Criminalizacao dos Movimentos Sociais

June 3, 2017 | Autor: Andre Giamberardino | Categoria: Movimentos sociais, Criminalização de Movimentos Sociais
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1     CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Publicado em: GIAMBERARDINO, A. R. Criminalização dos Movimentos Sociais. In: CLÉMERSON MERLIN CLEVE. (Org.). Direito Constitucional Brasileiro. 1ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, v. 1, p. 649-658. André Giamberardino* Sumário. 1. Processos de Criminalização e Constituição; 2. Processos de Criminalização e os Movimentos Sociais – (a) A crítica normativa: criminalização primária e teoria constitucional do bem jurídico; - (b) A crítica pela criminologia: criminalização secundária e os movimentos sociais no Brasil; 3. Considerações finais: e quando os movimentos sociais são vítima?; 4. Referências bibliográficas. 1. Processos de Criminalização e Constituição A densidade política do direito penal está entre os caracteres mais evidentes deste ramo do ordenamento jurídico e presente em cada opção de política criminal em âmbito legislativo e judicial. Mas não era o que dizia Arturo ROCCO, mentor do movimento do tecnicismo jurídico-penal1 e principal redator dos Codici italianos na década de 30, inspiração principal para o Código Penal e o Código de Processo Penal brasileiros que têm suas redações originais datadas, respectivamente, de 1940 e 1941. Para ROCCO, buscando adaptar o normativismo kelseniano à questão criminal, seria necessário apartar a técnica de manejo da dogmática de reflexões de cunho filosófico ou sociológico, redefinindo-se o crime como uma mera espécie do gênero ato ilícito, tendo a pena como a respectiva consequência jurídica. Não à toa, ROCCO era um dos teóricos italianos mais fortemente ligado ao regime fascista: o discurso pretensamente neutro sempre convém ao autoritarismo político. Do ponto de vista da fundação histórica do direito penal e processual penal moderno, o que se deve ressaltar é a inexistência de uma linha de ruptura ou descontinuidade entre o iluminismo e as bases materiais do conceito moderno de crime e dos sistemas processuais, definidas, respectivamente, pelo paradigma do                                                                                                                 * Professor na Universidade Federal do Paraná e na Universidade Positivo. Doutor pela UFPR, Mestre em Direito pela UFPR e em Criminologia pela Università degli Studi di Padova. Defensor Público no Estado do Paraná. 1 ROCCO, Arturo. “Il problema e il metodo della scienza del diritto penale”. Opere Giuridiche, vol. 3. Roma: Società Editrice del Foro Italiano, 1933, p. 263-323.

2     crimen laesae maiestatis e pela estrutura inquisitória adaptada do direito canônico medieval. A decisiva construção teórica do Princeps como “metáfora do Estado”2 ressigificou o ato de punir como ação política central para a manutenção da ordem e do poder central, definindo todo e qualquer crime, assim, não como a lesão a direitos de alguém mas, sobretudo, como crime político, ou seja, como um “atentado ao sistema de poder enquanto tal”3. De acordo com Arno DAL RI JR, posteriormente, “o imaginário coletivo substitui o atentado à figura do velho rei-soberano pela figura do atentado à ordem-soberana”, notando que dos 484 artigos do Code Pénal napoleônico, base para a maioria das legislações continentais, 197 se referiam a delitos contra a autoridade do Estado4. É próprio do penal moderno, portanto, que o poder punitivo institucionalizado se volte contra aqueles que trazem, em suas demandas, o anseio por uma transformação mais profunda da sociedade. Todo grande avanço social se deu, afinal, através do confronto com o sistema penal, nunca com seu suporte5. Por outro lado, sob o prisma normativo, não há mais dúvidas hoje acerca da supremacia da Constituição sobre a legislação ordinária e especialmente nessa matéria (não obstante a resistência de grande parte dos “operadores do cotidiano”). Da mesma forma, é justamente no campo das relações entre política e direito penal que se dá, segundo PALAZZO, a influência e a penetração dos valores constitucionais no sistema penal6. A gravidade da violência presente na intervenção estatal sobre a liberdade individual, na forma da pena, requer uma justificação adequada e harmônica aos ditames constitucionais, tanto no que diz respeito à seleção das condutas a serem criminalizadas como no que tange ao como punir e à aplicação da norma no caso concreto. A Constituição de 1988 toca diretamente na matéria penal através de verdadeiros princípios de direito penal constitucional, tendo por base o princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX, art. 227, §4º, CR) e mediante cláusulas de criminalização/penalização (art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV, CR), limitações e                                                                                                                 2

