Criminalização, direito e sociedade: olhares dogmáticos e empíricos sobre a cultura do medo e do espaço urbano

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Criminalização, direito e sociedade: olhares dogmáticos e empíricos sobre a cultura do medo e do espaço urbano Diego Oliveira Pereira1 Renata Almeida da Costa2 RESUMO: A fragmentação do espaço urbano é apresentada como fator significativo da produção da sensação social de insegurança. Assim, expressões como medo e perigo estão presentes, diuturnamente, no cotidiano da população de tais centros e têm influenciado a produção e a aplicação do Direito. Por esse motivo, faz-se necessária uma observação crítica do processo de urbanização por que passam (ou passaram) cidades como Canoas, buscando-se associar as origens dos pânicos morais aos fenômenos de geração de políticas públicas e de criminalização e aplicação do direito sancionador. O município de Canoas é o local de experimentação da investigação porque possui o segundo maior Produto Interno Bruto (PIB) gaúcho, é vizinho da capital do estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, é sede de grandes empresas nacionais e multinacionais e vem alterando o seu perfil urbanístico com o desenvolvimento de novos bairros e a recepção de grandes empreendimentos imobiliários. Ademais e principalmente, é em Canoas que programas-piloto de segurança pública têm sido implementados pelos gestores públicos. Para tanto, a pesquisa procura definir teoricamente no que consistem “o medo”, “a insegurança” e suas “sensações” no território urbano em estudo, e, em um segundo momento, a pesquisa empírica tem por objeto dois bairros específicos da cidade de Canoas, Mathias Velho e Guajuviras. Dessa forma, (a) o questionamento sobre a existência de Territórios da Paz (ou do medo), (b) da eficácia das políticas públicas destinadas a eles, e (c) do Direito Penal aplicado aos fatos lá acontecidos, são o mote de toda essa investigação científica. Palavras-chave: cultura do medo; criminalização; espaço urbano; insegurança.

ABSTRACT: The fragmentation of urban space is presented as a significant factor in the production of social feeling of insecurity. Thus, expressions such as fear and danger are present during the daytime, in the daily population of these centers and have influenced the production and application of the law. For this reason, it is necessary a critical observation of the urbanization process through which they pass (or have passed) cities like Canoas, seeking to associate the origins of the phenomena of moral panics generation of public policies and criminalization and enforcement of punitive law. Canoas is the place for experimentation of research because it has the second highest Gross Domestic Product gaucho (GDP), is the capital of the neighboring state of Rio Grande do Sul, Porto Alegre, is home to large national and multinational companies and is changing its urban profile with the development of new neighborhoods and the reception of large real estate projects. Furthermore and most importantly, is in Canoas pilot programs that public safety has been implemented by public managers. To this end, the research seeks to define theoretically consist in "fear", "insecurity" and their "feelings" in the urban area under study, and in a second step, empirical research's purpose is two specific neighborhoods in Canoas, Mathias Velho and Guajuviras. Thus, (a) the questioning of the existence of Territories for Peace (or fear), (b) the effectiveness of public policies to them, and (c) of the Criminal Law applied to events that took place there, are the theme of all this scientific research. Keywords: fear culture; criminalization; urban space; insecurity. 1

Aluno de Graduação do 5º Semestre do Curso de Direito do Centro Universitário La Salle – UNILSALLE CANOAS e bolsista em iniciação científica pela própria instituição. Está vinculado ao grupo de pesquisa Criminalização, Direito e Sociedade. 2 É Doutora em Direito pela UNISINOS (2010), Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002) e graduada em Direito pela Universidade de Passo Fundo (1998). É professora das Faculdades de Direito da La Salle, onde está vinculada ao projeto de Mestrado em Direito e Sociedade, e, também, do UNIRITTER (integrante da rede Laureate International Universities). Foi professora da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo (2000 a 2012) e pesquisadora visitante da Universidade de Reading (Inglaterra), onde realizou doutorado-sanduíche. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal e Criminologia, atuando principalmente nos seguintes temas: criminalidade organizada, controle social, sociedade e terrorismo. Líder do grupo de pesquisa Criminalização, Direito e Sociedade.

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Introdução

Mudanças sociais e rápido fluxo de informações são características típicas da contemporaneidade. Assim, paradigmas políticos, sociais e culturais não são estanques. Em conseqüência, relações sociais sofrem processos de desconstrução a ponto de tornarem-se difusas3. Em tal contexto, o espaço de convívio e interação do homem, a “polis”, também passou por uma transmutação. Hodiernamente, as grandes metrópoles e cidades são os núcleos da complexidade das relações sociais, nas quais os fenômenos do capitalismo e da globalização acentuam e aceleram o desenvolvimento e o progresso desses centros urbanos. Para Donzelot, os efeitos da globalização colaboram para a promoção do espaço urbano sob a égide da democracia: “La globalización constituye otro motivo de promoción de esta expresión em virtud de la valorización de la cuidad como lugar de convergencia de los flujos democráticos”(DONZELOT, 2012, P.7). Nesse sentido, as concepções da era pós-moderna, sob as perspectivas de Bauman, atentam para as consequências das rápidas transformações: a incontrolável força do mercado e a globalização penetram o interior das “polis”, chocando-se com as tradições locais, colocando as instituições de um Estado Democrático de Direito em xeque quanto a suas capacidades para resolução de conflitos. Tais aspectos têm sido apontados como determinantes da insegurança em massa4. O território urbano, depauperado de condições que transmitam uma noção de segurança (ora pelas crescentes patologias sociais5, ora induzida à ilusão pelo imaginário social6), é o local apropriado para a inciativa privada lograr-se da ausência de efetividade das ações estatais e proporcionar bens, produtos e serviços que atendam a demanda do mercado influenciado pela cultura do medo. Tem-se, assim, a “segurança” como bem de consumo. O mercado, dessa forma, concatenando seu poderio produtivo com a exiguidade de certezas e seguranças, apresenta para um público consumidor exclusivo um novo produto: espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer e trabalho. 3

Zygmunt Bauman, em obras como “O Mal-estar da pós-modernidade”, “Confiança e medo na cidade”, “Medo Líquido”, entre outras, trabalha com o conceito de relações difusas, líquidas (e até mesmo gasosas), pois, segundo ele, a contemporaneidade carece de certezas; cuja falta, é provocada pelas diversas revoluções ao redor do globo durante a história. 4 Marc Guérrien, Linda Green, Osvaldo Rolleri são autores que também abordam este tema cujo teor será desenvolvido ao longo do presente artigo. 5 O termo patologia social é adotado a partir de Durkheim, para quem a expressão significa a oposição ao padrão de normalidade. Neste sentido, os crimes e violência urbana são exemplos de patologias sociais. 6 Falta de conhecimento ou, superficialidade no entendimento dos fatos por parte da coletividade.

