Criminologia em Foco: pelas Sendas de um Direito Plural, Sensível e Emancipatório (Prefácio)

July 27, 2017 | Autor: Taysa Schiocchet | Categoria: Criminologia
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Citação do texto: SCHIOCCHET, T. Criminologia em Foco: pelas Sendas de um Direito Plural, Sensível e Emancipatório. Salvador/BA, 2013. (Prefácio, Pósfacio/Prefácio). Disponível em: https://unisinos.academia.edu/TaysaSchiocchet.

Bio: Pós-doutora pela UAM, Espanha. Doutora em Direito pela UFPR, com estudos doutorais na Université Paris I–Panthéon Sorbonne e na FLACSO, Buenos Aires. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Líder do Grupo de Pesquisa |BioTecJus| Estudos Avançados em Direito, Tecnociência e Biopolítica. Tem experiência na área de Direito e Bioética, com ênfase em Teoria do Direito e Direito Civil-Constitucional, atuando principalmente nos seguintes temas: direitos humanos, ética na pesquisa, biotecnologia genética, laicidade e estudos de gênero, criança e adolescente, antropologia e povos indígenas.

CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/4551065746013148 E-mail: [email protected] Site: http://biotecjus.com.br/

CRIMINOLOGIA EM FOCO: PELAS SENDAS DE UM DIREITO PLURAL, SENSÍVEL E EMANCIPATÓRIO

CRIMINOLOGIA EM FOCO: Pelas sendas de um Direito plural, sensível e emancipatório

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URBANO FÉLIX PUGLIESE DO BOMFIM

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URBANO FÉLIX PUGLIESE DO BOMFIM Organizador Possui graduação em Direito pela Universidade Federal da Bahia (2001). Curso de Graduação em Pedagogia na Universidade Federal da Bahia - Incompleto -. Especialista em Ciências Criminais pelo Jus Podivm/Faculdades Jorge Amado (2003). Especialista em Pedagogia Universitária pela Faculdade Maurício de Nassau (2008). Mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (2009). Doutorando em Direito, desde 2012, pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Foi professor de direito penal da Faculdade Baiana de Ciências/ Faculdade Maurício de Nassau, Curso para Concursos (preparatório para concursos públicos), Curso Cejus (preparatório para concursos públicos) e Direito Penal da Universidade Estácio de Sá (Salvador). Foi Coordenador do Colegiado de Direito da UNEB/ Campus IV/Jacobina (2010-2011). Atualmente é professor Assistente de Direito Penal, Criminologia e Metodologia da Pesquisa da Universidade do Estado da Bahia (UNEB/ Campus IV/Jacobina). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em direito penal e execuções penais.

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Salvador 2013 3

URBANO FÉLIX PUGLIESE DO BOMFIM

Direitos de publicação cedidos à Editora Mente Aberta Rua José Falcão, 01, 1º. andar, Fazenda Grande do Retiro. Cep 40.350-290 – Salvador – Bahia Tel: 71 3484-3729 Página na internet: www.editoramenteaberta.com E-mail: [email protected] Diretor Editorial Pedro Camilo de Figueirêdo Neto Conselho Editorial Cristina Helena Sarraf, Lindomar Coutinho da Silva, Luciano Bomfim, Pedro Camilo 1ª. Edição – Abril/2013 Tiragem: 1000 exemplares A reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer modo, somente será permitida com autorização da editora (Lei n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998) Copyright © 2013 by Urbano Félix Pugliese do Bomfim, Bernardo Montalvão Varjão de Azevedo, Fabiano Cavalcante Pimentel, Pedro Camilo de Figueirêdo Neto, Antônio Márcio Melo da Silva, Ceane Maria Cardoso, Cristiane Lima Procópio, Eliana Ferreira Santos, Fernando Santana de Oliveira Santos, Géssica Lorena Alves de Souza, Gessika Morgana Silva Santos, Joab Costa de Carvalho, Joelane Mirele Silva dos Santos, José Rodrigues de Jesus, Juliana Alves Oliveira Chaves, Jussivan Ribeiro da Gama, Lucas de Santana Oliveira, Marcus Costa de Santana, Monique Santana de Oliveira, Paloma Oliveira de Jesus Jambeiro, Railson do Nascimento Silva, Tainan Alves dos Santos Senna e Ziron Sousa Rodrigues Filho. Revisor Eduardo Reis Dourado Capa Vlad Lobão Editoração Eletrônica Vlad Lobão [email protected] Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário: C929

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Conselho Editorial do livro Bruno Teixeira Bahia, Daniela Carvalho Portugal, Daniel Nicory do Prado, Emiliano Côrtes Barbosa, Fabiano Cavalcante Pimentel, Pedro Augusto Lopes Sabino, Pedro Camilo de Figueirêdo Neto, Rodrigo Ribeiro Guerra, Taysa Schiocchet, Thais Bandeira Oliveira Passos, Urbano Félix Pugliese do Bomfim e Valmir Lacerda Cardoso Júnior.

Colaboradores do livro Bernardo Montalvão Varjão de Azevedo, Fabiano Cavalcante Pimentel, Pedro Camilo de Figueirêdo Neto, Urbano Félix Pugliese do Bomfim, Antônio Márcio Melo da Silva, Ceane Maria Cardoso, Cristiane Lima Procópio, Eliana Ferreira Santos, Fernando Santana de Oliveira Santos, Géssica Lorena Alves de Souza, Gessika Morgana Silva Santos, Joab Costa de Carvalho, Joelane Mirele Silva dos Santos, José Rodrigues de Jesus, Juliana Alves Oliveira Chaves, Jussivan Ribeiro da Gama, Lucas de Santana Oliveira, Marcus Costa de Santana, Monique Santana de Oliveira, Paloma Oliveira de Jesus Jambeiro, Railson do Nascimento Silva, Tainan Alves dos Santos Senna e Ziron Sousa Rodrigues Filho.

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A Todos os eternos discentes, que não têm vergonha de aprender, reaprender e desaprender. Um livro de sonhos e realizações, cheios de pedidos melífluos. A todos nós, pois.

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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO.................................................................................................. 13 PREFÁCIO.............................................................................................................. 15 CAPÍTULO I

ERA UMA VEZ, A INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO 1. A FÁBULA DA INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO............. 19 2. INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO: CHAPEUZINHO VERMELHO OU LOBO MAU?............................................................................. 21 REFERÊNCIAS......................................................................................................... 24 CAPÍTULO II

A NOVA ORDEM DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO 1. INTRODUÇÃO.................................................................................................... 27 2. ALTERAÇÕES DO NOVEL INSTITUTO.......................................................... 27 2.1. A PRISÃO EM FLAGRANTE E A PRISÃO PREVENTIVA................... 28 2.2. A PRISÃO DOMICILIAR....................................................................... 31 2.3. A FIANÇA............................................................................................... 31 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 32 CAPÍTULO III

OS CUSTOS DA PENA NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO 1. INTRODUÇÃO.................................................................................................... 35 2. OS CUSTOS DO DIREITO................................................................................. 36 3. OS CUSTOS DO CRIME E DA PRIVAÇÃO DE LIBERDADE......................... 40 4. CUSTOS DA PRIVAÇÃO DA LIBERDADE E CRISE DE LEGITIMIDADE DO SISTEMA PRISIONAL............................................................................................. 45 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 48 REFERÊNCIAS......................................................................................................... 49 CAPÍTULO IV

AS TÉCNICAS DE CONTEMPORÂNEO

NEUTRALIZAÇÃO 7

NO

BRASIL

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1. INTRODUÇÃO.................................................................................................... 53 2. ALGUMAS TÉCNICAS DE NEUTRALIZAÇÃO................................................ 55 2.1. AS TÉCNICAS DE NEUTRALIZAÇÃO INTERNAS........................... 59 2.2. AS TÉCNICAS DE NEUTRALIZAÇÃO EXTERNAS.......................... 60 3. NOTÍCIAS REPLETAS DE TÉCNICAS DE NEUTRALIZAÇÃO...................... 63 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS...................................................... 66 REFERÊNCIAS......................................................................................................... 67 CAPÍTULO V

VIOLAÇÃO SISTEMÁTICA DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL: O CASO DA TORTURA E O CONTROLE SOCIAL 1. INTRODUÇÃO.................................................................................................... 71 2. A TORTURA NO BRASI...................................................................................... 71 3. VIDA: O VALOR SUPREMO, O SINE QUA NON DA LUTA POR JUSTIÇA!. 75 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: À GUISA DE CONCLUSÃO................................ 76 REFERÊNCIAS......................................................................................................... 78 CAPÍTULO VI

SISTEMA PENAL: A CRIMINALIDADE COM ANUÊNCIA DO ESTADO 1. INTRODUÇÃO.................................................................................................... 81 2. CONCEITO DE CRIMINALIDADE................................................................... 82 3. A FUNÇÃO DO ESTADO FRENTE À CRIMINALIDADE............................... 82 4. A DIFUSÃO DA (IN) EFICIÊNCIA PENAL DO ESTADO................................ 85 5. RELAÇÃO: CRIMINALIZAÇÃO E ESTADO..................................................... 86 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 88 REFERÊNCIAS......................................................................................................... 88 CAPÍTULO VII

O (DESEN) CANTO ACERCA DO FEMININO: A ESTIGMATIZAÇÃO DA MULHER EM LETRAS DE MÚSICAS POPULARES BRASILEIRAS .

1. INTRODUÇÃO.................................................................................................... 91 2. A CONSTRUÇÃO DO SER MULHER................................................................ 92 3. A MÚSICA ENQUANTO AGENTE SOCIALIZADOR..................................... 95 4. MULHER: INFERIOR, SUBMISSA, LIMITADA E...”DO LAR”........................ 96

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5. MULHER: INFERIOR, SUBMISSA, LIMITADA E...SEDUTORA..................... 97 6. MULHER: INFERIOR, SUBMISSA, LIMITADA E...POBRE............................. 99 6.1. MULHER: INFERIOR, SUBMISSA, LIMITADA E...RICA................ 100 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................... 100 REFERÊNCIAS....................................................................................................... 101 CAPÍTULO VIII

A ESTIGMATIZAÇÃO DO “CRIMINOSO”: ASPECTOS DIFENCIADORES QUE ATUAM NA ELEIÇÃO DOS ALVOS DO “MUNDO PENAL” 1. INTRODUÇÃO.................................................................................................. 105 2. O ESTIGMA E O CRIME: REFLEXÕES TEÓRICAS........................................ 106 3. O “LUGAR DO CRIME”: A ESTIGMATIZAÇÃO DO “CRIMINOSO” A PARTIR DO SEU HABITAT...................................................................................................107 4. A PENALIZAÇÃO E A CONSEQUENTE ESTIGMATIZAÇÃO DA MISÉRIA.... 109 5. O ESPAÇO DA PRISÃO E A DUPLA ESTIGMATIZAÇÃO DO CRIMINOSO.... 111 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS................................................... 113 REFERÊNCIAS....................................................................................................... 114

CAPÍTULO IX

A INFLUÊNCIA CRIMINOLÓGICO

MIDIÁTICA

NO

DISCURSO

1. INTRODUÇÃO.................................................................................................. 117 2. A MÍDIA QUE SE VENDE................................................................................ 118 3. A INFLUÊNCIA MIDIÁTICA NO CAMPO JURÍDICO................................. 119 4. DISCURSO CRIMINOLÓGICO MIDIÁTICO................................................ 120 5. TRIBUNAL MIDIÁTICO................................................................................... 121 6. A MÍDIA QUE JULGA E OS CASO DE REPERCUSSÃO SOCIAL.................. 122 7. O SENSO COMUM E O DISCURSO MIDIÁTICO......................................... 124 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS. ............................................................................. 124 REFERÊNCIAS....................................................................................................... 125 CAPÍTULO X

CONSTITUCIONALIDADE E PROPORCIONALIDADE DA PENA NO CRIME DE FALSICAÇÃO DE MEDICAMENTOS 1. INTRODUÇÃO...................................................................................................... 129 2. HISTÓRICO DA FALSIFICAÇÃO DE MEDICAMENTOS................................ 129 3. DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE................................................... 131

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4. A PROPORCIONALIDADE NO DIREITO PENAL............................................ 132 5. O CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE MEDICAMENTOS..................................... 134 6. A CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 273 DO CP......................................... 135 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 137 REFERÊNCIAS....................................................................................................................... 138 CAPÍTULO XI

DIREITO PENAL DO INIMIGO: REFLEXÕES SOBRE O SEU FASCÍNIO NO IMAGINÁRIO SOCIAL 1. INTRODUÇÃO.................................................................................................. 141 2. DIREITO PENAL DO INIMIGO...................................................................... 142 3. A TEORIA DE JAKOBS E O IMAGINÁRIO POPULAR................................... 145 4. A CONSTRUÇÃO DO FASCÍNIO E A LEGITIMAÇÃO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO......................................................................................................... 148 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................... 150 REFERÊNCIAS........................................................................................................... 150 CAPÍTULO XII

MEDO DA JUSTIÇA, UM OXIMORO? 1. INTRODUÇÃO.................................................................................................. 153 2. INTERLÚDIO ENTRE ASTRÉIA E FOBOS..................................................... 153 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................... 159 REFERÊNCIAS....................................................................................................... 160 CAPÍTULO XIII

DROGAS: DA CRIMINALIZAÇÃO À LEGALIZAÇÃO 1. INTRODUÇÃO.................................................................................................. 163 2. HISTÓRIA DA MACONHA: PARÂMETRO DA PROIBIÇÃO........................ 164 3. O FRACASSO DA PROIBIÇÃO......................................................................... 166 4. DIFERENÇA DE SIGNIFICADOS.................................................................... 168 5. TIRANDO O PROBLEMA DAS MÃOS DA POLÍCIA..................................... 169 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS.................................................... 172 REFERÊNCIAS....................................................................................................... 173

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CAPÍTULO XIV

A RESPONSABILIDADE DO ESTADO PERANTE OS PROBLEMAS DO SISTEMA CARCERÁRIO 1. INTRODUÇÃO.................................................................................................. 177 2. O PROBLEMA DA SUPERLOTAÇÃO DO SISTEMA CARCERÁRIO........... 177 3. O DESCOMPASSO ENTRE O ESTATUTO EXECUTIVO-PENAL E A EXECUÇÃO PENAL .............................................................................................. 179 4. A RESPONSABILIDADE DO ESTADO NA SELEÇÃO DE QUEM DEVE SER PUNIDO................................................................................................................. 179 5. A PROBLEMÁTICA DA RESSOCIALIZAÇÃO E A CULPA DO ESTADO NA INCIDÊNCIA CRIMINAL..................................................................................... 181 6. A FALTA DE INVESTIMENTO FINANCEIRO E AS INSTITUIÇÕES PENAIS......... 182 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................... 184 REFERÊNCIAS....................................................................................................... 184 CAPÍTULO XV

PRISÕES DO TRÁFICO: O FALCÃO CEGO NAS MASMORRAS DA SOCIEDADE 1. INTRODUÇÃO.................................................................................................. 187 2. FAMÍLIA............................................................................................................. 188 3. DISCRIMINAÇÃO SOCIORRACIAL............................................................... 189 4. AUSÊNCIA DO ESTADO.................................................................................. 190 5. DETERMINISMO.............................................................................................. 192 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................... 194 REFERÊNCIAS....................................................................................................... 195

DOCENTES PARTICIPANTES DO LIVRO........................................ 197 DICENTES PARTÍCIPES DO LIVRO..................................................... 198

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APRESENTAÇÃO DO LIVRO As aulas de Criminologia da graduação em Direito, quase sempre, representam um abrir de consciências. As conversas são difíceis, trabalhosas, complicadas, transtornantes. Devem ser. Quase sempre, ainda não há “experiência” com os argumentos mais cinzelados por cognições exteriores ao próprio ser pensante-discente. A Criminologia é um estudo profundo das mazelas humanas. Compreender o quanto somos manipulados pelo sistema exige uma pré-compreensão imensa. Tijolo a tijolo, os professores cunham estruturas cognitivas. Histórias são ventiladas. Sorrisos são amarrotados. Sonhos são destruídos. As esperanças, a pouco e pouco, tomam rumo. Como pequeninas flores que abrem pétalas na primavera, os sons interjetivos são constantes e demasiados. Talvez a maioria de nós insista em olhar para baixo quando o horizonte se vislumbre escuro. Tateando, caminhamos devagar. A luz, imensamente procurada, fica abaixo da terra, esperando a colheita voluntariosa de uns seres humanos mais corajosos e nobres. No entanto, poucos caminham a seara da aflitiva disposição aos estudos criminológicos, sempre densos e pesados. Os erros são inúmeros. Somos todos seres humanos em busca de desaprendizados. Instamos à perfeição, em meios às atribulações cotidianas. A realidade, quase sempre, é mais forte. O presente livro é uma coletânea de partículas de preocupação. Os textos foram revisitados inúmeras vezes. Lidos. Relidos. Trilidos. O máximo de cada um foi tangenciado. São os inícios de uma longa jornada em busca de reflexão e maturação mental/emocional. Gotas de reflexão de autores neófitos na área criminológica. Tentativas de arrependimentos posteriores. Belas respostas e perguntas, enfim. Ao revés de pedir, através de um instrumento avaliativo como uma prova escrita, propus escrever artigos em dupla. Acredito ter sido um enorme sucesso. O presente livro é o “rebento” glorioso do projeto, outrora ventilado. Após, em concurso aberto através de edital, conforme o sistema de cegueira dupla (double blind review) (não se indica aos pareceristas os nomes dos escritores nem tampouco aos escritores quem serão os pareceristas) os textos foram escolhidos para compor o presente livro. Todos os textos, assim, passaram pelo crivo de professores tarimbados na seara criminológica. Espero, nos leitores, aprendizados um pouco mais verticais a respeito da Criminologia falada e refalada. Uma Criminologia mais antenada com as mudanças atuais da sociedade contemporânea. Visões profundas e menos dramáticas de assuntos repletos de detalhes e delicadezas merecedoras de sensibilidade e carinho da pesquisa. Espero que os escritos sejam bastante úteis nos estudos de todos os ledores da seara criminal. Agradeço, muito mesmo, aos amigos contribuidores com pequeninos

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textos, cheios de sabedoria. Tivemos o imenso prazer de desfrutar da leitura dos pareceres de Bruno Teixeira Bahia, Daniela Carvalho Portugal, Daniel Nicory do Prado, Emiliano Côrtes Barbosa, Fabiano Cavalcante Pimentel, Pedro Augusto Lopes Sabino, Pedro Camilo de Figueirêdo Neto, Rodrigo Ribeiro Guerra, Taysa Schiocchet, Thais Bandeira Oliveira Passos e Valmir Lacerda Cardoso Júnior. Desfrutem com paciência. Força e honra. Jacobina, 13 de fevereiro de 2013. Urbano Félix Pugliese do Bomfim Organizador do livro E-Mail: [email protected]

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PREFÁCIO CRIMINOLOGIA EM FOCO: pelas sendas de um Direito plural, sensível e emancipatório Por Taysa Schiocchet Doutora em Direito. Professora e pesquisadora do PPGD/UNISINOS1. Esta obra trilha caminhos epistemológicos em torno de fenômenos políticos, jurídicos e sociais que aparentemente ainda não foram compreendidos na sua integralidade. É o caso do fenômeno expansionista, apontado por autores como Foucault, Agamben e Esposito, relacionado ao poder sobre a “vida nua” que da exceção torna-se regra. Esse fenômeno ou paradigma biopolítico sintetiza a arte do governo da vida humana, a qual é captada no seu sentido natural ou biológico, como objeto de governo. A biopolítica moderna e contemporânea captura a vida humana na forma de exceção jurídica, que persiste como potência da vontade soberana – agora invisibilizada - no interior dos denominados “Estados de Direito” e do paradoxo da inclusão/exclusão. De fato, observa-se na atualidade a permanência de um Direito titubeante, imaturo e por vezes incoerente. Refém de uma tradição centrada no sujeito cartesiano ora arrogante, ora assujeitado – este Direito, vinculado à tradição codificadora do século XVIII, acaba por apresentar inúmeras vezes respostas padronizadas e descoladas do mundo da vida. Ao fim e ao cabo, ao invés de proteger, vulnera ainda mais a vida vivida. O mito da modernidade revela-se patente diante de uma atualidade que se apresenta com mais incertezas que certezas, diante da multiplicidade de escolhas individuais e coletivas, assim como do risco inerente aos fenômenos pessoais, psíquicos e naturais. Diante desse contexto marcado pela complexidade da sociedade contemporânea, cumpre à Criminologia uma função fundamental: desconstruir os muros dos saberes altamente especializados e construir coletivamente saberes transdisciplinares. Nessa esteira, é preciso reconhecer e indicar os limites do Direito e, ao mesmo tempo, a necessidade de uma abertura epistemológica para outros campos do conhecimento, a qual somente terá sentido se efetivamente sensível ao real. É nesse sentido que apresente obra trilha o seu caminho rumo a um Direito emancipatório e inclusivo por meio dos estudos em Criminologia. Caminho árduo, porém com resultados concretos e instigantes. Proposta arrojada, encabeçada pelo organizador Urbano Félix Pugliese, mas cujos resultados apresentados nessa obra comprovam o sucesso do projeto e a habilidade do organizador em sensibilizar os docentes e discentes para a trajetória da pesquisa no Direito desde a graduação. -

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A obra apresenta temas vinculados aos problemas brasileiros, ao contexto da pobreza, da violência e da marginalidade, demonstrando a complexidade ontológica do jurídico. Ela discute o controle social do Estado que ora se utiliza do Direito Penal para um controle excludente, ora refuta-o integralmente por meio de práticas de tortura, mostrando-se ineficiente no combate à criminalidade e, pior, responsável pela (re)incidência criminal, haja vista a manutenção da política carcerária e os critérios de seletividade na pirâmide criminosa; mas também trata da revisão do sistema prisional impulsionado pelo direito penal mínimo. Ela demonstra a justaposição excludente dos critérios distintivos para a divisão social ,econômica e jurídica entre criminosos e cidadãos; lança-se sobre o tema da desigualdade de gênero apresentando-a como elemento denunciador das capas sociais de vulnerabilidade presentes não apenas na atuação estatal, mas na sociedade e mesmo nos seus produtos, como a cultura musical. Ainda no campo dos produtos culturais e, mais especificamente, da cultura de massa, ela explicita a emergente influência – parcial e degenerativa – dos meios de comunicação no discurso criminológico que entrecruza interesses antagônicos: econômicos (da mídia que vende) e sociais (do Direito que faz justiça). No campo das novas teorias do Direito Penal, aborda temas como o “direito penal do inimigo” e a “expansão do direito penal”, seus critérios de proporcionalidade e seus efeitos simbólicos diante de crimes como, por exemplo, a falsificação de medicamentos. Ainda, analisa as possíveis causas que implicam na inserção de crianças e adolescentes no sistema do tráfico de drogas e retoma a discussão acerca da descriminalização e legalização das drogas, bem como a importância do acesso à informação nesse debate. E, por fim, a partir da batalha travada entre Estado e sociedade e utilizando-se dos mitos gregos, propõe uma reflexão acerca da (im)pertinência semântica e real do “medo da justiça” enquanto um paradoxo. Com imenso prazer cumpre-me registrar que esta obra – na sua metodologia e conteúdo, na sua trajetória e resultados – constitui uma efetiva contribuição à construção do saber jurídico e criminológico no Brasil. O leitor tem diante de si uma obra que demonstra autenticidade na reflexão, seriedade nos argumentos e transparência nos diferentes caminhos percorridos pelos seus respectivos autores em busca de uma Criminologia intelectualmente plural, faticamente sensível e ideologicamente emancipatória. Do inverno sulista ao calor nordestino. Setembro, 2012. T.S.

