CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL

June 4, 2017 | Autor: A. Teixeira Nazário | Categoria: Criminology, Criminologia, Criminalização de Movimentos Sociais, Jornadas de Junho de 2013
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CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL 1

Ana Luíza Teixeira Nazário Orientador: Prof. Dr. Augusto Jobim do Amaral

I

“Você só olha da esquerda para a direita, o Estado te esmaga de cima pra baixo.” Autor desconhecido

Após a dura repressão contra as manifestações sociais e populares de junho/julho de 2013, encontra-se em voga a tentativa (i)legal de criminalizar os movimentos sociais. Contudo, essa tática não é recente, nem só herança de uma ditadura militar – repressora de toda e qualquer expressão social. Trata-se de componente orgânico do “DNA” de um sistema penal controlado pelo capital. Porém, antes de compreender o caráter da criminalização dos movimentos sociais, se faz necessário entender a luta de classes, pois, como bem destaca Vera Malaguti Batista, “quem não entender a luta de classes por trás dos processos de criminalização não dará conta do problema” 2. A luta de classes 3 é uma expressão que define o embate histórico entre as diferentes classes da sociedade. Expressa-se, simultaneamente, nos campos ideológico, político e econômico. Ainda que o conflito entre as classes sociais tenha sido abordado anteriormente por outros historiadores, atribui-se a Karl Marx a originalidade em demonstrar que:

1

Trabalho apresentado e publicado nos anais do 5º Congresso Internacional de Ciências Criminais Criminologia e Sistemas Jurídico-Penais Contemporâneos, 2014, Porto Alegre.

2

3

BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 90.

Considerando a complexidade histórica do confronto entre as classes sociais e que o presente trabalho não será suficiente para uma abordagem pormenorizada, se faz apenas uma breve análise acerca desta teoria marxista.

1) La existencia de las clases está vinculada únicamente a fases particulares históricas del desarollo de la producción; 2) que la lucha de clases conduce, necesariamente, a la dictadura del proletariado; 3) que esta misma dictadura no es de por sí más que el tránsito hacia la abolición de todas las clases y hacia una sociedad sin clases (...) 4.

Segundo Friedrich Engels, “todas as lutas históricas, quer se desenvolvam no terreno político, no religioso, no filosófico ou noutro terreno ideológico qualquer, não são, na realidade, mais do que a expressão mais ou menos clara de lutas de classes sociais” 5. Em nota à edição inglesa do Manifesto Comunista de 1888, Engels afirmou que “a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes”. A luta de classes possui uma característica fundamental que consiste em ser o motor do desenvolvimento das sociedades ao longo da história. Este motor conta em sua composição com uma verdadeira engrenagem, responsável por grandes reformas e mudanças em diversos cenários: os movimentos sociais. Uma das formas de concretização da luta de classes é através dos movimentos sociais, que são a forma direta de “ação conflitante entre os agentes das classes sociais lutando pelo sistema histórico” 6. O sociólogo espanhol Manuel Castells define os movimentos sociais como “sistemas de prácticas sociales contradictoras que convierten el orden establecido a partir de las contradicciones especificas de la problemática urbana” 7.

II

No Brasil, percebemos através de posturas históricas da nossa política, o tratamento dos movimentos sociais como “caso de polícia”. Através de uma ótica conservadora, os

4

MARX, Karl. Carta a Weydemeyer. 05 de março de 1852. In: Karl Marx y Friedriech Engels, Correspondencia, seleccionada, comentada y anotada por el Instituto Marx-Engels-Lenin. Buenos Aires: Editorial Cartago, 1972, p. 56-57. 5

ENGELS, Friedrich. Prefácio à terceira edição alemã de 1885 de O 18 de Brumário de Louis Bonaparte de Karl Marx apud PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO. Classes Sociais e Luta de Classes. Disponível em: . Acesso em: 19 nov. 2014. 6

TOURAINE, Alan. Os Movimentos Sociais e Ideologias nas Sociedades Dependentes. In: GEHLEN, Ivaldo; MOCELIN, Daniel Gustavo (Org.). Organização Social e Movimentos Sociais Rurais. Porto Alegre: UFRGS, 2009, p. 51.

