report Final 2011. Norwegian Refugee Council. Disponível em: http://www.nrc.no/arch/_img/9566512. pdf. Acesso: 03.06.2014. MARSHALL. Andrew C. States, international organisations and other actors in the world of peacemaking. In: Global networks of mediation: Prospects and avenues for Finland as a peacemaker, FIIA 32/2012. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Assembleia Geral. A/ RES/66/291. Strengthening the role of mediation in the peaceful settlement of disputes, conflict prevention and resolution. September, 2012. _______. Assembleia Geral. A/RES/65/283. Strengthening the role of mediation in the peaceful settlement of disputes, conflict prevention and resolution. July, 2011. _______. Assembleia Geral. A/RES/60/1. 2005 World Summit Outcome. October, 2005. _______. Assembleia Geral. S/PRST/2008/36. Statement on the Agenda item “Maintenance of international peace and security: mediation and settlement of disputes”. September, 2008. _______. Departamento de Assuntos Políticos. United Nations Guidance for Effective Mediation. July, 2012. _______. Departamento de Assuntos Políticos. Guidance for Mediators: Addressing Conflict-Related Sexual Violence in Ceasefire and Peace Agreements. January, 2012. _______. Departamento de Assuntos Políticos. Annual Report 2011. 2011. _______. Secretário Geral. Departamento de Assuntos Políticos. Standby team of Mediation Experts. 2014. _______. Secretário Geral. A/66/811. Report on “Strengthening the role of mediation in the peaceful settlement of disputes, conflict prevention and resolution”. June, 2012. volume

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_______. Secretário Geral. S/2009/189. Report on “Enhancing Mediation and its Support Activities” April, 2009. _______. A/59/565., Report of the High-level Panel on Threats, Challenges and Change. A more security World: Our Shared Responsability, November 2004.

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estado social democr ático de direito, concessão de serviços públicos e globalização econômica. reflexões sobre um mundo em tr ansformação1 Marcos Augusto Maliska 2 Eduardo Biacchi Gomes3

Resumo As diversas interpretações da realidade brasileira, passando pelo modelo da vocação agrária, do nacional-desenvolvimentismo, da modernização autoritária, do neoliberalismo e da crise do Estado nos mostram um retrospecto da relação entre Estado e Sociedade. O momento atual, que se inicia com a estabilização da moeda e do controle sobre a inflação, deu novos rumos ao país. Experimentouse o crescimento econômico com a inclusão social de parcelas significativas da população por meio de políticas de redistribuição de renda. Essa nova realidade coloca desafios que implicam na definição do papel que o Estado deve assumir. No enfrentamento desses desafios o Estado necessita da cooperação com a sociedade.

Palavras-chave Estado Social; Globalização econômica; Concessão de serviços públicos.

Abstract The various interpretations of Brazilian reality through the model of agrarian vocation, national developmentalism, the authoritarian modernization, new 1 O presente texto, ainda inédito, foi escrito com outra estrutura por um dos autores em 1998 quando ainda do período de sua formação acadêmica. Em face do tema do I Encontro de Internacionalização do CONPEDI os autores resolveram retomá-lo para submeter sua tese ao debate acadêmico. Mantendo as fontes bibliográficas da época o texto foi alterado apenas quanto a sua estrutura, com a reformulação dos capítulos, alteração de parágrafos e revisão do texto. 2 Professor do Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia da UniBrasil, em Curitiba e Procurador Federal. 3 Professor do Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia da UniBrasil, em Curitiba e Advogado. volume

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liberalism and the state crisis show us a flashback of the relationship between state and society. The present moment, which begins with the stabilization of the currency and control over inflation, gave new direction to the country. There was economic growth with social inclusion of significant portions of the population through policies of income redistribution. This new reality brings challenges to the role that the state should take. In addressing these challenges, the state needs cooperation with society.

Key words Social state; Economic globalization; Public service franchise. 1. introdução A questão central que pretendemos abordar nesse artigo diz respeito a uma possível ou não consolidação de um Estado Social Democrático de Direito com a participação mínima do Estado em termos de prestador direito de serviços públicos, ou seja, uma possível conjugação do modelo de Estado Social democrático e a concessão de serviços públicos. Necessariamente a concessão de serviços públicos de forma ampla rompe com o modelo constitucional de 1988? É possível construir um Estado de bem estar com a participação da iniciativa privada? Quais são os limites, e se existem, das privatizações dos serviços públicos? As transformações pelas quais estão passando o Brasil e grande parte dos países do mundo são constantemente criticadas por provocarem o desmonte do Estado Social. Não poucos autores entendem que o modelo de privatizações irá produzir sociedades cada vez mais excludentes e mais distantes dos direitos fundamentais.4 O chamado neoliberalismo, termo genérico onde são incluídas todas as perspectivas que procuram reduzir o tamanho do Estado e da sua participação na economia, é apontado como caminho de retrocesso na conquista e efetividade de direitos. De outra forma, uma economia de mercado fundada em princípios de concorrência, competição, melhor produto e menor preço, ao mesmo tempo em que propicia bens de qualidade e em parte mais acessíveis, por outro, acaba por 4 Neste sentido, ver o artigo de Farias (1998, P. 141-149).