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ARTIGOS DOS DOCENTES

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BERNARDO MONTALVÃO VARJÃO DE AZEVÊDO

CAPÍTULO I

ERA UMA VEZ, A INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO... Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo Resumo: Os Juizados Especiais Criminais são, em verdade, estratégias de manutenção do controle social por parte do Estado. Diante de outras formas de controle social o Estado da atualidade manifesta uma maneira de abordar o cidadão, no afã de manter o controle, e ganhar legitimidade. Afinal, a decisão judicial não visa nada mais que convencer o cidadão a confiar no Estado e a não confiar nas instâncias ilícitas de controle social. Palavras-chave: Juizados Especiais Criminais; criminologia; controle social. SUMÁRIO: 1. A FÁBULA DA INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO; 2. INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO: CHAPEUZINHO VERMELHO OU LOBO MAU? REFERÊNCIAS

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1 A FÁBULA DA INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO Sobre a infração de menor potencial ofensivo, uma pergunta se impõe: qual a finalidade do legislador constituinte ao se valer do conceito de infração de menor potencial ofensivo no artigo 98, inciso I, da Constituição da República (CR) e, ao mesmo tempo, correlacioná-lo à ideia de Juizados Especiais Criminais? Sugere-se, aqui, uma resposta: tentar resgatar a legitimidade do Poder Judiciário perante a sociedade contemporânea. Isto mesmo, se o Poder Judiciário é a última tábua de salvação da dogmáticajurídica2, em meio ao espetáculo da diluição da tripartição de poderes, os Juizados Especiais se constituem em uma das mais recentes estratégias de sobrevivência do moribundo Estado Moderno. Esse Estado que, no século XIX, buscou se legitimar por meio do Poder Legislativo – e, para isso, basta observar a França que sucedeu à Revolução Francesa e o seu minucioso Código Civil de 1804 (Código de Napoleão) -, e que hoje, no século XXI, procura justificar a sua existência, utilidade e legitimidade a partir do Poder Judiciário. Mas, no momento em que a legitimidade deixa de ser sinônimo de legalidade, surge para o Estado e o seu Poder Judiciário um novo desafio, o desafio de reconstruir o seu discurso de justificação. O desafio de sobreviver! E este desafio não é fácil, vez que o que se assiste hoje é exatamente a crise do Poder Judiciário. Se é certo afirmar que nunca antes o Poder Judiciário foi tão valorizado, não é menos certo admitir que ele nunca se viu tão questionado. Todo bônus traz consigo os seus ônus, e com o Judiciário não é diferente. A luz que põe em evidência, a estrela da companhia teatral do Estado Moderno é a mesma que lhe expõe às vaias da plateia3. Ora, não é o Poder Judiciário que é acusado de lento? Não é o Poder Judiciário que é questionado pelas suas decisões variáveis e imprevisíveis? Não é o Poder Judiciário que é achincalhado pela circunstância de que os acusados não são devidamente punidos? Não é Poder Judiciário que é criticado pelos seus altos salários e pela estrutura altamente dispendiosa aos cofres públicos? Enfim, não é o Poder Judiciário que, muitas vezes, acaba por agravar o conflito que deveria, em tese, solucionar?4 Dogmática jurídica na produção acadêmica nacional

passim -

Quem é o Povo? passim. -

A Retórica Constitucional: -

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BERNARDO MONTALVÃO VARJÃO DE AZEVÊDO

E é em meio a este cenário que os Juizados Especiais Criminais surgem como a estratégia do Estado na disputa pela legitimidade. Uma disputa travada, aparentemente, com as instâncias ilícitas de controle. É dizer, os Juizados surgem como a mais nova arma do Estado na guerra pela manutenção do monopólio do poder de punir. Uma guerra que caracteriza a sociedade contemporânea e que traz alguma preocupação ao Estado Moderno, na medida em que este, no âmbito criminal, nunca antes se viu tão incomodado pela concorrência das instâncias ilícitas de controle social, a exemplo das organizações criminosas. E, neste contexto, melhor se compreende institutos como o da infração de menor potencial ofensivo. Institutos que funcionam como chaves de acesso a uma nova tecnologia de preservação do monopólio do poder de punir do Estado. Uma tecnologia que compreende, por exemplo, a transação penal5, a qual é vendida como uma ferramenta ágil que propicia a rápida “resolução” do conflito, mas que, na verdade, não passa de uma mercadoria em meio a um jogo de barganha6, na luta pela manutenção do poder de punir. Em outras palavras, o Estado dá a impressão de que cede uma parte do seu poder de punir à vítima, por exemplo, e em troca garante a sua sobrevivência, isto é, a legitimidade do seu monopólio. Sendo assim, convém formular a seguinte pergunta: o Estado está vencendo esta guerra? Ao que tudo indica não, seja porque os juizados não apresentam a celeridade e a efetividade que deles se espera, seja porque não parecem ter ajudado em nada a conter o crescente e preocupante número de infrações penais que não chegam ao conhecimento do Estado. Aliás, o que se desconfia é que os juizados acabaram por agravar o problema das cifras ocultas, vez que a sua instituição e a definição de infração de menor potencial ofensivo, ao que parece, terminaram servindo de incentivo para o aumento desta situação. E o pior é que, se essa premissa estiver certa, os juizados que foram instituídos com a finalidade de aproximar o Estado da população, parecem estar ampliando, ainda mais, o fosso que os separa. Um fosso danoso ao controle dos conflitos criminais, na medida em que esses deveriam, em tese, ser decididos pelo Estado por meio do caminho necessário7 do processo penal. O que, por sua vez, compromete a credibilidade de qualquer política de segurança pública e propicia uma desconfiança ainda maior quanto Revista de

os sujeitos envolvidos, o desrespeito à autonomia da vontade do suposto autor do fato aparentemente delituoso e Elementos para uma análise crítica da transação penal. Teoria dos Jogos. passim. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional.

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ao aparato do Estado, em especial no que se refere à polícia. Qual é o embasamento racional e estratégico de uma política de segurança pública fundada em dados sem qualquer correspondência com a realidade social?

2 INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO: CHAPEUZINHO VERMELHO OU LOBO MAU? E a guerra que é travada pelo Estado é, de fato, contra as instâncias ilícitas de controle social? O que parece é que, em verdade, não há uma guerra entre o Estado e as instâncias ilícitas de controle. O que parece é que os Juizados Especiais Criminais não substituem estas instâncias, nem estas representam uma forma de poder paralelo, como relata Gabriel de Santis Feltran, referindo-se ao Primeiro Comando da Capital (PCC)8. Estes dois organismos de controle social, os juizados e as instâncias ilícitas, antes parecem concorrer entre si e, ao mesmo tempo, completarem-se um ao outro, como etapas de uma escala de resolução de conflitos. Concorrem porque coexistem em um mesmo espaço de conflito, e complementam-se porque ambos se aproveitam um do outro. É certo que a resolução levada a efeito pelas instâncias ilícitas de controle não são reconhecidas pelo direito, nem tampouco funcionam como mecanismos de mediação. Todavia, não é menos certo que elas acabam por filtrar alguns dos muitos conflitos que chegariam aos Juizados e que acabariam por abarrotar ainda mais as prateleiras do Poder Judiciário. Sendo assim, é inegável que, se o Estado não incentiva a existência de tais instâncias ilícitas de controle, ele também se aproveita, e muito, da existência delas. E com os Juizados Especiais Criminais isso não é diferente. Afinal, a infração penal de menor potencial ofensivo ao mesmo tempo em que amplia os domínios do poder punitivo do Estado, símbolo de uma política criminal fundada na teoria das janelas quebradas9, convive e se aproveita das instâncias ilícitas de controle. Nesse sentido, a concepção retórica em torno da dogmática jurídica guarda grande afinidade com a concorrência travada entre o Estado (representado pelos Juizados Especiais Criminais) e essas instâncias ilícitas. Isto porque a concepção retórica acerca da dogmática jurídica tem como um de seus objetivos, exatamente, enfrentar o problema da legitimidade que caracteriza a sociedade complexa atual10. E, por sua vez, o problema da legitimidade é, em última -

Revista de Estudos Criminais. Ética e Retórica:

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análise, o problema da disputa estabelecida entre o Estado e o “mundo do crime” em torno do que é socialmente legítimo11. Definir o que é socialmente legítimo é, antes de tudo, um risco ao qual o Estado e o seu monopólio do poder de punir se encontram sujeitos, vez que esta definição passa pelo questionamento do monopólio estatal sobre o poder de punir. E é em meio a esse risco que a concepção retórica acerca da dogmática jurídica se torna uma importante aliada do Estado nesta batalha. Um excelente exemplo da contribuição que uma concepção retórica acerca da dogmática jurídica oferece, é a análise cética que ela tem capacidade de fazer acerca dos juizados e do conceito de infração de menor potencial ofensivo. Uma análise que pode ser empreendida sobre a própria produção da sentença por meio do procedimento sumaríssimo. Afinal, como sustentar o discurso da busca pela verdade, seja lá ela qual for12, diante de um procedimento sumaríssimo, uma estrutura inquisitorial e uma instrução demasiadamente restringida13? Resta claro que a sentença não é um ato de certeza, mas, sim, de confiança14. Ora, quando se percebe que é a confiança que legitima a norma jurídica que resulta da sentença, logo se conclui que decidir não é encontrar a verdade, e, sim, persuadir quem se encontra sujeito à decisão. Provocar a aceitação daqueles que se encontram submetidos à decisão. O juiz não é um padre que diz a verdade, porque foi tocado por Deus, antes se mostra um político que busca convencer o seu eleitorado, as partes. Eis, então, o ponto fundamental no que toca à legitimidade e a disputa em torno dela na sociedade contemporânea. Legítimo não é o que se encontra definido em lei, mas, sim, aquilo que tem a capacidade de despertar a confiança dos sujeitos envolvidos no conflito, do qual a infração de menor potencial ofensivo é um exemplo. Por conseguinte, o ponto fundamental da dogmática jurídica contemporânea é conseguir, na produção da norma jurídica, despertar a confiança nos sujeitos, estejam eles envolvidos, ou não, no conflito levado a juízo. É dizer, o problema fundamental do Estado na atualidade é, ao mesmo

In: Anuário Ibero-Americano de Direitos Humanos. Constitucionalizando direitos -

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tempo, despertar a confiança da sociedade e fragilizar a confiança que as instâncias ilícitas de controle provocam, por exemplo, na periferia de São Paulo15. Afinal, na disputa pela legitimidade, a confiança é a mais importante de todas as armas. Mas é preciso noticiar um risco inerente à concepção retórica na tentativa de reconstruir a legitimidade do Estado. Quando a infração de menor potencial ofensivo se compromete com o caso, corre-se o risco de que o caso, aquilo que singulariza a norma, que busca consolidar a confiança abalada, torne-se um novo rótulo de consumo. Se é certo que o caso torna a norma única e diferente, e isso auxilia o Estado na disputa pela legitimidade, não é menos certo de que esta mesma diferença parece ter sido elevada à última moda pela sociedade do consumo. A sociedade de consumo, esta forma sutil de violência16 produzida pela razão moderna ocidental capitalista. E, quando se percebe isso, logo se constata que a razão moderna capitalista, em sua constante transformação, se adapta e se apodera das novas ferramentas que procuram denunciá-la. Neste momento, então, tudo começa de novo, em um processo de eterno retorno17. O eterno retorno no qual a razão aprisiona os mortais, a exemplo do castigo imposto por Hades a Sísifo18. Afinal, quando Zeus venceu seu pai, Cronos, que havia

fragilidade real

pulsão desencadeada pelo consumo, o condiBaudrillard

. A sociedade de consumo.

Causa e efeito. -

continuidade A Gaia Ciência. Mitologia grega e romana.

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BERNARDO MONTALVÃO VARJÃO DE AZEVÊDO

colocado ordem no Caos original do universo19, a razão se tornou a nova ferramenta de controle dos mortais. E, nesse instante, quando Zeus se tornou o deus dos deuses, o senhor do Olimpo, inaugurou-se uma nova forma de tirania, a tirania da razão. A razão, essa sofisticada forma de violência, a mais perfeita das formas de poder, aquela que controla sem ser percebida. Eis o que é a infração de menor potencial ofensivo, mais um dos artefatos da razão moderna.

REFERÊNCIAS ADEODATO, João Maurício. A Retórica Constitucional: Sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva, 2009. ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: Para uma Teoria da Dogmática Jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. BALLWEG, Ottmar. Retórica analítica e direito. Tradução João Maurício Adeodato. Revista Brasileira de Filosofia, n. 163, fasc. 39. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1991. BIERMAN, H. Scott;FERNANDEZ, Luis. Teoria dos Jogos. 2. ed. São Paulo: Pearson Education do Brasil, 2010. Baudrillard, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: 70 Arte & Comunicação, 2007. COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Edward Rocha de. Teoria das janelas quebradas: e se a pedra vem de dentro? In: Revista de Estudos Criminais. v. 3, fasc. 11. Porto Alegre: Notadez/ITEC, 2003. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “Manifesto contra os juizados especiais criminais (uma leitura de certa “efetivação” constitucional)”. In: SCAFF, Fernando Facury (Org.). Constitucionalizando direitos: 15 anos da Constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao “Verdade, Dúvida e Certeza” de Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito. In: Anuário Ibero-Americano de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. FELTRAN, Gabriel de Santis. O legítimo em disputa: as fronteiras do mundo do crime nas periferias de São Paulo. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle

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Social, v. 1, 2008. LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Gaia Ciência. Tradução Heloisa Graça Burati. São Paulo: Rideel, 2005. MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo? A questão fundamental da democracia. Tradução Peter Naumann. 3. ed. Rev. e ampl. São Paulo: Max Limonad, 2003. OLIVEIRA, Ana Carla Farias de; NASCIMENTO, Guadalupe Feitosa Alexandrino Ferreira do Nascimento. Dogmática jurídica na produção acadêmica nacional: estado da arte. No prelo. PRADO, Geraldo. Elementos para uma análise crítica da transação penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

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FABIANO PIMENTEL

CAPÍTULO II

A NOVA ORDEM DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO Fabiano Pimentel Resumo: As mudanças na legislação processual penal brasileira dão maior garantia aos cidadãos. Há mudanças na prisão em flagrante, na prisão preventiva, na prisão domiciliar e na fiança. Existe, na nova legislação, profundidade de mudança na ideologia a respeito da prisão processual. Ocorreram nevrálgicas e estruturantes modificações. Palavras-chave: Sistema prisional; nova legislação; mudanças. SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. ALTERAÇÕES DO NOVEL INSTITUTO; 2.1. A PRISÃO EM FLAGRANTE E A PRISÃO PREVENTIVA; 2.2. A PRISÃO DOMICILIAR; 2.3. A FIANÇA; 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

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1 INTRODUÇÃO No dia 04 de julho de 2011, entrou em vigor a nova lei 12.403/11 que alterou vários dispositivos do Código de Processo Penal relacionados aos temas das prisões, liberdade provisória e medidas cautelares. A lei tem recebido várias críticas, algumas delas de caráter depreciativo, uma vez que foi chamada, até mesmo, de “estatuto do criminoso” por conceder, na visão destes menos avisados, benefícios exagerados aos presos, aumentando, na visão deles, o sentimento de impunidade no seio social. Certamente esta é uma visão distorcida da nova lei que apenas adequou o Código de Processo Penal aos princípios estabelecidos na nossa Constituição Federal, com base na melhor doutrina garantista do Processo Penal atual. A lei foi publicada no dia 04 de maio de 2011 e entrou em vigor no dia 04 de julho de 2011, após o período de 60 dias de vacatio legis. Entretanto, várias notícias foram divulgadas na mídia escrita ou falada dando conta da aplicação imediata por Magistrados, mesmo antes da entrada em vigor da lei, ou seja, sendo aplicada a partir de 04 de maio de 2011. Em que pese a opinião em contrário de alguns doutrinadores, entendemos ser possível a aplicação imediata da nova lei, considerando, inclusive, ser a lei mais benéfica aos acusados tendo em vista que, em determinados casos, pode ser a prisão substituída por medidas cautelares de caráter pessoal. O período de vacatio legis é estabelecido na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e sua aplicação tem fundamento no princípio da não-surpresa, ou seja, para que as pessoas não sejam surpreendidas com alterações das regras jurídicas sem período de adaptação. No caso desta norma, por ser mais benéfica, nenhum prejuízo advirá da sua aplicação imediata aos acusados, sendo válidos todos os atos praticados antes mesmo do dia 04 de julho de 2011.

2 ALTERAÇÕES DO NOVEL INSTITUTO A norma trouxe algumas alterações importantes. A primeira que merece destaque é a vedação do decreto de prisão preventiva pelo Juiz, na fase investigativa, de ofício. Como se vê, a nova lei não inviabilizou o decreto de prisão preventiva na fase policial, mas impossibilitou o decreto ex oficio. Assim, para que a prisão preventiva seja decretada na fase policial deve haver

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requerimento do Ministério Público, do Querelante ou do Assistente, ou representação da Autoridade Policial. Essa medida se adéqua perfeitamente ao sistema acusatório atual, principalmente porque o Delegado de Polícia é a autoridade responsável pela investigação e é ele quem percebe a necessidade dos requerimentos pré-processuais. O Juiz deve manter-se equidistante das investigações, apenas decidindo as medidas que lhe forem requeridas pela autoridade responsável pela investigação e isso foi percebido pelo legislador atual. Em consonância com a Lei de Execução Penal, a nova lei determina a separação obrigatória entre presos provisórios e definitivos, bem como, o recolhimento de militares em quartel da instituição a que pertencer. A medida não é nova em nosso ordenamento, pois já era prevista na Lei de Execuções Penais, entretanto, agora está prevista expressamente no Código de Processo Penal e não se trata de mera faculdade, mas sim, de medida impositiva. Destaca-se também a possibilidade de ser a captura requisitada, por meio de mandado judicial, por qualquer meio de comunicação, tomadas pela autoridade, a quem se fizer a requisição, as precauções necessárias para averiguar a autenticidade desta. O Objetivo desta medida é dar maior celeridade ao cumprimento do mandado de prisão com a utilização de telefone, fax ou até mesmo do meio eletrônico, desde que a Autoridade Policial se certifique da veracidade das informações constantes do mandado de prisão, respeitadas as restrições relativas à inviolabilidade do domicílio. Esse entendimento passou a ser utilizado, também na hipótese de carta precatória, nas situações em que o acusado, embora no território nacional, estiver fora da jurisdição do Juiz processante. Em casos que tais, será deprecada a sua prisão, devendo constar da precatória o inteiro teor do mandado. Havendo urgência, o Juiz poderá requisitar a prisão também por qualquer meio de comunicação, devendo constar no mandado o motivo da prisão, bem como o valor da fiança se for o caso de arbitramento deste benefício. A autoridade a quem se fizer a requisição tomará as precauções necessárias para averiguar a autenticidade da comunicação, devendo o Juiz processante providenciar a remoção do preso no prazo de 30 dias.

2.1 A PRISÃO EM FLAGRANTE E A PRISÃO PREVENTIVA No que tange à prisão em flagrante algumas alterações devem ser analisadas.

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A primeira delas diz respeito à intimação do Ministério Público do auto de prisão em flagrante. Anteriormente, o auto de prisão em flagrante era comunicado ao Juiz competente, à Defensoria Pública (caso o preso não indicasse advogado particular) e à vítima, no prazo de 24 horas, embora na prática, muitas vezes, a família da vítima não tomasse conhecimento da prisão (mesmo já previsto pelo legislador reformista). Com essa medida, também o Ministério Público deverá tomar ciência da prisão, isso em virtude de sua condição de custus legis.Outro ponto importante é que o flagrante passou a ser uma medida cautelar de caráter efêmero. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o Juiz deverá fundamentadamente: I - relaxar a prisão ilegal; II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. Com isso, a partir do dia 04 de julho de 2011, a prisão em flagrante não será mais medida indeterminada, devendo o Juiz analisar os casos de presos em flagrante e decidir se mantém a prisão, se defere o pedido de medida cautelar ou de liberdade provisória. Se assim não agir, a prisão será ilegal, visto que ninguém mais poderá permanecer preso em flagrante como medida restritiva de liberdade indeterminada, sanável via habeas corpus. Em se tratando de causa excludente de ilicitude o legislador reformista assevera que o Juiz poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação. Tratando-se de caso claro e cristalino de excludente de ilicitude, o Juiz deverá conceder a liberdade do preso imediatamente. Isso porque, se há uma excludente de antijuridicidade evidente, não há crime e, se não há crime, não há que se falar em prisão em flagrante. Veja que a intenção do legislador é adequar o sistema prisional à ordem constitucional vigente, por isso o Juiz deve analisar o flagrante e aplicar a prisão preventiva por último, como ultima consequência para o caso penal apresentado. Dessa maneira, antes de decretar a prisão preventiva deve o Juiz analisar se o caso penal a ele apresentado não indica a aplicação das medidas cautelares entre elas: I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo Juiz, para informar e justificar atividades; II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; IV - proibição de ausentarse da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação

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ou instrução; V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; e IX – monitoramento eletrônico. Consolidando as Regras de Tóquio e das Nações Unidas sobre as medidas não privativas de liberdade e festejando o princípio da presunção de inocência, o legislador reformista trouxe várias medidas que devem ser analisadas pelo Juiz antes do decreto de prisão preventiva. Tais medidas podem ser adotadas pelo Juiz, por exemplo, na hipótese de liberdade provisória vinculada, como medida de contra cautela. A nova lei prevê também a possibilidade de conjugação de várias medidas desde que necessárias ao caso concreto, cabendo esta análise ao prudente arbítrio do Juiz, sempre fundamentando suas decisões. A prisão preventiva continua com seus requisitos fundamentais, podendo ser decretada, desde que presentes os indícios de autoria e prova da materialidade: por garantia da ordem pública; da ordem econômica; por conveniência da instrução criminal; ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. Como inovação, tem-se que a prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento injustificado de qualquer das obrigações impostas por força das medidas cautelares de caráter pessoal. Nestes casos, deve o Juiz oportunizar o contraditório antes da revogação da medida cautelar imposta, buscando conhecer os motivos do não cumprimento. Assim, essa revogação não deve ser automática, sempre ouvindo as razões do acusado e fundamentando a decisão, pois se trata de verdadeiro decreto prisional, ainda que indireto. Bem é de ver-se que a prisão preventiva somente poderá ser decretada: I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos; II - se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado; e III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.

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Acertada a mudança. Era muito comum, na sistemática anterior, o denunciado permanecer preso durante a instrução e, após sentença, ser solto para cumprimento de penas alternativas ou para cumprimento do regime aberto, em casos de condenação até quatro anos. Tratava-se de exato fundamento Kafkaniano: o acusado permanecia preso durante o sumário de culpa e depois era solto para cumprir a pena... Hoje isso não é mais possível, pois a prisão preventiva ficou adstrita apenas para crimes acima de 04 anos. Outro aspecto relevante é que a prisão preventiva poderá ser admitida quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para sua identificação. Nesta hipótese, a prisão deverá ser mantida apenas até o momento da identificação criminal, salvo se outro fato ensejar a mantença da prisão. Embora seja a lei silente sobre a possibilidade de recurso em casos de concessão indevida das medidas cautelares, deve-se utilizar, analogicamente, o art. 581 do Código de Processo Penal (CPP), podendo o Ministério Público (MP) valer-se do recurso em sentido estrito. Para a Defesa, sem dúvida, a via mais adequada é o habeas corpus, cabendo ao Tribunal a análise da ilegalidade pelo indeferimento do pleito defensivo.

2.2 A PRISÃO DOMICILIAR A prisão domiciliar também ganhou novos contornos. Com a nova lei poderá o Juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: I - maior de 80 (oitenta) anos; II - extremamente debilitado por motivo de doença grave; III imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; e IV - gestante a partir do 7o (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco. Trata-se de recolhimento em residência, apenas podendo sair mediante autorização judicial, em casos excepcionais. Em todas estas hipóteses, vê-se claramente a necessidade de um cuidado maior com o encarcerado, seja por motivo de idade, saúde ou doença.

2.3 A FIANÇA Sobre a fiança também tratou o legislador reformista. Na sistemática anterior, o Delegado de Polícia poderia conceder fiança apenas quando a pena mínima cominada ao crime fosse de até dois anos e a pena aplicada abstratamente ao crime fosse de detenção. Agora, a Autoridade Policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a quatro anos. Restou vedada a concessão da fiança dos seguintes casos: I - nos crimes de racismo; II - nos crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins,

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terrorismo e nos definidos como crimes hediondos; III - nos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; IV - aos que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se referem os arts. 327 e 328 do CPP; V - em caso de prisão civil ou militar; e VI - quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva. O valor da fiança também foi modificado, nos seguintes termos: I - de 1 (um) a 100 (cem) salários mínimos, quando se tratar de infração cuja pena privativa de liberdade, no grau máximo, não for superior a 4 (quatro) anos; II - de 10 (dez) a 200 (duzentos) salários mínimos, quando o máximo da pena privativa de liberdade cominada for superior a 4 (quatro) anos. Pode ainda, nos casos de réu pobre ser dispensada ou reduzida em 2/3, ou, em caso de acusados com boa situação financeira, aumentada em até 1.000 (mil) vezes. Assim, a menor fiança a ser paga hoje é de R$ 181,66 (cento e oitenta e um reais e sessenta e seis centavos) e a maior fiança R$ 109 milhões de reais. Por isso, ganha em pujança o instituto, principalmente nos casos de crimes contra o sistema financeiro e contra a ordem econômica, podendo ser aplicada de acordo com o prejuízo sofrido pela vítima. A fiança será considerada quebrada, segundo o legislador atual, quando o acusado: I - regularmente intimado para ato do processo, deixar de comparecer, sem motivo justo; II - deliberadamente praticar ato de obstrução ao andamento do processo; III - descumprir medida cautelar imposta cumulativamente com a fiança; IV - resistir injustificadamente a ordem judicial; e V - praticar nova infração penal dolosa. Nestes casos, o quebramento injustificado da fiança importará na perda de metade do valor pago, cabendo ao Juiz decidir sobre a imposição de outras medidas cautelares ou, se for o caso, a decretação da prisão preventiva. Levando em conta a tendência atual de amparo às vítimas de crimes, o legislador reformista achou por bem destinar parte do valor da fiança para pagamento dos danos e despesas sofridas pela vítima com tratamento médico ou psicológico.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como se vê, a nova legislação não teve por objetivo aumentar a impunidade ou ser benevolente com o criminoso de alta periculosidade, para estes continua sendo vedada a fiança e sendo possível a prisão preventiva. Ao contrário, nos casos mais gravosos a lei permanece sendo rigorosa. Entretanto, nos casos menos graves, adequando-se às regras internacionais e ao sistema

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constitucional brasileiro, a nova lei permite a utilização do direito penal mínimo e garantista, considerando a prisão como a “extrema ratio da ultima ratio”.

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PEDRO CAMILO DE FIGUEIRÊDO NETO

CAPÍTULO III

OS CUSTOS DA PENA NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO Pedro Camilo de Figueirêdo Neto Resumo: Os direitos custam muito caro a todos. O Estado necessita desprender altas somas para a satisfação das pretensões de proteção e concreção dos direitos fundamentais. Os recursos públicos são diminutos, o que leva o Poder Público a tomar decisões trágicas. Os custos do crime e da prisão se revelam altos e pesados para a sociedade. Em meio a crise de legitimidade pela qual passam as penas privativas de liberdade, o problema dos custos é apontado como fator fundamental. Palavras-chave: Sistema penal; custos do encarceramento; deslegitimação. SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. OS CUSTOS DO DIREITO; 3. OS CUSTOS DO CRIME E DA PRIVAÇÃO DE LIBERDADE; 4. CUSTOS DA PRIVAÇÃO DA LIBERDADE E CRISE DE LEGITIMIDADE DO SISTEMA PRISIONAL; 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS.