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Sendo assim, o mercado corrobora a marginalização dos excluídos do consumo a e depreciação de determinados espaços imersos em anomia7. Estes fenômenos mercadológicos e urbanísticos têm atracado frequentemente nas grandes cidades e metrópoles, como na Cidade de Canoas, no Estado do Rio Grande do Sul, conhecida popularmente por ser uma cidade dormitório8, e reconhecida, inclusive, pelos altos índices de crime e violência9. Não obstante à chegada desses adventos, os gestores municipais adotam políticas de segurança pública voltadas à contenção da crescente violência urbana, como resposta aos anseios midiáticos e sociais. No entanto, como se pretende demonstrar, tanto o Estado como o mercado, concorrem para a propagação da cultura do medo paralelamente ao processo de urbanização.

1. Insegurança cidadã

A arquitetura das cidades é, também, um produto cultural. Desse modo, acompanha o desenvolvimento da vida humana em sociedade. Dito de outra forma, o homem constrói o espaço urbano conforme suas necessidades, de acordo com o tempo em que vive. Nesse sentido, o convívio pacífico entre o homem e seus semelhantes, como objetivo da vida social, tem na “polis” uma promessa de segurança individual e coletiva contra ataques externos. Historicamente, os motivos que levavam à concreção de um território urbano seguiam uma linha defensivista: muros, fossos, paliçadas, entre outros. A ideia era manter os inimigos do outro lado e dificultar sua aproximação. Dentro das cidades, ordem e paz passavam a perspectiva de segurança e proteção à população. Do lado de fora dos muros havia inimigos, caos e guerra10. Sob essa perspectiva, o processo civilizador motivava as transformações da vida humana em sociedade, pois, segundo aponta Norbert Elias, “o processo civilizador é a longa transformação das relações interpessoais, dos gostos, dos modos e do comportamento e do 7

Ausência de organização legal. Ausência de regras ou enfraquecimento de valores. Pela proximidade da cidade de Canoas com a capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, ganhou a alcunha de cidade dormitório, pois muitos trabalhadores de Porto Alegre, não tendo condições de manter moradia na capital gaúcha, buscavam nos arredores da cidade grande abrigo e repouso. 9 No ano de 2009 foram apurados 103 casos de homicídios na cidade de Canoas. Somente no bairro Guajuviras constataram-se 28 homicídios. Fonte: Secretaria Estadual de Segurança Pública – SSP/RS. Dados divulgados pelo Observatório de Segurança Pública. 10 Zygmunt Bauman em sua obra Confiança e Medo na Cidade transcreveu uma citação da autora Nan Ellin, cuja obra referencial é Informational City (1989), de autoria do também sociólogo Manuel Castells, na qual a autora afirmava que “proteger do perigo sempre esteve entre os principais estímulos para construir cidades”(BAUMAN, 2009). 8

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conhecimento que acompanha a formação de um Estado Unificado” (ELIAS apud WACQUANT, 2008, p.34). No entanto, a modernização (o grande mundo do livre mercado) e a livre circulação financeira (os adventos do capitalismo e da globalização) derrubaram os muros de proteção do território urbano a partir do processo civilizador. As cidades tornaram-se espaços franqueados ao comércio e à ocupação pública e privada. E, nesse compasso, a expectativa de proteção simbolizada pelo fechamento dos muros se transformou em incerteza e sentimento de insegurança. Nesse sentido, a promessa de segurança que era oferecida pela “polis” fora desconstruída. Os territórios urbanos passaram por transformações, e, atualmente, apresentam-se como locais que refletem muito mais a contingência dos perigos do que a segurança. Hoje, na chamada pós-modernidade, com uma singular reviravolta em seu papel histórico – e a despeito das intenções ou expectativas originais -, as cidades, em vez de constituírem defesas contra o perigo, transformaram-se em locus do perigo. O vínculo entre civilização e barbárie se inverteu (BAUMAN, 2009, p.61). Nesse contexto, de acordo com Bauman, as cidades contemporâneas tornaram-se campos de batalha nos quais os poderes globais e os sentidos e identidades tenazmente locais se encontram, confrontam-se e lutam, tentando chegar numa solução satisfatória ou pelo menos aceitável para esse conflito: um modo de convivência que – espera-se – possa equivaler a uma paz duradoura, mas que em geral se revela antes um armistício (BAUMAN, 2009, p.35). Essa dicotomia apontada por Bauman também é observada pelo viés filosófico de Foessel, cujo teor de sua ótica reside nos desejos coletivo e individual por segurança (sentidos e identidades locais) frente às forças da globalização: El mundo de la globalización parece dividido entre dos deseos opuestos: la voluntad de protegerse de las amenazas venidas de fuera y el deseo de generalizar los flujos y neutralizar la estanquidad de las fronteras. Los “muros” simbolizan precisamente la síntesis de estas dos tendencias. Así, se distinguen de las fronteras clásicas: son construidos para rechazar del mundo exterior sólo aquello que pueda poner el peligro la globalización feliz del capitalismo (FOESSEL, 2011, p.35).