7

CASTELLS, Manuel. Movimientos Sociales Urbanos. Madrid: Siglo Veintiuno, 2004, p. 03.

movimentos sociais são vistos como uma ameaça real aos interesses políticos e econômicos de determinados grupos. Deste modo, recebem um tratamento antidemocrático, no qual o diálogo cede espaço a um estado policialesco. Questionado a respeito dos movimentos sociais que confrontavam seu governo (19261930), o então presidente Washington Luís declarou que “a questão social é caso de polícia” 8. Contudo, não é preciso voltar a análise à República Velha para ver os movimentos sociais sendo classificados como “caso de polícia”. Neste sentido, sobre os protestos organizados pelo Movimento Passe Livre – São Paulo, durante junho de 2013, o governador Geraldo Alckmin se manifestou: Uma coisa é movimento, que tem que ser respeitado, ouvido e dialogado (sic). Isso é normal e é nosso dever fazê-lo. Outra coisa é vandalismo, interromper artérias importantes da cidade, tirar o direito de ir e vir das pessoas, depredar o patrimônio público (...) Aí é caso de polícia, e a polícia tem o dever de garantir a segurança das pessoas 9.

Os detentores do poder se utilizam da mídia e da política para criar uma imagem de desordem e instabilidade, a fim de induzir o povo a votar contra os próprios interesses e em proveito dos que já ocupam os “melhores espaços” na sociedade. Na figura do manifestante, projeta-se o inimigo, que, através de uma articulação entre a influência dos meios de comunicação de massa 10, que estão sob domínio das classes dominantes, e as atividades dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, passa a ser visto como terrorista. Portanto, o manifestante deixa de ser inimigo apenas da classe dominante e passar a ser de toda sociedade. Sobre esse aspecto, o fenômeno do argumento “terrorismo” dentro da esfera penal é capaz de derrubar quaisquer limites jurídicos e afastar princípios e garantias fundamentais:

8

AMORIM, Rodrigo Vizeu Klautau de. A questão social como caso de polícia. Observatório da Imprensa, São Paulo, set./2006. Disponível em: . Acesso em: 21 nov.2013. 9

JUDENSNAIDER, Elena e outros. Vinte Centavos: a luta contra o aumento. São Paulo: Veneta, 2013, p. 57.

10

“A mídia induz ao seu receptor ao analisar conjunturalmente a sociedade, não somente a seleção dos acontecimentos e atores a serem analisados, como atribuirá a estes acontecimentos um sentido afinado com os interesses das classes dominantes, com sentido atribuído, não a um puro fato, mas um fato lido e visto por interesses específicos”. VOLANIN, Leopoldo. Poder e Mídia: A criminalização dos movimentos sociais no Brasil nas últimas trinta décadas. Disponível em: . Acesso em: 17 ago. 2014.

A denominada “guerra contra o terrorismo” tem sido responsável por levar a antiga tensão entre as noções de segurança e liberdade ao seu limite mais extremo. A dimensão dos atos terroristas vivenciados neste século e o medo da sua repetição têm se convertido em argumentos decisivos em prol da adoção – muitas vezes, a qualquer custo – de medidas de tutela da segurança do Estado. E isso a tal ponto que parece não haver mais qualquer limite jurídico, quando do outro lado está o forte argumento da eficácia no combate ao terror. Noções e princípios fundamentais de direito penal, até há pouco tempo inquestionáveis, são relativizados ou simplesmente afastados. O terrorismo converte-se em uma espécie de argumento mágico. Embora isso, na história do direito penal, não seja algo novo 11.