SBRICCOLI, Mario. Crimen Laesae Maiestatis, p. 80 e ss. SBRICCOLI, Mario. Crimen Laesae Maiestatis, p. 187. 4 DAL RI JÚNIOR, Arno. O Estado e seus inimigos, p. 203, 209. Sobre o tema, v. também ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, ressaltando-se a desnecessidade de se invocar a teoria do “direito penal do inimigo”, do alemão Günther Jakobs, que não obstante sua relevância atual nasce com outro sentido e em outro contexto. 5 Nesse sentido, v. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Manual de Derecho Penal: Parte General. 2.ed. Buenos Aires: Ediar, 2009. 6 PALAZZO, Francesco. Valores Constitucionais e Direito Penal, p. 17. 3

3     garantias quanto à pena (art. 5º, XLVII, XLV, XLVI, XLVIII, XLIX, L, CR) e normas atinentes à suspensão da capacidade eleitoral (art. 15, III, CR); além de tangenciar a questão criminal indiretamente por meio dos demais princípios constitucionais que também devem ser levados em conta. Dentro de um modelo constitucional, o raciocínio silogístico é muito simples: “a sanção penal só poderá ser utilizada para tutelar um bem no mínimo de igual importância normativa – logo, de relevância constitucional – em relação ao bem da liberdade individual”7, nos termos da sugestão dada por Franco BRICOLA já em 19738. O bem jurídico objeto de tutela não é referencial desvinculado de uma matriz normativa bem definida, inobstante seja concebido como pré-dado à norma penal, mas deduzido e extraído diretamente da Constituição, única fonte possível de legitimidade para as opções do legislador. Já sob um prisma sociológico, de caráter explicativo e ligado à criminologia e sua crítica, ocupa lugar central o conceito de processo de criminalização, o qual, negando qualquer natureza ontológica ao conceito de “crime”, define os mecanismos de filtragem e seleção dos comportamentos e sujeitos aos quais são atribuídas as definições que os levarão ao espiral (formalizado) de violência do sistema penal. Nas palavras de Alessandro BARATTA, trata-se de uma dupla seleção: “em primeiro lugar, a seleção dos bens protegidos penalmente, e dos comportamentos ofensivos destes bens, descritos nos tipos penais; em segundo lugar, a seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas penalmente sancionadas”9. No mesmo sentido, dissocia-se a repressão como a consequência que segue à transgressão10: na verdade, há entre os dois momentos um complexo processo comunicativo e declarativo, pautado por fatores extrajurídicos, que deve converter/transformar a conduta em crime e o autor em delinquente. Fala-se, portanto, em processos de criminalização primária, no momento de tipificação de condutas e cominação de penas pelo Poder Legislativo, e processos de criminalização secundária quanto às diversas modalidades de aplicação da lei e seleção, pelas agências do sistema penal – Poder Executivo e a Polícia, Poder

                                                                                                                7

MAZZACUVA, Nicola. “Modello costituzionale di reato. Le ‘definizioni’ del reato e la struttura dell’illecito penale”. Introduzione al Sistema Penale, p. 84. 8 BRICOLA, Franco. “Teoria generale del reato”, op.cit. 9 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal, p. 161 10 ROBERT, Philippe. Sociologia do Crime, p. 141.