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também produzir sociedades em que as pessoas estão constantemente inseguras com o emprego, recebem pressão por produtividade e desempenho, estão em permanente processo de avaliação e insegurança. Essas análises estão presentes quando o tema neoliberalismo é abordado. Sem procurar aqui desconsidera-las, mas com o objetivo de esclarecer melhor o objeto da discussão que se pretende neste texto, procuraremos dar ao estudo uma inclinação no sentido de tentar conceber, ou salvar, a ideia de Estado Social dentro das tendências econômicas globalizantes e liberalizantes. Portanto, as perguntas que nos fizemos são as seguintes: diante dessa nova postura assumida pelo Estado, é possível ainda se falar em Estado Social Democrático de Direito ou estamos diante de um novo paradigma de Estado? Em quais pontos ainda se pode falar que o modelo implantado em 1988, de um pacto pela construção de uma sociedade justa, livre e solidária, está ainda intacto? A redução do espaço público estatal e a transferência para um espaço público não estatal de serviços essenciais à coletividade implicam em negação de direitos consagrados na Constituição? Para tentar desenvolver essas questões o presente artigo inicialmente aborda o tema da globalização econômica sob o viés da chamada interpretação da crise do Estado, defendida por Bresser Pereira. Em um segundo momento o texto apresenta a análise feita por Chirillo dando ênfase à chamada economia social de mercado. Tendo por base essas duas análises, que, em certa medida, aproximam-se bastante quanto à compreensão do papel do Estado Constitucional, desenvolvemse, no terceiro tópico do texto, algumas ideias acerca do lugar e do papel do Estado Social Democrático de Direito em face do seu dever constitucional de promover os direitos sociais prestacionais e o bem estar geral e da possibilidade de participação privada na prestação de serviços públicos. 2. a globalização da economia e a interpretação da crise do estado A globalização da economia, a abertura comercial do setor de serviços, o interesse internacional na exploração de novos mercados acabam por se confundir com o outro lado da questão, que retrata a incapacidade do Estado em oferecer volume

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serviços públicos com qualidade. Até que ponto há uma má administração pelo Estado e até que ponto algumas privatizações não retratam apenas uma opção política pela liberalização da economia são limites dificilmente identificáveis. Após um período dominado pela concepção de que o Estado deveria ter um papel determinante na economia, protegendo mercados, atuando diretamente na condução da economia, o mundo começou a presenciar a partir dos anos setenta do Século XX uma nova realidade na ordem econômica capitalista. Como um “rolo compressor”, a onda de privatizações e diminuição do tamanho do Estado invadiu a concepção de políticos, empresários e até de setores trabalhistas, intitulando-se como o caminho para o ajuste de economias debilitadas. Buscando analisar essas transformações mundiais a partir da realidade brasileira, para podermos melhor compreende-las, vale trazer o texto de Bresser Pereira (1996), que fazendo uma análise do comportamento do Estado e das políticas Econômicas no Brasil e na América Latina, classifica as interpretações do subdesenvolvimento da América Latina da seguinte forma: 1) interpretação da vocação agrária ou interpretação liberal-oligárquica; 2) interpretação nacionaldesenvolvimentista; 3) interpretação autoritário-modernizante ou burocráticocapitalista; 4) interpretação neoliberal; e 5) interpretação da crise do Estado. A interpretação liberal-oligárquica e sua estratégia da vocação agrária foram dominantes no Brasil até os anos de 1930. Com ela tinha-se a concepção de que o Brasil estava em um processo de modernização deixando sua condição de sociedade tradicional para tornar-se capitalista, moderna. Essa teoria admitia a dependência econômica e cultural em relação aos países industrializados (BRESSER PEREIRA, 1996, p. 35). A interpretação nacional-desenvolvimentista originou-se na esquerda e na burguesia nacionalista e tinha sua estratégia assentada na substituição de importações. Essa interpretação prevaleceu nos anos de 1950 quando foi dominante o pacto populista. Após a crise dos anos de 1960 essa teoria assumiu uma forma mais sofisticada e dialética ao criticar o imperialismo como a principal causa do subdesenvolvimento da América Latina. A chamada interpretação da nova dependência enfatizou as consequências negativas da aliança dos Estados Unidos e das corporações multinacionais com as burguesias locais e os militares, como, por exemplo, a concentração de renda e autoritarismo. Ela também 388