A utilização dos argumentos “segurança e ordem pública”, para criminalizar as manifestações sociais e populares, guarda o caráter autoritário e repressivo inerente ao modelo de Estado vigente, ocasionando diversas violações dos direitos e garantias fundamentais do homem, e, por consequência, contrariando o mínimo esperado de um Estado que se diz democrático. A Lei de Segurança Nacional (presente na Era Vargas e no Regime Militar), atualmente em vigor através da Lei nº 7.170 de 1983, volta a assombrar o cenário brasileiro de lutas. No ensaio de silenciar reivindicações, tal legislação, que é claramente inconstitucional, visto que possui conteúdo contrário à democracia e às garantias fundamentais, já foi utilizada contra manifestantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terras, que foram classificados como subversivos. Durante as Jornadas de Junho, a Lei também foi aplicada para enquadrar um casal acusado de danificar um carro da Polícia Civil de São Paulo em ato de apoio à greve dos professores e contra a violência policial 12. Neste sentido, é possível afirmar que: Problemas concretos da realidade brasileira podem servir como importantes recursos metodológicos para análise dos problemas das excessivas e ampliadas formas de incriminação, como é o caso da criminalização dos movimentos sociais. No Brasil, a imputação da Lei de Segurança Nacional às ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) indiciam os efeitos perversos da aplicação incontida do direito penal 13.

11

TANGERINO, David; D’ÁVILA, Fábio Roberto; CARVALHO, Salo de. O Direito Penal na “luta contra o terrorismo”. Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 1-21, jan./jun. 2012, p. 2. 12

Processar manifestantes com Lei de Segurança Nacional e Lei de Organização Criminosa é uma violência contra a democracia brasileira. Justiça Global Brasil, Rio de Janeiro, out./2013. Disponível em: . Acesso em: 21 nov. 2013. 13

TANGERINO; D’ÁVILA; CARVALHO, op. cit., p. 5.

Ainda que não tenha evoluído, conforme se temia, durante o decorrer da Copa do Mundo, e para além da Lei de Segurança Nacional, há o Projeto de Lei Antiterrorismo para penalizar as manifestações sociais e populares 14. O projeto, apresentado no Senado em 2011, foi criado com o pretexto, entre outros, de assegurar a ordem social durante megaeventos como a Copa das Confederações FIFA e a Copa do Mundo de Futebol. O Projeto de Lei do Senado nº 728 de 2011 nada mais é do que a concretização da vontade da burguesia brasileira. Traz, subliminarmente, a tentativa da alta sociedade em “satanizar” as mobilizações sociais e populares e seus militantes. Contudo, mesmo que o PLS nº 728/2011 tenha permanecido sem resolução durante o último megaevento sediado pelo Brasil, segue sendo uma afronta ao nosso Estado Democrático de Direito, visto que é uma clara tentativa de violar o direito constitucional de manifestação 15. Marx já nos alertava que “o poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra” 16. Hoje, em nosso cenário político, os grandes detentores do capital ainda ocupam a maioria das bancadas parlamentares, utilizando-se do poder político para oprimir interesses diversos dos seus. Novamente, fica evidente a luta de classes por trás de tal problematização, considerando que os interesses entre as classes são opostos: aquela que detém maior poder de controle perante o Estado exige deste que as demandas da outra, indesejáveis a ela, sejam reprimidas 17. Nas palavras de Peña Cabreira, lembrado por Nilo Batista, é definitivamente

14

BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado nº 728 de 2011. Disponível em: . Acesso em: 21 nov. 2014. 15 Segundo informações contidas no sítio virtual do Senado, o PLS nº 728/2011 está, desde 09.05.2014, na Comissão de Cidadania e Justiça. 16

17

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 59.