4     Judiciário, mas também a mídia, associações civis, etc. – dos sujeitos que serão, efetivamente, criminalizados. Nota-se a mudança de objeto de estudo em relação à criminologia tradicional 11 , que sempre buscou as causas do “crime” e do “comportamento criminoso”. Não se trata de outras respostas, mas sim de outras perguntas: questionase agora “por que estes” e não outros, buscando-se compreender sociologicamente a seletividade do sistema penal e denunciá-la, em verdadeira atitude política. Falar na criminalização dos movimentos sociais, nesse sentido, é falar dos processos de criminalização que atingem a proibição de determinadas condutas (demandando uma crítica normativa) e, principalmente, determinados sujeitos que tangenciam ou integram o conceito de movimento social (exigindo uma crítica sociológica). Em outras palavras, a crítica dos processos de criminalização primária é normativa e parte, principalmente, da teoria constitucional do bem jurídico, visando demonstrar a ilegitimidade da tipificação de determinadas condutas; enquanto a crítica dos processos de criminalização secundária encontra na criminologia a percepção de um sistema seletivo e profundamente politizado, voltado menos à proteção de direitos fundamentais e mais à opressão e exploração de classe. 2. Processos de Criminalização e os Movimentos Sociais Propõe-se, como definição possível de movimento social, mas sempre aberta e limitada, aquela segundo a qual trata-se de um ator coletivo que intervém no processo de transformação social12 e se torna assim uma nova fonte de juridicidade13. Sugerese a leitura das obras de Maria da Glória GOHN14 como referência teórica sobre suas diferentes possíveis matrizes teóricas e políticas.                                                                                                                 11

Ressalta-se que a inversão de perspectiva já havia sido levada a cabo por teóricos ligados à Escola de Chicago, ao interacionismo simbólico e à etnometodologia, bases do que ficou conhecida como “teoria do etiquetamento” ou labelling approach. É interessante notar como a Escola de Chicago é também matriz de algumas das hipóteses clássicas de compreensão dos movimentos sociais, reflexão porém separada daquela sobre o crime e o controle social. A criminologia crítica diferencia-se por buscar uma compreensão macrosociológica e mais politizada dos processos de construção social de determinados conceitos e identidades. 12 RASCHKE, Joachim. “Sobre el concepto de movimiento social”, Zona Abierta, p. 122. Para uma ampla e atualizada reflexão, v. GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais e Redes de Mobilizações Civis no Brasil Contemporâneo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. 13 Nesse sentido v. WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 3. ed. São Paulo : Alfa Ômega, 2001. 14 Principalmente GOHN, Maria da Gloria. Teorias dos Movimentos Sociais: paradigmas clássico e contemporâneos. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2007.

5     Foram os movimentos sociais os responsáveis pela expansão e fortalecimento da ideia de direitos e sua dimensão coletiva entre as décadas de 70 e 80, no Brasil, identificando CALDEIRA três características fundamentais15: (a) trata-se de direitos coletivos e não da expansão de direitos individuais; (b) a sua reivindicação foi instrumento de uma inédita organização das camadas populares, legitimadas como atores políticos; e (c) tendo o Poder Executivo como principal referência receptora das demandas e reivindicações. Alguns aspectos de como esses novos movimentos sociais brasileiros e latinoamericanos enfrentam, no direito penal, obstáculos ao seu desenvolvimento e à consolidação dos direitos fundamentais postos em discussão são sistematizados nos termos propostos a seguir: (a) A crítica normativa: criminalização primária e teoria constitucional do bem jurídico No âmbito de sua aplicação judicial, ou seja, dos processos de criminalização secundária, os mais diversos tipos penais podem ser politicamente instrumentalizados para a criminalização de movimentos sociais. Há alguns, porém, especialmente voltados a este fim e que merecem a crítica já no âmbito de sua previsão em abstrato, pela via legislativa, questionando-se a sua compatibilidade com a Constituição da República. O Título IX do Código Penal brasileiro, por exemplo, abarca três tipos penais que tutelariam o bem jurídico identificado como a paz pública, entre os artigos 286 (incitação ao crime), 287 (apologia a crime ou a autor de crime) e 288 (formação de quadrilha). A “paz pública” como bem jurídico social é questionável per se: a própria terminologia mais adequada é controversa, na medida em que, na maioria dos países europeus, identifica-se a ordem pública como o bem jurídico tutelado16, enquanto para outros seria a tranquilidade privada, na medida em que o termo “tranqüilidade                                                                                                                 15