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criticou a distorção da interpretação nacional-desenvolvimentista promovida pela visão populista (BRESSER PEREIRA, 1996, p. 33-35). Para Bresser Pereira (1996, p. 33-35) a interpretação autoritário-modernizante caracterizou o regime tecno-burocrático-capitalista que dominou o Brasil entre 1964 e 1984. Essa interpretação assentou-se em um pacto político excludente que envolveu a burguesia local, a nova classe média burocrática e as corporações multinacionais. Ainda que a interpretação autoritário-modernizante tenha se apresentado como uma crítica ao nacional-desenvolvimentismo, ela, de igual forma, adotou a estratégia da substituição de importações. Quando, em meados dos anos de 1970, a burguesia local rompeu a sua aliança com os militares, até 1986, quando houve o fracasso do Plano Cruzado, um pacto populista e democrático envolvendo a burguesia, a classe média assalariada e os trabalhadores liderou a transição para a democracia. O mesmo ocorreu na Argentina, entre 1983 e 1989, após a transição para a democracia, e no Peru, entre 1986 e 1990 (BRESSER PEREIRA, 1996, p. 33-35). A interpretação neoliberal começou a ganhar espaço nos anos de 1970, quando a ideologia dominante internacional já era o neoliberalismo. No Brasil essa interpretação surgiu apenas depois do colapso final do pacto autoritário modernizante e a posterior incapacidade do pacto democrático-populista de enfrentar os problemas que estavam surgindo (BRESSER PEREIRA, 1996, p. 33-35). A abordagem social-liberal da crise do Estado começou a se afirmar entre a esquerda moderada depois que o fracasso do Plano Cruzado demonstrou o esgotamento definitivo da estratégia nacional-desenvolvimentista. Para Bresser Pereira (1996, p. 33-35) ela se apresenta como alternativa ao neoliberalismo, visto que a esquerda tradicional continua presa ao nacional-desenvolvimentismo. A interpretação neoliberal e a interpretação da crise do Estado possuem estratégias internacionalistas, mas a primeira está baseada no pressuposto da existência de interesses internacionais comuns, enquanto a segunda está baseada no princípio do interesse nacional. A crise da América Latina originou-se da crise da dívida externa e sua causa básica foi a crise fiscal do Estado. No momento em que o Estado tornouvolume

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se insolvente, ele perdeu o crédito e com isso ficou imobilizado. Outra causa subsidiária foi o esgotamento de uma estratégia de desenvolvimento inicialmente bem sucedida e de uma correspondente interpretação dos problemas latino americanos, a interpretação nacional-desenvolvimentista, baseada na substituição de importações e na ativa participação do Estado no setor produtivo da economia (BRESSER PEREIRA, 1996, p. 31). No entendimento de Bresser Pereira (1996, p. 32), a interpretação da crise do Estado é a única a fazer frente à onda neoliberal. Não obstante compartilharem vários pontos de vista, pois criticam o populismo e o nacional-desenvolvimentismo e concordam que o Estado cresceu demasiadamente, a interpretação da crise do Estado e a interpretação neoliberal divergem, segundo o autor, no que diz respeito às causas básicas da crise. Enquanto a interpretação neoliberal atribui a crise apenas aos problemas domésticos e ao tamanho excessivo do Estado, a interpretação da crise do Estado enfatiza também o papel desempenhado pela crise da dívida externa e, além do tamanho do Estado, o seu gigantismo enfraquecido, ou seja, o Estado grande e fraco. O objetivo da abordagem neoliberal é reduzir o papel coordenador do Estado, visando estabelecer o ‘Estado Mínimo’, ao passo que a interpretação da crise do Estado não vê essas reformas orientadas para o mercado como monopólio da direita. Por meio das reformas e do ajuste fiscal tem-se como reconstruir o Estado e recuperar a sua capacidade de investimento. O texto de Bresser Pereira procura desfazer a ideia de que as privatizações necessariamente retratam uma concepção única e exclusivamente conservadora. No entendimento do autor, podemos fazer justiça social com uma política de diminuição do tamanho do Estado e liberalização da economia. 3. a função econômica do estado. o modelo da economia social de mercado O entendimento de Bresser Pereira parece encontrar sustentação na classificação que faz Chirillo (1995, p. 125-133) sobre os distintos enfoques da função econômica do Estado. Segundo o autor é possível distinguir (i) a privatização na ideologia da New Right, (ii) a privatização na fundação do novo Estado de Bem Estar e (iii) a privatização e a instauração do modelo de economia social de mercado. 390

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A privatização na ideologia da New Right não exprime um movimento uniforme, abarca tanto a corrente liberal, que prega o Estado Mínimo, quanto à conservadora, que exige um Estado forte que mantenha a ordem social e a autoridade. O seu denominador comum consiste em reconhecer a primazia do princípio do livre mercado sobre o papel garantista do Estado, apresentando os seguintes elementos em comum: (i) o modelo livre de mercado como forma de desenvolvimento das atividades econômicas; (ii) a crítica à função garantista e protecionista do bem estar individual com a pretensão de uma redefinição de todos os direitos de caráter social reconhecidos ao indivíduo; (iii) a função do Estado consistente apenas no exercício de sua autoridade fazendo observar aos particulares as regras do jogo. Reconhece-se que a liberdade tem uma tendência natural a autodestruição de modo que a presença de um Estado forte se justifica (CHIRILLO, 1995, p. 126-127). As posições extremas das correntes da New Right podem ser identificadas na necessidade de se romper em definitivo com o consenso coletivista do póssegunda guerra mundial e que as privatizações podem abarcar todas as funções estatais, inclusive a função estatal de segurança pública, como as polícias e as prisões, bem como a de emissão da moeda e da justiça (CHIRILLO, 1995, p. 126-127). O novo Estado de Bem Estar, por sua vez, é retrato, segundo Chirillo (1995, p. 129), da crise reconhecida pelos próprios partidários desse modelo de Estado. A proposta consiste na revisão dos postulados do Estado de Bem Estar tradicional, na refundação do Estado de Bem Estar na fórmula de consenso da social democracia que predominou no período posterior a Segunda Guerra. Neste novo consenso para o Bem Estar os postulados originais permanecem inalteráveis, como as políticas redistributivas, pleno emprego, pressão fiscal e, desde logo, empresas públicas. Trata-se de consolidar um modelo econômico chamado de economia mista, em que confluem de modo idêntico os postulados públicos e as liberdades dos indivíduos. Já o modelo de economia social de mercado têm suas origens na Alemanha da década de 1950. Uma das vantagens desse modelo econômico encontra-se no fato de que partindo do princípio da livre iniciativa privada no marco de uma economia de mercado, o Estado se habilita a desenvolver uma atividade positiva volume