Como se percebe, de igual forma às cidades, as relações humanas não são mais espaços de certeza e tranquilidade. Em vez disso, transformaram-se numa fonte prolífica de ansiedade. Em lugar de oferecerem o ambicionado repouso, prometem uma ansiedade perpétua e uma vida em estado de alerta (BAUMAN, 2008, p.93-94). Destarte, os cidadãos que vivem nos grandes centros urbanos são conduzidos pela complexidade da vida pós2265

moderna à incerteza, uma vez que suas rotinas são constantemente alteradas, ou pelos adventos tecnológicos e mercadológicos, oriundos da globalização, ou por influência de ordem estatal, e principalmente, pela percepção sensorial aos fatos e acontecimentos ao seu redor. A incerteza leva à sensação de medo e insegurança, segundo Bauman: Os perigos que mais tememos são imediatos: compreensivelmente, também desejamos que os remédios o sejam – “doses rápidas”, oferecendo alívio imediato, como analgésicos prontos para o consumo. Embora as raízes do perigo possam ser dispersas e confusas, queremos que nossas defesas sejam simples e prontas a serem empregadas aqui e agora. Ficamos indignados diante de qualquer solução que não consiga prometer efeitos rápidos, fáceis de atingir, exigindo uma vez disso um tempo longo, talvez indefinidamente longo, para mostrar resultados. Ainda mais indignados ficamos diante de soluções que exijam atenção às nossas próprias falhas e iniquidades, e que nos ordenem, ao estilo Sócrates, que “conheça-te a ti mesmo!”. E abominamos totalmente a ideia de que, a esse respeito, há pouca diferença, se é que alguma, entre nós, os filhos da luz, e eles, as crias das sombras (BAUMAN, 2008, p.93-97).

A sensação de insegurança, também tida como um aspecto da Cultura do Medo, causada pela incerteza, apresenta-se como um problema multifacetário11. No entanto, geralmente as causas dessa sensação são relacionadas ao crime, bem como ao local associado ao crime, e esse, por seu turno, é o habitat dos criminosos. Ou seja, o imaginário social credita a existência de algum desviante12em um local predeterminado devido à ocorrência de uma conduta criminosa que é levada a conhecimento público por meio dos veículos de mídia. Para Bauman, a sensação de insegurança, em suas várias formas e manifestações, está enraizada na cultura da sociedade pós-moderna pelo medo dos crimes e dos criminosos (BAUMAN, 2009, p.16). Em suma, deve haver um culpado, um crime ou uma intenção criminosa (BAUMAN, 2009, p.15). Em outro sentido, segundo Foessel: “El miedo es siempre miedo de lo “prójimo”, tanto en el sentido de una amenaza cercana como porque el sentimiento del miedo se acompaña de una preocupación por el prójimo (FOESSEL, 2011, p.141).” Outro fator que aumenta a tensão causada pelas sensações de medo e insegurança reside na percepção dos cidadãos sobre as normas de seguranças existentes no território em

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Barry Glassner enumera diversos fatores que, em suas pesquisas, revelam-se causadores de medo e insegurança à sociedade norte-americana como dependentes químicos, mães jovens e solteiras, extrema pobreza, violência no transito, entre outros. Desta forma, entende-se que a Cultura do Medo não tem um único elemento constitutivo, é composta por diversos fatores sociais (GLASSNER, 2003). 12 Para Émile Durkhein o comportamento desviante é saudável para a manutenção do convívio social, uma vez que a não aceitação de uma conduta - norma, comportamento -, por um indivíduo, ou por um coletivo, torna-o contrário à ordem social preestabelecida.

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que habitam. Dessa forma, de acordo com o entendimento de Rolleri, é inexorável questionar a capacidade de o Estado controlar e conter o crime e a violência: Esta sensación de inseguridad aparece en función de la percepción que tienen los ciudadanos sobre los estándares de seguridad que existen en el entorno que habitan. En la mente del ciudadano surge el cuestionamiento del estado en cuanto a su capacidad para controlar el delito y la violencia (ROLLERI, 2006, p. 77).

Tendo em vista que os antigos muros de contenção cederam às pressões externas, o inimigo, que outrora ficava do outro lado do muro, se aproxima e imiscui-se à população. O sentimento de perigo e medo evidencia-se no território urbano. Portanto, são necessários novos meios de proteção, e esses legitimam adoções de medidas de segurança privada. Nesse sentido, Foessel afirma que “El deseo de muros se alimenta así de su propia satisfacción, erigiéndose en el prisma por el que los ciudadanos contemplan su propia seguridad” (FOESSEL, 2011, p.19).” No entanto, a edificação de muros tem um significado além da proteção e da segurança, são símbolos de poderio econômico e segregação social. Segundo o entendimento de Foessel: Los muros son perfectamente conciliables con la globalización económica precisamente porque no repelen a los extranjeros en general, sino solo a los pobre s […] Sin duda, la edificación de barreras reterritorializa el poder, pero lo hace en favor de Estados cuya soberanía se encuentra ya considerablemente debilitada por la globalización del comercio y intercambio (FOESSEL, 2011, p. 21-22).

Nesse contexto, Wacquant acrescenta que, não obstante ao sentimento de medo pelos crimes e criminosos, há um fator agravante a essa sensação: a criminalização da miséria e da pobreza (novo senso comum penal) (WACQUANT, 2004). Logo, a pobreza, e o espaço urbano na qual se concentra, são alvos de estigmatização. Associada à criminalização da miséria e da pobreza, a instituição do trabalho como norma cívica13 contribui para os segmentos inferiores do mercado de trabalho entrar no rol de marginalização, gerando, assim, uma espécie de sub-proletariado. Em outros termos,

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Segundo Wacquant, o trabalho assalariado precário e sub-remunerado está intrinsicamente ligado às atividades laborais comumente desenvolvidas pela população de baixa renda (ou, a população que vive em bairros marginalizados, devido à pobreza). Aos olhos do senso comum, tal precariedade carrega a reprovação social, uma vez que, atividades que não detêm grande prestígio social estão destinadas única e somente para os pobres e miseráveis. Portanto, a instituição do trabalho como norma cívica é a forma de normatizar uma conduta. Toda via, assim que normatizada, haverá uma sanção cabível ao desvio desta conduta. Ad Hoc, a prisão serve de depósito da escória e dos dejetos humanos de uma sociedade que se submete cada vez mais o diktat do mercado (WACQUANT,2008).

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underclass14, ou classes perigosas. As grandes porções de trabalhadores de baixa renda fundem-se aos marginalizados e desempregados. Sem embargo, a demonização das classes excluídas do consumo, fomentada pela mídia e, em segundo plano, pelas políticas de segurança pública, colabora negativamente para a crença da relação da pobreza com o crime. Nesse sentido, Glassner relata a forma como a mídia norte americana trata o assunto: Os jornalistas, os políticos e outros formadores de opinião fomentam o medo em relação a determinados grupos sociais, tanto por aquilo que apregoam como por aquilo que não divulgam. Consideramos o medo americano em relação aos negros.Esse medo se perpetua pela atenção excessiva dada aos perigos causados por uma pequena porcentagem de afro-americanos contra outras pessoas, assim como por uma relativa falta de atenção para os perigos que a própria maioria de negros enfrenta (GLASSNER, 2003, p. 193).