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1 INTRODUÇÃO Existe um consenso, entre os penalistas e a própria sociedade civil, sobre a falência das prisões enquanto instituições que existem para, de diversas formas e sob diversas perspectivas, fazerem frente ao problema da criminalidade. Vistas como “máquinas de deteriorar” e como “fonte indiscutível de desmoralização”20 humana, de há muito se vem reconhecendo, às cadeias e prisões: Sua incapacidade para exercer influxo educativo sobre o condenado, sua carência de eficácia intimidativa diante do delinqüente entorpecido, o fato de retirar o réu de seu meio de vida, obrigando-o a abandonar seus familiares, e os estigmas que a passagem pela prisão deixam no recluso.21

Diante disso, vários países pelo mundo, assim como o Brasil, têm buscado a substituição da pena de prisão por medidas alternativas, sobretudo para aqueles casos de infrações de pequeno e médio potencial ofensivo. Tal medida se justifica pela necessidade de se afastar esses infratores do universo pernicioso da prisão, verdadeiro “sindicato do crime”22, em que se entra um criminoso comum e do qual se sai “letrado”. A adoção das penas alternativas veio ao encontro desse ideal de substituição da privação de liberdade por algo melhor e que representasse uma alternativa viável, dentre outras, aos problemas dos custos da pena de prisão. O argumento da redução de custos é dos mais ponderados e sustentados como deslegitimadores das penas privativas. Dados estatísticos revelam diferença gritante entre o custo de um condenado custodiado e o custo de um condenado submetido a penas restritivas. Entretanto, uma pergunta se anuncia: o baixo custo seria, de fato, um incentivo real para a adoção das penas restritivas de direito, ou uma forma de desviar a atenção para o não atendimento, pelo Estado, dos direitos que não são satisfeitos, graças à sua omissão? Esse problema da omissão do Estado no atendimento aos direitos fundamentais de todo cidadão por conta da escassez de recursos é sustentado sob o argumento da “reserva do possível”, que vem em socorro das “escolhas trágicas” que são tomadas quando o Estado prefere destinar tais recursos para outros serviços tidos como mais Programa do Curso de Direito Criminal: Parte Geral Novas Penas Alternativas: Sindicato do crime:

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PEDRO CAMILO DE FIGUEIRÊDO NETO

importantes e úteis do que o sistema prisional. É muito mais fácil, sob esse prisma, a adoção de um novo sistema punitivo do que o enfrentamento do problema pelo Estado, em busca da sua correção. Face a essa realidade, o presente estudo se propõe a verificar de que maneira o problema dos custos do encarceramento influencia a crise de legitimidade pela qual passam as penas privativas de liberdade. Para tanto, será feita uma abordagem inicial sobre os custos do direito, tese que vem sendo enfrentada desde o final da década de 90 do século XX, como fator determinante das decisões alocativas do Estado frente à escassez de recursos. Em seguida, serão avaliados os custos do crime e, mais especificamente, os custos da pena, identificando o significado orçamentário que os gastos com o sistema prisional representam para o Estado. Por fim, tentar-se-á demonstrar de que maneira os custos da pena de prisão influenciam a crise de legitimação do sistema prisional, identificando os efeitos decorrentes da estrutura mesma do encarceramento e o que porventura é produzido pela escassez de recursos e pelas escolhas trágicas dos governantes.

2 OS CUSTOS DO DIREITO “Direitos não nascem em árvores”. A afirmação de Flávio Galdino23 revela muito mais do que a constatação de um simples não-acontecimento natural – ela reflete uma realidade presente e, nada obstante, ignorada por grande parte dos operadores do Direito. Sabe-se que compete ao Estado a garantia dos direitos fundamentais. Contudo, ao lado dos variados desafios que encontra para a efetivação desses direitos, o Estado se depara com o problema dos custos. Como os direitos não são como os frutos de uma mangueira, nem podem ser achados por aí, a sua concretização depreende o dispêndio de recursos financeiros. Em um universo social de tantas carências e tantas pretensões, o Estado terá condições de arcar com todos os custos da garantia dos direitos reclamados pelos seus cidadãos? No final do século XX, uma obra lançada nos Estados Unidos da América veio trazer novas luzes sobre a análise do direito, propondo sua abordagem econômica. Assim, de modo bastante sintético, é possível dizer que, em The cost of rights: why liberty depends on taxes, Stephen Holmes e Cass R. Sunstein defendem a ideia de que, a rigor, não existem direitos negativos e positivos – todos eles, sejam os chamados “direitos de Introdução à Teoria dos Custos do Direito:

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liberdade”, sejam os “direitos sociais”, reclamam comportamentos positivos do Estado24. Tais comportamentos, seja numa proposta de concreção, seja numa perspectiva de proteção, sempre “implicariam um custo ao erário, [e] a sociedade sempre seria onerada com os direitos.” 25 A nova lógica, com a consequente e inevitável subordinação do Direito ao econômico, estabelece que as normas constitucionais que declaram e garantem Direitos Fundamentais passem a ser interpretadas sob a égide da relação custo-benefício26.

Tendo isso em conta, e como o próprio subtítulo do livro de Sustein e Holmes quer revelar, os autores vão defender que a efetivação das liberdades depende dos impostos pagos pelos contribuintes, ilustrando tal afirmativa com um exemplo, logo no início da obra: On August 26, 1995, a fire broke out in Westhampton, on the westernmost edge of the celebrated Long Island Hamptons, one of the most beautiful areas in the United States. This fire was the worst experienced by New York in the past half-century. For thirty-six hours it raged uncontrollably, at one point measuring six miles by twelve. But this story has a happy ending. In a remarkably short time, local, state, and federal forces moved in to quell the blaze. Officials and employees from all levels of government descended upon the scene. More than fifteen hundred local volunteer firefighters joined with military and civilian teams from across the state and country. Eventually, the fire was brought under control. Astonishingly, no one was killed. Equally remarkably, destruction of property was minimal. Volunteerism helped, but in the end, public resources made this rescue possible. Ultimate costs to American taxpayers, local and national, originally estimated at $ 1.1 million, may have been as high as $ 2.9 million.27

Sendo, portanto, a principal fonte de renda do Estado, é dos impostos que depende a atuação do Poder Público na promoção/proteção dos direitos fundamentais. Não há, pois, como efetivar direitos sem considerar os seus custos, pouco importando a sua natureza: ‘Where there is a right, there is a remedy’ is a classical legal maxim. Direito, Escassez & Escolha: Constituição, Economia e Desenvolvimento:

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Individuals enjoy rights, in a legal as opposed to a moral sense, only if the wrongs they suffer are fairly and predictably redressed by their government. This simple point goes a long way toward disclosing the inadequacy of the negative rights/positive rights distinction. What it shows is that all legally enforced rights are necessarily positive rights. Rights are costly because remedies are costly. Enforcement is expensive, especially uniform and fair enforcement; and legal rights are hollow to the extent that they remain unenforced. Formulated differently, almost every rights implies a correlative duty, and duties are taken seriously only when dereliction is punished by the public power drawing on the public purse. There are no legally enforceable rights in the absence of legally enforceable duties, which is why law can be permissive only by being simultaneously obligatory. That is to say, personal liberty cannot be secured merely by limiting government interference with freedom of action and association. No right is simply a right to be left alone by public officials. All rights are claims to an affirmative governmental response. All rights, descriptively speaking, amount to entitlements defined and safeguarded by law. A cease-and-desist order handed down by a judge whose injunctions are regularly obeyed is a good example of government “intrusion” for the sake of individual liberty. But government is involved at an even more fundamental level when legislatures and courts define the rights such judges protect. Even thou-shalt-not, to whomever it is addressed, implies both an affirmative grant of right by state and a legitimate request for assistance to an agent of the state.28 Fica claro, portanto, a posição dos autores quanto à positividade de todos os direitos, mesmo aqueles considerados como negativos. Todos eles demandam custos, sobretudo porque, como enfatizam, todos os direitos implicam deveres correlativos, e os deveres somente são levados a sério quando do seu descumprimento resultam sanções do poder público. A concretização de todo esse aparato representa ônus para o erário público, que retira sua manutenção dos impostos pagos pelos indivíduos. Nas palavras de Flávio Gald[...] enunciam os autores a tese central de que inexistem direitos ou liberdades puramente privadas, senão que o exercício de todo e qualquer direito ou liberdade depende fundamentalmente das instituições públicas, e em grande parte, sendo, portanto, igualmente públicos (e custosos).29

Um problema, porém, se desenha nesse nublado horizonte: já que a garantia de direitos por parte do Estado demanda custos, haverá recursos suficientes para assegurar o atendimento de todas as pretensões legítimas dos cidadãos? A resposta negativa se impõe, trazendo, consigo, um outro inquietante problema: o da escassez30. Assim, se existem demandas a serem atendidas e se, por outro lado, os recursos disponíveis não são insuficientes para atender a todas as demandas, torna-se necessário decidir onde os recursos serão empregados, o que leva ao problema da sua alocação.

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Firmado que há menos recursos do que o necessário para o atendimento das demandas e que a escassez não é acidental, mas essencial, toma vulto a alocação de recursos. As decisões alocativas são [...] escolhas trágicas, pois, em última instância, implicam a negação de direitos [...].31

Tais “decisões alocativas” importarão, necessariamente, uma ponderação entre os direitos que poderão ser satisfeitos e aqueles que serão desatendidos, já que não há condição de se atender a todas as pretensões. Esta ordem de coisas transforma a realidade, gerando situações-limite, posto que “a decisão de proteger um dado interesse muitas vezes gera novas formas de ameaça, tornando as decisões alocativas ainda mais complexas.” 32 É neste ponto que surge a chamada reserva do possível, que considera a limitação de recursos diante das necessidades quase infinitas que o Estado deve atender. No dizer de Scaf: [...] o conceito de ‘reserva do possível’ é oriundo do direito alemão, fruto de uma decisão da Corte Constitucional daquele país, em que ficou assente que ‘a construção de direitos subjetivos à prestação material de serviços públicos pelo Estado está sujeita à condição da disponibilidade dos respectivos recursos’. Neste sentido, a disponibilidade desses recursos estaria localizada no campo discricionário das decisões políticas, através da composição dos orçamentos públicos. A decisão do Tribunal Constitucional Alemão menciona que estes direitos a prestações positivas do Estado (os direitos fundamentais sociais) ‘estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade’. A decisão recusou a tese de que o Estado seria obrigado a criar uma quantidade suficiente de vagas nas universidades públicas para atender a todos os candidatos.33

O Estado se vê impelido ao atendimento das pretensões sociais, apesar da escassez de recursos. Precisando tomar decisões alocativas, também precisará escolher entre atender a uns e não atender a outros, sob o argumento da reserva do possível. A decisão do atendimento/não atendimento é, por natureza, uma decisão política, situada no âmbito da discricionariedade mencionada por Scaf. Refletindo, assim, um posicionamento político por parte dos dirigentes Estatais, as decisões alocativas levarão em consideração não apenas a satisfação/não satisfação dos direitos, mas também tudo o que essa decisão representará, em termos sociais, econômicos e, consideravelmente, políticos. Sendo assim, cabe um questionamento: em que nível de prioridade estarão

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as demandas no universo do crime, sobretudo os custos da privação de liberdade? Colidindo-se interesses em que figurem direitos como à saúde da coletividade e a um cumprimento de pena de prisão com dignidade, de que maneira o poder público se posicionará, ponderando valores? Antes de tentar responder a essa inquietação, convém traçar, ainda que brevemente, um panorama dos custos do crime e, especificamente, da privação da liberdade, a fim de que se possa melhor inferir a influência que o problema dos custos exerce sobre a tão decantada crise de legitimidade por que passa a pena de prisão.

3 OS CUSTOS DO CRIME E DA PRIVAÇÃO DE LIBERDADE A prática de um crime gera diversos custos a serem suportados pelo Estado. Inicialmente, a mobilização do aparato policial. O crescente número da criminalidade tem forçado as polícias civil e militar a aumentarem seu contingente humano e sua logística operacional. Viaturas, armamento, coletes, instalações e alta tecnologia são empregados, seja no trabalho de investigação, seja para deter suspeitos e culpados. Em seguida, há os custos do processo penal. Embora vigore, na sistemática processual penal brasileira, o princípio da duração razoável do processo, que preconiza a observância da presteza possível sem prejuízos para o acusado e para a sociedade, a realidade revela que os processos criminais se arrastam por meses e, não raro, por anos a fio, sem solução de continuidade. Isto representa custos para o Poder Judiciário, para o Ministério Público, para as Defensorias Públicas e para o Poder Executivo, sobretudo nas ações em que acusados são mantidos presos cautelarmente. Aliás, aqui um dos mais graves e principais custos do processo penal, haja vista que, nada obstante a prisão sem pena ser exceção na sistemática processual penal, na prática ela vem se transformando em regra, contribuindo para o abarrotamento das cadeias públicas e das carceragens de delegacias. Estima-se, em termos de Bahia, que cerca de 6.000 (seis mil) presos ditos “provisórios”, ou seja, que não possuem condenação, estão disseminados pelas precárias instalações carcerárias das delegacias baianas. Esse número, que se encontra acima da capacidade de tais estabelecimentos, representa acréscimo em despesas de alimentação, saneamento, saúde e com pessoal, que termina por ser deslocado das tarefas de policiamento externo para cumprir função de vigilância interna. Ao lado disso, também os estabelecimentos prisionais se encontram superlotados desses presos provisórios. Dados da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado da Bahia indicam que, dos cerca de 9.600 (nove mil e seiscentos) presos que se encontram detidos no sistema prisional baiano, quase a metade são presos sem pena ou que aguardam, embora condenados, o trânsito em julgado de suas sentenças e expedição da competente guia de recolhimento.

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Um terceiro momento em que o crime gera gastos superlativos para o Estado é após a condenação de acusados. Com a condenação e o início da execução, o indivíduo é inserido, em caráter definitivo, no sistema prisional, deixando de ser um preso cautelar ou provisório (caso já se encontre custodiado) para se tornar um “cliente” permanente do sistema. Tal “mudança de categoria” representa bem mais do que uma simples reclassificação jurídica; ela traz consigo a necessidade de observância de uma série de atenções por parte do Estado, atenções estas oriundas de direitos cuja prestação é dever público e representam obrigações a serem observadas, inafastavelmente, no curso da execução penal. Somam-se, nessas prestações, as atenções básicas presentes em qualquer tipo de encarceramento, seja provisório, seja condenatório, e as prestações específicas, que surgem como decorrência da própria execução. Como exemplo das primeiras é possível citar as despesas com alimentação, fardamento, transporte para audiências, atendimento médico-odontológico, psicólogos, medicações diversas e lazer. São estruturas que, em regra, devem existir em todo estabelecimento prisional, independentemente de sua destinação. As atenções específicas são próprias da execução da pena e de seus regimes. Nos estabelecimentos para cumprimento de regime fechado, por exemplo, há necessidade de espaços destinados ao trabalho do preso, explorados por particulares ou mesmo pelo Estado. Nestes, o Estado se utiliza da mão-de-obra do preso em serviços como limpeza e preparo de alimentos, embora não seja adotado na generalidade dos estabelecimentos. Naqueles, são as empresas privadas que arcam com a remuneração do preso, embora sem encargos trabalhistas e respeitando um limite mínimo de 75% (setenta e cinco por cento) do salário mínimo vigente. Em todas as situações, contudo, é o Estado que arca com os custos das contas de energia, fornecimento de água, manutenção dos espaços físicos e, algumas vezes, com fornecimento de maquinário especializado. Afora isso, o reconhecimento do direito do preso à educação gera, também, a necessidade de uma prestação positiva do Estado nesse setor. Remuneração de professores e instrutores, em cursos de ensino fundamental, médio e profissionalizante, fornecimento de material didático, aparelhamento de salas de aula e equipamentos multimídia compõem um conjunto de gastos acrescidos a esse universo. Nos regimes semi-aberto e aberto, embora a possibilidade do preso trabalhar e estudar fora dos estabelecimentos prisionais, o que, de certa forma, reduz custos, tal redução é incrementada pela necessidade de fiscalização e acompanhamento por parte, por exemplo, de assistentes sociais e outros servidores. Além disso, com a edição da lei n. 12.258/10, que cria a possibilidade de monitoramento eletrônico, incrementa-se ainda mais os custos da pena privativa. A citada lei modifica a lei n. 7.210/84, acrescentando-lhe, dentre outros, o parágrafo único

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do art. 122: Art. 122. Os condenados que cumprem pena em regime semi-aberto poderão obter autorização para saída temporária do estabelecimento, sem vigilância direta, nos seguintes casos: I - visita à família; II - freqüência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução; III - participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social. Parágrafo único.  A ausência de vigilância direta não impede a utilização de equipamento de monitoração eletrônica pelo condenado, quando assim determinar o juiz da execução.

O dispositivo mencionado guarda relação com as saídas temporárias, concedidas ao preso em regime semi-aberto que tenha bom comportamento, permitindo-lhe passar 7 (sete) dias com a família, o que pode acontecer por, no máximo, cinco vezes ao longo de um ano. O monitoramento também poderá acontecer, nos termos da lei, em caso de prisão domiciliar. É possível acrescentar ainda, ao universo de custos das penas privativas de liberdade, a expansão do próprio sistema prisional. Construção de presídios e minipresídios elevam os gastos públicos à esfera dos milhões, entre gastos estaduais e federais, representando um desprendimento de recursos semelhantes ao da construção de hospitais. Geder, analisando o problema dos custos das prisões e das penas privativas de liberdade, traça importante radiografia do problema, com dados colhidos entre 2003 e 2007. Dada a riqueza de detalhes das informações, vale a pena transcrever trechos de seu estudo: É de complexo estudo o custo total do fenômeno criminal. Inúmeras investigações informam custos dos mais diversos, levando em conta, também, aspectos e tópicos do mais variados. Pesquisa, em 2004, do National Council on Crime and Delinquency, órgão oficial dos Estados Unidos, em Washington, revela que, em média, cada crime cometido naquele país custa U$ 2.600,00 (dois mil e seiscentos dólares), sem contar com o custo do processo e do cumprimento da pena. Dados do Ministério da Justiça divulgados em 2006, [...] informam que, somente no biênio 2003/2005, foi disponibilizado um total de R$ 1.186.853.549,30 (hum bilhão, cento e oitenta e seis milhões, oitocentos e cinqüenta e três mil, quinhentos e quarenta e nove reais e trinta centavos), pelo Governo Federal, para os Estados-membros, no apoio às atividades e

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programas de combate ao crime e aprimoramento do sistema penitenciário. Segundo dados divulgados pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO), da Câmara dos Deputados, [...] o custo de uma penitenciária federal, com capacidade para 208 presos, é de R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais), o que implica dizer que cada vaga criada neste sistema representa um investimento de R$ 96.153,58 (noventa e seis mil, cento e cinqüenta e três reais e oitenta e cinco centavos).34

No cotejo de dados dos custos do crime nos Estados Unidos da América com dados do Ministério da Justiça e da Câmara dos Deputados do Brasil, torna-se possível aquilatar a dimensão dos gastos públicos nesse específico setor. A só implantação de um estabelecimento prisional, como é o caso das penitenciárias federais, representa custos da esfera de duas dezenas de milhões de reais, enquanto a transferência de recursos federais para os Estados-membros do Brasil, para apoio às iniciativas e atividades no campo prisional, ultrapassou a casa do bilhão no biênio 2003/2005. A análise de Geder, porém, não se detém aí. Outros dados, desta feita mais especificamente relacionados aos custos da privação da liberdade, são por ele anotados, merecendo menção destacada nestas páginas: Comumente, atribui-se o custo mensal de um preso variando entre R$ 600,00 e R$ 1.000,00. Conforme citado no Correio Brasiliense, em 30 de agosto de 2003, segundo um levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), feito em 1994, cada preso custa aos cofres públicos, por mês, R$ 840,00 (oitocentos e quarenta reais). [...] Os números da ONU, por intermédio da Fundação Internacional Penal e Penitenciária (FIPP), em 2004, apontam o custo mensal de um preso no Brasil de U$ 370,50 (trezentos e setenta dólares e cinqüenta centavos de dólar). [...] No ano de 2004, o então Diretor-Geral do DEPEN, Clayton Nunes, noticiou que cada preso custava ao sistema cerca de R$ 1.000,00 (um mil reais). Recentemente, em setembro de 2007, durante audiência realizada pela CPI do Sistema Penitenciário, na Câmara dos Deputados, em Brasília, o Diretor-Geral do DEPEN, Maurício Kuehne, informou que o custo médio mensal do preso no Brasil é de R$ 1.000,00 (um mil reais). 35

A substituição da prisão:

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Além dos custos com o encarceramento propriamente dito, com a só manutenção do indivíduo na prisão, há uma outra ordem de gastos, igualmente relevantes, que merecem ser lembrados: os gastos com a tentativa de reinserção social do condenado. Referimo-nos, linhas atrás, aos cuidados com trabalho, instrução, formação profissional, lazer, entre outros. Esses cuidados demandam gastos consideráveis, que devem ser levados em conta na análise geral dos custos da privação de liberdade. Um estudo desenvolvido pela Universidade de Coimbra, sob a direção científica de Boaventura Souza Santos e coordenação de Conceição Gomes, se debruçou sobre a reinserção social dos presos no sistema português, tratando também do problema dos custos da formação profissional do detento com vistas ao seu reingresso na sociedade. O estudo faz referência aos “elevados custos da formação. São custos elevados que os estabelecimentos têm, por exemplo, com as oficinas, formadores, etc.”36 Associado a esse custo, o estudo lembra outros gastos referentes à formação, que são “os desperdícios resultantes da [sua] falta de eficácia”. Um depoimento é ilustrativo disso: Há depois a questão da formação profissional, que é uma questão muito complexa e que é provavelmente das mais adulteradas e perversas dentro do sistema, porque realmente nunca foi assumida claramente na sua ligação formação profisisonal/emprego ou trabalho e depois emprego. Muito dinheiro se gastou na formação pela formação e continua a gastarse, o que leva a que a certa altura temos indivíduos com três, quatro cursos de formação que vão desde padeiro e pintor de construção civil e depois, quando sai cá pra fora, ele não vai utilizar nenhum.37

Assim, o fato de se promover “formação por formação” representa desperdício de verbas públicas, o que também constitui fator influenciador do discurso deslegitimador da privação da liberdade como reação penal. Perseguindo, ainda, a identificação dos custos das penas de prisão, vale lembrar os danos patrimoniais causados por rebeliões. Motivados, sobretudo, pela superlotação e pelas condições desumanas do cárcere, os motins deixam grande rastro de destruição, importando a interdição temporária de celas, alas e mesmo de estabelecimentos como um todo, além do ônus, para o Estado, da reforma dos setores vitimados pelas atitudes predatórias. A Reinserção Social dos Recluso:

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Após esse levantamento dos custos da pena de prisão, convém entender melhor as decisões alocativas do Estado quanto aos recursos públicos, entendendo um dos fatores que está por detrás da crise de legitimidade do sistema prisional.

4 CUSTOS DA PRIVAÇÃO DA LIBERDADE E CRISE DE LEGITIMIDADE DO SISTEMA PRISIONAL Eugênio Raul Zaffaroni, analisando as fontes teóricas da deslegitimação do sistema penal e da pena de prisão nos países centrais, refere-se à “versão deslegitimante de Quinney”, conhecido filósofo crítico, cuja contribuição para a investigação criminológica é considerada significativa. Nas palavras de Zaffaroni, Quinney se refere à crise do direito penal e da prisionização como conseqüência da crise do capitalismo, “pois frente à crise legitimante de seu poder, o capitalismo enfrentaria um conflito que provocaria o seu colapso.”38 Aponta, ainda, que Quinney dedicou várias páginas de seu estudo aos problemas dos custos do delito e à política econômica do direito penal, apontando que tais fatores representam ponto relevante para a crise de legitimidade do sistema prisional. Ele “observa a existência de uma política econômica do direito penal com custos astronômicos que recaem sobre a população excedente”.39 Trazendo o problema dos custos como argumento central, Quinney parece ter a abolição do sistema penal como meta principal. Em sua obra Teoria da Pena, Juarez Cirino dos Santos passa em revista as teorias que defendem os “substitutivos penais”, assim chamados por representarem uma alternativa às penas de prisão. As propostas substitutivas das penas surgem em face da sua tão decantada deslegitimidade para responder, satisfatoriamente, aos problemas do crime e da criminalidade, não atendendo aos fins preventivos geral e especial da pena. Analisando o que chama de “teorias críticas”, Cirino dos Santos apresenta três argumentos da “moderna teoria jurídica e criminológica sobre crime e pena” a justificar a opção pelos substitutivos: a superlotação carcerária, a ampliação do controle social e a crise fiscal do sistema penal. Aqui interessa, mais particularmente, o último argumento, que penetra o problema dos custos do direito penal de maneira frontal. Conforme acentuado pelo referido autor, “a tese da crise fiscal explica os substitutivos penais por relações custo/benefício, fundada no argumento da incapacidade financeira do Estado para arcar com o custo do preso durante a execução da pena.”40 Nesse diapasão, lembra que o custo do preso, como já exarado nestas páginas, inclui despesas de Em busca das penas perdidas Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial

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consumo individual e de serviços pessoais, como também: [...] o conjunto dos salários do pessoal técnico-administrativo, assistencial e de segurança interna dos estabelecimentos penais, mais a verba consumida com reformas, ampliações, reconstruções e construções de novas prisões, cuja soma constitui a dotação orçamentária do sistema penitenciário.” 41

Aliás, o problema do custo da prisão parece ser dos argumentos mais robustos e contundentes que os defensores dos substitutivos penais erguem contra a privação da liberdade. Geder Gomes, já referido neste trabalho, um dos mais ardorosos defensores das alternativas penais no Brasil, parece seguir por esse caminho. Em sua obra sobre a substituição da prisão, sustenta sua defesa das medidas alternativas, dentre outros, no argumento do custo financeiro da pena. Vejam-se suas palavras: [...] o sistema de execução de alternativas penais é significativamente mais barato que o sistema carcerário, gerando uma economia extremamente expressiva para os cofres públicos e, conseqüentemente, para a sociedade, pois um sentenciado a alternativas penais custa, em média, menos de 10% do custo mensal de um preso. 42

A busca de legitimação das alternativas penais sustenta-se em seu reduzido custo frente à privação da liberdade; aqui, o que se tem em mira não é tanto a eficácia de um ou de outro sistema, mas o seu impacto financeiro que tendem a causar na economia da Administração Pública. O problema dos custos, assim, parece figurar como uma causa natural da crise pela qual passam as penas privativas de liberdade, no Brasil e no mundo. Entretanto, diante da constatação da escassez de recursos públicos de que é vítima o Estado, é possível pensar que, talvez aqui, no tocante ao sistema prisional, o problema dos custos não seja tão somente causa da reconhecida crise, mas também um meio de justificar as escolhas trágicas – políticas, portanto – de não se investir no sistema prisional, fator que somente aprofunda suas incongruências e reforça sua crise de legitimidadeA opção pelo não investimento de recursos no âmbito dos estabelecimentos prisionais, por seu turno, causa “efeitos colaterais”, como o déficit de vagas, a falta de pessoal técnico especializado, as condições desumanas e demais abusos. A carência de recursos e o baixo investimento agudizam, assim, os demais fatores determinantes da crise do sistema. É o que ressalta das observações que se seguem:

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[...] os juristas [...] vêm se ocupando dos estudos sobre a existência da crueldade e da desumanização no ambiente carcerário, como elemento ensejado da deslegitimação da pena privativa de liberdade, onde violações à dignidade da pessoa humana são rotineiras e frequentes, e que ocorrem em vários países, não se restringindo ao terceiro mundo. Citam como deficiências do sistema [...] a superpopulação carcerária, a qual reduz a privacidade do recluso e facilita abusos sexuais; a falta de higiene, que estimula a proliferação de doenças; as condições deficientes de trabalho; a deficiência de serviços médicos; o regime alimentar deficitário; o consumo de drogas facilitado por funcionários penitenciários corruptos; a violência e utilização de meios brutais para a imposição do poder, além de outras formas de coação. Tais constatações viriam a exigir dos governantes uma série de reformas, que viessem a permitir que a pena privativa de liberdade pudesse efetivar sua finalidade reabilitadora.43

Como visto, todo o caos instalado no ambiente prisional demanda, dos governantes, “uma série de reformas”, que não são empreendidas pela falta de vontade política, justificada pela reserva do possível. Aliás, em sua abordagem, Cirino dos Santos reforça ainda mais esses argumentos, lembrando que a referida crise fiscal do sistema prisional tem produzido “modificações dos mecanismos repressivos do Estado na era da internacionalização do capital financeiro e das relações econômicas e comerciais”, gerando, dentre outros, os seguintes efeitos: [...] o deslocamento do controle social de setores não-produtivos do Estado para setores produtivos da indústria e do comércio, expandindo a área do controle social não-institucionalizado, como a utilização intensiva de penas alternativas e de hipóteses legais de execução penal desinstitucionalizada, a ampliação da descriminalização e da despenalização de condutas [...] e ainda caracteriza a política criminal dos países periféricos do sistema econômico-financeiro.44

Como o sistema prisional não se inclui no setor produtivo, o Estado acaba por desprestigiá-lo quanto ao aporte de recursos, preferindo as vias menos pesadas, como a adoção das penas alternativas e medidas outras de desinstitucionalização da execução penal, bem como os fenômenos de descriminalização e despenalização. Todos esses mecanismos são formas de reduzir o investimento estatal no meio carcerário e, consequentemente, de aprofundar o seu descrédito. Além da preferência por direcionar recursos para os meios produtivos, o não Penas restritivas de direitos – alternativa de punição justa: uma análise dos

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investimento no sistema prisional também é justificado pela promoção de políticas públicas de amplo espectro e que alcançam parcelas maiores da sociedade. É isso o que ressalta do discurso de Geder Gomes: Vale ressaltar que esse enxugamento no gasto público com a atividade punitiva se reflete na ampliação da possibilidade de investimento dos recursos economizados, em políticas públicas e sociais ou de caráter preventivo criminal que em última análise, enfrentam o problema nas suas causas e não nos seus efeitos. 45

Argumentos assim representam o combustível com que os governantes fundamentam o não atendimento pleno das demandas prisionais. Direcionar verbas para outros setores, promovendo políticas públicas e sociais, parece ser um motivo justo para se preterir a “grande massa delinquente” em favor dos “homens bons e honestos” da “sadia sociedade”. Parece haver, portanto, por um lado, uma crise que é real, intrínseca à própria concepção e execução da privação da liberdade, na qual o problema dos custos exerce influência singular, e um outro lado dessa crise, um lado fomentado por decisões políticas de alocação do erário público, que toma a crise do sistema como “le motive” para não investir recursos no universo prisional, aprofundando ainda mais as suas incongruências e contribuindo para sua falência.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os direitos custam. E custam caro. O Estado, em seu papel de atender às demandas sociais, necessita desprender altas somas para a satisfação das pretensões de proteção e concreção dos direitos fundamentais. Nada obstante esse dever, os recursos públicos são escassos, o que leva o Poder Público a tomar decisões trágicas. Nestas decisões, torna-se imperioso, por meio de critérios políticos e discricionários, promover a alocação de recursos em determinados setores, em detrimento de outros. Os custos do crime e da prisão se revelam altos e pesados para a sociedade. Sobretudo os custos da pena, que abarcam desde a instalação dos estabelecimentos prisionais (construção, ampliação, reformas, reconstrução e instalações), passando pelos gastos com alimentação, vestuário, pessoal técnico e saúde, atingindo mesmo os custos com a busca da reinserção do condenado ao convívio social.

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Em meio a crise de legitimidade pela qual passam as penas privativas de liberdade, o problema dos custos é apontado como fator fundamental. As altas somas que são empregadas no sistema e a baixa expectativa de que as medidas encarceradoras produzam efeitos profiláticos e terapêuticos contribui para que outras medidas, alternativas à pena de prisão, sejam preferidas, por serem menos custosas. Tal panorama, na prática, termina por gerar justificativas, plausíveis ao olhar social, para que o Poder Público não aloque seus tão escassos recursos no sistema prisional. Já que a privação da liberdade não serve para nada, ou antes, somente serve como castigo e segregação da “escória” humana, é melhor empregar os poucos recursos do erário público com aqueles ditos “saudáveis”, “pessoas de bem”, que merecem privar do sadio convívio social. Ao que tudo indica, o aspecto financeiro da crise de legitimidade da privação da liberdade é manifestamente utilizado para justificar as decisões alocativas do Poder Público e os baixos investimentos do sistema prisional. Disto resulta o aprofundamento das distorções e o agravamento do desrespeito da dignidade humana dos “clientes” do sistema. Acredita-se que o Estado necessita rever suas decisões alocativas no tocante ao sistema prisional. Até que seja substituída por algo melhor, as prisões ainda desempenham papel fundamental de controle social, não se podendo dela prescindir, ao menos na atual conjuntura sócio-política. Se já se reconhece que o seu ambiente é inóspito, desumanizante, o papel do Estado é torná-lo o menos agressivo possível, o que somente se realiza com aporte de recursos, com investimento. Suas incongruências não devem justificar o desinteresse estatal pela sua existência e sua realidade. Afinal, ainda que rotulados como “criminosos”, lá se encontram pessoas que tão somente foram cerceadas, através de uma sentença condenatória ou de alguma medida cautelar, do seu direito de ir e vir. Todos os demais direitos não atingidos pelos efeitos da condenação devem ser preservados e promovidos pelos entes públicos. Assim, considera-se que a escassez de recursos não pode servir como pano de fundo para a negligência acintosa do Estado frente às carências do cárcere. É preciso rever as decisões alocativas e contribuir para a redução dos efeitos danosos que o encarceramento produz sobre a sociedade e os indivíduos.

REFERÊNCIAS AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez & Escolha: Critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. 2. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. BITENCOURT, Cezar. Novas Penas Alternativas: análise político-criminal das alterações

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CAPÍTULO IV

AS TÉCNICAS DE NEUTRALIZAÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Urbano Félix Pugliese do Bomfim Resumo: O Brasil contemporâneo carrega doses maciças de técnicas de neutralização por parte dos donos do poder. Constata-se, em muitos meios de comunicação, quem tem poder econômico e político as usar no azo de neutralizar as ações porventura tidas como impróprias na seara penal. Desculpas sinceras não são pedidas, quase nunca. Os discursos são sempre os mesmos, facilmente observáveis. O presente texto demonstra, através dos exemplos capturados da rede mundial de computadores, as contra-notícias caracterizadas como perfeitas técnicas de neutralização. Palavras-chave: Técnicas de neutralização; escusas; teoria do discurso. SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. ALGUMAS TÉCNICAS DE NEUTRALIZAÇÃO; 2.1. AS TÉCNICAS DE NEUTRALIZAÇÃO INTERNAS; 2.2. AS TÉCNICAS DE NEUTRALIZAÇÃO EXTERNAS; 3. NOTÍCIAS REPLETAS DE TÉCNICAS DE NEUTRALIZAÇÃO; 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS.

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1 INTRODUÇÃO Os delitos, quando realizados, têm diversos reflexos no mundo. Um dos mais nefastos (e ao mesmo tempo natural) são os contra-ataques realizados pelos autores do comportamento tido como delituoso. Naturalmente, os seres humanos têm o direito de defesa, constitucional e infraconstitucional. No entanto, o contra-ataque só é realizado por quem detém força suficiente para tal intento (poder político, poder econômico ou de outra espécime). A contra investida é chamada, em Criminologia, de Técnicas de Neutralização (TN)46. As TN são artifícios usados pelos cometedores de delitos47 para aplacar a própria responsabilidade penal48 diante de um fato dito como criminoso. Assim, quando uma pessoa humana faz algum fato típico, ilícito e culpável, no afã de ter mitigada a sua responsabilidade penal, engendra discursos nos quais diminui a importância dos próprios atos, causando, assim, menor represália social (reprovabilidade social) das próprias condutas supostamente tonitruantes. O objetivo de tais TN não são somente voltadas à sociedade, como se poderia pensar em primeira monta. Os seres humanos precisam “justificar”, para si mesmos, os próprios atos. Dando azo, assim, à afirmação da existência do conceito de instâncias internas de vida inconsciente, como o superego freudiano, que tem a atribuição de fazer a crítica de nossas atitudes em/na vida vivida. O ser humano vive em/na cultura humana. A sociedade humana, diferentemente do aglomerado de seres vivendo nas selvas, possui uma complexidade inefável de discursos hipócritas. Ou seja, vive-se de uma determinada forma e, para que não haja combate aos modos de viver particulares, discursa-se a vida de uma outra maneira completamente diferente. Assim, algumas pessoas, apesar de criminosas, mostram à sociedade uma capa de ser humano bondoso e altaneiro. Vive-se em uma época na qual as pessoas criam personagens para si mesmos (narcisismo patológico). O atleta imbatível e inexpugnável, o político honesto e incorruptível, o professor sábio e estudioso, a mãe zelosa e amorosa, o pai defensor da família e leal à companheira. Em verdade, o personagem é um títere do qual os seres humanos elegem as qualidades projetadas pela própria sociedade como importantes. Na alcova, nos bastidores, na cripta-vida continuam atuando e vivendo hipocritamente como bem lhes aprouver.

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Toda pessoa humana, quando determinada sociedade etiqueta como criminoso um determinado comportamento, tenta não ser alçado à violência estatal caso viole (ou seja alcançado) pelo conduta proibida por uma norma penal. A fuga do controle social formalizado violento é constante por todos os seres humanos viventes em todas as sociedades. Ninguém quer ser preso, processado ou mesmo investigado. Muitas pessoas viventes no Brasil são intensas em fazer afirmações impressionantes. Assim, quando alguém é parado em uma blitz e é verificado o estado de embriaguez voluntária por conta do álcool ou substância análoga, ao revés de fazer a mea culpa, alguns dizem um sonoro: “Que azar o meu, fui pego na blitz, da próxima vez terei mais atenção por onde dirijo o meu veículo após beber”. Dessa forma, a punição, através de prisão ou multa, não gera a reflexão de necessidade de mudança de comportamento. Porém, muita vez, a pessoa humana tenderá a organizar uma melhor estratégia de fuga (ou defesa) contra a punição ou represália social, por acaso existente49. No entanto, quando o comportamento proibido pela sociedade é descoberto, abre-se uma cancela de possibilidades defensivas. Entre as inúmeras maneiras de defender o próprio ser (a imagem pessoal e social) estão as TN. As TN são muito utilizadas por donos de poder político e econômico, conforme se verá algures no presente texto. Apesar da importância do tema, os livros de direito penal pouco exploram a questão discursiva em matéria criminal. Dessa forma, Alessandro Baratta (2002, p. 77), no afã conceitual das TN, indica que: [...] daquelas formas de racionalização do comportamento desviante que são aprendidas e utilizadas ao lado dos modelos de comportamento e valores alternativos, de modo a neutralizar a eficácia dos valores e das normas sociais aos quais, apesar de tudo, em realidade, o delinquente geralmente adere.

Portanto, seguindo o quanto dito pelo escritor italiano, é um equívoco pensar como ausentes de socialização todos os que fazem crimes50. Há uma socialização presente best seller, O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado, preferem pagar taxas a serem multados, por conta da dose de reprovação contida Dicionário de Psicologia

Argumentação jurídica e teoria do direito,

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em todos os seres humanos viventes em comunidade. As normas (escritas ou não) são internalizadas. O inconsciente trabalha no azo de proteger o ser (seja ele corporal, emocional, social, espiritual ou em outras esferas de trato). Assim, quando um ser humano comporta-se de alguma forma passível de críticas (principalmente através do controle formalizado realizado pelo Estado-punidor) espalha argumentos discursivos em prol de si mesmo, no afã de ver mitigada a força estatal punitiva. Por claro, as TN, apesar de utilizadas à mancheias e por grande parte dos agentes dos delitos, só adquirem importância na sociedade quando há “força” social (econômica ou política, como exemplos) de quem fez os atos tidos como criminosos perante a sociedade. Isso por que, somente quando há vulgarização do quanto dito haverá força do discurso em modificar (ou mesmo convencer as pessoas do quanto afirmado) o quanto vivido nos supostos fatos tidos como delituosos. Dessa forma, um político, por exemplo, tem a mídia para ouvi-lo discursar quando bem lhe aprouver, basta pedir uma entrevista coletiva. Afinal de contas, os veículos de informação têm interesse em divulgar as possíveis notícias. Diferentemente, pessoas menos poderosas socialmente têm de buscar o próprio auditório. Não conseguem, facilmente, ser escutadas da mesma maneira que os donos de força política, social ou financeira, ex exempli gratia.

2 ALGUMAS TÉCNICAS DE NEUTRALIZAÇÃO David Matza e Gresham Sykes51 (2008, p. 163) iniciam o texto Técnicas de neutralización: uma teoria de la delincuencia, seminal para o entendimento do presente assunto, indicando não haver mais uma procura, nos chamados criminosos, dos demônios da alma nem mesmo os estigmas do corpo. A atualidade carrega uma certeza que os crimes são um comportamento social imiscuído no processo geral de interação na sociedade. Dessa forma, Matza e Sykes (2008, p. 169) elencam os cinco “dizeres” da delinquência juvenil, resumidamente: ‘No quise hacerlo’. ‘No lastimé a nadie’. ‘El se lo merecía’. ‘Todos se meten conmigo’ ‘No lo hiceyo solo’. Podemos hipotetizar que estos slogans, o sus variantes, preparan a los jóvenes para cometer delitos. Estas ‘definiciones de la situación’ representan golpes tangenciales o colaterales al sistema normativo dominante, más que la creación de una ideología contraria, y constituyen una prolongación de patrones de pensamento prevalecientes en una sociedad más que algo creado de la nada.

terras brasilis

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Apesar de versarem a respeito da chamada delinquência juvenil, os argumentos esposados no artigo citado podem ser alçados a todos os raros de condutas tidas como criminosas, sem maior dose de problema (delinquência adulta e senil). O escrito afirma que nem sempre há dicotomia entre os valores sociais e os valores dos chamados desviantes. Dessa forma, as pessoas cometedoras de crimes podem, sim, ter os mesmos valores daqueles que nunca cometeram delitos (no entanto, tecerão estratégias defensivas completamente diversas que a mera confissão arrependida). No entanto, por uma questão defensiva da própria imagem e da estrutura egóica, insistem em atividades de contra argumentação discursiva no azo de apaziguar possíveis pesos a serem impostos (por si mesmo e pelo restante da sociedade). Assim, os valores podem ser compartilhados (as pessoas humanas sabem que estão realizando atos pouco civilizados, muita vez). Porém, estruturas discursivas são montadas para justificar os próprios comportamentos. Por isso, quando alguém comete algum delito e é punido, ao revés de, por conta da penalização, internalizar que não deve repetir o comportamento tenta, da próxima vez que for cometer a mesma conduta, não ser alcançado pela possível medida punitiva. Dessa forma, há uma dúvida altaneira do pensamento comum de haver valores diversos nos quais se baseiam os chamados criminosos. Ao revés, os ditos criminosos pensam, sentem e racionalizam de maneira similar a todas as outras pessoas ditas como não criminosas. Sykes e Matza (2008, p. 167-170) indicam as cinco formas de neutralizar o próprio comportamento e, em uma revisita da teoria, as TN são convocadas, segundo Phil Bartle (1998), em cinco frases, quais sejam: 1. ‘Eu não sou responsável’. Refere-se a uma situação em que a pessoa que viola as normas afirma que outra pessoa é responsável por essa violação, ou que foi um acidente.  Frequentemente essa pessoa vê-se a ele ou a ela como uma vítima e não como o transgressor. 2. ‘Ninguém se magoou.’  Embora o transgressor possa admitir que a ação foi ilegal, afirma que não houve vítimas, ou que apenas se estava a divertir um pouco. 3. ‘Ele ou ela merecia-o.’  Neste caso o transgressor vê-se a ele ou ela como um vingador, corrigindo os males que afirmam que a vítima tinha cometido anteriormente. Estão apenas a ‘equilibrar as coisas.’ 4. ‘Tu não tens o direito de me julgar.’  Neste caso afirmam que os seus acusadores são hipócritas, e que eles próprios fizeram o mesmo ou ainda pior. 5. ‘Sou leal a um princípio mais nobre.’  Aqui o transgressor pode ter estado ‘apenas a ajudar um amigo,’ ou a ser leal para com o seu grupo.

Assim, seguindo cada frase, elucidada por Phil Bartle, pormenorizadamente, tem-se as seguintes conclusões: (1) A primeira TN é: “Eu não sou responsável” (pelo resultado do meu próprio

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comportamento). Sykes e Matza (2008, p. 167) chamam de negação da responsabilidade. Dessa forma, os seres humanos dizem ter sido o comportamento um acidente. Sendo acidental a conduta não deve gerar quaisquer ônus para si mesmos. Ou mesmo, há uma negação da possibilidade de escolher entre fazer o comportamento ou não delituoso, por conta de morar em um bairro violento, ter pais violentos e ausentes de afeto ou mesmo por conta das más companhias. Assim, nesta primeira TN, o agente delituoso não pondera a respeito dos valores desviados. Apenas indica que os cometeu sob os auspícios de um argumento tão forte, baseado na negação da responsabilidade, que não deve/pode ser punido de forma alguma. A tese de negativa de autoria é similar á presente TN. (2) A segunda TN é: “Ninguém se magoou”. Os autores indicam que os delinquentes podem argumentar não ter havido dano algum no comportamento tido como desviante. Assim, insistem em uma demonstração de ausência de prejuízos existentes por quem quer que seja. Por outro lado, podem argumentar ser uma pequenina travessura, brincadeira a ser suportada pela vítima sem problema. O furto de um veículo para uso não é crime no Brasil, mas é um ato imoral merecedor de reprimenda. No entanto, por conta dessas filigranas jurídicas, os argumentos neutralizadores são aprofundados e aplicados. Assim, ponderam os supostos criminosos da seguinte forma: “Se há diferença entre furto de uso e furto para outros quereres há, também, diferença entre um ato realmente danoso e o meu ato que não causou qualquer prejuízo a ninguém”. Quem fabrica e vende CD´s e DVD´s piratas também utiliza as mesmas argumentações. (3) A terceira TN é: “Ele ou ela merecia-o”. O suposto agente dos atos tidos como delituosos discursa a necessidade da vítima em sofrer o quanto houve de ruim. Assim, o agente do suposto crime não é mais um “mero” desviante, é um vingador da sociedade e de quem sofre nas mãos das vítimas (por algum motivo imaginado na mente do suposto delinquente). Nega-se a realidade da vítima como uma pessoa humana capaz de possuir direitos. Por outro lado, a ausência da vítima (crimes vagos) pode gerar uma sensação nos ditos criminosos de fundamentação da desnecessidade punitiva de si mesmos. Assim, perguntam: “Se não há vitimas como pode haver julgamento e punição?”. Dessa forma, quando alguém é pego roubando um banco afirma: “Ora, ninguém perde com minha conduta. O banco tem um contrato de seguro. A empresa de seguro tem um outro contrato de seguro da atividade de seguro que realiza”. Os crimes ambientais também são circunscritos à presente TN. (4) A quarta TN é: “Tu não tens o direito de me julgar”. Nesta quarta TN o autor dos atos condena a quem o condena por algum ato. Assim, o agente delituoso,

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como em um golpe de judô, desvia a força dos ataques a si mesmo e os foca na pessoa investigadora ou acusadora. Assim, os acusadores são hipócritas que, se estivesse nas mesmas condições, realizariam os mesmos atos. Afirmam-se defeitos supostos dos investigadores e acusadores. Dessarte, os policiais seriam corruptos, cruéis e estúpidos. Os acusadores do Ministério Público (MP) seriam hipócritas, mentirosos e perseguidores. Os juízes seriam pessoas ruins, injustas e descompromissadas com a “verdade dos fatos”. Utilizam argumentos bíblicos, como o velho ensinamento de Jesus de Nazaré52 para os possíveis pecadores, da seguinte maneira: “Quem não tiver pecados que atire a primeira pedra” ou “Tu vês o cisco do olho de seu irmão mas não vê um pedaço maior que uma trave nos seus próprios olhos?”. Assim, indicam um sonoro “todos somos pecadores/violadores e não podemos apontar o dedo uns aos outros”. Dessa forma, ninguém pode ser punido. (5) A quinta TN é: “Sou leal a um princípio mais nobre”. Assim sendo, por esta quinta TN o violador de alguma norma afirma estar mais avançado (em civilidade) que os comandos impositivos encontrados nos princípios e regras estatais. Sintetizando, existiria uma suposta base cognitiva em uma meta a ser alcançada por isso o ato violador aconteceu (os fins justificando os meios). Os irmãos, amigos, família, moradores de uma mesma localidade são juntados em um mesmo pacote para explicar e isentar de qualquer culpa ou responsabilidade social o autor dos supostos atos delituosos. Pode-se afirmar, assim, sem estreme de dúvidas, que as TN são realizadas para a plateia (para a sociedade na qual o fazedor do ato delituoso é partícipe e ator contumaz) e para o mundo interno consciencial (referência do sentimento de culpa). As duas dimensões são utilizadas à farta. No entanto, na grande maioria das vezes, somente os seres humanos fortalecidos socialmente conseguem ter capacidade de gerar alguma certeza no auditório, e serem ouvidos efetivamente, em âmbito social. Assim, os mais enfraquecidos53 não conseguem efetuar a defesa através das TN. Os fracos não são ouvidos. Por outro lado, alguém fortalecido, economicamente como exemplo, finda por discutir as TN e ser ouvido por todos os veículos comunicativos (televisão, jornais, revistas e sites da rede mundial de computadores). -

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2.1 AS TÉCNICAS DE NEUTRALIZAÇÃO INTERNAS Os seres humanos respondem de forma diferente a cada estímulo de vida. No entanto, algumas respostas são correntes e encontradas em todo o globo. Igualmente, o temor, o medo, o pavor, a ansiedade, a raiva, a projeção, a negação, a negociação, a fuga e a racionalização são veículos de enfrentamento dos acontecimentos da vida. Quando algum fato vivido é alçado à responsabilidade de alguém, pode acontecer, deliberadamente, uma racionalização54 para o ajuste do comportamento diante de si mesmo. Dessa forma, a mente humana “pede” por uma racionalização do quanto acontecido no afã de permanecer o máximo estável e sem maiores desestabilizações, como sói acontecer em uma síndrome do pânico, como exemplo. Através das explicações de Freud, pode-se dividir a mente humana em três esferas. Outrossim, no azo de manutenção da saúde mental, cada ser humano, inconscientemente, orienta o superego a participar da própria vida. Sigmund Freud (1997, p. 29) explica quando teorizou a respeito da existência do superego da seguinte forma: As considerações que nos levaram a presumir a existência de uma gradação no ego, uma diferenciação dentro dele, que pode ser chamada de “ideal do ego” ou “superego” [...].

Portanto, para o autor, há locais na mente dos quais os seres humanos não conseguem tangenciar racionalmente. Sigmund Freud (1997, p. 36) tece a explicação a respeito do conceito de superego da seguinte maneira: O superego retém o caráter do pai, ao passo que quanto mais poderoso for o complexo de Édipo e mais rapidamente sucumbir à repressão (sob a influência da autoridade do ensino religioso, da educação escolar e da leitura), mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o ego, sob a forma de consciência (conscience) ou, talvez, de um sentimento inconsciente de culpa.

Dessa forma, as TN funcionam para ajustar o pai interno a uma racionalização

Ambiguidade genital: a percepção da doença e os anseios dos pais

Retórica e o estado de direito,

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impeditiva de titubeios, sofrimentos maiores, ansiedades, medos e frustrações, como exemplos. No entanto, nem sempre há uma melíflua racionalização dos atos humanos capaz de apaziguar a afetividade. Por razão disso, medidas externas são imperiosas no afã de gerar estímulos capazes de convencer as pessoas humanas da ausência de culpa para manutenção do ego intacto (há, nesse diapasão, uma tentativa de não destruição do próprio ser). Por conta de toda a estrutura psicológica citada, os seres humanos precisam (não é um querer simples) proteger a si mesmos através de mecanismos mentais/emocionais aprendidos culturalmente. A fuga e o enfrentamento dos problemas encontrados na vida são veículos de resolução, plenamente utilizáveis.