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em comparação ao caráter abstencionista do Estado liberal, de corte claramente individualista (CHIRILLO, 1995, p. 132). Para Chirillo (1995, p. 132), citando Cassagne, as mudanças profundas e radicais que estão acontecendo implicam em um novo modelo de Estado, o Estado Subsidiário, cujas características predominantes o tipificam como uma organização binária que se integra com uma unidade de superior hierarquia, que exerce funções indelegáveis, como justiça, defesa, segurança, relações exteriores e legislação, pertencentes ao Estado como comunidade perfeita e soberana, unidade que se completa ao próprio tempo com outra, mediante funções desenvolvidas por um conjunto de organizações menores que cumprem uma visão suplementar da atividade privada, como educação, saúde e serviços. Um setor da doutrina alemã tem observado que a economia social de mercado é, antes de tudo, uma economia de mercado, a saber, nela combinam-se a oferta e a procura e o Estado se abstém de intervir no mercado, não fixa preços máximos e nem mínimos, porém cria uma ordem de concorrência para que a liberdade empresarial que oferece o mercado não seja eliminada (CHIRILLO, 1995, p. 132). O principal na manutenção da ideia de Estado Social no âmbito das privatizações é a clara concepção das obrigações sociais do Estado. Não é demais repetir que o Estado deve ter nítidos programas nas áreas sociais, propiciando o desenvolvimento da pessoa enquanto cidadã. Neste sentido, podemos afirmar que tanto a concepção apresentada por Bresser Pereira acerca da interpretação da crise do Estado, como o modelo de economia social de mercado, indicado por Chirillo, retratam a ideia de que o Estado deve manter-se atuante no tocante as suas obrigações constitucionais. De fato, no momento em que as responsabilidades sociais do Estado não são afastadas, visualiza-se que não há propriamente uma ruptura com a ideia de Estado Social, mas tão só uma mudança de estratégia no tocante ao modelo de desenvolvimento econômico, de concentrador e estatizante para liberalizador com reduzida participação do Estado. Esse entendimento acaba por nos levar a uma tese que nos parece central na distinção entre a estratégia conservadora e a estratégia progressista. Em nenhuma hipótese as privatizações e a liberalização da economia nos levarão para um Estado Mínimo. Isso porque a ideia de Estado Mínimo é incompatível com uma análise mais profunda do papel do Estado nas sociedades contemporâneas. Tentar voltar 392

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a um modelo que já demonstrou ser insustentável representa um claro retrocesso em termos de evolução de direitos, de garantias fundamentais dos cidadãos atribuídas ao Estado. Desta forma, a discussão do tamanho do Estado cede lugar ao papel que necessariamente deve assumir o Estado numa economia liberalizada. Na concepção de um Estado Social Democrático de Direito o Estado este deve assumir claros compromissos com a realização dos direitos sociais previstos constitucionalmente. No tocante ainda ao tamanho do Estado, vale registrar as ponderações de Freitas (1995, p. 33) acerca de um Estado essencial sem significar um Estado reduzido. Ao revés, longe do Estado mínimo assim como do Estado máximo, o Estado essencial busca ter o tamanho viabilizador do cumprimento de suas funções, nem mínimas, nem máximas, simplesmente essenciais. 4. o lugar e o papel do estado social democr ático de direito A Constituição de 1988, na onda de redemocratização do país após vinte anos de regime autoritário, normatizou como objetivo da República brasileira a construção de um Estado Social Democrático de Direito. No dizer de Sundfeld (1993, p. 55), para definir juridicamente o Estado brasileiro de hoje - não só ele: a maioria dos Estados civilizados – “basta construir a noção de Estado Social e Democrático de Direito, agregando-se, aos elementos ainda há poucos indicados5, a imposição, ao Estado, de dever de atingir objetivos sociais, e a atribuição, aos indivíduos, do correlato direito de exigi-lo”. Neste sentido, a nossa realidade constitucional enquanto programa constitucional está dirigida para a construção e solidificação de um Estado Social Democrático de Direito. Este parece ser o principal vetor das discussões 5 “Chegamos assim aos elementos do conceito de Estado Democrático de Direito: a) criado e regulado por uma Constituição; b) os agentes públicos fundamentais são eleitos e renovados periodicamente pelo povo e respondem pelo cumprimento de seus deveres; c) o poder político é exercido, em parte diretamente pelo povo, em parte por órgãos estatais independentes e harmônicos, que controlam uns aos outros; d) a lei produzida pelo Legislativo é necessariamente observada pelos demais Poderes; e) os cidadãos, sendo titulares de direitos, inclusive políticos, podem opô-los ao próprio Estado. Em termos sintéticos, o Estado Democrático de Direito é a soma e o entrelaçamento de: constitucionalismo, república, participação popular direta, separação de Poderes, legalidade e direitos (individuais e políticos). (SUNDFELD, 1993, p. 53). volume