CALDEIRA, Teresa. “Direitos humanos ou privilégios de bandidos?”. Novos Estudos Cebrap, p. 163. 16 Na Itália, por exemplo, entende-se por ordem pública “o bom e regular andamento da vida social: é a coexistência harmônica e pacífica dos cidadãos sob a soberania do Estado e do direito e, nesse sentido, é sinônimo de paz pública”; cf. ANTOLISEI, Francesco. Manuale di Diritto Penale, p. 716: “il buon assetto e il regolare andamento della vita sociale: è l’armonica e pacifica coesistenza dei cittadini sotto la sovranità dello Stato e del diritto e, in questo senso, è sinonimo di pace pubblica. Ad esso corrisponde nei cittadini il senso della tranquilità e della sicurezza”.

6     pública” anteriormente utilizado seria muito vago porque lesionado em todos os crimes, de forma mediata e indireta17; na Alemanha, ainda, de forma similar, fala-se em paz jurídica18 (Rechtsfrieden) enquanto consciência da seguridade do direito. Para FRAGOSO, paz pública é objetivamente ordem nas relações da vida social e subjetivamente o sentimento coletivo de segurança na ordem jurídica19; notando-se que o conceito tem caráter vago mesmo onde o autor visualiza uma dimensão objetiva. A violação da paz pública seria um atentado direto (e não meramente indireto, como em todos os crimes) contra a tranqüilidade social. A fragilidade do discurso é evidente: a própria doutrina, em sua ampla maioria

20

, admite se tratarem as ações aqui tipificadas como meros atos

preparatórios, em regra impuníveis, o sendo apenas e tão-somente por conta de uma opção do legislador (como se houvesse um espaço assaz discricionário ou ilimitado) fundada exatamente na necessidade de se garantir a paz pública colocada como o bem jurídico tutelado. Ocorre que a argumentação é circular e o bem jurídico atribuído não resiste a um exame com sustento nos critérios de criminalização construídos a partir da Constituição. A utilização dos tipos penais da “incitação ao crime” ou da “formação de quadrilha” denotam sua instrumentalização classista com especial clareza na questão agrária21 e movimentos como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra), dimensão central do tema pois referente à área na qual os processos de criminalização dos movimentos sociais são mais explicitamente e politicamente instrumentalizados. Além desses, também é comum se atribuir às ocupações de terra os crimes de dano (art. 163, CP) e esbulho possessório (art. 161, II, CP). O ponto principal de incongruência está na incapacidade do sistema penal, que individualiza toda conduta e a recorta e isola da realidade, em violenta e artificial redução da complexidade, lidar com conflitos e sujeitos que são coletivos.                                                                                                                 17

CARRARA, Francesco. Programa de Derecho Criminal, p. 382. V. VON LISZT, Franz. Tratado de Direito Penal Alemão, p. 159: “Paz jurídica é a consciência da seguridade do Direito, a confiança no poder protetor da ordem jurídica. Ela é ofendida, quando essa confiança é perturbada, embora transitoriamente, pelo receio de violências contrárias ao Direito; é comprometida, quando se dá a possibilidade imediata de ser essa confiança perturbada”. 19 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, p. 919. 20 Apenas para exemplificar, v. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, p. 933; NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, p. 125; PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, p. 835; JESUS, Damásio de. Direito Penal, p. 425; SOLER, Sebastian. Derecho Penal Argentino, p. 631. 21 Sobre, v. BORTOLOZZI JR., Flávio. A criminalização dos movimentos sociais como obstáculo à consolidação dos direitos fundamentais. Dissertação (Universidade Federal do Paraná). Curitiba: Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR, 2008. 18