No caso dos movimentos sociais, a repressão se dá através da criminalização. “A imprecisão dos conceitos de ordem e de crime permitiu o deslocamento de tais conceitos para enquadrar determinados movimentos sociais sempre que as demandas desses agentes tornam-se indesejáveis para nossas elites”. FREITAS, Amílcar Cardoso Vilaça de. A Imprensa Carioca e a Demanda Por Ordem no Século XXI: Estresse Para Todos? 2009. 134 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais) – Faculdade de Direito, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009, p. 85.

inegável que em uma sociedade dividida, o bem jurídico, que opera nos limites entre a política criminal e o direito penal, tem caráter de classe 18. Os grupos “majoritários” (sujeitos-detentores) do nosso país, dotados de uma visão conservadora e reacionária a todo processo de empoderamento popular, utilizam o Direito e o Estado como instrumentos para criminalizar e intimidar todo e qualquer comportamento contrário (sujeitos-autores) às suas constelações de interesses e valores 19. Segundo definição trazida por Alessandro Baratta, a criminalidade é um “bem negativo”, distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixada no sistema sócio-econômico e conforme a desigualdade social entre os indivíduos. Sobre a seletividade do sistema penal em benefício de grupos dominantes, o autor disserta sobre a utilização do direito penal como instrumento de criminalização de determinados grupos sociais: A função seletiva do sistema penal em face dos interesses específicos dos grupos sociais, a função de sustentação que tal sistema exerce em face dos outros mecanismos de repressão e marginalização dos grupos sociais subalternos, em benefício dos grupos dominantes – hipótese sobre as quais o labeling approach já havia chamado nossa atenção -, parece, portanto, colocar-se como motivo central para uma crítica da ideologia penal, também no interior desta recente reflexão20.

Ademais, a figura do sistema penal como agenciador da conflitividade social é exposta por Vera Malaguti Batista, que afirma: “É o grande medo da revolução e o descarte que a burguesia faz do proletariado que vão iluminar o novo direito penal. Novos conflitos, novas rebeliões, novos medos e principalmente a ideia que subjaz a ideia de nação, a ideia de povo, vão fazer com que o novo sistema penal agencie a conflitividade social.” 21

Através desta tentativa de neutralizar as lutas sociais e seus militantes, vê-se, novamente, o sistema penal subvertido para garantir os interesses das classes hegemônicas. 18

CABRERA, Raul Peña. Bien Jurídico y Relaciones Sociales de Producción. Debate Penal, n. 2, Lima, 1987, p. 139 apud BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 12. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 113. 19 Ao falar sobre a distribuição da criminalidade e os processos de criminalização, Alessandro Baratta traz a ideia de “sujeitos detentores versus sujeitos autores”. Sujeitos autores são aqueles responsáveis por comportamentos definidos como desviantes, e sujeitos detentores são aqueles que detêm o poder de definir tais comportamentos como desviantes. 20

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 114. 21

BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 96.

Portanto, nota-se que permanece vivaz a instrumentalidade do sistema penal como agenciador da conflitividade social, agindo na defesa dos interesses de determinados grupos.

III

Os excessos praticados durante ações da Polícia Militar através do uso desenfreado da “violência (des)necessária” cederam lugar aos excessos – também violentos – cometidos pelo Judiciário na repressão daqueles que buscam mudanças. Além de serem atos que beiram a ilegalidade, já que a maioria dos ativistas age de forma pacífica, ou seja, não sendo justificáveis suas detenções, essas prisões deram origem a investigações policiais, posteriormente a denúncias pelo Ministério Público e, por fim, a processos criminais que tendem a um juízo condenatório. Assim, novamente, vê-se o Estado e o Direito como instrumentos para marginalizar as lutas sociais, na tentativa de silenciar aqueles que lutam pela efetivação dos direitos fundamentais assegurados pela nossa Constituição. Entretanto, ainda que sejam muitos os casos de prisões arbitrárias durante as recentes manifestações de rua, há um caso que chama atenção pela sua peculiaridade. Primeiro, pelo acusado sequer participar da manifestação ocorrida no dia do suposto fato, ou seja, não se tratava de um “militante”. Segundo, por restar condenado e ter sua condenação mantida pelo Tribunal Justiça do Rio de Janeiro, em razão do “crime” de portar frascos de “Pinho-Sol” e água sanitária. Rafael Braga Vieira, negro, em situação de rua, catador de material reciclável, foi preso em 20 de junho de 2013, na capital fluminense, acusado de portar um frasco de desinfetante e outro de água sanitária: “materiais incendiários” que seriam supostamente utilizados na produção de coquetel molotov. Os policiais militares responsáveis pela abordagem de Rafael não justificaram o motivo que os induziu à ação, apenas relatam que durante a revista encontraram duas garrafas plásticas contendo líquidos inflamáveis e panos que seriam usados como pavio.