Nesse quadro, ao associar, indevida e injustamente, a miséria e a pobreza à criminalidade, os pânicos morais que causam mal estar à sociedade, repousam sobre a excessiva vinculação de manchetes e noticiários, cujo teor tem por base os crimes e a violência, a dadas áreas do território urbano. Por óbvio, as consequências dessa fórmula resultam na sensação de medo a essas pessoas, a esses locais. No que concerne ao fator midiático, Rolleri afirma“La violencia que aflora al dominio público es sólo una fracción de la que se vive en ese submundo, y se hace conocida por la población en general debido a los hechos delictivos denunciados o mediatizados (ROLLERI, 2006, p.128)” Ora, a imaginação moral foi historicamente moldada para lidar apenas com os outros que residem dentro de um círculo de intimidade espacial e temporal (BAUMAN, 2008, p.130), logo, os que não fazem parte desse círculo íntimo são considerados estranhos, pessoas a serem evitadas, e, assim como as pessoas, esses locais também passam a ser evitados.

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Em suas publicações, Wacquant aborda a temática da descivilização e demonização do sub-proletariado urbano negro na sociedade norte americana. O termo underclass, segundo o autor, é o flanco simbólico do processo descivilizador do gueto, inventado pelo senso comum político e acadêmico. Este “grupo” pode ser supostamente identificado por uma série de características intimamente interligadas – desordem: uma sexualidade fora de controle, famílias chefiadas por mulheres, altas taxas de absenteísmo e reprovação nas escolas, consumo e tráfico de drogas, além de propensão ao crime violento, “dependência” persistente em relação a auxílio público, desemprego endêmico (devido, de acordo com algumas versões, à rejeição ao trabalho e à recusa em ajustar-se às estruturas convencionais da sociedade), isolamento em áreas com alta densidade de famílias problemáticas, etc. Todavia, embora os debates políticos e acadêmicos acerca da underclass, todos, segundo Wacquant, concordam que a underclass é uma entidade nova, distinta da tradicional “classe inferior” e separada do resto da cidade, e com uma cultura específica ou nexo de relações que determina sua reprodução de comportamentos patológicos de destruição e autodestruição (WACQUANT,2008).

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À vista disso, são notórias as sequelas causadas pelos pânicos morais. São elas, a segregação e a exclusão social, a criminalização dos mais pobres e a desconfiança e sentimento de desamparo das instituições políticas.

2. O processo de urbanização da cidade de Canoas

O povoamento urbano da cidade de Canoas teve início no ano de 1874, quando fora inaugurado o primeiro trecho de estrada de ferro do Rio Grande do Sul, entre Porto Alegre e São Leopoldo (MAYER, 2009, p.36). No entanto, foi apenas em 27 de junho de 1939 que Canoas é elevada à categoria de município15. O crescimento demográfico de Canoas, nos anos seguintes à sua emancipação política, foi um fenômeno sem similar no RS. No decênio de 1950 a 1960, o crescimento populacional atingiu a cifra de 390%16. Naquele período, a população de Canoas deu um salto demográfico, passando de 19.471 habitantes a 95.401. Segundo dados de um censo escolar realizado em 1964, a população seria de 117.000 habitantes (MAYER, 2009, p.38). Logicamente, a hipertrofia demográfica trouxe problemas de toda ordem, principalmente, na prestação de serviços e efetivação de obras públicas17.Segundo o historiador Nestor José Mayer, os números atestavam que a cidade de Canoas não conseguiu evoluir dentro dos parâmetros de uma autêntica concentração urbana. Já, o inusitado surto de povoamento dos anos 40, do século passado, promoveu uma verdadeira “desconcentração urbana”. Isto quer dizer que, naquele momento, o núcleo central da cidade não estava suficientemente consolidado, quanto ao social, ao político e ao urbano (MAYER, 2009, p.60). No que tange a referida consolidação da urbanização social, sustenta Donzelot que:

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Decreto n° 7.839, de 27 de junho de 1939. Fonte: http://antigo.canoas.rs.gov.br/Site/Canoas/Historia.asp, acesso em 07/04/13 as 09h e 30 min. 17 Segundo Mayer, algumas manchetes veiculadas na mídia àquela época apontavam problemas de todos os tipos como, por exemplo: “O problema da luz e da água em Canoas (Correio do Povo, 19/02/60), ou então “Diretoria de Obras e viação planeja via perimetral para corrigir e disciplinar o trânsito (O Timoneiro, 02 a 09/02/67)”, “800 pedidos de construção foram encaminhados à Prefeitura em 1966 (O Timoneiro, 16 a 23/02/66)”, “Canoas: surto de novas construções (Correio do Povo, 14/07/1963)”, “Em Canoas, foram lançadas as bases da reforma urbana (Diário de Notícias 18/02/62)”, esta última referindo-se à construção de casas para trabalhadores e pessoas sem-teto, (MAYER, 2009). 16

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La urbanización social es una construcción del Estado. Cada espacio remite a los otros espacios del mismo tipo por la similitud de sus formas, mucho más que a la ciudad adyacente, que varía en imagen y en importancia [...] la ciudad se desarrolló en la Edad Media gracias a los privilegios que le aseguraba una cierta autonomía en relación con esa autoridad. Su atractivo recurre luego a esta libertad. Al crear el mundo uniforme de las organizaciones, el Estado reafirmo su autoridad con respecto a la ciudad no es urbana, sino social, como el Estado (DONZELOT, 2012, p. 47).