7     A emergência da preocupação com o terrorismo, questão intensamente presente no cenário internacional e que parece se aproximar da pauta nacional em face dos grandes eventos esportivos, também pode acarretar a produção de tipos penais com potencial enfoque sobre os movimentos sociais. O Projeto de Novo Código Penal (PLS 236-SF) em tramitação no Congresso Nacional, por exemplo, propõe em seu art. 239 como crime de terrorismo, com uma pena de oito a quinze anos (sem falar em outros projetos substitutivos apresentados em 2013 propondo pena de vinte e quatro a trinta anos), a conduta de “causar terror na população”, por exemplo, por ações que tenham “por fim forçar autoridades públicas, nacionais ou estrangeiras, ou pessoas que ajam em nome delas, a fazer o que a lei não exige ou deixar de fazer o que a lei não proíbe”, incluindo a invasão de “qualquer bem público ou privado”. Busca-se atenuar o risco político com a previsão de seu sétimo parágrafo, segundo o qual não seria crime “a conduta individual ou coletiva de pessoas movidas por propósitos sociais ou reinvindicatórios, desde que os objetivos e meios sejam compatíveis e adequados à sua finalidade”. Tentativa frustrada, como se bem nota: a proposta ignora o debate sobre direito à resistência e insere, em vala comum, a possibilidade de criminalização como “terrorista” de toda forma de manifestação e protesto mais politicamente articulados. De todo modo, não há novidades se olharmos à ideologia que sustenta a Lei 7.170/83 (Lei da Segurança Nacional) 22, ainda em vigor não obstante sua duvidosa compatibilidade para com a Constituição de 1988. Tal lei não deixa de ser a versão militarizada contemporânea do paradigma do crimen laesae maiestatis: entre seus tipos penais mais abertos e sujeitos a uma interpretação que inclua a ação política de movimentos sociais, destacam-se aqueles similares aos crimes contra a paz pública, porém especificados pelos artigos 16 (destacamos os verbos que compõem os núcleos dos tipos: “integrar ou manter...”), 17 (“tentar mudar...”), 20 (“Devastar, saquear, roubar, sequestrar, (...), por inconformismo político...”) e 23, I (“Incitar à subversão da ordem política ou social...”) todos da Lei 7.170/8323 e sempre se referindo à ameaça de modificação do “regime vigente” ou do Estado de Direito.                                                                                                                 22

TANGERINO, Davi de Paiva Costa; D’AVILA, Fabio Roberto; CARVALHO, Salo de. “O Direito Penal na ‘luta contra o terrorismo’: delineamentos teóricos a partir da criminalização dos movimentos sociais (o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra)”. ZILIO, Jacson; BOZZA, Fabio (org.). Estudos Críticos sobre o Sistema Penal. Curitiba: LedZe, 2012, p. 639-677. 23 Vide exemplo concreto de utilização dos referidos tipos penais para a criminalização de integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra em TANGERINO, Davi de Paiva Costa; D’AVILA, Fabio Roberto; CARVALHO, Salo de. “O Direito Penal na ‘luta contra o terrorismo’:

8     (b) A crítica pela criminologia: criminalização secundária e os movimentos sociais no Brasil É preciso distinguir dois processos interligados, mas distintos, referentes à criminalização da pobreza, de um lado, e à criminalização dos movimentos sociais, de outro. Partindo da premissa de que os novos movimentos sociais de que se trata são movimentos populares, reconhece-se nesse segundo fenômeno uma especificação do primeiro. Se o sistema penal se volta, originariamente, à produção da diferenciação e da hierarquia social, é claro que haverá um vigor renovado quanto à persecução e punição da pobreza que reconhece a própria cidadania e se organiza, com consciência política, para pleitear mudanças. No caso dos movimentos sociais, a criminalização consiste, no que tange ao ato, no enquadramento, em determinados tipos penais, de condutas próprias de movimentos coletivos que reivindicam direitos, e no que tange ao autor, da individualização e da estigmatização de sujeitos que integram tais movimentos (ou defensores e militantes que os apóiam) como associados ao estereótipo comum do “bandido”. Passa-se, assim, por meio de uma determinada linguagem dotada de grande poder constitutivo, à definição da conduta como transgressão e à conseguinte legitimação da repressão. Não se pode perder de vista, nesse ponto, a matriz sociológica desconstrucionista que visa construir hipóteses explicativas contrapostas à pressuposição de uma natureza ontologicamente desviante em quaisquer atos ou sujeitos, sendo justamente a base teórica da teoria do etiquetamento e da crítica criminológica construída a partir da década de setenta. Os processos de criminalização secundária são levados a cabo, portanto, pelos Poderes Executivo, especialmente por meio da Polícia, e Judiciário, legitimando prisões arbitrárias e acusações descabidas; mas também pela mídia e outros operadores do sistema de justiça criminal. Dentre tantos casos exemplares no Brasil, recomenda-se a leitura do Relatório

apresentando em audiência pública na

Organização dos Estados Americanos (OEA) pelo Movimento Nacional de Direitos

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            delineamentos teóricos a partir da criminalização dos movimentos sociais (o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra)”. ZILIO, Jacson; BOZZA, Fabio (org.). Estudos Críticos sobre o Sistema Penal, p. 650 e ss.

9     Humanos em 200624. Apenas neste relatório há menção, além da questão agrária, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), vinculados às comunidades negras rurais quilombolas e às organizações indígenas da Amazônia brasileira, referentes às reivindicações pelo respeito à livre orientação sexual, aos direitos da mulher. Também o movimento das fábricas ocupadas, a exemplo da Flascô, ocupada pelos seus trabalhadores em 2003; ou os diversos movimentos ligados à luta pelo direito à moradia, tais como o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), têm grande repercussão no âmbito das grandes cidades e provocam a reação do Estado por meio do recurso a seu aparato penal. Em todos os casos, o manejo desonesto e tendencioso do tipo penal de desacato (art. 331, Código Penal) tem sido particularmente responsável tanto pelo ocultamento da violência policial como pela criminalização de integrantes de movimentos sociais e defensores de direitos humanos. Mesmo com pena baixa e a condução pelos Juizados Especiais Criminais, a imposição e a força simbólica do tipo penal são poderosas ferramentas de coerção e intimidação. Mais grave ainda é a recorrente utilização de argumento segundo o qual o testemunho do agente público e suposta vítima teria “fé pública” e serviria como elemento suficiente para aferição da materialidade e autoria. Nada mais equivocado. Não se pode confundir a presunção de legitimidade do ato administrativo, que exige diversos elementos para sua existência e validade, com a afirmação, impossível em um Estado de Direito, que as palavras do agente público servem como prova isolada de um tipo penal. Uma derradeira e interessante questão, por fim, trata da possibilidade de se compreender os movimentos em prol do reconhecimento dos direitos de presos comuns como movimentos sociais. Para CALDEIRA, há algumas diferenças importantes que impedem a identificação do movimento por direitos dos presos como um “movimento social”25, a saber: (a) não se trata de um grupo reivindicando direitos aos quais fazem jus, mas sim de direitos de outrem; (b) o conceito não admitiria a possibilidade de uma identidade comum negativa, pois associada à ideia de prisioneiros e “criminosos” (observação, diga-se, cada vez mais questionável, diante da organicidade de facções que se unem em nome da luta contra o arbítrio estatal); (c) o fato de o respeito aos direitos humanos dos presos ser acolhido em âmbito oficial,                                                                                                                 24  PAD/MNDH.