2.2 AS TÉCNICAS DE NEUTRALIZAÇÃO EXTERNAS A outra face da moeda das TN são os aspectos externos. Assim, as TN são formadas para a sociedade (para os outros). Seria o mesmo de pensar na honra objetiva dos crimes contra a honra (calúnia e difamação). Dessa forma, pode-se vislumbrar a necessidade de convencimento da plateia, na teoria do discurso, para que haja uma perfeição da energia dispendida. O conceito de auditório é um tanto fluido na teorização de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (2005), no Tratado da argumentação: a nova retórica. Logo no início do livro, abordam que o convencimento do auditório funciona como o objetivo primordial do desenvolvimento argumentativo (2005, p. 06). O conceito de auditório está aduzido no “conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação” (2005, p. 22)55. Dessa forma, auditório é o conjunto de pessoas a quem o ato comunicativo se objetiva, no afã de convencimento. Por claro, somente haverá a necessidade de convencimento do auditório nas zonas cinzas dos entendimentos humanos. Dessa forma, não há porque tentar convencer, através da retórica, um auditório a respeito da possibilidade de queima da pele humana por conta dos raios solares, ao meio dia, em uma região equatorial. A clareza da vivência da afirmação finda todas as dúvidas. A verdade56 é vista de maneira límpida, estreme de dúvidas.

verdade

-

não esquecido, não-escondido, não-dissimulado. veritas veritas Dessa forma,

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No entanto, em muitos aspectos, o conhecimento humano é falível, frágil, delicado. Ainda sem estruturação cabível, os seres humanos, em muitos assuntos, são indefinidos e vivem as mazelas dos consensos criados, comprados, formatados em laboratório e escritório. Dessarte, cabível a teorização perelmeniana das melhores argumentações vingarem no afã de construir o consenso histórico em derredor da matéria57. O conceito de co-culpabilidade se ajusta, perfeitamente, à teoria esposada (“Eu não sou responsável”). Segundo a conceituação aqui defendida de TN, pode-se indicar que os limites conceituais da tese da co-culpabilidade são circunscritos como uma espécie de TN, em forma justa e encaixável. Isto porque, ao revés de admitir a própria conduta reprovável, divide-se com a sociedade a reprovabilidade do ato. O conceito de co-culpabilidade é indicado por Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (2010, p. 525) da seguinte forma: Todo sujeito age numa circunstância determinada e com um âmbito de autodeterminação também determinado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em consequência, há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação de culpabilidade.

Levando-se em consideração o quanto dito, Grégore Moura (2006, p. 01), logo na primeira página do seu livro indica uma possível conceituação: Portanto, a co-culpabilidade é uma mea culpa da sociedade, consubstanciada em um princípio constitucional implícito da nossa Carta Magna, o qual visa promover menor reprovabilidade do sujeito ativo do crime em virtude da sua posição de hipossuficiente e abandonado pelo Estado, que é inadimplente no cumprimento de suas obrigações constitucionais para com o cidadão, principalmente no aspecto econômico-social.

Até pode ser plausível a questão da formação da chamada felix culpa da sociedade perante um ato tido como criminoso de alguém. No entanto, quando a argumentação parte do próprio suposto criminoso quanto à afirmação que a sociedade também é culpada pelo seu próprio ato cometido firma-se, em grandes doses, a TN falada.

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Dessa forma, uma TN de escol se ventila como possível em sede doutrinária. Além de cometer o delito, pode-se, por conta da vida anterior vivida, dividir com toda a sociedade a responsabilidade pelo ato, em resumo. Por conta disso, muitas e muitas vezes, o caixa dois dos políticos brasileiros são argumentados como impossíveis de punição por que “todos fazem a mesma coisa”, “historicamente o caixa dois sempre foi feito” e “não se pode punir alguém por fazer um comportamento que a sociedade tolera”58. Por outro lado, há, na doutrina penalista contemporânea, o argumento de inoperância do direito penal quando houver uma conduta perfeitamente ajustável à sociedade. Desta forma, quando uma dada sociedade se manifestar favoravelmente (em tom de loas) a um determinado comportamento, não cabe ao direito penal o papel punitivo. Assim sendo, seguindo o quanto afirmado algures e no afã organizativo mental, há, no direito penal, uma norma quebradora da tipicidade material chamada de princípio da adequação social59, pensada e sistematizada pelo alemão Hans Welzel. Haverá adequação social quando a sociedade, apesar da existência de uma norma penal incriminadora, tiver, por um determinado comportamento humano salvaguarda de elogios. Por conta do conceito acima aduzido, o mero “fazer social”, costume ou “tolerância social” não são circunscritos pela adequação social. Há de haver um reforço positivo laudatório (fortalecimento social). O exemplo clássico de adequação social na sociedade ocidental, não faz mal repetir, está nos furos dos lóbulos das orelhas das crianças em tenra idade tidas como “meninas”. Apesar de haver o delito de lesão corporal no Código Penal brasileiro (art. 129) não se pune (nem mesmo se processa ou investiga) os supostos autores da pequenina lesão corporal citada. O fundamento dogmático da ausência de tipicidade penal está, justamente, no princípio da adequação social. No entanto, este trabalho admite que, quando uma medida comportamental humana (relacionada à outra pessoa humana, como no caso das lesões corporais nos lóbulos dos pavilhões auriculares das ditas meninas ou na separação forçada de gêmeos em comunidades indígenas) gerar fortalecimento dos laços sociais e -

típica

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não quaisquer espécies de enfraquecimentos em sociedade, haverá dignidade da pessoa humana mantida, mesmo quando houver uma aparente quebra de normatizações em sentido oposto. A tradição, assim, realiza uma função de fortalecimento social (formação de espírito comunitário) não gerando rasgo no princípio da dignidade da pessoa humana. Assim sendo, não é o caso das TN de fortalecimento da sociedade em qualidades e valores. Ao inverso, as TN são ajustadas a pseudo (falsos, equívocos) valores sociais no azo de convencimento do auditório. Dessa forma, quando há a expressão de que o caixa dois pode ser realizado tranquilamente por que muitos partidos brasileiros fazem o mesmo, conforme demonstrado notoriamente à larga em vários veículos de informação no Brasil, tem-se uma errônea tentativa de fundamentar os próprios comportamentos criminosos na teoria alemã da adequação social, livrando-se da responsabilidade penal (e social).

3 NOTÍCIAS REPLETAS DE TÉCNICAS DE NEUTRALIZAÇÃO Basta uma olhadela, de soslaio, nas notícias dos meios de comunicação do Brasil contemporâneo para haver a constatação da utilização de TN. Senão se veja, com exemplos retirados de noticias da internet, exemplos de TN da atualidade brasileira, quiçá de amplitude mundializada. A leitura do quanto supostamente afirmado pela assessoria de Eike Batista, a respeito do acidente causado por seu rebento Thor Batista, no dia 17 de março de 2012, tem, à perfeição, as doses de TN explicitadas no presente texto. Assim, segundo a Rede de Notícias da Rede Globo de Televisão60, no texto a respeito dos assuntos aqui mostrados, indica: “Segundo nota divulgada pela assessoria do Eike Batista, ‘a vitima atravessava inadvertidamente a rodovia 040 (sentido Juiz de Fora) de bicicleta’ no momento do atropelamento.” Assim, caso os fatos tenham ocorrido conforme noticiado, nota-se a primeira TN, já citada acima, qual seja: “Eu não sou responsável” pelos fatos acontecidos. O responsável pelo evento é a própria vítima que estava sem atenção ao atravessar à rua de bicicleta, “inadvertidamente”. Por claro, obviamente, não se conhece a fundo os autos o bastante para fazer quaisquer espécies de argumentação de como ocorreu o acidente fatídico na realidade (no entanto, as notícias veiculadas na imprensa são bastantes para aduzir como verdadeiras as afirmações de testemunhas oculares constantes no presente texto). No entanto, certamente, a utilização da TN citada somente mostra a força social do piloto do carro de luxo em alta velocidade, ultrapassando um ônibus pelo acostamento, segundo testemunhas do local. Em nota posterior, segundo ainda a mesma agência de notícias, Eike Batista, pai de Thor Batista, teria afirmado, em seu twitter: “Imprudência de ciclista poderia ter causado três mortes”. Ainda pela rede social, o empresário bilionário teria

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afirmado: “Infelizmente aconteceu um acidente fatal. Porém a imprudência não foi do Thor”. Assim, a TN é açulada como possível, no caso em comento. Por outro lado, o Presidente da República (Luiz Inácio Lula da Silva) à época, em 08 de novembro de 2005, em entrevista ao programa Roda Viva, afirmou o seguinte61: “Fui traído porque alguns companheiros tiveram um comportamento que não coadunava com a história do PT. O dinheiro fácil nunca fez bem a ninguém”. Ou seja, o Presidente nada sabia a respeito do mensalão, desconhecia as supostas falcatruas, não se sentia responsável pelos acontecimentos. Arguindo tal afirmação, sem estreme de dúvida, coadunou-se à TN citada supra. A segunda forma de TN é resumida no seguinte dizer contido na segunda afirmação, já afirmada em tempos passados, qual seja: “Ninguém se magoou”. Assim, não há vítimas visíveis, palpáveis, tangíveis. A afirmação está circunscrita, na maioria das vezes, aos crimes vagos (nos quais a vítima é a sociedade como um todo, em sua generalidade, como nos crimes ambientais). A notícia, veiculada no sítio do Correio do Estado62, indicava: “As vendas de música pela via legal na internet não são afetadas pelo compartilhamento de arquivos, diz um estudo do Centro Comum de Pesquisa da UE (União Europeia), divulgado hoje.” Dessa forma, ao revés do quanto pensado a todo momento, a pirataria de músicas gera algo positivo à indústria fonográfica, segundo tal argumentação. Por claro, para um perfeito entendimento racional argumentativo, toda afirmação precisa de justificações (afirmações) nas quais se possa basear. Dessa forma, as afirmações sempre possuirão aspectos positivos e negativos sejam elas quais forem. Assim, a negação da realidade existencial da vítima (SAUERBRONN; BARROS; STREHLAU; COSTA, 2010, p. 523) é uma das TN utilizadas à mancheias na pirataria. Há aspectos positivos na internet, no compartilhamento de dados e documentos, sejam eles textos, fotos ou mesmo músicas. No entanto, para haver uma discussão científica prolífica é importante haver a minudência dos dois lados da moeda (aspectos positivos e negativos do comportamento). Somente desta forma haverá uma maior probabilidade de elucidação das questões postas, sem existir um viés fincado com cores robustas para um dos lados. Assim, uma afirmação como a mostrada acima somente contribui para uma venda de convencimento. A ciência não é fulcrada com a utilização da TN. Dessa forma, pessoas mais desavisadas podem acreditar, mesmo sem haver uma justificação, na afirmação referida e formar uma convicção pautada em bases gelatinosas. Portanto,

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a argumentação serve, tão só, para neutralizar (arrefecer a responsabilidade penal/ social/pessoal) a conduta tida como desviante e não para elucidar, estudar ou criticar os comportamentos. Uma terceira TN, muito utilizada no Brasil, é circunscrita a jogar a responsabilidade penal para a própria vítima. Assim, os manipuladores da chamada opinião pública dizem: “Ele ou ela merecia-o”. Dessa forma, o delito ocorreu porque a própria vítima merecia o comportamento desviante em sua vida. Como se nota na reportagem a respeito da violência contra homossexuais, intitulada “Não me arrependo de ter retrucado, diz homossexual agredido em São Paulo”63, quando afirma que o agressor aduziu o seguinte: “Em depoimento, um dos agressores disse que o estudante ‘apanhou de besta’ e que deveria ter seguido seu caminho”. Ou seja, o homossexual estava errado ao retrucar o xingamento recebido; foi o causador da violência ao revidar. Assim, a própria vítima merecia a violência por não ter se comportado passivamente diante da agressão sofrida. Quando um xingamento ocorrer, segundo o próprio agressor, a vítima homossexual deve abaixar a cabeça e ficar quieta, porque merece os opróbrios. A terceira TN também é utilizada quando a vítima da agressão é prostituta ou tem uma vida reprovável na opinião do operador do discurso, como acontece nos usuários de drogas. Todos os exemplos citados demostram, claramente, a utilização da terceira TN como técnica de arrefecimento dos próprios atos ditos como criminosos. Alguns trechos do texto intitulado Ministério público e o abuso funcional, de autoria de José Dirceu64, serão analisados no afã de encontrar alguma TN incrustrada. Dessa forma, houve a tentativa de não repetir o texto inteiro, apenas algumas partes serão transcritas ipsis literis. O autor fundamenta o seu escrito indicando que o Ministério Público, notadamente o Ministério Público Federal, não está isento de militância política para efetuar investigações e acusações. Ou seja, atua com parcialidade. Assim, aduz a frase, segundo Phil Bartle, contida na afirmação quatro, já explicitada: ‘“Tu não tens o direito de me julgar”. Inicia afirmando a natureza imparcial e autônoma do Ministério Público, senão se veja: “Concebida como entidade independente e autônoma, o MP tem a obrigação de encarnar o defensor principal do interesse público, a fim de assegurar o efetivo exercício da cidadania.” Para, logo ao depois, afirmar: A blindagem promovida pelo Ministério Público mineiro ao senador Aécio Neves (PSDB-MG), auxiliada pelo Procurador Geral que há quase dois anos engaveta denúncias de desvio de dinheiro de estatais mineiras

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para a rádio Arco-Íris e outras empresas de comunicação de propriedade da família do senador, à época em que Aécio foi governador de Minas, também reforça a falta de isenção com que agem aqueles que deveriam atender apenas aos interesses da sociedade.

Dessa forma, percebe-se, claramente, o argumento do texto panfletário utilizando a TN citada. O Ministério Público não pode agir na investigação de “A” por que, supostamente, não atuou na investigação de “B”. Dessa forma, faz a pergunta implícita: Quem é você para me acusar, já que não acusou fulano de tal? A última das TN é a qual se vislumbra o comportamento com base em uma finalidade mais nobre. Dessa forma, os jovens radicais e violentos, segundo a reportagem65 À sombra da suástica: A intolerância ainda inflama grupos de jovens radicais que desprezam a história, renegam a própria miscigenação e ameaçam as minorias expressa a seguinte fala contra os judeus: “São eles que controlam a mídia, as grandes corporações e estão patrocinando os movimentos em favor dos negros e dos homossexuais”. Dessa forma, percebe-se uma justificação da violência com base no dizer: “Sou leal a um princípio mais nobre”. Neste comenos, a luta contra o imperialismo judeu é o mote para a violência perpetrada. A sanha de violência é tamanha que não se leva em consideração a busca da verdade (ou das mentiras) contidas nos textos lidos em livros manipuladores de mentiras históricas, como a ausência do holocausto na Segunda Grande Guerra. Neste ínterim, os fins últimos buscados pelos criminosos, através dos atos violentos e desarrazoados, seriam legitimadores dos meios antidemocráticos utilizados. De outra banda, não há o interesse dos agressores em buscar um meio pacífico e civilizado de defender as próprias ideias perante outros seres humanos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os seres humanos precisam se responsabilizar pelos próprios atos, quando possuem, em doses salutares, consciência de si mesmos e do mundo que os circundam. Talvez, com a leitura sempre saudável de Sigmund Freud (2001, p. 77) possamos refletir que: “Os homens não podem permanecer crianças para sempre; têm de, por fim, sair para a ‘vida hostil’”. A vida hostil, falada por Freud, é o enfrentamento dos próprios fantasmas, da própria sombra (lado obumbroso ao qual ninguém quer enfrentar). Somente assim teremos uma sociedade mais justa e densificadora de princípios capazes de soerguer a civilidade como mote principal. Alguns seres humanos, no Brasil, findam por corroborar o esforço dos fortes

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na aplicação das TN. Assim, acontece às dúzias, por exemplo, quando um fraco mata alguém famoso, jovem ou rico, atropelado no trânsito diz-se: “Meu Deus, a vítima morreu tão jovem. Tinha tudo pela frente. Esse criminoso merece a pena capital ou mesmo perpétua”. Nem por alguns segundos se fala a respeito do algoz da vítima. No entanto, quando o forte é o carrasco o discurso muda. Nesse comenos, o populacho dirá: “Coitado do atleta milionário. Matou pela segunda vez várias pessoas por excesso de velocidade na direção por estar embriagado voluntariamente. Perdeu a vida, coitado. Agora será preso e arcará com as próprias consequências”. A vítima, agora, é esquecida. O importante é a vida dos mais fortes. Finalizando, as TN são técnicas discursivas, utilizadas por quem tem força suficiente, de convencimento do auditório brasileiro. Conforme mostrado supra, existem diversas técnicas capazes de, em zonas cognitivas grises, efetuar um consenso da suposta verdade dos fatos. Portanto, o estudo das TN é crucial para o entendimento da forma deplorável de utilização da opinião pública, por parte dos donos do poder, contra a civilidade e paz social do Brasil.

REFERÊNCIAS ANDRADE, Ricardo Henrique Resende de. Verdade e retórica em ChaïmPerelman. [Dissertação de Mestrado]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2009. BARATA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. BARTLE, Phil. Técnicas de Neutralização. Tradução Inês Rato e Fátima Gouveia, 1998. Disponível em: . Acesso em: 19 jan. 2009. BÍBLIA Sagrada. Tradução Antônio Pereira de Figueiredo. São Paulo, Novo Brasil, [s.d.]. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2005. DIRCEU, José. Ministério público e o abuso funcional. Disponível em: . Acesso em: 13 mar. 2013 FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Tradução José Octavio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 2001.

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ARTIGOS DOS DICENTES

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CAPÍTULO V

VIOLAÇÃO SISTEMÁTICA DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL: O CASO DA TORTURA E O CONTROLE SOCIAL Antônio Márcio Melo da Silva Resumo: Busca-se neste artigo, discutir a relação entre violência cotidiana e estatal e a tortura. Trata-se de “desatar” alguns “nós” (amarras) que nos mantêm presos a uma determinada prática herdada de tempos idos. Porém, afrouxar ou desamarrar nossos “nós” é pouco: o desafio é, a partir de um olhar sóbrio acerca do que nos acontece, tentar o exercício de “reatar” os nós, com todos os seus sentidos, para assim recriar os laços que nos permitam viver – juntos – como coletividade que consegue construir narrativas sobre essa história que vivemos. Palavras-chave: Direitos humanos; controle social; tortura. SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. A TORTURA NO BRASIL; 3. VIDA: O VALOR SUPREMO, O SINE QUA NON DA LUTA POR JUSTIÇA!; 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: À GUISA DE CONCLUSÃO REFERÊNCIAS.

“Não temos que fazer do Direito Penal algo melhor, mas sim fazer algo melhor do que o Direito Penal.” Gustav Radbruch, filósofo (1878-1949) “O anseio por justiça é inerente ao ser humano, que luta por ela independente se o rótulo é comunista, socialista ou qual possa ser.” (Ferreira Gullar, poeta e escritor) “Não adianta assinar um monte de tratados para dizer que respeita os direitos humanos, mas não fazer nada na prática. O Brasil é mestre nisso.” (Marcelo Freixo, deputado estadual do PSOL-RJ)

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1 INTRODUÇÃO Entramos no século XXI cercados de perplexidades. Nas últimas décadas, no Brasil, ocorreu uma expansão da violência e da criminalidade sem precedentes, ao mesmo tempo em que se percebe a ineficácia da Justiça Criminal – notoriamente incapaz de oferecer respostas adequadas a esse fenômeno. Estamos vivendo um momento histórico em que encaramos a face violenta da sociedade, com seus preconceitos de classe, de raça, de gênero, com sua violência estrutural. Há dimensões da violência que deixam de ser invisíveis; há tipos de vitimização coletiva e individual que começam a ser vistos. Verifica-se a existência de conflitos coletivos, sociais, familiares que resultam em respostas violentas. Há um esforço para quebrar o silêncio que envolve essas questões que não são mais vistas como da vida privada ou secreta, e sim como questões políticas e públicas. O Brasil é um dos países que mais desrespeitam os direitos humanos. Avanços obtidos com a diminuição da mortalidade infantil podem se anular pelo crescimento de 306% dos homicídios de jovens até 19 anos, segundo dados do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP), divulgados pela revista Carta Capital em dezembro de 2006. Se houvesse um ranking mundial de morte de jovens entre 15 e 24 anos, por arma de fogo, o Brasil ocuparia o primeiro lugar. E, seguindo um perfil já conhecido, as vítimas são fundamentalmente os jovens negros, moradores da periferia, sem acesso à saúde, emprego, segurança e educação. A autora dessa matéria, Phydia de Athayde, afirma que “a promiscuidade policial e a violência instituída estão no cerne da matança de jovens”. Em entrevista para essa mesma edição da revista, Marisa Fefferman, psicóloga e pesquisadora do Instituto de Saúde do Estado de São Paulo afirma que “nós todos vivemos a cultura da violência, que impõe regras para todas as relações, de todas as classes sociais.” Há vários autores (Wacquant, 2001; Bauman, 2000; e muitos outros) que nos ajudam a pensar os vários tipos de violência nos tempos atuais.

2 A TORTURA NO BRASIL O principal direito é o direito à humanidade. E a nossa Carta Magna de 1988 coloca como um dos fundamentos do Estado brasileiro a dignidade humana (art. 1º, III) e repete, integralmente, em seu artigo 5º, inciso III, o texto do artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, determinando, de modo expresso, que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Tratando dos aspectos jurídicos deste artigo 5º, o Manual de Direitos Humanos no Cotidiano, da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça (SNDH/MJ) nos lembra, destarte que: proclama o texto universal o direito da pessoa à dignidade humana e proscreve, com relação a todos, mesmo àqueles que sejam colhidos pela lei, qualquer tratamento que afete esta dignidade. Trata-se de um princípio geral que visa a proteger a integridade física, moral e psíquica da pessoa e que embasa, por si mesmo, todos os direitos da pessoa física,

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particularmente os relativos à matéria penal, especificados nos artigos 8º a 11 do Documento Universal, convocando-se, assim, os Estados a promoverem os direitos inerentes à dignidade humana.

Acontece que, para fazer valer os direitos humanos subjetivos, precisamos tornálos concretos, na nossa prática cotidiana. O respeito à diversidade de gênero, de raça, de cor, de credo, de classe, de nacionalidade deve ser internalizado por todos os brasileiros. Sem isso, ficamos só no discurso. A Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) contra a tortura (apud SNDH/MJ, 2001, p. 67) a define como: todo ato pelo qual um funcionário público, ou outra pessoa por instigação sua, inflija intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos graves, físicos ou mentais, com o fim de obter dela ou de um terceiro informação ou confissão, de castigá-la por um ato que tenha cometido ou se suspeite que tenha cometido, ou de intimidar essa pessoa ou outras.

A tortura é rotina em dezenas de países, como nos lembram os relatórios da Anistia Internacional. Rotina para os agentes do Estado, nunca para os torturados. E no Brasil, especificamente, ela já é uma prática rotineira, cotidiana. Neste país, as pessoas são mortas, cotidianamente, dentro de hospitais, em suas próprias casas, nos acampamentos do Movimento Sem Terra (MST) nos quatro cantos e, principalmente, nos presídios. Muitas pessoas ainda são torturadas, e há pessoas que estão na luta pelos direitos humanos das minorias que estão em listas negras, correndo perigo de serem mortas pelas armas de pistoleiros ou jagunços. Fatos dessa natureza ferem todos os Tratados, Convenções e Pactos internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção Internacional contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1991; a Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura, de 1989; e a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José, de 1992). Neste país, que aboliu oficialmente a escravidão há mais de cento e vinte anos, ainda temos, paradoxalmente, trabalho escravo, principalmente no Norte/Nordeste (inclusive com o apoio e a conivência de alguns deputados em Brasília!). Por aqui ainda temos, nas grandes favelas e periferias, milícias formadas por “policiais” para caçar e matar nossos jovens (a maior parte deles negros, como nos informam os jornais). Sem falar do tráfico internacional de brasileiras - para fins sexuais, na maioria dos casos. Enquanto isso, os gastos públicos estão na fronteira da estratosfera (a roubalheira idem) e os governantes, sorrindo cinicamente como se nada estivesse acontecendo. Possivelmente, confiando na “burrice coletiva” de um povo apático e/ou

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desmemoriado. Segundo o penalista e professor Urbano Félix (2011, p. 31) “os muito fracos são punidos, aviltados, massacrados, dizimados unicamente porque extremamente vulneráveis.” São, na opinião dele, os extremófilos. Além da Constituição, temos nossos Códigos Penal e de Processo Penal, mas precisamos estudar porque os mesmos não são aplicados no nosso sistema prisional e nos estabelecimentos para menores infratores em várias cidades deste país. Há inúmeros relatos, em jornais, revistas e internet de inúmeras violações de direitos humanos. A tortura, que é uma prática generalizada e institucionalizada desde a Ditadura Militar (1964-1984), conta com a cumplicidade e a omissão de muitos agentes públicos e de autoridades corruptas. No Brasil, a prática da tortura está disseminada de norte a sul e de leste a oeste. Entretanto, nenhum torturador está preso. Segundo reportagem da revista Caros Amigos, de agosto de 2011 “a tortura conta com a anuência do sistema judiciário. Os direitos básicos dos presidiários são vilipendiados diuturnamente por agentes do Estado”. Os relatos que sabemos, ao ler revistas, jornais e sites sérios, de desrespeito e violação aos direitos humanos, são estarrecedores. Segundo a Caros Amigos, algumas das práticas mais costumeiras são: presos pendurados pelo pênis, seviciados com cabos de vassoura no ânus, obrigados a rolar em fezes de cachorro, choques elétricos, sufocamentos com sacos plásticos, espancamentos com pedaços de madeira, canos de ferro, cassetetes. Detentas que sofrem abusos sexuais. A lista das práticas empregadas por torturadores contra presidiários é longa.

Abu Graib e Guantánamo perdem feio! A superlotação do sistema carcerário, por si só, já constitui uma forma de tortura, segundo tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário. Em 2010, quase 500 mil pessoas estavam presas, segundo dados do Depen (Departamento Penitenciário Nacional). Para a juíza da 16ª Vara Criminal de São Paulo, Kenarik Boujikian Felippe, cofundadora da Associação dos Juízes para a Democracia (AJD), a impunidade é um dos principais fatores que contribuem para a perpetuação da tortura no país. Juíza criminal há 22 anos, Kenarik afirma que não conhece nenhum agente do Estado que tenha sido preso por ter torturado alguém. Até hoje, ela só julgou um único crime de tortura. Ela conta, em entrevista à revista citada, que “o número de processos que trata desse tipo de crime é reduzidíssimo. Os juízes não consideram a tortura um crime grave. O sistema de Justiça acaba corroborando com a tortura por sua omissão”.

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Ainda segundo estudo do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, coordenado pela pesquisadora Gorete Marques, a maioria dos casos de tortura é desqualificada pelos juízes. Segundo ela: se o laudo da perícia identificar que a lesão é leve, eles não acreditam que houve tortura. Classificam como abuso de autoridade. Se o laudo apontar que houve seqüelas, ferimentos, hematomas, desqualificam a autoria. Afirmam que pode até ter ocorrido alguma coisa, mas não dá para provar que tenha sido provocado pelo acusado, porque a vítima pode nutrir algum descontentamento contra o acusado e tentar incriminá-lo, forjando a tortura. Isso é muito comum.