Após tomar ciência da ocorrência, o Ministério Público ofereceu denúncia contra Rafael, imputando-o a conduta descrita no artigo 16, parágrafo único, inciso III, da Lei nº 10.826/03 22. Quando da manutenção da prisão em flagrante, Rafael teve sua prisão convertida em preventiva, a fim de garantir a ordem pública, a conveniência da instrução criminal, bem como assegurar a aplicação da lei penal. (...) O fato ocorreu enquanto centenas de milhares de pessoas reuniam-se, pacificamente, para reivindicar a melhoria dos serviços públicos. Naquele mesmo episódio verificou-se a presença de uma minoria, quase inexpressiva - se comparada com o restante de manifestantes - imbuída única e exclusivamente na realização de atos de vandalismo, tendentes a descreditar e desmerecer um debate democrático. A utilização do material incendiário, no bojo de tamanha aglomeração de pessoas, é capaz de comprometer e criar risco considerável à incolumidade dos demais participantes, mormente em se considerando que ali participavam famílias inteiras, incluindo crianças e idosos. Atente-se que a Constituição da República garante a todos os cidadãos o direito de reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local. Portanto, presentes o fumus comissi delicti, decorrente dos indícios da participação do acusado no fato descrito na denúncia, e o periculum in libertatis, decorrente da necessidade de se resguardar a futura instrução criminal e a ordem pública, bem como para assegurar a aplicação de eventual sanção penal 23.

Inicialmente, Rafael foi assistido pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, que em diversas oportunidades pleiteou sua liberdade, porém, em todas as ocasiões, obteve como resposta o indeferimento. Passados quase seis meses do recebimento da denúncia, veio o decreto condenatório, impondo ao réu pena de 05 (cinco) anos de reclusão e 10 (dez) diasmulta, por estar incurso nas sanções do artigo 16, parágrafo único, inciso III, da Lei nº 10.826/03, nos seguintes termos: A negativa dos fatos, pelo acusado, quando de seu interrogatório (também na mídia de fls. 92), mostrou-se dissociada dos demais elementos de prova, e evidenciam unicamente uma tentativa desesperada de esquivar-se das imputações formuladas pelo Parquet, numa clara manifestação do exercício da autodefesa. Atente-se que o réu declarou uma versão pueril e inverossímil, no sentido de que teria encontrado as duas garrafas lacradas -

22

Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem: III – possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. 23

BRASIL Foro Central da Comarca do Rio de Janeiro (32ª Vara Criminal). Despacho do juiz Guilherme Schilling Pollo Duarte no Processo nº 0212057-10.2013.8.19.0001, jun./2013.