Sob essa esteira epistemológica, evidencia-se que a cidade de Canoas não teve o devido planejamento por parte da gestão pública no aspecto do desenvolvimento social, dado que o crescimento da cidade fora processado de forma desordenada e espalhada em dezenas de bairros e vilas, atingindo uma extensão de dez quilômetros ao longo da rodovia BR-116 (av. Getúlio Vargas) (MAYER, 2009, p.39). O povoamento local foi se processando com a abertura de dezenas de loteamentos, sem as mínimas exigências urbanísticas, localizados em áreas alagadiças e banhados, resultando em graves problemas de ordem técnica, social, educacional e econômica e que vêm sobrecarregando todas as gerações das administrações municipais. Esse fenômeno ocorreu devido à inflação que empolgou a nação e provocou o êxodo de milhares de famílias do interior do estado para Porto Alegre à procura de empregos e melhores rendas; a localização de Canoas junto à capital gaúcha surge como um promissor parque de trabalho. Ou seja, a cidade de Canoas passou a oferecer possibilidades de emprego, atraindo famílias de Porto Alegre com sérios problemas de moradia; a procura por terrenos foi tanta que fez surgir um grande número de loteamentos, muitos deles distantes do núcleo central, formaram-se, assim, dezenas de núcleos sem inter-convivência social, vivendo todos (e até o próprio centro), mas na órbita da capital do que da própria comunidade canoense (MAYER, 2009, p.38-39). Para Granziera, “esse adensamento, que na maioria das vezes ocorreu sem planejamento nem controle, se de um lado ofereceu a uma parcela da população acesso ao trabalho e, para alguns, melhores condições de vida, por outro lado causou um desequilíbrio urbano que não se conseguiu solucionar ainda, inclusive no que toca às questões ambientais” (GRANZIERA, 2014, p.630). Segundo Mayer, esses mesmos problemas poderiam ter sido atenuados, uma vez que o primeiro prefeito a assumir o mandato após a emancipação em 1939 tentou transferir o centro urbano para um local de maior altitude. Intensos protestos sociais impediram a concreção do intento. Se essa mudança houvesse ocorrido, a cidade poderia ter se expandido para as terras mais altas, conforme proposta inicial, permitindo que estrada de ferro e a movimentada BR116, não dividissem de forma tão impactante o núcleo da cidade (MAYER, 2009, p.30). 2270

Ainda durante a década de 50 e 60, quando o país era atingido pela “febre desenvolvimentista” do Plano de Metas, a esperança para a resolução dos problemas do município era sua rápida industrialização18 , e assim, Canoas tornou-se um dos municípios gaúchos com maior índice de desenvolvimento industrial e comercial. Atualmente, grandes empresas nacionais e multinacionais (como a Refinaria Alberto Pasqualini, Refap, Springer Carrier e AGCO do Brasil, além de nomes fortes nos ramos de gás, metal-mecânico e elétrico) estabeleceram-se em Canoas19. Apoiado à industrialização, o crescimento demográfico adquiriu vulto mesmo de forma desordenada, conforme citações anteriores. Assim, a população de Canoas na década de 70 atingia a marca de 153.730 mil habitantes. Em 20 anos, década de 90, foram computados 279.127 mil habitantes. O último censo, de 2010, a população canoense alcançava 324.025 mil habitantes20. Como Canoas faz parte da região metropolitana de Porto Alegre, sendo o mais importante polo industrial do Estado, caracteriza-se também como o “maior centro de atração da migração rural-urbana” (VIEIRA apud MAYER, 2009, p.40). Esse extraordinário crescimento da cidade de Canoas, como polo industrial, comercial e de serviços marcava os discursos políticos, quando esses se referiam a Canoas como a “cidade que mais cresce no Estado”, que se encontrava de “braços abertos” para receber todo o empreendimento que trouxesse “progresso” (MAYER, 2009, p.40). Por outro lado, os jornais ostentavam manchetes que refletiam a preocupação das lideranças e do conjunto da população perante essa rápida expansão urbana. Em suma, a cidade de Canoas teve, e ainda tem seu “urbanismo ad hoc”21 à industrialização. É notadamente um território operário.

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A importância estratégica junto à capital do Estado que era dotada de um porto voltado às operações de comércio exterior, a proximidade com o aeroporto internacional Salgado Filho, uma rede de estradas, como ferrovias e rodovias com ligação para todo o interior do RS e outros estados do país, além de áreas de terras disponíveis para a instalação de projetos industriais, eram os atrativos que a cidade de Canoas proporcionava aos investidores. 19 Em novembro de 1965, o município supera a cidade de Porto Alegre em investimentos de capitais. Canoas sozinha investiu um (1) bilhão e 174 milhões, colocando-se em primeiro lugar no Estado, superando a própria capital. 20 Fontes: Censos Demográficos IBGE. 21 Para o urbanista francês François Ascher, “o neourbanismo privilegia a negociação e o compromisso em detrimento da aplicação da regra majoritária, o contrato em detrimento da lei, a solução ad hoc em detrimento da norma”. Em vez de regulação, negociações caso a caso, projeto a projeto, na concretização do que o urbanista nomeou como “urbanismo ad hoc” [...] ASCHER apud VAINER, Carlos. In: MARICATO, Ermínia. Quando a cidade vai às ruas. In: Cidades Rebeldes. Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 2013, p. 38.

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3. Os territórios da paz (ou do medo): Mathias Velho e Guajuviras

A cidade de Canoas possui 17 bairros identificados no mapa urbano, no entanto, contabilizam-se outros 15 bairros, sendo que esses são subdivisões dos primeiros. Desses bairros identificados, dois deles ganham destaque nos veículos de mídia pelas manchetes vinculadas nas páginas policiais, são eles: Mathias Velho e Guajuviras. Faz-se mister destacar o efeito de mão dupla sobre este fenômeno. No momento em que é posto uma determinada localidade em constante aparição nas mais diversas formas de mídia, tendo por núcleo da notícia a criminalidade e a violência, o tecido social é assombrado pelos fatos veiculados, causando mal-estar, insegurança e estigma daquilo que fora noticiado. Por outro lado, alerta aos gestores públicos que são necessárias providências para reestabelecer a paz social dentro daqueles locais. Em atendimento aos anseios sociais, a administração municipal, com apoio das esferas estadual e federal, buscou através de duas políticas de segurança pública amenizar as altas taxas de criminalidade que a cidade de Canoas apresenta. A primeira delas, Canoas Mais Segura22, é composta por profissionais da Fundação da Brigada Militar, Guarda Municipal e Secretaria Municipal de Transportes, tendo ainda o espelhamento da SIM 23e 15º Batalhão da Brigada Militar. Essa ação política objetivou agregar 192 centrais de alarmes, instaladas em prédios públicos, 204 câmeras de vídeo, das quais 120encontra-se em vias públicas, áudiomonitoramento com 44 sensores instalados no Território de Paz Guajuviras24. A Guarda Municipal da cidade é o principal gerenciador dessas ferramentas, tanto no atendimento aos alarmes, quanto no apoio as diversas solicitações advindas das tecnologias implantadas sempre em apoio às demais integrantes da SIM. A segunda política de segurança pública destinada à Canoas foi a criação dos “Territórios da Paz”. Inicialmente, um centro de pesquisa social aplicada à segurança pública de Canoas foi implementado com recursos do Governo Federal, porém, em um esforço mútuo de vários órgãos governamentais e não governamentais os Territórios de Paz foram instalados nas comunidades de Mathias Velho e Guajuviras25, não somente objetivando a monitoração 22