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acerca da reforma do Estado, concessão de serviços públicos, privatizações e outros. A preservação do modelo constitucional de 1988, nos parece, implica necessariamente ter como objetivos a construção desse modelo de Estado. Para melhor compreender a noção, imperioso se faz uma breve revisão histórica, bem como a indicação de algumas de suas características. Na história constitucional dos últimos duzentos anos, o século XX se caracterizou pelo aparecimento de direitos fundamentais prestacionais6, ou seja, direitos que não dependem apenas de uma ação negativa do Estado, de não violação da esfera individual, mas de direitos que necessitam de uma atuação positiva do Estado, através do fornecimento à população de condições materiais básicas. O Estado, que no modelo liberal clássico era de expressão mínima, dominado por uma teoria que determinava com clareza os espaços públicos e privados, foi se modificando para um Estado maior, interventor na economia, prestador de serviços públicos, fomentador da economia. Os direitos sociais, que na Constituição de Weimar ainda estavam sob o rótulo de “normas programáticas”7, foram concretizados pelo chamado “Estado de Bem Estar Social”. Um Estado forte, prestador de direitos sociais como forma de tentar consolidar uma conjugação do modelo capitalista com a utopia socialista. O Estado de Bem Estar tem como característica uma forte presença na economia, em especial nas áreas chamadas estratégicas, como telecomunicações, energias e outras. Os serviços públicos foram por esse modelo prestados diretamente pelo Estado, que através de uma imensa máquina burocrática expandiu-se para as mais diversas áreas.8 6 Canotilho (1993, p. 541) escreve que “os poderes públicos têm uma significativa de responsabilidade no desempenho de tarefas econômicas, sociais e culturais, incumbindo-lhes pôr à disposição dos cidadãos prestações de vária espécie, como instituições de ensino, saúde, segurança, transportes, telecomunicações, etc.”. 7 Segundo Bonavides (1997, p. 206), “a instabilidade e o compromisso marcam, ao contrário, o constitucionalismo social, desde o seu advento, fazendo frágeis os alicerces das Constituições que, a partir do primeiro pós-guerra deste século, buscam formas de equilíbrio e transação na ideologia do Estado social. A trégua constitucional em meio ao conflito ideológico se fez unicamente em razão das fórmulas programáticas introduzidas nos textos das Constituições, sendo paradigma maior dessa criação teórica a Constituição de Weimar.” 8 Como momento histórico marcante da transição entre a economia liberal e a economia com intervenção do Estado, podemos citar a crise de 1929: “A Grande Depressão foi uma das maiores crises do sistema capitalista, iniciada nos Estados Unidos no fim da década de

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Importante observar que nesta fase são identificáveis dois aspectos que norteiam a concepção de Estado Social. Em primeiro lugar, o surgimento das Constituições Sociais (Weimar 1919, México 1917), decorrente das exigências inadiáveis de uma necessária atuação do Estado na prestação de direitos sociais, agravada pela crise do paradigma liberal que pregava a abstenção do Estado. Em segundo lugar, derradeiro na nova postura do Estado em especial frente a economia, foi a profunda crise econômica mundial iniciada no final dos anos vinte. O Estado, nesse segundo momento, vai além de uma atuação positiva que o constitucionalismo social o exigia. A crise apresentou-se com tamanha expansão, que o Estado assumiu posições gigantescas.9 Neste aspecto, cumpre lembrar o que escreve Sundfeld (1993, p. 54) acerca dos direitos sociais: “Em primeiro plano, aparecem os chamados direitos sociais, ligados sobretudo à condição dos trabalhadores: garante-se o direito ao salário mínimo, restringe-se - em nome da proteção do economicamente fraco - a liberdade contratual de empregadores e empregados. De outro lado, o indivíduo adquire o direito de exigir certas prestações positivas do Estado: o direito à educação, à previdência social, à saúde, ao seguro-desemprego e outros mais”. O desenvolvimento econômico é condição para a realização dos direitos sociais. O Estado necessita ter receitas para cumprir com suas obrigações sociais, 1920 e atingindo, nos anos subsequentes, praticamente o mundo todo. Aparentemente, uma das razões pode ser encontrada no fenômeno especulativo, que ocasionou a grande alta no mercado de valores, alta que por volta de 1929 tinha levada à Bolsa cerca de 10 milhões de investidores que viam seu dinheiro aumentar cada vez mais, sem esforços nem dificuldades. Quando veio a quebra, iniciada a 29 de outubro de 1929, poucos acreditavam realmente no que estava acontecendo. Algumas semanas mais tarde, 30 bilhões de ‘lucros’ tinham-se evaporado. Milhões de pessoas que haviam aplicado em ‘papéis’ e pensavam estar prósperas acabaram percebendo que se encontravam na miséria. Como resultado, o Produto Nacional Bruto caiu drasticamente de 104 bilhões em 1929 para 56 bilhões em 1933; bancos faliram; indústrias fecharam e em consequência a taxa de desemprego subiu muito. Em 1929 havia 1,5 milhão de desempregados e em 1933 o número elevou-se oito vezes, até que uma pessoa em cada quatro estivessem sem emprego. Alastraram-se os bairros de lata (favelas), construídos na periferia das cidades; a fome e a subnutrição generalizaram-se e a educação sofreu forte abalo. As condições sociais não poderiam ser piores e houve quem temesse uma revolução social. Contudo, o capitalismo, em vez de desaparecer, saiu fortalecido, embora o laissez-faire tenha sido sepultado junto com a crise. E uma economia dirigida, na qual o Estado exerceria um papel destacado, surgiu e se implantou na maior nação capitalista do mundo.” (NADAI e NEVES, 1988, p. 196-198). 9 Sobre as mudanças que a crise provocou na estrutura do Estado norte americano, ver Schwartz (1966, p. 206 e seg.) volume