uma segundo ele contendo ´Pinho Sol´ e a outra ´água sanitária´ - ambas em uma loja abandonada, e resolveu tirá-las dali. Vale destacar que as circunstâncias em que ocorreu a prisão, ou seja, enquanto ocorria uma enorme manifestação popular, com concentração aproximada de 300 mil pessoas na Avenida Presidente Vargas, conforme amplamente divulgado na mídia, e no mesmo dia em que ocorreu confronto com as Forças Policiais, deixam claro que o intento do réu não seria outro senão o de proceder ao incêndio de qualquer objeto ou pessoas. O laudo técnico nº 267/13, tendo como objeto o exame do material (fls. 70/72) atesta que uma das garrafas tinha ´mínima aptidão para funcionar como coquetel molotov´. No mesmo documento o i. Perito prossegue informando em sua conclusão (item 04) que ´o etanol encontrado dentro de uma das garrafas pode ser utilizado como combustível em incêndios, com capacidade para causar danos materiais, lesões corporais e o evento morte´, delineando assim a potencialidade lesiva de ao menos um dos artefatos. Assim, comprovados os fatos típicos, não havendo causas excludentes de ilicitude ou culpabilidade, impõe-se o decreto condenatório na forma da denúncia. CONCLUSÃO Isso posto, JULGO PROCEDENTE a pretensão punitiva estatal para CONDENAR o réu RAFAEL BRAGA VIEIRA, qualificado nos autos, como incurso nas penas do artigo 16, parágrafo único, inciso III da Lei 10.826/03. (...) Dessa feita, elevo a reprimenda em 1 (um) ano, chegando à pena de 5 (cinco) anos de reclusão e 10 (dez) dias-multa, que torno definitiva à míngua de qualquer outra circunstância que enseje a sua modificação.24

A defesa técnica de Rafael foi assumida pelos advogados do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), que recorreram da sentença, alegando a atipicidade da conduta, a pena excessivamente alta e o regime aplicado, bem como apontando contradições relevantes entre o laudo pericial e a decisão por ele motivada 25. Desta feita, os autos foram remetidos ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Os Desembargadores da Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, responsáveis pelo julgamento da apelação interposta pela defesa de Rafael, reconheceram em parte o apelo defensivo, modificando apenas o quantum da pena, in verbis: Por todos esses fundamentos, dirijo meu voto no sentido de ACOLHER A QUESTÃO DE ORDEM SUSCITADA, bem como CONHECER E DAR PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO, para redimensionar as penas do Apelante para 04 (quatro) anos e 08 (oito) meses de reclusão, além de 10

24

BRASIL Foro Central da Comarca do Rio de Janeiro (32ª Vara Criminal). Despacho do juiz Guilherme Schilling Pollo Duarte no Processo nº 0212057-10.2013.8.19.0001, dez./2013.

25

Pela Liberdade de Rafael Braga Vieira! Instituto de Defensores de Direitos Humanos, Rio de Janeiro, abr./2014. Disponível em: . Acesso em: 19 nov. 2014.

(dez) dias-multa, com valor unitário mínimo, em regime fechado, mantidos os demais termos da r. sentença recorrida. 26

Após a decisão, os advogados do DDH interpuseram aos tribunais superiores recursos contra o acórdão da Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que confirmou a condenação de Rafael Braga Vieira em primeira instância pela suposta prática do crime de porte de material explosivo. Contudo, em juízo de admissibilidade, os recursos foram inadmitidos pela Desembargadora Nilza Bitar, Terceira Vice-Presidente do TJRJ: DEIXO DE ADMITIR o Recurso Especial, eis que a pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial nos termos da Súmula 7-STJ, e DEIXO DE ADMITIR o Recurso Extraordinário, ante a impossibilidade de violação oblíqua a Constituição Federal. 27

Em outubro deste ano, passados, aproximadamente, um ano e quatro meses de prisão, após a progressão para o regime semiaberto, a defesa de Rafael obteve uma importante vitória. A juíza Ana Paula Filgueiras Massa Ramos, da Vara de Execuções Penais do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, concedeu o benefício de trabalho extramuros ao apenado, de segunda a sexta-feira, em horário integral, no escritório do advogado João Tancredo, como auxiliar de serviços gerais 28. Entretanto, Rafael foi, novamente, vítima de uma punição desnecessária. No final de outubro, ao voltar de mais um dia de trabalho, decidiu posar para uma foto em frente ao muro do Instituto Penal Coronel Francisco Spargoli Rocha, que continha a seguinte pichação: “Você só olha da esquerda para a direita, o Estado te esmaga de cima p/baixo!!!”. A foto foi publicada em rede social pelo Instituto dos Defensores de Direitos Humanos. Por causa da