A criminalização de movimentos sociais no Brasil: Relatório de casos exemplares (org. Rosiana Pereira Queiroz). Brasília: MNDH, 2006. Vide também o Relatório das ONG’s Justiça Global e Terra de Direitos, de 2005. 25 CALDEIRA, Teresa. “Direitos humanos ou privilégios de bandidos?”. Novos Estudos Cebrap,p.167.

10     mesmo com oposição popular; (d) por fim, e mais importante, trata-se de reinvidicar direitos individuais. A contundente e relevante conclusão da autora, de todo modo, é que a intensa oposição popular que seguiu à associação entre a ideia de “direitos humanos” e “direitos dos presos” acaba por indicar um limite para o próprio processo de expansão dos direitos e de fortalecimento dos movimentos sociais26, na medida em que indica os limites materiais da própria democracia. A luta pelos direitos mais fundamentais dos presos comuns seria, nesse sentido, componente inafastável da luta dos movimentos sociais por uma sociedade mais justa. 3. Considerações finais: e quando os movimentos sociais são vítima? Há incoerência ou incongruência em se desconstruir ideologicamente o sistema penal, demonstrando sua seletividade e ilegitimidade, para em seguida, quando militantes e membros de movimentos sociais são vítima, correr de volta ao mesmo “pedindo justiça”? Não são poucos os casos registrados de violência praticada nesse sentido, destacando-se dois casos ocorridos no Estado do Paraná e que culminaram em condenações do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos. No caso Escher, por conta de interceptações telefônicas abusivas de integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST); no caso Sétimo Garibaldi, integrante do mesmo movimento foi vítima de homicídio qualificado após ação de pistoleiros encapuzados, a mando de fazendeiro proprietário do local então ocupado. A condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos é fundamental justamente em seu mecanismo simbólico de censura e reconhecimento expresso da violação, por parte do Estado, aos direitos em questão. A questão que permanece, de todo modo, é se esta legítima demanda por censura confunde-se ou equipara-se, necessariamente, com a aplicação da pena estatal mais severa que é a privação da liberdade. Trata-se, sem dúvida, de uma aposta arriscada.   Não se pretende, nesse brevíssimo ensaio, nada além da revisão conceitual e indicação de linhas de abordagem possíveis deste que é um tema denso e complexo e que

toca

profundamente

a

realidade

social

e

política

latino-americana.

                                                                                                                26

CALDEIRA, Teresa. “Direitos humanos ou privilégios de bandidos?”. Novos Estudos Cebrap,p.165.

11     Indubitavelmente, o marco teórico de conjugação entre o prisma constitucional e o direito penal nesse ponto deve priorizar a reflexão sobre o direito de resistência27 para com a visualização da desobediência civil como possível causa de exclusão da culpabilidade por inexigibilidade de comportamento diverso, com fulcro na “existência objetiva de injusto mínimo e na existência subjetiva de motivação pública ou coletiva relevante, ou, alternativamente, na desnecessidade de punição” 28. A criminalização dos movimentos sociais é, nesses termos, um dos mais importantes e sensíveis temas à criminologia crítica latino-americana e brasileira justamente porque explicita, com rara clareza, quão subordinado é o sistema penal a interesses nada republicanos e que se utilizam da força simbólica e literal da linguagem da criminalização para ocultar problemas e conflitos que são precipuamente sociais e políticos. O sistema penal é, metaforicamente, um grande “tapete”, por meio do qual se mantém submerso o debate sobre questões políticas fundamentais. A voz dos movimentos sociais é, enfim, a voz do diálogo franco e aberto, mesmo se muitas vezes contundente, sobre temas-chave aos quais, não à toa, o autoritarismo do discurso do crime e da pena busca silenciar. Questão de política e não de polícia, appunto. 4. Referências bibliográficas ANTOLISEI, Francesco. Manuale di Diritto Penale: parte speciale. 9.ed. Vol. II. Milano: Giuffrè, 1986. BARATTA, Alessandro. “Che cosa à la criminologia critica?”. Dei delitti e delle Pene, n. 1, 1991, Bari: Edizione Scientifiche Italiane, p. 53-81. _____. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à Sociologia do Direito Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos / Instituto Carioca de Criminologia, 1999. BORTOLOZZI JR., Flávio. A criminalização dos movimentos sociais como obstáculo à consolidação dos direitos fundamentais. Dissertação (Universidade Federal do Paraná). Curitiba: Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR, 2008. CALDEIRA, Teresa. “Direitos humanos ou privilégios de bandidos?”. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, v. 30, p.162-174, 1991.                                                                                                                 27