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exigentes de investimentos consideráveis. No entanto, e essa é também outra variável que se confunde com a noção de Estado Social não sendo necessariamente de sua essência, o Estado muitas vezes teve que fazer o papel de empresário para alavancar o desenvolvimento econômico. Neste aspecto em particular, o Estado não está atendendo diretamente o objetivo de prestação de direitos sociais, mas sim assumindo uma tarefa que é condição para a prestação de direitos sociais, o desenvolvimento econômico. Daí resulta que o gigantismo do Estado não equivale a noção de Estado Social. Referendando essa reflexão, Sundfeld (1993, p. 55) escreve: “Para incrementar o desenvolvimento econômico, sobretudo nos países subdesenvolvidos, o Estado passa a atuar como agente econômico, substituindo os particulares e tomando a si a tarefa de desenvolver atividades reputadas importantes ao crescimento: surgem as empresas estatais”. Cabral de Moncada (1998, p. 23) descreve o modelo jurídico do Estado Social em razão do seu alargamento a todas as esferas de atividade, com destaque para a economia, visto que a atividade econômica deixou de ser mais um setor indiferenciado da atividade privada geral para passar a ser objeto específico da atividade conformadora dos Poderes Públicos. Do mesmo modo a ciência econômica deixou de ter por objeto o simples estudo do comportamento (econômico) do indivíduos e passou a abranger também o Estado. No tocante ao papel interventor do Estado, Cabral de Moncada (1998, p. 32) faz a seguinte classificação: intervencionismo, dirigismo e planificação. A diferença entre intervencionismo e dirigismo é muito importante, pois é uma diferença qualitativa. Apenas o dirigismo, característico do pós-guerra, pressupõe uma atividade coordenada do Estado em prol da obtenção de certos fins, ao contrário do empirismo, que caracterizava o intervencionismo. Estamos no quadro das finanças intervencionistas, contemporâneas do dirigismo, através das quais o Estado pretende obter da sua atividade financeira fins de ordem socioeconômica e não apenas arrecadar receitas. Por sua vez, a diferença entre o dirigismo e a planificação é de ordem quantitativa. A planificação é um dirigismo por planos. A diferença reside no grau de racionalização mais apurado que subentende o documento planificatório. A observação de Cabral de Moncada nos faz abordar outros aspectos do papel do Estado na economia, que surge com o Estado social e necessariamente 396

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continua atual, até mesmo para combater a ideia de Estado Mínimo. O Estado, independente de seu papel de empresário, atua também na economia de forma a equilibrar as forças econômicas, proteger o consumidor, regulamentar a atividade empresarial. O papel de fiscalizador das atividades privadas, publicizadas em seu sentido mais amplo em virtude do impacto que a ordem econômica causa na comunidade, continua atual e até mesmo se constitui em aspecto fundamental. O Estado sofreu uma considerável retração da sua atividade na economia. Iniciadas no final dos anos 1970 nos EUA e na Inglaterra, após algumas experiências no terceiro mundo (Chile com Pinochet, por exemplo), as privatizações tornaram-se receita para a quase totalidade das economias do mundo, impondo uma maior liberalização da economia, tanto das atividades empresariais do Estado, como das atividades de prestação de serviços públicos. Percebe-se, portanto, uma visível mudança na atuação do Estado. O Estado passa a atuar como agente fiscalizador, ele se retira da prestação direta dos serviços públicos e transfere o controle acionário de empresas públicas atuantes em atividades empresariais, enfim, muda o seu perfil. Neste sentido, nos colocamos as seguintes questões: a mudança do papel do Estado necessariamente reflete na ideia de Estado Social enquanto prestador de direitos sociais? É possível distinguir o Estado prestador direto de serviços públicos e a noção de direitos sociais, possível também de ser afirmada diante de um Estado que não atua diretamente na prestação de direitos, mas na coordenação de sua realização? Essas questões envolvem duas ordens de problemas. Primeiro, que a retração do Estado no tocante a prestação de serviços públicos, em princípio, é perfeitamente possível diante de um Estado Social; segundo, para que essa afirmação seja confirmada, o Estado necessariamente deve atuar em algumas áreas que lhe são estritamente peculiares, em especial, saúde, educação e assistência social. Isso porque a concessão, conforme escreve Rivero (1982, p. 518), tem um campo de ação limitado pela sua natureza e pela sua inspiração. Só deve aplicar-se a serviços em que se possa pedir ao utente uma contrapartida financeira, o que exclui tanto os serviços gratuitos por definição, como a assistência, quanto àqueles em que é impossível individualizar os utilizadores, como o conjunto das vias públicas, com volume