26

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Criminal nº 0212057-10.2013.8.19.0001 da 3ª. Câmara Criminal. Rio de Janeiro, RJ, 26 de agosto de 2014. Diário da Justiça, Brasília, DF, 28 ago. 2014. 27

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Recurso Especial e Recurso Extraordinário nº. 0212057-10.2013.8.19.0001 da 3ª Vice-Presidência. Rio de Janeiro, RJ, 02 de dezembro de 2014. Diário da Justiça, Brasília, DF, 09 dez. 2014. 28

Cf. Justiça dá direito de trabalho externo a morador de rua preso com ‘Pinho Sol molotov' durante manifestações de 2013. Brasil Post, São Paulo, out./2014. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2014.

“atitude”, Rafael foi punido com dez dias na “solitária” e, ainda, o impedido de ir trabalhar nesses dias 29. Na decisão que puniu Rafael, o subdiretor da unidade, Humberto Soares, condena o “desvio de conduta do interno”, e ainda refere que este “deveria estar mais preocupado em retornar a Unidade do que estimular outros a fazerem críticas ao Estado” 30. Além de ter sua liberdade física cerceada por uma condenação tomada por um punitivismo exterminador, Rafael teve sua liberdade de expressão punida. Em verdade, Rafael e tantos outros Rafaéis indesejáveis, marginais e subversivos, sempre foram e, se seguirmos a lógica do sistema punitivista, sempre serão punidos, independentemente da gravidade de suas condutas e de serem culpados ou não. Recentemente, durante o ato “Todos contra a Copa”, na Avenida Paulista, em 23 de junho, os ativistas Fábio Hideki Harano e Rafael Marques Lusvargh – classificados como “black blocs” – foram presos em flagrante por “associação criminosa, posse ilegal de explosivo, incitação ao crime, desobediência e resistência à prisão” 31. Os manifestantes tiveram a prisão preventiva decretada com base exclusiva no depoimento das testemunhas que, coincidentemente ou não, eram os policiais que atuaram no suposto flagrante. A manutenção da prisão preventiva traz o argumento genérico de “garantia da ordem pública”, já severamente criticado pela doutrina processualista e pelos Tribunais Superiores, graças ao indeterminismo da expressão. Na decisão interlocutória, o magistrado Sandro Rafael Barbosa Pacheco expõe, como justificativa legitimadora do risco à ordem pública, a possível ocorrência de mortes

29

Cf. REZENDE, Constança. Morador de rua preso por protestos é punido após foto com crítica ao estado. O Dia, Rio de Janeiro, nov./2014. Disponível em: . Acesso em: 29 nov. 2014. 30

BARREIRA, Gabriel. Preso em ato no Rio vai para 'solitária' por foto que critica sistema prisional. G1, Rio de Janeiro, nov./2014. Disponível em: . Acesso em: 29 nov. 2014. 31

BRASIL Foro Central da Barra Funda da Comarca de São Paulo (10ª Vara Criminal). Despacho do juiz Sandro Rafael Barbosa Pacheco no Processo nº 0054326-66.201.8.26.0050, jun./2014.

provocadas por “grupos de desordeiros infiltrados”, citando o caso do cinegrafista da Rede Bandeirantes, Santiago Andrade 32: Após um ano das mobilizações pacíficas, que se iniciaram em junho de 2013, patentes que grupos de desordeiros estão se infiltrando nas manifestações legítimas para promoverem desenfreadamente a desordem e quando esta se instala foge ao controle das autoridades públicas e redundam em atos que podem até ocasionar a morte de pessoas, como ocorreu com um cinegrafista de uma rede de televisão 33.