Componente fundamental do constitucionalismo cf., por exemplo, GARGARELLA, Roberto. El derecho a resistir el derecho. Madrid: Miño y Davila Editores, 2005. 28 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal, p. 345-346.

12     CARRARA, Francesco. Programa de Derecho Criminal. Vol. II. Bogotá: Temis, 1997. DAL RI JÚNIOR, Arno. O Estado e seus inimigos: a repressão política na história do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: Parte Especial. 2. ed. Vol. III. São Paulo: José Bushatsky, 1965. GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais e Redes de Mobilizações Civis no Brasil Contemporâneo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. _____. Teorias dos Movimentos Sociais: paradigmas clássico e contemporâneos. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2007. JESUS, Damásio de. Direito Penal. 25. ed. Vol. III. São Paulo: Saraiva, 2002. MAZZACUVA, Nicola. “Modello costituzionale di reato. Le ‘definizioni’ del reato e la struttura dell’illecito penale”. Introduzione al Sistema Penale, 2006, p. 81-125. NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. Vol. IV. São Paulo: Saraiva, 1962. PAD/MNDH. A criminalização de movimentos sociais no Brasil: Relatório de casos exemplares (org. Rosiana Pereira Queiroz). Brasília: MNDH, 2006. PALAZZO, Francesco. Valores Constitucionais e Direito Penal. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1989. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 3.ed. Vol. III. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. RASCHKE, Joachim. “Sobre el concepto de movimiento social”, Zona Abierta, v. 69, Madrid: ARCE, 1994, p. 121-134. ROBERT, Philippe. Sociologia do Crime. 2. Ed. Petrópolis: Vozes, 2010. ROCCO, Arturo. “Il problema e il metodo della scienza del diritto penale”. Opere Giuridiche, vol. 3. Roma: Società Editrice del Foro Italiano, 1933, p. 263-323. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. 3.ed. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2008. SBRICCOLI, Mario. Crimen Laesae Maiestatis: il problema del reato politico alle soglie della scienza penalistica moderna. Milano: Giuffrè, 1974. SOLER, Sebastian. Derecho Penal Argentino. Tomo IV. Buenos Aires: Tipografica Editora Argentina, 1951. TANGERINO, Davi de Paiva Costa; D’AVILA, Fabio Roberto; CARVALHO, Salo de. “O Direito Penal na ‘luta contra o terrorismo’: delineamentos teóricos a partir da criminalização dos movimentos sociais (o caso do Movimento dos Trabalhadores

13     Rurais Sem-Terra)”. ZILIO, Jacson; BOZZA, Fabio (org.). Estudos Críticos sobre o Sistema Penal. Curitiba: LedZe, 2012, p. 639-677. WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 3. ed. São Paulo : Alfa Ômega, 2001. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Manual de Derecho Penal: Parte General. 2.ed. Buenos Aires: Ediar, 2009.

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