Além da morosidade da Justiça, as vítimas têm contra si outro agravante. Seus argumentos são desconsiderados, frente aos apresentados por agentes do Estado. Segundo o juiz Luciano Losekann, que é coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ): há uma tendência na jurisprudência brasileira de valorizar o depoimento dos torturadores, que são agentes públicos do Estado, em detrimento da vítima, que geralmente é uma pessoa que está presa pelo cometimento de algum delito. Se subestima a palavra do torturado e se valoriza a palavra do agente público. No sistema prisional é onde mais ocorre tortura e onde há o menor número de agentes públicos denunciados. É um paradoxo.

A pena para tortura é tão pequena, que a Lei dos Juizados Especiais Criminais permite a suspensão do processo. O nosso Código Penal precisa ser repensado urgentemente. Como furtar um objeto pode ser mais grave do que cometer crime de tortura por omissão? Qual é o valor que está se protegendo? A propriedade? Ela é mais importante do que a vida e a dignidade da pessoa humana? Isso é grave! Há um descompasso claro na nossa legislação, que supervaloriza a propriedade e desvaloriza a dignidade humana: é disso que precisamos realmente saber! A nossa Lei de tortura, de 1997, coloca no mesmo patamar torturadores a serviço do Estado e babás e cuidadores de idosos. Segundo o defensor público Carlos Weis, que coordena o Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo: infelizmente, a lei da tortura acabou englobando atos de violência de particulares contra particulares. Internacionalmente, a prática de tortura tem uma qualidade fundamental, é praticada sob o poder do Estado. É um crime basicamente cometido sob o manto da soberania estatal.

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O medo de denunciar os torturadores é outro fantasma que persegue as vítimas. Por isso, as estatísticas sobre tortura são subdimensionadas, apesar de se saber que a prática é corriqueira. É muito difícil denunciar. Vai denunciar para quem? Para a polícia? Para o diretor do presídio? A tortura se alimenta da invisibilidade e, portanto, precisa de instrumentos para ser fiscalizada. Quando há um órgão de Estado e não de governo para fazer isso, se cria uma cultura de fiscalização e se pode ter um resultado concreto no enfrentamento à tortura. Mas, a estrutura de proteção ainda é extremamente precária em todo o país e desencoraja a denúncia. Em Santa Catarina, por exemplo, ainda não há Defensoria Pública. Segundo Patrick Lemos Cacicedo, coordenador do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo: o Paraná acabou de criar sua Defensoria e Goiás criou recentemente, mas ainda não fez concurso público. No Brasil, a Defensoria ainda é muito enfraquecida se comparada a outras instituições do sistema de justiça, como o Ministério Público e o Poder Judiciário. Apesar da Constituição de 1988 prever a criação de defensorias públicas, São Paulo, por exemplo, só criou a sua em 2006. Hoje o Estado tem 500 defensores públicos, mas deveriam ter dois mil. Há dois mil juízes e 1.800 promotores. A atuação da Defensoria fica fragilizada.

3 VIDA: O VALOR SUPREMO, O SINE QUA NON DA LUTA POR JUSTIÇA! Após o estudo de pensadores como Michel Foucault, aprendemos que a prisão, desde o seu nascimento, não tem cumprido o seu objetivo profícuo de ressocializar o criminoso, pelo contrário, tem servido para embrutecer ou se fortalecer como “fábrica” de delinquentes mais perigosos do que quando para a prisão foram enviados. Desde a Idade Média é assim. O número de pessoas presas no mundo cresce vertiginosamente, levando alguns autores a declarar que passamos do Estado-Social para o Estado-Penal, da Sociedade Previdência para a Sociedade Penitência (WACQUANT, 2001). Esse aumento de pessoas presas é paralelo a um aumento do sentimento de insegurança. Nessa contemporaneidade, ninguém mais tem presença garantida no mundo (BAUMAN, 2000, p. 38). Hodiernamente, o que ocorre, sistematicamente, é um constante processo de mutilação da personalidade e identidade dos sujeitos, a construção de uma nova identidade carcerária que somente serve ao ambiente prisional, a relação hierárquica dentro do cárcere, com seus códigos de honra e conduta, os modos de vida, suas tensões e ambivalências, a sujeição à rotina e a rituais de boas-vindas que demonstram como será a vida no novo ambiente social, as estratégias de sobrevivência, que serão mais importantes do que a busca pela liberdade, a religião neopentecostal como possibilidade de mais um mecanismo de opressão ou de estratégia de sobrevivência no cárcere. O que falta hoje, no Brasil, é a criação de estratégias para responder a essas

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questões, que são fundamentais. Aqueles que fazem a justiça no Brasil precisam discutir com maior acuidade as propostas contidas em lei para a aplicação das penas alternativas, que tem sido ignorada, assim como a adoção da justiça restaurativa que, diferentemente da justiça tradicional, propõe um novo modelo de resolução de conflitos, sem vitimização e estigmas. Quando assistimos filmes/documentários como “Quanto Vale ou é Por Quilo?”, percebemos que o crime virou uma mercadoria. Crime-mercadoria, com a privatização do sistema carcerário, componente do ramo da indústria do encarceramento em massa. É só assistir a este filme, mais precisamente a fala do personagem vivido pelo ator Lázaro Ramos, para entender melhor essa questão. As ideias de reabilitação vão se enfraquecendo e as de repressão ganham apoio generalizado. A filósofa Marilena Chauí (1999) contrapõe violência e ética, quando afirma que: violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão e intimidação, pelo medo e pelo terror. A violência se opõe à ética porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de linguagem e de liberdade, como se fossem coisas, isto é, irracionais, insensíveis, mudos, inertes ou passivos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: À GUISA DE CONCLUSÃO Nas últimas décadas, lidamos com a nossa face violenta – e isso fica patente na fala das pessoas no cotidiano, aparece de modo espetacular na mídia, permeia os discursos políticos, provoca ações de políticas públicas, produz pesquisas, debates. A sensação é de que a violência tomou conta do mundo e, mais especificamente, do Brasil. Entendemos que o mais importante é participar, aproveitar as janelas que se abrem para discutir e conversar com os outros. E da discussão acerca dos direitos humanos ninguém pode ficar de fora. O desrespeito aos direitos humanos de tanta gente, cotidianamente, diz respeito a todos os cidadãos. Diante deste cenário de desrespeito aos direitos humanos e desse sistema prisional brasileiro caótico, qual a verdadeira função social da educação, dos nossos cursos de Direito (públicos e privados) e quais as possibilidades efetivas que se oferece para que o sujeito encarcerado reflita sobre si, venha a se reintegrar e re-significar sua existência na sociedade? E o que é preciso fazer para que as pessoas voltem a acreditar na Justiça? Democracia, direitos humanos e paz. São esses os ideais de um dos grandes pensadores do século XX, o filósofo italiano Norberto Bobbio (2000). Explicando esses ideais, um dos seus melhores alunos, o professor de Filosofia Política na Universidade de Turim Michelangelo Bovero diz que:

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o desejo da paz se opõe ao reino da violência, o princípio universalista dos direitos humanos se opõe ao mundo particularista das paixões e dos interesses, a ideia da democracia como transparência, como ‘governo público em público’, se opõe à cortina ‘ideológica’ dos enganos e à opacidade do poder.

Mas, segundo ele, Bobbio: também enfatizou a interdependência dos três ideais entre si, no sentido que a busca coerente de cada um deles obriga à busca também dos outros, e que a própria definição de cada um deles requer o uso das noções correspondentes aos outros dois: ‘Direitos humanos, democracia e paz são três momentos necessários ao mesmo movimento histórico: sem direitos humanos reconhecidos e protegidos não há democracia; sem democracia não há condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando deles passam a ser reconhecidos alguns direitos fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tem a guerra como alternativa, somente quando não mais houver apenas cidadãos deste ou daquele Estado, mas do mundo.

E, por último, o poema de Franco Fortini, para reflexão: Na amurada da ponte A cabeça dos enforcados Na água da fonte A baba dos enforcados No calçamento do mercado As unhas dos fuzilados Sobre a grama seca do prado Os dentes dos fuzilados Morder o ar morder as pedras Nossa carne não é mais de homens Morder o ar morder as pedras Nosso coração não é mais de homens Mas lemos nos olhos dos mortos E sobre a terra liberdade havemos de fazer Mas estreitaram-na nos punhos os mortos A justiça que se há de fazer.

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REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Michelangelo Bovero (Org.). Tradução Daniela Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1998. Disponível em: . Acesso em: 27 out. 2011. CAROS AMIGOS. Ano XV, n. 173, agosto 2011, Casa Amarela. Disponível em: . Acesso em: 27 out. 2011. CARTA CAPITAL. Ano XIII, n. 424, 20 de dezembro de 2006, Confiança Disponível em: . Acesso em: 27 out. 2011. CHAUÍ, Marilena. Uma ideologia perversa. Folha de São Paulo, 14 de março de 1999, Caderno Mais, 5-3. PUGLIESE, Urbano Félix. Uma nova visão do princípio da intervenção mínima no direito penal. Salvador: Òmnira, 2011. SECRETARIA NACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Direitos humanos no cotidiano: manual. 2. ed. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, 2001. WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

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CAPÍTULO VI

SISTEMA PENAL: A CRIMINALIDADE COM ANUÊNCIA DO ESTADO Ceane Maria Cardoso Railson do Nascimento Silva Resumo: Este artigo tem por objetivo enfocar a questão da criminalidade na sua roupagem contemporânea. Relacionamos nesse trabalho o ciclo contínuo da criminalidade que em diversas situações, conforme se verá ao longo do texto, encontra sua sustentação no próprio Estado que, paradoxalmente, tem a função de desenvolver preceitos racionais para buscar evitá-la. Desenvolveremos uma relação lógica de análise do atual sistema penal, incluindo também suas raízes, como forma de perceber que em muitos pontos a criminalidade tem a anuência do Estado. Palavras-chave: criminalidade; sistema penal; Estado. SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. CONCEITO DE CRIMINALIDADE; 3. A FUNÇÃO DO ESTADO FRENTE À CRIMINALIDADE; 4. A DIFUSÃO DA (IN) EFICIÊNCIA PENAL DO ESTADO; 5. RELAÇÃO: CRIMINALIZAÇÃO E ESTADO; 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.

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1 INTRODUÇÃO O Estado, enquanto maior expressão de poder dentro da sociedade, tem o papel fundamental de proteger os seus indivíduos. Assegurar de todas as formas possíveis a integridade e a unidade de seus membros, uma vez que os direitos e as garantias fundamentais estão intrinsecamente ligados ao desenvolvimento social com dignidade. Dentro dessa órbita de garantias fundamentais do indivíduo, está, sem sombra de dúvida, o direito à segurança e de lado contrário, a insegurança vinda da criminalidade. Sob essa ótica, hodiernamente, discute-se o que possivelmente poderia insurgir como forma de efetivar a segurança dentro das relações humanas. Há muito saímos daquele status naturalis, que era o próprio estado de guerra, de ameaça constante66 para adentrar em um meio no qual a paz é assegurada por um ordenamento jurídico, o Direito positivado. Mas, se de fato a lei garantisse essa segurança, ainda teríamos hoje essas tamanha onda de criminalidade? O Estado, como maior responsável pela proteção, por essa segurança, realmente cumpre com seu papel? É nesse ponto que questionamos a sua atuação e sua eficiência enquanto responsável pela paz social analisando mais especificamente o Sistema Penal e sua legislação como forma desse controle social. Analisaremos que a política de proteção social (ou penal) dada pelo Estado, é um sistema segregacionista, um verdadeiro apartheid da modernidade. Essa característica gera efeitos apocalípticos de medo e desconforto em sua população mais vulnerável, pois é sobre eles que recai a drasticidade da intervenção penal, são eles a parcela afetada diretamente por um sistema penal historicamente repressivo e violento que afasta essa população para as margens da sociedade e por não desfrutarem dos benefícios assegurados pelo Estado - que são também requisitos sociais de distinção - não tem força para ir de encontro a esse sistema. De lado oposto às obrigações estatais existem interesses de âmbito econômico que muito raramente podem se confluir com um interesse geral. E, se são essas vertentes opostas, a coexistência não é aplicável. Conforme se pretende expor, existem ganhos econômicos por trás de toda essa segurança divulgada em matérias de capa de jornal. É rentável negligenciar, ainda mais diante de uma cadeia sistemática de difícil interposição como é a manutenção pelo Estado da criminalidade. Enfim, veremos no decorrer do presente capítulo, que as políticas governamentais, são na verdade uma maquiagem do verdadeiro sistema criminoso que se instaurou. O que acontece de fato é camuflado de todas as maneiras para que a população nem desconfie que a criminalidade ocorra com a anuência do Estado.

A paz perpétua

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2 CONCEITO DE CRIMINALIDADE Quando há a pretensão de se trabalhar o sistema penal e todas as suas vertentes discutidas em criminologia, percebemos que todo esse empreendimento dialético tem como ponto efusivo a criminalidade. Mas, o que se pode entender por criminalidade? O que se liga a esse conceito? A priori, individualizando o crime na ideia de Zaffaroni, que o situa como a conduta contrária ao que expressamente a lei delimita: [...] o delito é uma conduta humana individualizada mediante um dispositivo legal (tipo) que revela sua proibição (típica), que por não estar permitida por nenhum preceito jurídico (causa de justificação) é contrária à ordem jurídica (antijurídica) e que, por ser exigível do autor que agisse de maneira diversa diante das circunstancias, é reprovável (culpável). (ZAFFARONI apud REY, 2008.)

O comportamento humano é, deste modo, delimitado pelo ordenamento jurídico que lhes imprime o modo correto de agir em uma interrelação: “Não há crime sem prévia prescrição legal.” (Princípio da Anterioridade da Lei Penal). Crime, porém, como antanho já afirmava Durkheim - citado por Cristina Costa67 - é um fato social, inerente à coexistência humana, sempre existiu e sempre vai existir. E como ensina o professor J. J. Calmon de Passos68, o próprio Direito nasce a partir desses conflitos, sem eles, esse regramento seria descartável. Partindo dessas premissas, a criminalidade será o conjunto de vários crimes (delitos) que ocorrem cotidianamente. Desse modo, a função, em tese, do Estado punitivo seria a de corrigir essas condutas e em seguida ressocializar impedindo o alastramento da prática delituosa, em um ideal preventivo-retributivo de penalização. Ressalta-se que criminalidade é um termo que desprende uma enorme carga negativa o que ajuda a compor um cenário de hostilidade para com quem é tipificado nessa classificação. Personalizam-se no termo criminoso aquelas massas mais populares: pobres, negros, analfabetos. Todas aquelas classes que já nascem marginalizadas. Mas, prendendo-se ao conceito estrito, são criminosos apenas aqueles que infringem o que está disposto no código penal e na legislação extravagante brasileira.

3 A FUNÇÃO DO ESTADO FRENTE À CRIMINALIDADE O Estado, como organização pautada na Constituição, deve imiscuir-se na vida de seus membros, buscando garantir a coexistência e a proteção além de agir de

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modo a também estabelecer uma autonomia pública e privada. A incidência do Estado Democrático de Direito veio trazer a junção de bases do Estado Liberal (sem intervenção estatal) e Estado Social (função paternalista, em que o Estado respondia diretamente pelos seus indivíduos). Um modelo que traz consigo, ao menos em teoria, a esperança de que finalmente a todos será assegurada uma vida digna. Mas, essa concepção somente é aplicável no plano das ideias, na realidade, a teoria imposta no fato, não alcança a beleza do texto constitucional. Dentro do quesito segurança, espera-se que o Estado ofereça condições de impedir o alastramento da criminalidade através de políticas de base, atingindo a estrutura da sociedade, o investimento deve partir do quesito educação. No tocante à correção das práticas delituosas, a visão deve-se pautar na ressocialização do indivíduo. Não é essa, porém, a realidade do atual Estado Democrático de Direito. Quando não há efetividade do Estado Democrático, o correto seria pensar em uma maneira de mudança. Na medida em que o sistema vigente não alcança seus objetivos - por exemplo, ressocializar os indivíduos -, parte-se então, para algum aparato que dê toda a efetividade ainda não alcançada. É dessa forma que os sistemas mudam e evoluem dentro da sociedade. No entanto, não é exatamente dessa forma que ocorre. O Estado democrático de Direito traz uma segurança jurídica, social e econômica (com ênfase neste último), mas, essa segurança não é estendida a todos os indivíduos, abrange apenas uma pequena parcela que por sua vez, cuida de desenvolver métodos para manipular as demais massas reportando-as ao comportamento pacífico de aceitação e submissão ao status quo. Essa aceitação/submissão é ainda mais eficaz em Estados onde a população vulnerável não tem recursos que desenvolvam seu lado crítico – o investimento em Educação -. Torna-se então um Estado para poucos dominantes e muitos dominados. É uma sociedade que outrora foi divida por Marx69 em infra-estrutura, força trabalhadora, e superestrutura. Esse conceito foi comentado, por Althusser: Para Althusser, a sociedade pode ser dividida em infra-estrutura – que representa a base econômica e a super-estrutura. O objetivo principal da super-estrutura é a manutenção da ideologia dominante e, por isso, ela é composta por Aparelhos de Estado o de Repressão, cujo principal recurso é o uso da violência, e os Ideológicos, cujo principal recurso é a ideologia. (ALTHUSSER apud BARONI, 2006. p.7)

O meio pelo qual essa estruturação se faz é através do que Althusser chama de aparelhos ideológicos e repressivos de Estado70, é o modelo estatal de manipulação e controle humanos que se manifesta nas escolas, família, partidos políticos (aparelhos ideológicos), judiciário, polícia, sistema penal (aparelhos repressivos). São as formas Os aparelhos ideológicos do Estado

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de controle social, tanto informais quanto formais que pretendem dar suporte a essa organização que se pauta principalmente na manutenção econômica daquelas classes mais favorecidas. Feitas as devidas considerações acerca do controle da sociedade, reporta-se agora ao tema criminalidade como produto dessa regulamentação, mais precisamente, manifesta-se aqui o aparelho repressivo do Estado para a contenção do desvio das condutas pré-estabelecidas através do instrumento ideológico, conforme nos aponta Giorgi (2006, p. 36): O Controle do desvio enquanto legitimação aparente das instituições penais constitui, pois, uma construção social por meio da qual as classes dominantes preservam as bases materiais da sua própria dominação. As instituições de controle não tratam a criminalidade como fenômeno danoso aos interesses da sociedade em seu conjunto; ao contrário; por meio da reprodução de um imaginário social que legitima a ordem existente, elas contribuem para ocultar as contradições internas ao sistema de produção capitalista.

Vê-se aqui, que a punição segue um caminho paralelo ao dos interesses de uma dada classe. As instituições penais disciplinarão uma massa marginalizada, que é criada pela própria omissão estatal em oferecer os recursos que os tornariam pessoas dignas. O controle do desvio encarcera-os demonstrando uma “eficiência” em punir, quando na verdade essa eficiência deveria ser em evitar que sua população tivesse o crime como saída. O Sistema Penal, como instrumento repressivo do Estado, servirá de disciplinador daqueles que porventura ousem ir de encontro ao que é proposto por aquela classe dominante. A ideia segue a seguinte lógica: Aumento de mão-deobra desqualificada e baixa oferta de emprego, logo, propensão ao crime por falta de oportunidades. A superestrutura trata de conter esses possíveis criminosos, antes que eles possam insurgir-se contra os dominadores, o método usado é o encarceramento. O aumento e agravamento das penas estão diretamente ligados ao aumento do desemprego gerado pela falta de estruturação do sistema econômico, não há, dentro do capitalismo, como oferecer as mesmas condições para todos. O sucesso desse sistema depende dessa divisão de classes. Para uma grande parte da população não há emprego, não há educação, não há cultura, não há lazer, não há assistência, portanto, não há condições de uma vida digna. Hoje se gasta muito mais com presídios do que com escolas. Não é interessante cuidar da educação. Educar pode vir a ser uma ameaça. Dessa forma se sustenta o sistema capitalismo. Utopicamente imprime uma guerra contra a criminalidade que ele mesmo cria. A ineficácia do Estado em ação social e eficácia em proteger uma minoria e esquecer aqueles a quem deveria obrigatoriamente

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ajudar, segundo Marcola (2006):

[...] eu sou um sinal de novos tempos. Eu era pobre e invisível... Vocês nunca me olharam durante décadas... E antigamente era mole resolver o problema da miséria... O diagnóstico era óbvio: migração rural, desnível de renda, poucas favelas, ralas periferias... A solução é que nunca vinha... Que fizeram? Nada. O governo federal alguma vez: alocou uma verba para nós? E nós só aparecíamos nos desabamentos no morro ou nas músicas românticas sobre a “beleza dos morros ao amanhecer”, essas coisas... Agora, estamos ricos com a multinacional do pó. E vocês estão morrendo de medo... Nós somos o início tardio de vossa consciência social...

Esse relato, atribuído ao traficante Marcola, demonstra a realidade daquela massa vulnerável que sobrevive apesar das poucas condições. É uma massa que é propensa ao crime, mas não por seu perfil de delito, mas pela falta de recursos que possa mudar seus destinos.

4 A DIFUSÃO DA (IN) EFICIÊNCIA PENAL DO ESTADO Para continuar manutenciando e legitimando sua atuação, o Estado precisa de meios que veiculem seu método como eficaz. Para isso, apropria-se de recursos de grande repercussão dentro da sociedade. O procedimento de criminalização é simples e efetivo: Através do controle sobre os canais de comunicação, teorias forjadas e demais outros métodos de criação de falsos dados e perspectivas, é repassada à sociedade a imagem de que aquela massa de pessoas consideradas como underclass são na verdade os mais propícios a cometer crime. Difunde-se que a criminalidade vem obrigatoriamente do gueto, das classes mais baixas. Portanto, oferecem como solução para tal fato o encarceramento dessas massas. O Estado pode abster-se das suas reais obrigações e a economia capitalista pode continuar a fluir já que se os desempregados serão presos, sairão eles dos índices do desemprego para entrarem nas listas de criminosos. As privatizações penitenciárias costumam ser a maior fonte de rendimento, pois uma vez encarcerados, aplica-se a eles “o trabalho desqualificado em massa no seio das prisões.” (WACQUANT, 1999.). Trata-se, portanto, da mais rentável solução. Como diz Wacquant, é: criminalizar a miséria71. O Estado Penal encontrou embasamento inicial em teorias desenvolvidas nos Estados Unidos, mais precisamente em Nova Iorque com a Broken Windows Theory72 na qual se afirmava ser necessária a não tolerância a partir dos pequenos delitos. Essa Broken Windowns Theory: -

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assertiva vinha a partir da analogia com uma janela de um prédio quebrada, se esta não fosse logo reparada, presumir-se-ia, que ali não tinha autoridade que se preocupasse, logo, outras janelas iriam ser quebradas, a desordem começaria e se instalaria ali um local propício ao crime. Para Kelling e Wilson (1985): […] if a window in a building is broken and is left unrepaired, all the rest of the windows will soon be broken. This is as true in nice neighborhoods as in rundown ones. Window-breaking does not necessarily occur on a large scale because some areas are inhabited by determined windowbreakers whereas others are populated by window-lovers; rather, one unrepaired broken window is a signal that no one cares, and so breaking more windows costs nothing. 73

Segundo essa linha de raciocínio, a luta contra os pequenos distúrbios faz recuar os maiores. Impulsionado por esta e outras teorias, a política de segurança norteamericana chamada tolerância zero, instaura-se, começando desse ponto a transição do Estado Social para o Estado Penitência ou Estado Penal. Aquela postura paternalista, que subsidiava os pobres chega ao fim, pois é vista como uma forma de recompensar a inatividade (leia-se: desemprego por ineficiência do Estado). O Estado Penal, na sua roupagem democrática, traz em sua forma uma falsa ideia de combate à criminalidade, as pesquisas incitam a eficácia dessa técnica, pois diminuiu-se a quantidade de pessoas que potencialmente poderiam ferir a paz da classe dominante. Foram alvos dessa “mão de ferro” os negros, os desempregados, os semi e analfabetos e estrangeiros (xenofobia). Mas, para todos os efeitos, é apenas uma infeliz coincidência que os perseguidos sejam exatamente as classes já marginalizadas pelo próprio Estado. O que se esquece em todo esse sistema penal mantenedor do modelo capitalista é que lidamos com vidas, e que a intervenção penal é demasiadamente danosa à vida desses vulneráveis. Se naturalmente já não desfrutam de seus direitos, após o encarceramento, vem a estigmatização, colocando sobre eles a última pá de areia que faltava.

5 O SISTEMA: CRIMINALIZAÇÃO E ESTADO A sustentação do capitalismo que financia e estrutura do Estado, traz consigo de forma natural, um mal necessário à sua existência: o fator desigualdade, presente na Tradução livre nossa

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exploração do homem pelo homem na busca por lucro/poder. O que acarreta na criação de “estruturas em camadas” representadas nas figuras dos fortes (ou dominadores) e dos fracos (ou vulneráveis). Entre estes estão os miseráveis, afetados direta e negativamente por aqueles poderes de exploração e que simultaneamente protagonizam a ascensão da criminalização. A criminalização dos miseráveis é hoje parte integrante do sistema, sem ela o Estado não poderia justificar a existência de um sistema penal repressivo e violento e precipuamente não seria capaz de manter o sistema capitalista em voga, transformando dessa forma o sistema penal em uma via de mão dupla: De um lado aparece o capitalismo selvagem e de exploração e do outro o próprio Estado como elemento de dominação gerando um: “Estado Penal de Mercado”. Assim, é nessa ideia de relação de poder que a criminalidade aparece como forma lucrativa. Miaille (1989), recorrendo à teoria de Marx, explica que: A sociedade do modo de produção capitalista sofre a dominação econômica da classe dominante, a burguesia. Esta não pode manter e conter as contradições sociais senão recorrendo a um aparelho repressivo, o Estado. A classe economicamente dominante é, pois também a classe politicamente dominante; ela investe o aparelho de Estado (administração, exército, polícia, justiça, etc.) e faz este funcionar no sentido de seus interesses.