Lei nº 5466 de 23 de dezembro de 2009 que regula a instalação, operação, tratamento de imagens, dados e informações produzidas a partir do programa Canoas mais Segura. E Decreto nº833 de 25 de outubro de 2010 que regulamenta a liberação das imagens captadas pelas câmeras de vídeo-monitoramento; 23 Sala Integrada de Monitoramento 24 “Territórios de Paz” constituem outra política de segurança pública na cidade de Canoas. 25 O primeiro Território de Paz foi lançado em outubro de 2009 no bairro Guajuviras, e em novembro de 2011 foi a vez do Bairro Mathias Velho

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das áreas e rígido policiamento em pontos considerados críticos, projetos sociais também incorporam o ideal dos territórios. Segundo o “Observatório de Segurança Pública de Canoas”, o primeiro bairro, considerado pioneiro, o Guajuviras, teve papel fundamental na redução dos homicídios na cidade após a implementação do projeto. No 1º semestre de 2009 foram 19 casos no bairro, seguido de 12 em 2010, 5 em 2011 e 7 em 2012, todos os dados dos primeiros semestres de cada ano. Tomando 2009 como ponto referencial, conta-se 33 vidas salvas somente no Território, até junho de 2012. Comparando 2009 com 2012 se tem uma redução de 63%.26 É nítido que somente o monitoramento não é suficiente para diminuir as estatísticas criminais, tampouco a sensação de medo. Os projetos sociais aplicados à implementação buscam amenizar as patologias urbanas características desses bairros considerados perigosos, no caso do Guajuviras, se tem sete projetos. Os objetivos vão desde a inclusão social de jovens até a contribuição para a democratização do acesso à justiça. Ficando atrás somente no quesito de implementação, o Território de Paz Grande Mathias Velho (que compreende dois bairros, Harmonia e Mathias Velho) apresentou significativa redução no nº de homicídios. No 1º semestre de 2009 foram 41 casos no bairro, seguido de 23 em 2010, 27 em 2011 e novamente 23 em 2012, todos os dados dos primeiros semestres de cada ano. Comparando 2009 com 2012 se tem uma redução de 44%27. Por sua vez, e de igual forma ao território pioneiro, Guajuviras, O Território de Paz Grande Mathias Velho teve suporte de projetos sociais que findaram a prevenção à violência, atuando com grupos e temas específicos e propondo diferentes formas de socialização e resolução de conflitos. Embora a existência de tais políticas auxilie na queda dos índices estatísticos de criminalidade dos bairros em questão, a sensação de medo e insegurança permanece incorporada a estas localidades. Assinala essa constatação Isla: La sensación de inseguridad es más alta que la tasa de delito” (ISLA apud ROLLERI, 2006, p.101). Precisamente pelo fato da administração estatal estar promovendo os dois bairros a condição de “especiais”, o imaginário social é conduzido à falácia do local a ser evitado, do local perigoso. Evidente, e necessário ressaltar, o papel estigmatizador que os veículos de comunicação exercem ao destacar notícias e manchetes sobre os mais diversos crimes que acontecem no Mathias Velho e Guajuviras, colaborando com os sentimentos de insegurança. 26

Informações obtidas no Boletim Informativo nº 1 de 05/09/2012 emitido pelo Observatório de Segurança Pública de Canoas. 27 Informações obtidas no Boletim Informativo nº 3 de 27/11/2012 emitido pelo Observatório de Segurança Pública de Canoas.

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Em um dos principais canais de mídia voltado à cidade de Canoas, através de um busca rápida pelo seu sítio eletrônico, ao pesquisar os nomes dos dois bairros supramencionados tem-se apenas notícias relacionadas a crimes como: “Homem é morto com quatro tiros no Mathias Velho (01/09/2014)”. “Tentativa de homicídio no Guajuviras resulta em seis prisões e apreensões de armas (23/08/2014)”. “Brigada apreende um quilo de Crack no Guajuviras (22/08/2014)”. “Corpo encontrado no Mathias Velho (19/08/2014)”. “Brigada Militar apreende armas e munição no bairro Guajuviras (10/08/2014)” 28. Muito embora as notícias que ganham destaque sejam essas, é necessário ressaltar que nem todas partilham conteúdo policial. Os problemas de infraestrutura também são levados a conhecimento da sociedade canoense: “Mathias Velho é o bairro mais afetado pela chuva, em Canoas (04/07/2014)”. “Moradores queixam-se da falta de sinalização no Mathias Velho (10/01/2014)” 29. Para Roleri, as informações veiculadas pela mídia exercem grandes influencias na rotina das pessoas: Como dijimos, después de ver y escuchar reiteradamente, por televisión, la cantidad de robos cometidos en la misma ciudad, la persona que sale de su casa lo hará con mayor precaución y cuidado que si no hubiera encendido el televisor. Todo esto tiene las más diversas consecuencias colaterales, como el cambio en la utilización de medios de transporte, la suspensión o el cambio de horario de encuentros, la compra de elementos para protección (ROLLERI, 2006, p. 147).

Posto isso, evidencia-se que a preocupação estatal é conter a criminalidade dos dois bairros como se esse fosse o único problema a ser resolvido. Ora, esses dois territórios são notoriamente áreas pobres, consolidados, historicamente, sem os equipamentos urbanos adequados. Em outros termos, o Poder Público enfatiza a vigilância/monitoramento/segurança em detrimento ao desenvolvimento do meio ambiente urbano acessível e saudável. Nessa senda, Wacquant assevera que o descaso estatal com as localidades mais pobres dos Estados Unidos (guetos) fomentam os problemas que o próprio aparelho estatal combate fervorosamente:

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http://www.diariodecanoas.com.br/index.php?id=/busca/index.php&request=1 acessado em 07/07/2014 às 16h e 56 min. 29 http://www.diariodecanoas.com.br/index.php?id=/busca/index.php&request=1 acessado em 07/07/2014 às 16h e 56 min.