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exceção das autoestradas, em relação às quais a individualização é possível, e cuja construção e manutenção podem por isso ser concedidas. Disso, entendemos que o modelo econômico não tem ligação direta com a ideia de direitos sociais, ou seja, uma economia com intervenção estatal direta necessariamente não irá refletir a existência de direitos sociais, e de outra forma, uma economia em que o Estado não esteja diretamente prestando serviços públicos pode se retratar num modelo que contempla direitos sociais. Pretendemos, portanto, definir um Estado Social Democrático de Direito não pela atuação direta ou não na economia, mas sim pelo comprometimento constitucional com os direitos sociais, pela definição das atribuições do Estado, ainda no tocante a prestação direta de serviços públicos quando tais serviços sejam de prestação gratuita e universal, como são saúde, educação e assistência social. Acreditamos seja possível se falar em Estado Social Democrático de Direito quando temos uma forte presença privada na prestação de alguns serviços públicos. Isso não significa dizer, que o Estado não seja titular do dever constitucional de prestar o serviço, mas sim de que ele delega a terceiros essa prestação, de forma que, sob a égide da iniciativa privada, os serviços sejam de melhor qualidade e menor preço. Quando Hesse (1998, p. 170-171) escreve que “direitos fundamentais sociais mal se diferenciam, por isso, de determinações de objetivos estatais, isto é, normas constitucionais que determinam obrigatoriamente tarefas e direção da atuação estatal, presente e futura”, não quer com isso dizer que necessariamente o Estado deva prestar, ele próprio, o serviço, mas sim de que o serviço pode ser prestado ou realizado, por ele ou por terceiros. Isso esta claro no pensamento do jurista alemão, quando mais adiante observa: “tudo isso pressupõe, entretanto, que o Estado esteja em condições para realizar os objetivos estatais normatizados” (HESSE, 1998, p. 171). A realização de objetivos estatais pode ultrapassar sua capacidade, porque ele mesmo, muitas vezes, não dispõe dos meios de realização. Desta forma, “ele promete, então, na Constituição, uma coisa que ele não pode cumprir e, assim, podem esperanças, que se referem a determinações de objetivos estatais da Constituição, ser facilmente frustradas; o efeito integrador da Constituição pode transformar-se em seu contrário” (HESSE, 1998, p. 171). 398

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Essa última afirmação do saudoso Professor da Universidade de Freiburg parece retratar por completo a realidade brasileira, que dispõe de uma Constituição senão a mais avançada do mundo em termos de direitos sociais, mas, por outro lado, de um Estado que possui dificuldades enormes para prestar os serviços mais básicos. A ausência de investimentos públicos em alguns setores fundamentais para o desenvolvimento do país e a sua transferência para a iniciativa privada representaram uma alternativa na busca da modernização e do acompanhamento tecnológico. A concessão de serviços públicos, desta forma, não desconfigura o modelo de Estado Social, pois não se está diante de um retorno ao modelo liberal clássico de Estado Mínimo, até porque as realidades daquela época e dos dias de hoje são completamente distintas, e a ausência do Estado no papel de regulador da economia historicamente já demonstrou ser catastrófica.10 A concessão de serviços públicos, por óbvio, somente atrai o interesse do particular em explora-la quando desses serviços se puder extrair lucros. Casos ocorrem que o serviço é fundamental aos cidadãos e não existe interesse particular em explora-lo. Nestas hipóteses o Estado deve prestar diretamente o serviço. Outras hipóteses são saúde e educação, que necessariamente devem ser prestadas pelo Estado, com qualidade, àqueles que não possuem condições de buscar esses nos estabelecimentos particulares. O Estado, portanto, continua a prestar serviços públicos de forma direta. Um Estado social não se caracteriza pelo atendimento àqueles que possuem condições financeiras para arcar com as despesas do serviço. Um Estado social se caracteriza pelo investimento consistente em áreas fundamentais para o desenvolvimento da pessoa enquanto cidadã. Outro aspecto que caracteriza a noção de Estado Social Democrático de Direito é estar ele constantemente controlado pela sociedade civil organizada, de forma a 10 Neste sentido parece ser o entendimento de Justen Filho (1997, p. 644-654), ao entender que os projetos de redução das atividades estatais não afetam as garantias constitucionais acerca de um Estado Democrático de Direito, pois todas as modalidades de ‘privatização’ devem ser consideradas como instrumento de realização de valores constitucionais. Somente poderão ser admitidas quando importarem a realização mais satisfatória e adequada dos princípios fundamentais sobre os quais se estrutura o Estado brasileiro. Deverá adotar-se modelo que incorpore medidas e providências adequadas a resguardar o atendimento às carências regionais e individuais: “não se trata, tão somente, de eliminar ou reduzir dispêndios públicos. Impõese que o particular, ao operar o serviço público, consagre alternativas ainda mais satisfatórias no tocante à realização dos valores fundamentais”. volume