Apesar de ser uma colocação antiga, percebemos que ainda se faz pertinente nos dias atuais. A sociedade sofre com uma criminalidade pautada no preconceito, na exploração e na repressão, encontrando sustentação no próprio Estado. Os miseráveis (vulneráveis) são vistos como perigosos. A mídia, os discursos políticos, o mercado apontam constantemente a parcela da sociedade que deve ser criminalizada e mantida isolada para uma garantia de segurança social. Ser pobre não significa apenas não obter serviços de educação e saúde adequados, ou trabalho, mas também sofrer violência em seus territórios e suas casas envolvendo a exclusão. Há uma estereotipagem dos pobres como criminosos através da mídia e até autoridades públicas, fazendo com que pessoas, em especial os jovens negros, sejam estigmatizadas pelo local onde moram. (MILLER, 2009).

Recursos destinados ao combate do crime (Estado Penal) geram um maior retorno político e econômico do que àqueles destinados ao combate dessa desigualdade gerada pelo capitalismo (Estado Social), uma vez que seus resultados práticos são visíveis e imediatistas, acarretando uma sensação de conforto social que leva a manutenção de uma mesma classe dominante no poder. Além disso, é menos oneroso para o Estado

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combater o crime diretamente do que buscar o combate às causas que acarretam a sua formação cotidiana. O próprio Estado garante o ciclo vicioso de um sistema penal que põe a miserabilidade como fator de ganhos através da difusão da ideia de que é essa a melhor opção. Isso reflete uma ideia outrora comentada por Malcolm X, um dos principais líderes muçulmanos dos EUA, que foi assassinado justamente por ir de encontro ao sistema. Ele dizia: “Se você não for cuidadoso, os jornais farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas e amar as pessoas que estão oprimindo”.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS À guisa de conclusão, é perceptível a forte disparidade existente entre o que deveria ser e o que presenciamos no tocante à manifestação do poder do Estado frente a suas obrigações para com a sociedade. A imperatividade de um sistema que financia o crescimento de uma pequena parcela da população em detrimento dos benefícios sociais, gera um ciclo de desigualdade que está indissociavelmente ligado às consequências da criminalidade, que vem como resposta pelo esquecimento dos que são diariamente remetidos e mantidos nas margens da sociedade. De modo a assegurar o contínuo desenvolvimento do sistema em pauta, o Estado se põe a serviço deste, disponibilizando o mundo penal como meio de repressão e camuflagem da sua própria competência. A ideia é combater os seus próprios frutos e continuar mantendo o esquema de superestrutura e infra-estrutura. Criminosas são aquelas massas rotuladas como perigosas, quando na verdade, caso lhes fossem dadas as devidas possibilidades, poderiam compor uma massa de trabalhadores, de alfabetizados, de doutores, uma oportunidade que jamais foi de preocupação estatal. O Estado sempre tratou de desenvolver seus instrumentos de manipulação e disciplinamento social para que jamais houvesse contestação de sua postura como mantenedor das desigualdades, pois essa linha de atuação é a mais rentável. Enfim, é o retrato de uma sociedade que infla seu sistema carcerário a cada dia em contraposição ao esquecimento dos meios sociais de desenvolvimento, construindo uma sociedade violenta com a miséria compondo o cenário criminal, enquanto as ferramentas econômicas geradoras de riquezas são cada vez mais monopolizadas nas mãos de uma elite selvagem e segregacionista.

REFERÊNCIAS COELHO, Edihermes Marques. Funções do Direito Penal e o Controle da Criminalidade. Disponível em: Acesso em: 25 out. 2011. COSTA, Cristina. Sociologia: Introdução à ciência da sociedade. [S.l.]: Moderna, 2002. GIORGI, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. Tradução Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2006. JUNIOR, Benjamin. Entrevista dado ao Jornal O GLOBO por “Marcola”, o líder do PCC. Coluna: Arnaldo Jabor. Disponível em: . Acesso: 25 out. 2011. KANT, Immanuel. A paz perpétua: Um projecto filosófico. Segunda secção. 1795. Tradução Artur Mourão. [S.l.]: Lusosofia, 2008. MARQUES, Rafael da Silva. Os aparelhos ideológicos de Estado: Breves considerações sobre a obra de Louis Althusser. Disponível em: . Acesso: 25 out. 2011. PASSOS, J. J. Calmon de. Direito, Poder, Justiça e Processo: Julgando os que nos julgam. Rio de Janeiro: Forense, 1999. REY, Martinna Pires Gonçalves de Souza. Uma visão sobre a criminalidadde organizada. Disponível em: . Acesso em: 25 out. 2011. SELL, Carlos Eduardo. Sociologia Clássica: Durkheim, Weber e Marx. 3. ed. Itajaí: Univali, 2002. WACQUANT, Loïc. As prisões da Miséria. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. WILSON, James Q.; KELLING, George L. Broken Windowns Theory: The police and neighborhood safety. The Atlantic Magazine, 1985. Disponível em: . Acesso em: 25 out. 2011.

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CAPÍTULO VII

O (DESEN) CANTO ACERCA DO FEMININO: A ESTIGMATIZAÇÃO DA MULHER EM LETRAS DE MÚSICAS POPULARES BRASILEIRAS Cristiane Lima Procópio Eliana Ferreira Santos Resumo: O presente artigo versa sobre a construção da identidade feminina ao longo da história, das condições que a vulnerabilizam e da reprodução desse modelo de mulher pela música popular brasileira. Palavras-chave: Mulher; vulnerabilidade; vitimização . SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. A CONSTRUÇÃO DO SER MULHER; 3. A MÚSICA ENQUANTO AGENTE SOCIALIZADOR; 4. MULHER: INFERIOR, SUBMISSA, LIMITADA E...”DO LAR”; 5. MULHER: INFERIOR, SUBMISSA, LIMITADA E...SEDUTORA; 6. MULHER: INFERIOR, SUBMISSA, LIMITADA E...POBRE; 6.1. MULHER: INFERIOR, SUBMISSA, LIMITADA E...RICA.

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1 INTRODUÇÃO A naturalização da inferioridade feminina e a busca por uma igualdade de gênero pautada em estereótipos construídos durante séculos, resultado de uma concepção da mulher como um ser frágil e vulnerável, leva-nos a analisar a representação das personagens femininas contidas na música popular brasileira. Para tanto, apresentamos nesse artigo alguns desses estereótipos e analisamos trechos de sete músicas, buscando fazer um paralelo entre a forma como a mulher é apresentada e os índices de violência que sofrem dentro de cada situação em que vivem ou que são vistas. A moderna vitimologia que surge após a Segunda guerra Mundial, procura redefinir o papel da vítima e de suas relações com tudo o que envolve o fenômeno delitivo, buscando, entre outras coisas, explicitar os fatores que vulnerabilizam tais vítimas. Sobre isso observa Molina e Gomes (2008): As investigações criminológicas dos últimos quinquênios demonstraram que existem dados objetivos determinantes da específica vulnerabilidade das pessoas ou grupo de pessoas em que os crimes concorrem... É dizer, que o risco de vitimização é um risco seletivo e diferencial.

Sob essa ótica a mulher, assim como outras minorias, surge como um grupo potencialmente vulnerável, com o agravante de reunir em seu interior uma multiplicidade de fatores de risco. Fruto de uma história que se utilizou e se utiliza de diversos agentes socializadores para estabelecer o feminino como sendo inferior. Exercitadas desde sempre para desenvolver a submissão, a subordinação legal de seu sexo por outro, legitimado pela máxima do “sexo frágil” que necessita de um “sexo forte” para protegê-la, a mulher se torna assim, marginalizada e sofre violência de diversos tipos. De acordo com dados contidos no Manual dos Direitos Humanos da Mulher, a maior parte da população pobre e analfabeta do mundo é composta por mulheres. Mais de um milhão de meninas que morrem a cada ano, morrem por serem do sexo feminino.74 O número de mulheres vítimas de violência doméstica e sexual, no planeta Terra, é maior do que o número de vítimas em todos os conflitos armados.75 Segundo uma pesquisa feita pela Organização Mundial da Saúde em 2008, 29% das brasileiras já sofreram algum tipo de violência física ou sexual em algum momento de suas vidas, destas, 25% não contaram a ninguém sobre o ocorrido76.

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Dados colhidos pela Fundação Perseu Abramo, indicam que a cada quinze segundos uma mulher é agredida em nosso país.77 Apesar de todas as conquistas alcançadas no decorrer das últimas décadas, a verdade é que ainda é negada ao sujeito feminino a condição de participante, construtor e transformador da sociedade, graças a uma história patriarcal que relega toda mulher a uma condição de servidão em relação a algum homem. O “ser” mulher é uma construção marcada pela ideia de limitações físicas, sexuais, religiosas, culturais, sociais e legais. Em um significado mais amplo, como escreveu Simone de Beauvoir (1949): “Toda a história das mulheres foi escrita pelos homens.” E em quase todo o mundo, onde há mulher, há desigualdade de direito e de fato e há tanta violência contra o sujeito feminino que a Organização das Nações Unidas (ONU) vem conceituando como pandemia. Concepções que valorizam a mulher resignada, mãe, submissa ou, a sedutora, bonita, gostosa e que muito contribui para intensificar a vulnerabilidade feminina, são encontradas em diversos agentes socializadores da sociedade contemporânea como, por exemplo, em algumas músicas que reproduzem valores, modelos, normas e comportamentos que legitimam o padrão dominante, refletindo uma visão patriarcal que atribui à mulher qualidades ou defeitos que irão determinar seu status na sociedade.

2 A CONSTRUÇÃO DO SER MULHER Aristóteles78, já afirmava, que as mulheres eram limitadas por natureza, elas seriam uma espécie de macho estéril e que enquanto a coragem do homem revela-se no comando, a da mulher revela-se na obediência. Para Pitágoras79, o homem foi criado por um princípio bom que criou também a ordem, a luz. A mulher, por um princípio mau que criou o caos, as trevas. Já as mulheres bíblicas, em uma interpretação e reforço dado pelo catecismo da Igreja Católica, na era medieval, aparecem sempre definidas em termos sexuais, nunca um ser individual, autônomo. Sempre dependente, condicional, pertencente. O homem é o principal, a mulher o acessório. Analogicamente, o acessório deve seguir o principal. Não existem registros históricos que determinem o período no qual a mulher passou a ser tratada de modo inferior. Da época ancestral, existe a figura do primata arrastando a fêmea pelos cabelos, após vencer eventual resistência mediante uma pancada na cabeça. Na Grécia antiga, as mulheres não podiam assistir às Olimpíadas, espetáculo reservado aos homens, que

apud apud

Violência contra a mulher

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detinham a capacidade de apreciar o belo, ou seja, o corpo dos atletas, que competiam nus. Para os romanos, as mulheres não se encontravam sob égide do jus gentium, pois eram consideradas “coisa”, como os animais, e sequer eram quantificadas nos censos. (DIAS, 2004)

No livro de Gênesis, Eva, a “primeira mulher” só ganhou vida graças a uma parte de Adão, ou seja, ela é derivada dele. A tentadora, enganadora, responsável pelos pecados, diabólica, bruxa: E disse o senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma adjutora... e da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher; e trouxe-a a Adão... Então disse Adão: A mulher que me deste por companheira ela me deu da árvore, e comi. (BÍBLIA SAGRADA, 2005)

Já Maria, a Igreja associa a imagem pura, inocente, dotada de amor materno e de total sujeição, suportando resignadamente todos os sofrimentos. Aquela que concebeu sem pecar. Isso foi transformado pela religião em um modelo, a virgindade se torna o ponto de divisão entre Eva e Maria. Para aquelas que foram Evas e, portanto, impossibilitadas de serem Marias, surge a figura de Madalena, a prostituta arrependida, que encontraria a salvação se não pecasse mais. No século XIX, a ciência investiga e “comprova” as diferenças biológicas que atestavam a inferioridade e fragilidade femininas. Cesare Lombroso80, analisa a diferença genética entre a mulher considerada “normal”, ou seja, com baixa necessidade sexual, instinto materno aflorado, vendo o sexo apenas como meio para procriar e a prostituta, uma “mulher inacabada”, cujas faculdades mentais comparam-se ao do louco. Assim, aos poucos, sistemas e governos legalizam o que já existia de fato, a submissão, a sujeição feminina. Qualquer homem legalmente casado, de qualquer que fosse a classe, teria dominação sobre a sua esposa. Sobre isso escreve Stuart Mill (2006), em 1869: O malfeitor mais desprezível tem uma mulher infeliz ligada a ele, contra quem ele pode cometer qualquer atrocidade, exceto matá-la, e, no caso de ele ser razoavelmente cauteloso, pode fazer isso sem correr muito perigo de sofrer qualquer penalidade legal.

Importante ressaltar que a dicotomia entre a esfera pública e privada acentuou as desigualdades. Para os homens o trabalho externo, para as mulheres o trabalho apud

Maria de Magdala

mitos.

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doméstico, criação e educação dos filhos. Essa duplicidade ensejou a formação de dois mundos: um de dominação, externo, produtor; outro de submissão, interno, reprodutor. Tal distinção estereotipada está associada aos papeis do homem e mulher. Enquanto isso a esposa é a serva do seu marido. Ela faz um voto de obediência eterna no altar e a lei a mantém desta forma por toda a vida... Não desejo, de modo algum alegar que as esposas recebam um tratamento pior que os escravos; mas, nenhum escravo é escravizado na mesma proporção e num sentido completo da palavra como é uma esposa. Dificilmente, qualquer escravo, é um escravo de todas as horas e minutos. (MILL, 2006)

Assim, o padrão de família que configurava os séculos passados, tinha característica extremamente paternalista, o poder se concentrava na figura do pai, que determinava inclusive quem deveria organizar o lar. “Em termos de poder nenhuma relação é absolutamente equilibrada”.81 Mas, no caso específico da relação homem e mulher apresenta-se ainda mais de forma diferenciada, pois esta, devido ao “adestramento” que recebe desde sempre, o aceita voluntariamente. Sobre esse poder que adestra, observa Michel Foucault (1998): O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá- las para multiplicá-las e utilizá-las num todo.

Com o advento da industrialização, as mulheres adentraram no mercado de trabalho. Nos países ditos desenvolvidos, por evolução, emancipação voluntária e nos países ditos subdesenvolvidos, uma emancipação necessária. Nestes, o homem já não consegue manter o sustento da família obrigando a mulher a participar desse mundo público, que outrora fora apenas dos homens. Contudo, não lhe foi permitido o abandono do seu mundo “particular”. Com quem ficaria a responsabilidade do lar? E a criação dos filhos? Sobre isso, Marina Colassanti (1981), diz: “Somaram as exigências ao que já era exigido, ou seja, somou-se a realização profissional ao que a mulher já tinha de responsabilidades, ficando esquecidas pelos homens que continuam exercendo o seu poder.” Como se não bastasse essa dupla jornada de trabalho, elas recebem em torno de 30 a 40% a menos que os homens, desenvolvendo o mesmo trabalho e dados recentes

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da OIT (Organização Internacional do Trabalho)82 mostram que as mulheres trabalham cinco horas a mais por semana do que os homens, considerando os afazeres domésticos. 40% das mulheres que têm filhos afirmam que deixariam o trabalho para ficar em casa cuidando deles, pois se sentem culpadas, apesar de acharem importante a realização profissional. No Brasil, apesar de haver mais mulheres do que homens cursando ensino fundamental, médio e superior, elas recebem menos que 60% do salário deles pelas mesmas atividades profissionais. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD)83 , de 2007, revela que, se nada for feito, a equiparação de salários entre homens e mulheres que executam as mesmas funções só deve acontecer daqui a oitenta e sete anos. Tais dados revelam, que todos os estereótipos que foram construídos para distinguir masculinidade e feminilidade alcançaram seu objetivo de manter a posição ordenada de seus membros, o que faz da mulher um grupo vulnerável. As conquistas femininas ainda não conseguiram libertar a mulher dos papeis que lhe foram impostos ao longo dos anos. Não há dúvidas de que para a efetividade dessas representações do ser homem e do ser mulher são necessários diversos mecanismos que servem para reproduzir o padrão de gênero. A música, nesse contexto, também pode ser um desses mecanismos, reproduzindo e produzindo os adjetivos que caracterizam e individualizam o masculino e o feminino.

3 A MÚSICA ENQUANTO AGENTE SOCIALIZADOR Analisar músicas identificando-as como agente socializador, construtor e definidor do que hoje se chama sujeito feminino, requer uma leitura crítica, uma vez que, na sociedade pós-moderna tudo é legível, desde os comportamentos, as decisões políticas, a produção imagética dos meios de comunicação até a violência em todas as suas formas. Tucker e Money (1981) expressam: [...] Qualquer que fosse a situação dos seus cromossomos, hormônios, órgãos sexuais e individualidade, o impulso deles não podia competir com as pressões sociais quando se trata de diferenciar a identidade sexual. Não há como evitar a encruzilhada da identidade sexual. É praticamente impossível qualquer senso de identidade sem identificar-se como homem ou mulher.

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Algumas mensagens musicais reproduzem o padrão do ser homem e ser mulher e como se não bastasse a condição estereotipada de sujeito inferior, submisso, fraco que vulnerabiliza o sexo feminino, encontramos ainda, fatores que maximizam e multiplicam os riscos de vitimização. Reflitamos então tais músicas, com deduções, contestações e posicionamentos que se façam necessários.

4 MULHER: INFERIOR, SUBMISSA, LIMITADA E... “DO LAR” “Miremos” nosso olhar para Mulheres de Atenas, composta por Chico Buarque e Augusto Boal, em 1976. Quando lançada, causou protesto por algumas mulheres da época que a considerou machista, contudo, Chico Buarque de Holanda em entrevista a TV Cultura, à época, esclareceu: “Elas não entenderam muito bem. Eu disse: mirem-se no exemplo daquelas mulheres que vocês vão ver o que vai dar. A coisa é exatamente ao contrário”. Considerando que vivemos em um país onde poucas pessoas têm acesso a uma educação que lhes permitam uma leitura crítica do que é veiculado pelos meios de comunicação, é compreensível que, ainda hoje, essa música seja vista como uma defesa à sujeição feminina e será sobre esse prisma que iremos considerar, uma vez que acreditamos que o processo de socialização do modelo hegemônico se dá exatamente naquelas mensagens que seriam necessárias a leitura das entrelinhas para captar o oposto. Mirem-se no exemplo/ Daquelas mulheres de Atenas/ Vivem pros seus maridos/ Orgulho e raça de Atenas/ Quando amadas se perfumam/ Se banham com leite, se arrumam/ Suas melenas/ Quando fustigadas não choram/ Se ajoelham, pedem imploram/ Mais duras penas, cadenas/ [...] E quando eles voltam, sedentos/ Querem arrancar, violentos/ Carícias plenas, obscenas.

As mulheres de Atenas representam muito bem o que a cultura endocêntrica apregoa, a figura feminina deve dedicar-se com exclusividade a casa, ao marido e aos filhos, submissas, sempre a espera do macho. Entretanto, mesmo vivendo nesse mundo restrito, privado, e sendo obediente ao marido, essas mulheres são vítimas. Os dados da Subsecretaria de Pesquisa e Opinião Pública do Senado Federal revelam que a violência mais comum sofrida pelas donas de casa é a sexual, cerca de 32%. Assim, esta é uma das características dessa cultura de inferiorização feminina, ou seja, a certeza que o homem tem de que o corpo de sua esposa ou companheira lhe pertence. Como bem observa Stuart Mill (2006), “não importa a brutalidade do tirano a que ela está unida, ele pode reivindicar seus direitos sobre ela e impor a mais baixa degradação de um ser humano, que é a de ser instrumento de uma função animal contrária às inclinações dela.”

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Sob essa ótica, também encontramos em Marina, composta em 1947, por Dorival Caymmi, essa condição de pertencimento: Marina, morena, Marina/ você se pintou/ Marina você faça tudo/ mas faça o Favor .../ Não pinte esse rosto que eu gosto/ Que eu gosto e que é só meu/ Marina, você já é bonita/ com o que Deus lhe deu/ Já me aborreci, me zanguei,/ Já não posso falar/ E quando eu me zango, Marina/ Não sei perdoar/ Eu já desculpei tanta coisa/ Você não arranjava outro igual/ Desculpe, morena, Marina/ Mas eu tô de Mal.

Na frase “Não pinte esse rosto que é só meu”, observamos um extremo sentimento de posse. “Não sei perdoar, já desculpei tanta coisa, você não arranjava outro igual”, aqui percebemos a educação que é dada aos homens, ou seja, o “macho” é superior e nessa condição é quem dita às regras e a mulher deve apenas obedecer, nesse caso específico, o personagem da música ainda sinaliza que é muito compreensivo, pois já perdoou Marina várias vezes, característica incomum aos homens. É perceptível ainda, um tipo de violência psicológica, vez que manipula a situação e transfere para a companheira toda a responsabilidade por ele ter se zangado, mesmo iniciando a frase pedindo desculpas “Desculpe, morena, Marina, mas eu tô de mal.” São esses sentimentos que permeiam o universo masculino que instigam ainda mais a violência doméstica (física, sexual e psicológica), praticada geralmente por pessoas que mantêm uma estrita relação com a mulher. Estudos indicam que o lugar menos seguro para a ela é a sua própria casa: o risco de uma mulher ser agredida em casa, pelo marido ou companheiro, é nove vezes maior do que o de sofrer alguma violência na rua. Várias culturas aprovam, toleram e chegam a justificar certas agressões, o que, somado ao medo e à impunidade, leva as vítimas a se calarem84. O mais preocupante nessa situação de violência contra as donas de casa é que elas não têm para onde voltar quando denunciam o agressor, que na maioria das vezes são seus maridos ou companheiros, e precisam enfrentá-los novamente, o que acaba por amedrontá-las, colaborando para as chamadas cifras negras.

5 MULHER: INFERIOR, SUBMISSA, LIMITADA E... SEDUTORA É comum atribuir ao sujeito feminino, herança do catecismo e misoginia católica da Idade Média, como já foi anteriormente citado, fruto do celibato clerical, o estereótipo da mulher como um ser naturalmente tentador, feiticeira, pecadora e volúvel: Tu ris, tu mens trop/ Tu pleures, tu meurs trop/ Tu as le tropique/ Dans le sang et sur la peau/ Geme de loucura e de torpor/ Já é madrugada/ Acorda, Violência Conjugal e Intrafamiliar Acesso

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acorda, acorda, acorda, acorda. Mata-me de rir/ Fala-me de amor/ Songes et mensonges/ Sei de longe e sei de cor/ Geme de prazer e de pavor/ Já é madrugada...

Em Joana Francesa, de Chico Buarque, podemos perceber essa associação da imagem feminina com a perdição, enganação “Tu ris, tu mens trop”. A mulher que tem no sangue e na alma, os vícios, os pecados “ Tu as le tropique/Dans le sang et sur la peau/ Geme de loucura e de torpor”. Nesse sentido, a mulher teria o “dom” de manipular, seduzindo-os, usando o corpo e o sexo como artifício, ela seria a corruptora dos sentimentos masculinos, utilizando os homens como fantoches, através desse “feitiço nato”. Sendo este, inclusive, o argumento por muitos utilizado para justificar atos de violência, como afirma a pesquisa realizada pelo Instituto Promundo85: “Quando apresentamos aos homens uma série de supostas justificativas para o uso de violência contra mulheres, 37,6% deles concordaram com pelo menos uma das justificativas, dentre elas, o fato da mulher se vestir de modo provocante.” Gonzaguinha, na música Avassaladora, expressa de modo evidente essa característica do modelo feminino que teria o poder de dominação, ”e o macho se solta se larga, se acaba na mão da rainha com todo prazer”, através do sexo: Avassaladora/ senta no seu colo/ lambe o pescoço/ morde a orelha/ enfia a língua/ por entre seus dentes/ tomando toda a sua boca/ ela é louca / muito louca e,/ ele adora sua mão/ apertando o que deseja/ com calor e com carinho/ ensinando o caminho / da loucura/ e acabando com / seu medo de não poder/ e o macho se solta/ se larga, se acaba na/ mão da rainha / com todo prazer/ e o macho desmonta/ no grito de gozo/ na mão da rainha/ e desmaia/ de tanto prazer.

Contudo, essa dominação, só faz parte do imaginário de compositores, uma vez que o poder socialmente legitimado reside no modelo masculino, que sentindo-se ameaçado utiliza dessa legitimação para defender a sua “honra”, sendo o ciúme apontado como a principal causa aparente da violência contra a mulher.86 Em uma demonstração clara de intolerância à frustração, ensinada desde muito cedo aos meninos, que crescem acreditando que a rejeição compromete a sua masculinidade. Quero então saber logo quem lhe telefonou/ O que disse, o que queria e o que você falou/ Só de ciúme, ciúme de você/ Ciúme de você, ciúme de você/ Se você me diz que vai sair/ Sozinha eu não deixo você ir/ Entenda

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que o meu coração/ Tem amor demais meu bem e essa é a razão/ Do meu ciúme, ciúme de você...

Na música Ciúme de você, de Luiz Ayrão, o ciúme é expressado como justificativa para o controle exercido sobre a companheira. Apresentando esse sentimento como cuidado, declaração de amor. Esse mesmo argumento é muito utillizado por criminosos feminicidas. Inúmeros são os dados referentes à violência que as mulheres sofrem nos seus lares, a cada cem mulheres que foram vítimas de homicídio, 70% deles ocorreu num momento irracional e doentio de seus próprios companheiros e a pesquisa da União das Mulheres de São Paulo, no estado, por ano, pelo menos duas mil e quinhentas mulheres são mortas vítimas de crimes passionais.87

6 MULHER: INFERIOR, SUBMISSA, LIMITADA E... POBRE Segundo Yasbek (2006): “são pobres aqueles que, de modo temporário ou permanente, não têm acesso a um mínimo de bens e recursos sendo, portanto, excluídos em graus diferenciados da riqueza social”. Sob esse prisma, podemos afirmar que o fator pobreza, vulnerabiliza muito mais mulheres do que homens, já que um em cada oito homens tem condições de chegar à posição de chefia, enquanto que a média entre as mulheres é de uma em cada quarenta. Conforme o estudo do Unifem (Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas), a desigualdade de gênero não só reduz a capacidade das mulheres pobres utilizarem o trabalho para sair da pobreza, como também afeta os aspectos não monetários da pobreza: ausência de oportunidades, opinião e segurança.88 Ela é bamba!/ Essa preta do pontal/ Cinco filhos pequenos pra criar/ Passa o dia no trampo pau a pau/ E ainda arranja um tempinho pra sambar/ Quando cai na avenida/Ela é demais/Todo mundo de olho / Ela nem aí/ Fantasia bonita/ Ela mesmo faz/ Manda todas/Não erra a mira.