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O maciço desenvolvimento social levado a cabo pela diminuição da provisão estatal (i) acelera a decomposição da infraestrutura institucional inerente ao gueto; (ii) facilita a propagação da violência endêmica e estimula o clima de medo envolvente; e (iii) oferece espaço e impulso para o desabrochar de uma economia informal dominada pelo comércio da droga. Esses três processos, por sua vez, alimentam-se mutuamente e inscrevem-se em uma constelação aparentemente autossustentável que apresenta todos os sinais exteriores de ser conduzida internamente (ou ser “específica do gueto”), quando na realidade é (sobre) determinada e sustentada externamente pelo brutal e desigual movimento de retirada de um Estado de semibem-estar social (WACQUANT, 2008, p.57).

Sem embargos, Rolleri considera que “el control social es un negocio, que hay una expansión del poder punitivo y que más policías en la calle el delito se incrementará” (ROLLERI, 2006, p.35).Em contra partida, cabe destacar, mais uma vez, que os veículos de mídia corroboram a marginalização e estigmatização dos bairros proletários. Assim como em Canoas, como em qualquer outra cidade brasileira, nos Estados Unidos a mídia torna-se um auxiliar importante às medidas políticas punitivistas. Segundo Glassner, as notícias são seletivas e tem por objetivo a propagação da Cultura do Medo: Se a imprensa simplesmente entendesse de modo equivocado os fatos sobre um homicídio eventual, não seria grande coisa. Mas o significado que dão a muitos homicídios e outros crimes violentos que escolhem para pôr em destaque é outra história. As ruas dos Estados Unidos não são mais violentas que uma zona de guerra, e a mídia não deveria dizer que são (GLASSNER, 2003, p. 79).

Diante de tudo isso, percebe-se que a expressão "Territórios da Paz", opção de nomenclatura adotada pelo gestor público municipal para o local em que pretende exercer vigilância sob o argumento de contenção dos índices de criminalidade, finda um efeito antagônico. Afinal, ao enfatizar-se o local como necessário à implantação da paz, reforça-se o estereótipo do que ele não é. Ou seja, pretendendo-se negar o conflito e o medo, evidencia-se aquele espaço como o "locus" dos mesmos.

4. O medo na cidade de Canoas

Está patente que a cidade de Canoas não fugiu à situação de demais cidades brasileiras: construída pelos próprios moradores em áreas invadidas (Guajuviras, por exemplo), sem orientação e supervisão de arquitetos e/ou engenheiros. Tampouco fora observado, a rigor, a legislação urbanística (isso inclui o próprio Estado) ou quaisquer outras leis. É uma cidade dividida, fragmentada – em quadrantes - e tendente ao conflito.

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Como toda cidade globalizada e influenciada pelos ditames do capitalismo avançado, Canoas tem seu espaço urbano socialmente dividido. Cada fragmento parece viver e funcionar autonomamente. Os bairros ricos – ou equivalentes - são atendidos por toda sorte de serviços que o Estado pode proporcionar, inclusive, ganham especial atenção do grande mercado: empreendimentos imobiliários que ofertam não somente uma moradia, mas também ofertam espaços de lazer e conforto, trabalho, entre outros, sob o signo da segurança. Ou seja, é posto à comercialização locais públicos privatizados30. Dito de outra forma, fragmentos fortificados. Sem embargos, a imposição de barreiras e muros também é uma forma de segregar e afastar os excluídos do consumo. Nesse compasso, para Donzelot: Al delimitar claramente, con muros si es necesario, el espacio circundante de una o varias edificaciones, al patrimonializarlo, se hace aparecer al exterior como un espacio público colocado bajo la mirada de todos. Pero la atracción de la calle proviene en lo esencial delos comercios que ofrecen sus vidrierasa la mirada de los transeúntes. Esta oferta procura un “bienestar” en la calle, en la que se redescubren los beneficios en térmicos de seguridad, pero también de “ambiente urbano”, según una en bona para la reparación de las urbanizaciones, así como para el ordenamiento de los antiguos centros declinantes o incluso de las estaciones ferroviarias (DONZELOT, 2012, p. 40-41).

Nesse sentido, é possível presumir que as comunidades fechadas sejam mundos separados. Os conteúdos publicitários acenam com a promessa de segurança como uma alternativa à qualidade de vida que a cidade e seu deteriorado espaço público oferece. Segundo Bauman: [...] Isolamento quer dizer separação de todos os que são considerados socialmente inferiores, e – como os construtores e as imobiliárias insistem em dizer – “o fatorchave para obtê-lo é a segurança. Isso significa cercas e muros ao redor dos condomínios, guardas (24 horas por dia) vigiando os acessos e uma série de aparelhagens e serviços... que servem para manter os outros afastados (BAUMAN, 2009, p. 39).

Tais desenvolvimentos urbanos desiguais traçam o cenário para o conflito social. Ou seja, a globalização altamente seletiva do comércio e do capital, da vigilância e da informação, da coerção e das armas, do crime e do terrorismo, desrespeitam quaisquer 30

Até o presente momento, foram constatados três projetos de bairros planejados – pela iniciativa privada -, um deles, que está em fase de conclusão, fica localizado no bairro Igara, considerado um bairro nobre da cidade. Além da moradia, a empresa oferece em um anuncio publicitário o seguinte: 1) Acesso de pedestres; 2) Guarita c/WC; C3) Acesso a Veículos; 4)Praça das Palmeiras; 5) Play Baby; 6) Praça das crianças; 7) Churrasqueira coberta; 8) Apoio churrasqueira; 9) Apoio festas; 10) Salão de festas infantil; 11) Hall de entrada; 12) Brinquedoteca; 13) Hall Social; 14)Praça dos encontros; 15) Sala Condominial; 16) Praça da leitura; 17) Sala de estudos; 18) Salão de festas adulto; 19) Salão de jogos Adulto; 20) Play aventura; 21) Churrasqueira Coberta com forno de pizza; 22) Praça da Amizade; 23) Quadra esportiva; 24) Salão de festas adolescente; 25) Praça de jogos; 26) Salão de jogos adolescente; 27) Praça do descanso; 28) Sala de ginástica; 29) Solarium; 30) Piscina adulto; 31) Piscina infantil; 32) Recanto do Chimarrão; 33) Apoio Lounge Revistaria; 34) Lounge Revistaria; 35) Estacionamento.