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expressar posições de governo conformadora com uma ordem democrática. Essa democracia entendida muito mais do que o simples gesto do “voto”, realizado de tempos em tempos e que, em especial no Brasil - pelo sistema eleitoral que temos, pouco é em termos de representação. A democracia, também é aqui entendida como a conformidade com a Constituição. As normas constitucionais expressam valores democráticos e necessitam possuir força normativa suficiente para derrogar toda e qualquer tentativa de abalo as instituições democráticas.11 Novamente Hesse (1998, p. 115), quando escreve sobre as bases da ordem constitucional da Lei Fundamental alemã, identifica a Democracia, o Estado de Direito Social e o Estado Federal. Sobre a democracia, diz que não há um conceito jurídico-constitucional ao qual são dadas interpretações tão diferentes. Diante dessa multiplicidade, o significado constitucionalmente decisivo do conceito pode ser ganho somente com base na forma concreta da democracia pela Constituição. Adverte, no entanto, que a Lei Fundamental não normatiza a democracia no sentido de um modelo completo e perfeito, senão somente em certos traços fundamentais. A Constituição deixa a questão sobre o conteúdo da democracia a cargo da discussão política livre. (HESSE, 1998, p. 117) O processo político, por sua vez, deve, segundo o art. 20, alínea 2, frase 1, da Lei Fundamental alemã, como um processo livre e aberto, ser objeto de todo povo, não de uma camada que sustenta o Estado, compreenda ela a maioria ou somente uma minoria do povo. Todos os membros do povo gozam dos mesmos direitos políticos; todos devem ter a oportunidade real e igual de se realizar em colaboração organizada conforme as regras da Constituição e, se conseguirem, exercer no parlamento e no governo o poder estatal. (HESSE, 1998, p. 120) Ainda observa o jurista alemão que a democracia é “um assunto de cidadãos emancipados, informados, não de uma massa ignorante, apática, dirigida apenas por emoções e desejos irracionais que, por governantes bem-intencionados ou mal-intencionados, sobre a questão do seu próprio destino, é deixada na obscuridade” (HESSE, 1998, p. 133). 11 A Constituição, num sistema democrático, assume posição central e se constitui no principal instrumento de sustentação do regime. Qualquer país que queira ser democrático deve ter na Constituição mais do que um simples documento, deve eleger a Constituição como guia condutor da sociedade e do Estado. Para isso, a Constituição necessita ser respeitada, necessita ter força normativa, como adverte Hesse (1995).

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Observa-se que não há possibilidade para que seja pensada de forma não harmônica a existência de uma democracia e um Estado que possibilite ao cidadão condições mínimas para que seja educado, alimentado, respeitado em sua integridade física e moral. Se o mundo hoje fala na democracia como regime mais adequado à sociedade moderna, deve necessariamente ter também presente que sem um Estado que propicie condições para a emancipação de seus cidadãos, não se pode nem pensar em democracia. 5. conclusões Nessas considerações finais gostaríamos de reforçar a ideia de que as privatizações por si só não desconfiguram o modelo de Estado Social. As privatizações representam efetivos instrumentos de melhoria na prestação de alguns serviços públicos. Os grandes avanços ocorridos nos últimos anos no Brasil, com a inclusão de uma parcela significativa da população no mercado de consumo, têm exigido a ampliação da infraestrutura do país. O Estado não tem correspondido às novas exigências e as privatizações mais recentes dos aeroportos, por exemplo, atestam que a participação privada deve ser bem vinda. O modelo de Estado social significa que o Estado é devedor de prestações em áreas como educação e saúde. Nesse âmbito o Estado deve prestar os serviços gratuitamente à população, deve financiar o estudo dos jovens, com bolsa de estudo, por exemplo, e outros instrumentos que motivem o aluno a permanecer na sala de aula; deve equipar e agilizar o atendimento de saúde, remunerando adequadamente seus servidores e investindo nas instalações públicas. Um Estado social, no nosso entendimento, é perfeitamente conciliável com uma economia de mercado e com os serviços públicos sendo prestados por meio de concessões. A preservação da capacidade de ação do Estado, tanto sob o ponto de vista da manutenção da estabilidade da moeda e do controle da inflação, quanto da sua capacidade de investimento e de estímulo ao desenvolvimento, é um bem que precisa ser preservado. Os históricos e profundos problemas sociais do Brasil, por outro lado, necessitam igualmente serem enfrentados. Como se afirmou no texto, a assistência social não pode ser desprezada em um país como o Brasil. A cidadania e o fortalecimento da democracia entre nós dependem dela. Essa sensibilidade de que um país com maior inclusão social é melhor para todos, volume

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de que os seus ganhos são infinitamente maiores que os custos mais imediatos que a redistribuição de renda pode ter, são questões que precisam ser incorporadas como um bem, o qual todos devem apoiar. 6. referências BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7º ed. São Paulo: Malheiros, 1997. BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Crise Econômica e Reforma do Estado no Brasil. São Paulo: Ed. 34, 1996. CABRAL DE MONCADA, Luiz S. Direito Econômico. 2º ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 1998. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6º Ed. Coimbra: Almedina, 1993. CHIRILLO, Eduardo J. Rodrigues. Privatización de la Empresa Publica y Post Privatización. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1995. FARIAS, Edilsom. Direitos Fundamentais e Políticas Neoliberais. In. Revista da Faculdade de Direito da UFPR. Ano 30, nº 30, 1998, p. 141-149. FREITAS, Juarez. Estudos de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1995, HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Fabris, 1998. _______. A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1995. JUSTEN FILHO, Marçal. Concessão de serviços públicos e princípio da legalidade. GENESIS. Revista de Direito Administrativo Aplicado, Curitiba, julho/ setembro de 1997, p. 644-654. NADAI, Elza e NEVES, Joana. História Geral: moderna e contemporânea. 5º ed. São Paulo: Saraiva, 1988. RIVERO, Jean. Direito Administrativo. Tradução de Rogério Ehrhardt Soares. Coimbra: Almedina, 1982, 402

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