No dia 1º de agosto, em análise do pedido de liberdade postulado pela defesa dos réus, o juiz Marcelo Matias Pereira proferiu uma decisão contaminada pelo ódio disseminado por colunistas em blogs e revistas, e, pior, utilizando-se de ideologias políticas – das quais se percebe que não possui o menor entendimento – para manter os acusados presos. Este grupo atenta contra os Poderes Constituídos, desrespeitando as leis, os policiais que tem a função de preservar a ordem, a segurança e o direito de manifestação pacifica, além de, descaradamente, atacarem o patrimônio particular de pessoas que tanto trabalharam para conquistá-lo, sob o argumento de que são contra o capitalismo, mas usam tênis da Nike, telefone celular, conforme se verifica das imagens, postam fotos no Facebook e até utilizam de uma denominação grafada em língua Inglesa, bem ao gosto da denominada “esquerda caviar” 34.

Os supostos artefatos explosivos que motivaram a prisão dos acusados passaram por perícia, que constatou a inexistência de gasolina ou de qualquer outra substância inflamável. Devido ao resultado do laudo pericial, e considerando a pena aplicada em um possível juízo condenatório, bem como as condições pessoais dos réus, finalmente, em 07 de agosto, após quarenta e sete dias no cárcere, os acusados Fábio e Rafael foram postos em liberdade. Antes da prisão dos ativistas Fábio e Rafael em São Paulo, dezenove manifestantes foram presos por suspeita de vandalismo na manifestação “Não Vai Ter Final”, ocorrida no Rio de Janeiro.

32

Cf. COSTA, Célia; AUTRAN, Paula. Morre cinegrafista atingido por rojão de manifestante no Centro. O Globo, Rio de Janeiro, fev./2014. Disponível em: . Acesso em: 11 ago. 2014. 33

BRASIL Foro Central da Barra Funda da Comarca de São Paulo (10ª Vara Criminal). Despacho do juiz Sandro Rafael Barbosa Pacheco no Processo nº 0054326-66.201.8.26.0050, jun./2014.

34

BRASIL Foro Central da Barra Funda da Comarca de São Paulo (10ª Vara Criminal). Despacho do juiz Marcelo Matias Pereira no Processo nº 0054326-66.201.8.26.0050, ago./2014.

IV

Infelizmente, no ano em que se (des)comemora os 50 anos do Golpe Militar, responsável por prender, torturar e assassinar centenas de jovens brasileiros que lutavam pela democracia em nosso país, voltamos a presenciar prisões de militantes de movimentos sociais e populares. Em sua maioria, prisões arbitrárias que carecem de fundamentação jurídica e que ferem os direitos humanos assegurados pela nossa Constituição e pelos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. A explosão social que tomou as ruas do país durante as Jornadas de Junho foi o ápice do descontentamento e da indignação contra os fatores repressivos do atual modelo de Estado. “Não eram só vinte centavos”: denunciava-se o descaso estatal com as demandas da população e clamava-se pela efetivação dos preceitos constitucionais mais comezinhos. Ainda que tenhamos governantes e legisladores que lutam pela construção de um Estado voltado ao social, o nosso atual modelo estatal segue a lógica “Estado Social Mínimo e Estado Penal Máximo”. Deste modo, percebe-se que a urgência por uma nova concepção de Estado não vem só devido à criminalização dos movimentos sociais, mas sim diante de todos os fatores de opressão e criminalização distribuídos de forma desigual, atingindo diretamente aqueles já marginalizados, que necessitam de assistência e amparo estatal, não de sua reprimenda. Enquanto a perspectiva punitivista-exterminadora permanecer vigente, o surgimento de novos Amarildos, Cláudias, Rafaéis e Hidekis e tantos outros que são brutalmente atingidos por um sistema penal escandalosamente seletivo será contínuo.

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