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fronteiras ou barreiras existentes. Não há muros que a possam conter. Tampouco leis!Ainda sobre os efeitos da globalização, Bauman afirma: Em um planeta globalizado, habitado por sociedades forçosamente “abertas”, a segurança não pode ser obtida, muito menos garantida de maneira confiável, em um único país ou grupo de países: não por seus meios próprios e independentemente do estado das coisas no resto do mundo [...] A pervertida “abertura” das sociedades, implementada pela globalização negativa é ela própria a causa primeira da injustiça e assim, indiretamente, do conflito e da violência (BAUMAN, 2008, p. 127).

Em síntese, são os mais ricos que mais sentem medo, pois são os que têm condições de se proteger contra o perigo – difuso, mas onipresente, visível ou invisível, manifesto ou pressentido, conhecido ou desconhecido. Entrincheiram-se atrás de muros juntamente com seus semelhantes, no entanto, tornam-se incapazes de lidar com os estrangeiros (os que vivem fora dos muros), e, apoiados às ideias e noticiários das plataformas de mídia, exigem do Estado uma resposta que lhe traga segurança (BAUMAN, 2009, p.54). No entanto, as políticas locais – e particularmente a política urbana – encontra-se hoje desesperadamente sobrecarregada, a tal ponto que não consegue mais operar. Por conseguinte, recai à esfera do Poder Judiciário a esperança pelo estabelecimento da paz e da ordem pública, uma vez que as normas de segurança não atingem, em sua plenitude, a finalidade para quais foram criadas. Nesse contexto, é atribuída uma nova função social ao juiz criminal, a de gestor de risco (risk manager) (GARAPON apud FOESSEL, 2011, p. 57). Em outras palavras, espera-se da Justiça uma resposta às condutas desviantes causadoras da insegurança cidadã.

Conclusão

O presente trabalho procurou mostrar, através de olhares dogmáticos e empíricos sobre a cultura do medo e do espaço urbano, as formas pelas quais os mais variados fenômenos sociais influenciam a sociedade (como ela se comporta, trata e reage a esses fenômenos) e o direito (como se dá a elaboração do direito sancionador). Entendem-se, hodiernamente, as cidades e as metrópoles como núcleos de convivência e interação do homem. Muito embora o espaço urbano apresenta-se fragmentado e voltado à segregação, uma vez que a necessidade de muros é uma promessa de segurança (tanto individual como coletiva) contra possíveis ameaças externas. Dito em outras palavras, contra os excluídos da sociedade de consumo. 2277

Nesse contexto, constatou-se que as pessoas, de um modo geral, temem os crimes, os criminosos e os principais locais associados a esses, isto é, os bairros mais pobres. Dessa forma, a construção de muros ou a procura por locais fechados, balizam-se na ideia de segurança, ou, em outro sentido, em afastar-se de qualquer possibilidade de contato com esses locais que sofrem estigmatização. Posto isso, é nítida a estigmatização e marginalização dos bairros Mathias Velho e Guajuviras. Da mesma forma que ambos têm atenção especial do administrador público, assim como da mídia, a ideia de transforma-los em “Territórios

de

Paz”

transmite

à

população um efeito contrário. Isto é, “Territórios de Medo”. Locais a serem evitados. Espaços associados aos crimes e criminosos. Nesse compasso, o Estado mostra a forma como pretende efetivar a segurança e a pacificação desses bairros. Em um primeiro momento implementa-se o monitoramento e o patrulhamento ostensivos, para, logo depois, criar políticas socioeducacionais e de integração comunitária. Dessa forma, o grande mercado aproveita-se da ineficiência das políticas de segurança pública para erigir-se como a solução eficaz à sensação de insegurança social. Muito embora os excluídos do consumo não sejam o público alvo do mercado (tanto imobiliário quanto de segurança em geral) são deles que os consumidores de segurança pretendem se proteger.

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Referências bibliográficas: BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Tradução Eliana Aguiar. – Rio de Janeiro: Zahar, 2009. _________. Medo Líquido.Tradução, Carlos Alberto Medeiros – Rio de Janeiro: Zahar, 2008 DONZELOT, Jaques. Hacia una ciudadanía urbana?La ciudad y la igualdad de oportunidades – 1ª ed.- Buenos Aires: Nueva Vision, 2012. FOESSEL, Michaël. Estado de Vigilancia, Crítica de la razón securitária; traducción del francês Pablo Bustinduy. – Madrid: Ediciones Lengua de Trapo SL, 2011. GLASSNER, Barry. Cultura do Medo; tradução de Laura Knapp. – São Paulo: Francis, 2003. GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito Ambiental – 3.ed. revista e atualizada. – São Paulo: Atlas, 2014. LEITE, Demétrio Alves. No percurso dos antigos: a história de Canoas/Demétrio Alves Leite; com fotos e mapas do autor e do Arquivo Histórico e Museu de Canoas- Canoas: TecnoArte, 2012. MAYER, Nestor José. Memória ambiental da cidade de Canoas: os impactos do processo de globalização a partir dos anos 60. Canoas: Tecnicópias, 2009. ROLLERI, Osvaldo H. Delito urbano: La degradación y sus consecuencias. Buenos Aires: Grito Sagrado Editorial de Fundación de Diseño Estratégico, 2006. VAINER, C. B.; HARVEY, D.; MARICATO, E.; I EK, S.; Davis, Mike.Quando a cidade vai às ruas. In: David Harvey, Ermínia Maricato, Slavojiek, Mike Davis et. al.. (Org.). Cidades Rebeldes. 1ª ed.São Paulo: Boitempo, 2013, v. 1, p. 1-. WACQUANT, Loïc . As duas faces do gueto; tradução de Paulo Cezar Castanheira. – São Paulo: Boitempo, 2008. ___________. As prisões da miséria. Tradução, André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

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