Cantar a miséria é muito bonito, essa força extraída da pobreza é poético, mas na vida real as mulheres que vivem nessas condições descritas em Ela é Bamba, por Ana Carolina, são submetidas a uma gama de fatores que as expõem ao ápice da vitimização. A cor, a condição social, o sexo... No carnaval, para turista ver, “caem na avenida, elas são demais”, mas depois da Quarta-feira de Cinzas a realiade é outra, sem plumas ou paetês. Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, com base em dados coletados em 2009, revelou que as mulheres pretas e pardas são a maioria entre as vítimas de homicídio doloso, 55,2%. Tentativa de homicídio, 51%. Lesão corporal, 52,1%.

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Estupro e atentado violento ao pudor, 54%.89 No Brasil, 24% das mulheres que sofrem agressões, não se separam porque não têm como se sustentar, sendo este o principal obstáculo para romper uma relação violenta. Em dez anos, quarenta e uma mil quinhentas e trinta e duas mulheres morreram vítimas de homicídio. Das que foram assassinadas, 70% sofreram agressões domésticas, sendo as mais pobres de bairros e/ou comunidades carentes as principais vítimas desses problemas.90

6.1 MULHER: INFERIOR, SUBMISSA, LIMITADA E... RICA Vai no cabeleireiro/ No esteticista/ Malha o dia inteiro/ Pinta de artista/ Saca dinheiro/ Vai de motorista/ Com seu carro esporte/ Vai zoar na pista/ Final de semana/ Na casa de praia/Só gastando grana / Na maior gandaia/ Vai pra balada/ Dança bate estaca/ Com a sua tribo/ Até de madrugada/ Burguesinha, burguesinha...

A Burguesinha, de Seu Jorge, parece levar a vida almejada por todas: cabeleireiro, esteticista, academia, praia, grana... Nenhum tipo de preocupação ou sofrimento. Todavia, o sujeito feminino sofre por ser o que é, portanto, ao contrário do que muitos acreditam, as boas condições sociais não isentam as mulheres burguesas dos riscos de vitimização comuns a essa minoria, como observa Tânia Andrade (2007): A evidência do mundo industrializado indica, entretanto,que muitas mulheres que desfrutam de condições econômicas relativamente seguras não estão livres de vivenciar situações de violência. Em muitos casos, a garantia de seus rendimentos, de sua situação social e do direito sobre a guarda dos filhos depende da coabitação com seus próprios agressores.

Não podemos, é claro, acreditar que na mesma dimensão daquelas com baixo poder aquisitivo, porém, muitas vezes, nas mesmas proporções. No entanto, as cifras ocultas, resultado exatamente do fato de serem ricas e terem um “status” a preservar, não nos permite delimitar a real dimensão do que sofrem.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo tratou da representação da mulher ao longo da história e de como esse script é reproduzido por inúmeras letras da música popular brasileira, diarioliberdade

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disseminando ideias que tendem a vulnerabilizar ainda mais o feminino. Atentamos, através da análise de algumas dessas músicas, enquanto agentes socializadores, representações estigmatizantes de conceitos em relação a mulher, e o modo pelo qual refletem as práticas sociais em relação a formação da identidade de gênero. Constatamos que há um longo caminho a ser percorrido nessa busca por igualdade de gênero, não uma busca por uma masculinização, mas por uma humanização concreta da mulher. Explicitou, através de dados estatísticos, a dramática situação que ainda sofrem, apesar das conquistas já alcançadas, nos âmbitos social, jurídico, sexual e cultural. Não tendo ainda conseguido se livrar de toda a carga emocional e estereotipada que lhes impuseram. Constatamos que existem muitos fatores que vulnerabilizam o sujeito feminino, e, de modo algum, o presente trabalho teve a pretensão de esgotar o tema, mas apenas de levantar uma reflexão acerca de como há discrepâncias entre as evoluções de fato e de direito na sociedade e de como os estigmas sociais estão incorporados no nosso dia a dia de forma subliminar.

REFERÊNCIAS ANDRADE, Tânia Rocha. O Preço do silêncio: mulheres ricas também sofrem violência. AZEVEDO. Rodrigo Ghiringhelli. Relações de Gênero e Sistema Penal: violência e conflitualidade nos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher. Porto Alegre: Edipucas, 2011. BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1949. BIBLÍA SAGRADA. Tradução Padre Antônio Pereira de Figueiredo. Difusão Cultural do Livro. CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. Violência Doméstica. 3. ed. Salvador: Juspodivim, 2010. COLASSANTI, Marina. Mulher daqui pra frente. São Paulo: Círculo dos Livros, 1981. DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre a mulher e seus direitos. Porto Alegre:

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CAPÍTULO VIII

A ESTIGMATIZAÇÃO DO “CRIMINOSO”: ASPECTOS DIFENCIADORES QUE ATUAM NA ELEIÇÃO DOS ALVOS DO “MUNDO PENAL” Fernando Santana de Oliveira Santos Monique Santana de Oliveira Resumo: Este artigo visa a discutir a estigmatização do “criminoso”, identificando elementos de diferenciação social que contribuem para a “eleição” dos principais alvos do mundo penal: as populações pobres socialmente marginalizadas e que sofrem mais de perto a violência estruturante praticada pelo poder estatal. A construção do estigma do criminoso e a lógica real de funcionamento da repressão penal tornam-se, pois, faces de um mesmo problema que confluem para a marginalização da pobreza. Palavras-Chave: Estigma; mundo penal; pobreza. SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. O ESTIGMA E O CRIME: REFLEXÕES TEÓRICAS; 3. O “LUGAR DO CRIME”: A ESTIGMATIZAÇÃO DO “CRIMINOSO” A PARTIR DO SEU HABITAT; 4. A PENALIZAÇÃO E A CONSEQUENTE ESTIGMATIZAÇÃO DA MISÉRIA; 5. O ESPAÇO DA PRISÃO E A DUPLA ESTIGMATIZAÇÃO DO CRIMINOSO; 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.

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1 INTRODUÇÃO Prognatismo alveolar, zigomas grandes e salientes, mandíbulas grandes, sinos frontais muito grandes, arcadas orbitais salientes, queixo grande, quadrado e reentrado, orelhas com tubérculos de Darwin. Eis alguns dos caracteres somáticos apontados por Cesare Lombroso no século XIX, em seus estudos, para identificar o criminoso. Esses e outros caracteres permitiam-no diferenciar os indivíduos propensos ao crime dos demais. A teoria lombrosiana fora cientificamente refutada, desconstruindo, assim, a ideia de “criminoso” nato. No entanto, a sociedade pós-moderna capitalista necessita de elementos diferenciadores que a mantenha separada entre dominadores e dominados, entre fortes e fracos, capazes e incapazes. A hegemonia dos “donos do poder” só é assegurada porque existem camadas submissas, aptas para serem exploradas. Essa lógica aplica-se, perfeitamente, ao mundo penal91, de modo que apenas para alguns o Estado repressor faz-se presente. Não mais na ordem biológica, ainda que o fenótipo de cor possa se configurar em agravante da segregação, mas, sobretudo, na ordem social, funda-se a diferenciação entre aqueles que integrarão o sistema punitivo e aqueles que observarão, de longe, a marginalização da pobreza, só intervindo para mantê-la assente. Estabelece-se, dessa forma, uma relação entre pobreza e criminalidade, como se o status social fosse um caractere determinante à prática criminosa. O estigma de criminoso acompanha a pobreza, fazendo crer que os economicamente menos favorecidos são mais propensos ao crime. De fato, o sistema prisional brasileiro é composto, majoritariamente, pelas camadas pobres. Entretanto, isso só confirma a ineficiência do Estado para cumprir os objetivos aos quais se destina: garantir o bem comum e criar condições de vida digna. Não pode ser por acaso o fato de que dos quase meio milhão de encarcerados no Brasil, 365.367 detentos não completaram nem o ensino básico, representando os alvos maciçamente eleitos pelo sistema para compor o mundo penal: a população pobre, posta à margem da sociedade, que não tem acesso a melhores condições de vida.92 A teoria do labelling approach, desenvolvida nos Estados Unidos em meados do século passado, surgiu para demonstrar que os chamados “criminosos” são, na

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verdade, seres “inventados” pelo sistema penal, aos quais foi atribuído o rótulo93. Desde logo, identifica-se o personagem favorito do sistema punitivo brasileiro: o pobre feito criminoso, socialmente etiquetado. Escolhem-se, na pobreza, as vítimas de um sistema cruel que, como resposta para as condições de miserabilidade de uma grande parcela da população, possui um Estado Penal, eficazmente organizado quando se trata de reprimir.

2 O ESTIGMA E O CRIME: REFLEXÕES TEÓRICAS Erving Goffman (1980) conceitua “estigma” como a situação do individuo que está inabilitado à aceitação plena. Trata-se de um termo criado na Grécia para se referir a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status social de quem os apresentava. Eram sinais físicos, feitos para servirem de traços distintivos de alguns (inferiorizados) em relação aos outros no seio social – marcas com cortes e fogo avisavam que o portador era um escravo, criminoso ou traidor. Contemporaneamente, esses traços distintivos podem ter alterado sua dinâmica, mas ainda se fazem presentes na sociedade. Não deixaram de existir os inferiorizados, aqueles considerados “menores” quando comparados aos considerados “normais” (expressão utilizada por Goffman). Embora não sejam mais comuns os traços corporais marcados a fogo, o fato é que há uma diversidade de grupos que são hostilizados por uma sociedade que distingue, escolhe, diferencia e inferioriza os que não são considerados como “aptos” a uma “vida social plena”.94 Goffman (1980) menciona três diferentes tipos de estigmas: em primeiro lugar, aqueles diretamente relacionadas ao corpo, como as deformidades físicas; em segundo, as culpas de caráter individual, aquelas relacionadas à vontade fraca, crenças falsas e rígidas, desonestidades; e em terceiro, os estigmas tribais de raça, nação e religião que podem “contaminar” igualmente todos os membros de uma família. De acordo com o autor, estes são os principais traços distintivos (negativos) entre os membros da sociedade e que, em alguns casos, esses tipos de estigma podem aparecer de forma combinada, de modo que um não isole o outro. Os “criminosos” se inserem na categoria da culpa pelo “caráter individual”; o crime que cometem é visto, muitas vezes, de maneira isolada e simplista. Dito isto, afirma-se a necessidade de apresentar as distinções acerca das concepções de crime labelling approach labelling

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defendidas pela Criminologia e pelo Direito Penal. De logo, adianta-se que, se para a primeira, o crime é visto como um problema social, o segundo trata-o tecnicamente: é um ato ilícito que deve ser punido. O Direito Penal considera delito, conforme Molina e Gomes: “toda conduta penal prevista na lei penal e somente a que a lei penal castiga” (2008, p. 66). Já a referência principal para a Criminologia, segundo os mesmo autores (2008, p. 67) é o conceito jurídico-penal: Mas nada mais que isso, porque o formalismo e o normativismo jurídico resultam incompatíveis com as exigências metodológicas de uma ciência empírica como a Criminologia. [...] se esta tivesse que aceitar as definições legais de delito, careceria de autonomia cientifica, convertendo-se em um mero instrumento auxiliar do sistema penal.

A Criminologia trata de aspectos relacionados ao crime que são irrelevantes para o Direito Penal ou que não são por ele alcançados. A Criminologia, que é uma ciência empírica, ocupa-se dos “porquês” do crime, com os vários contextos sociais no qual se insere sem isolar o fato delituoso e o seu autor como o faz o Direito Penal. Aquela, preocupa-se com as origens, as formas de prevenção e de intervenção no seio social para atacar as “estruturas”, enquanto este pune o fato e o infrator, “independentemente” de todas essas questões das quais se ocupam a Criminologia. A função desta é analisar, entender, refletir, problematizar. O Direito penal, por sua vez, dentre outras, tem a função, precípua, de punir. Segundo Molina e Gomes (2008, p. 69): A criminologia [...] deve contemplar o delito não só como comportamento individual, mas, sobretudo, como problema social e comunitário, entendendo esta categoria refletida nas ciências sociais de acordo com sua acepção original, com toda sua carga de enigma e relativismo.

E a sociedade? Como trata os diversos tipos de crimes e de “criminosos”? Como são encarados aqueles que foram condenados a cumprir penas? Por que alguns indivíduos são acometidos pelo estigma do crime e outros não? Ressaltando alguns dos aspectos que resultam na construção do estigma do criminoso, buscar-se-á mais à frente levantar algumas dessas questões com objetivo ainda de demonstrar o trato simplista que comumente é dado ao problema social do crime, em especial, na realidade brasileira.

3 O “LUGAR DO CRIME”: A ESTIGMATIZAÇÃO DO “CRIMINOSO” A PARTIR DE SEU HABITAT O “lugar do crime”, o espaço por excelência da desordem social, é associado às zonas habitadas pelas camadas pobres da população, os territórios da segregação e da

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marginalização, vitimados pela violência estruturante, sobretudo, nos espaços urbanos. No imaginário social, é lá que estão os “inimigos eleitos” da tão sonhada paz social: os criminosos. Forja-se, dessa forma, uma relação íntima entre a pobreza e o mundo do crime, como se houvesse entre eles uma relação sine qua non de causa e efeito. São nos espaços nos quais o Estado mais se omite que “nascem os criminosos”. Exatamente, nos espaços socialmente esquecidos pela administração pública, cuja infraestrutura precária em nada acolhe e conforta seus moradores, são produzidos, em sua maioria, os sujeitos marginalizados que o sistema prisional recebe, agride e oprime. Lá, nascem e, para lá, retornam, perpassando o círculo ininterrupto de produção de ilegalidades formado pelo trinômio prisão, polícia e delinquência, apontado por Michel Foucault (1987). À vigilância policial cumpre retirar desses espaços e fornecer à prisão os infratores que esta transforma em delinquentes, devolvendo-os ao seu habitat ainda mais estigmatizados e marginalizados que antes. O ciclo continua com esses “produtos” da prisão que se tornam, outra vez, alvos potenciais da criminalidade, retornando, geralmente, aos intramuros do cárcere. Eis a lógica do sistema. A estigmatização territorial inclui-se, para Loïc Wacquant, na terceira espécie de estigma identificada por Goffman, os estigmas tribais de raça, nação e religião, “que podem ser transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos os membros de uma família” (2004, p. 07). Segundo Wacquant, diferente dos estigmas de raça, nação e religião, o estigma territorial pode ser atenuado com a mobilidade geográfica95. Infelizmente, tal mudança, em uma realidade como a brasileira, é quase improvável. O etiquetamento dos bairros e comunidades contribui para o etiquetamento do criminoso. O lugar de onde o indivíduo provém é percebido como um indicativo de sua condição social, um identificador daqueles considerados mais propensos ao crime. O território estigmatizado é utilizado para desqualificar seus indivíduos e privá-los de direitos e liberdades que deveriam ser estendidos a todos. Não são apenas esquecidos pelas políticas públicas, privados de educação, saúde de qualidade e saneamento básico, os moradores desses espaços são também associados ao mundo do crime, tendo que conviver com esse estigma mesmo que nunca tenham praticado qualquer delito. Não raro, ouve-se nos noticiários relatos de ações violentas como a que, em maio de 2010, vitimou Hélio Barreira Ribeiro, morador do Morro do Andaraí, no Rio de Janeiro, atingido pelas costas por um tiro de fuzil disparado por um soldado do Bope, que alegou ter confundido a furadeira que ele carregava com uma metralhadora. Hélio pertencia a um desses territórios estigmatizados e este fato, por si mesmo, já o tornava um suspeito; qualquer deslize ou comportamento incomum resultaria para ele no rótulo

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de potencial criminoso. Nesse sentido, o crime relaciona-se com a estruturação da própria sociedade e a distribuição dos indivíduos em camadas sociais distintas. Isso não significa que pobres possuem maior predisposição para o crime que os ricos; o fato é que os primeiros, em proporção maior, estão sujeitos à ação repressiva do Estado, e, socialmente esquecidos, são estigmatizados e associados ao mundo do crime, enquanto as camadas favorecidas galgam melhores condições de vida e, em proporção inversa, isentam-se da atuação repressora do sistema penal. O estigma territorial aprofunda ainda mais o fosso social, isolando os sujeitos responsabilizados pelo mal-estar da sociedade do resto da população. Nos dizeres de Bourdier (1993, p. 261): O bairro estigmatizado degrada simbolicamente os que o habitam e que, por sua vez, o degradam simbolicamente, sendo que, privados dos trunfos necessários para participar nos vários jogos sociais, apenas partilham a sua comum excomunhão. A reunião num só local de uma população, homogênea na privação, tem também como efeito redobrar a privação.

Diferenciados, os residentes desses lugares são inferiorizados, veem a possibilidade de acessão social minimizada e a eles não são oferecidas as mesmas oportunidades das populações que os circundam. Morar em um território estigmatizado significa sentir em dobro os efeitos de um sistema dirigido por um Estado omisso que trata a miséria com repressão penal.

4 A PENALIZAÇÃO E A CONSEQUENTE ESTIGMATIZAÇÃO DA MISÉRIA Em As Prisões da Miséria, Loic Wacquant (2001) discute acerca do tratamento penal da miséria. Enquanto se glorifica o Estado Penal, nos diversos lugares do mundo, há o grande enfraquecimento do Estado Social: nisso reside o grande paradoxo da execução penal. A miséria passa a ser penalizada e os problemas socioeconômicos convertidos na superlotação das prisões. O “Mais Estado” penal é fortalecido pela redução do seu papel social. Basta pensar no grande “público” das prisões, nos grandes “alvos” da violência policial para que tal entendimento seja confirmado. Punir os “distúrbios”, diz Wacquant, parece afastar do Estado suas responsabilidades e fazer com que recaia a culpa sobre os habitantes das “zonas incivilizadas”. Inimigos são eleitos, no seio social, para que o Estado se retraia “tranquilamente”. E é evidente que essa culpa só poderia atingir os mais fracos. Além de penalizada, a miséria é também estigmatizada. Os vários rótulos

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sociais de cunho negativo são direcionados, na grande maioria das vezes, aos pobres; para aqueles, cuja ação estatal só é “eficaz” para punir. Políticas públicas para melhorar a qualidade de vida das pessoas são inócuas, passageiras e buscam, na maioria das vezes, promoção pessoal principalmente no campo político. Conforme lembra Wacquant (2001), inexiste relação entre índices de criminalidade e de encarceramento. A pena de reclusão acaba servindo para mascarar alguns “índices” sociais, já que os mais penalizados socialmente – desempregados, analfabetos, miseráveis – são também os mais penalizados juridicamente. Isso faz com que os níveis de desemprego, analfabetismo e de miséria “diminuam”. Não por acaso existem pessoas que são “preferidas” pelo sistema penal. Na verdade, o sistema penal é direcionado para uma classe específica de pessoas: aquelas que já são marginalizadas socialmente é que são seus maiores alvos. Só acreditando em uma correlação inequívoca entre crime e pobreza justificaria o fato de haver uma punição quase que exclusiva dos mais pobres e fragilizados socialmente. Não há estigma quanto aqueles que desfrutam de poder. Mesmo que sejam criminosos, não há quanto a eles nenhum tipo de diferenciação social de cunho negativo. Isso porque o poder econômico de que desfrutam (ainda que indevido) mascara seus atos. Na triste realidade brasileira, político corrupto desfruta de privilégios. Quando os escândalos políticos de roubo do dinheiro público caem na mídia, a população assiste dos sofás das suas casas e não cria quanto a eles nenhum tipo de revolta. Se a mídia silenciar por um mês, ninguém sabe mais nem o nome do “bandido de colarinho branco”. Corrupção, no Brasil, não é estigmatizada como crime. O conceito sociológico de “delito”, como desvio de comportamento quanto as expectativas da sociedade em dado momento, suscita uma indagação: será que as expectativas dos brasileiros quanto aos políticos não está mesmo satisfeita? Parece que as pessoas enxergam a corrupção como algo “normal” e não parece haver nenhum tipo de desvio comportamental daqueles que se corrompem em qualquer espaço de poder. Atos como pagar propina a policial para se esquivar da multa por infração de trânsito tornam-se condutas cotidianas da população. No entanto, quando se trata de um traficante, morador da favela, muda-se o posicionamento: quanto a essas pessoas há a total estigmatização. Os considerados, de fato, bandidos, criminosos, são acometidos pelo poder repressor do Estado, que é revelado, sobretudo, por meio de práticas arbitrárias empregadas pela polícia. Uma análise profunda do sistema demonstra que a existência desses personagens “eleitos” como inimigos faz parte do “jogo”. O grande fracasso do sistema penal está, exatamente, na tentativa de resolver as consequências, sem atacar suas causas. O que é muito mais complexo do que bater em “maconheiro” e torturar “favelado” para “pegar” traficante. Decerto, não será a repressão que solucionará os problemas sociais.

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A estigmatização não é quanto ao crime propriamente dito, quanto ao crime característico desse meio social já negligenciado e escolhido, por ser mais fraco, para ser o alvo principal da “Justiça Penal”. Os olhos estão bem mais abertos para a violência individual, para o tráfico nas favelas, os roubos nas esquinas, os homicídios cotidianos; essa violência que atinge alguns diretamente e outros de maneira mais velada, alimentando o sentimento de medo que cresce a cada dia. Em sentido oposto, vedam-se os olhos para a gênese de tudo isso, ou seja, a violência que parte do Estado quando este deixa de cumprir seu papel social, mascarando sua negligência e, ainda, fazendo acreditar que os maiores vilões são realmente traficantes, homicidas, ladrões... Há, no Brasil, não só a penalização da miséria, a qual se refere Wacquant (2001), mas também e, como consequência, a sua estigmatização. Sendo assim, as pessoas mais pobres e, consequentemente, mais fracas socialmente são mais reprimidas pelo Estado Penal; além disso, há a total omissão do Estado Social, o que acaba privando essas pessoas de maiores oportunidades sociais, pois o desprestigio social com o qual tem que viver só é “remediado” com o total “prestígio” que desfrutam no âmbito penal.

5 O ESPAÇO DA PRISÃO E A DUPLA ESTIGMATIZAÇÃO DO CRIMINOSO Retirados das zonas mais pobres habitadas pela população, os “criminosos eleitos” são trancados nas prisões, sob a alegação de que lá pagarão pela “sua dívida perante a sociedade” para depois retornar ao seio social. Um discurso que impera no âmbito penal, mas que discrepa por completo da realidade. A prisão tem um caráter sombrio. Ela pune de “portas fechadas”. Nisso, há completa ruptura em relação aos suplícios e às várias outras penas tão criticadas posteriormente e “substituídas” pelo encarceramento. No entanto, conforme lembra Foucault (1987), ela não foi pensada como a “pena por excelência” pelos reformadores do século XVIII. As penas anteriores eram públicas; a prisão age silenciosamente. Isso dá espaço para que a própria ilicitude das técnicas punitivas seja silenciada. O objetivo primordial da criação das prisões não foi fazer parte apenas do aparelho judiciário e penal, como se tivesse nascido em seu âmago. A noção contemporânea que temos de “prisões” faz com que a relação com o aparelho judiciário seja imediata. Mas, Foucault (1987) argumenta que ela nasceu fora desse contexto. Na passagem dos séculos XVIII e XIX a lei tornou o poder de punir uma função social, com uma grande pretensão de igualdade, segundo o autor (1987, p. 195): “exercida da mesma maneira sobre todos os seus membros e na qual cada um deles é igualmente representado”. É sabido que essa pretensão inicial foi deturpada ao longo dos anos, mas, foi a própria detenção que introduziu mecanismos de dominação que se solidificaram com

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o tempo. A prisão acabou se “adequando” perfeitamente aos mecanismos da sociedade. Ainda com base na obra de Michel Foucault (1987), aponta-se uma explicação para a detenção ter se tornado a “pena por excelência”: o valor da liberdade. Independentemente das diferenças sociais entre os indivíduos, este é um bem estimado por todos e, em tese, retirá-lo, quando o indivíduo descumpre o regramento social, faz da prisão uma punição com pretensões igualitárias – afinal, retira-se o mesmo bem “indiscriminadamente” de “todos”. No entanto, ontem e hoje, os bens econômicos se sobrepõem aos valores sociais. As penas se diferenciam na medida da “força” social daqueles que devem ser punidos. A liberdade passa a ter também um valor econômico. Ainda por esse motivo, a prisão nunca atingiu sua pretensão de “igualdade”. Simultaneamente, pretendia-se a “transformação técnica” dos indivíduos, que deveriam qualificar suas ações. Haveria uma reeducação para preparar os indivíduos para o retorno à sociedade. No entanto, na prática, essa transformação adquire uma conotação contrária para a maioria dos que são encarcerados. A reincidência é fabricada pela própria prisão. Nesse particular, ao invés de “ressocializar” os indivíduos, ela só faz afastá-los ainda mais das regras da sociedade, fazendo com que, em algum momento, o detento volte para o cárcere. Muitas vezes, ele retorna para o meio social com comportamentos ainda mais reprimíveis do que aqueles que o levaram pela primeira vez à prisão. Nos intramuros das prisões, criam-se parcerias, cumplicidades, que sem nenhuma dúvida, serão reforçadas lá fora. Já que, ao sair dela não estarão libertos da vigilância policial e precisarão carregar inúmeras consequências do cárcere. Não há isolamento que impeça o relacionamento horizontal entre os detentos dentro e fora da prisão. As prisões, dentro do contexto geral de uma ordem jurídica que não hesita em promover desigualdades sociais, não estariam fracassando, mas, ao contrário, produzindo um tipo de sujeito político e economicamente menos perigoso, isto é, o delinquente. A manutenção da ordem social posta, portanto, tem no sistema prisional um importante aliado. A pena da prisão não serviria apenas para reprimir o condenado, mas, sobretudo, seria um instrumento de dominação a serviço de uma classe, utilizado para “diferenciar” esses indivíduos mesmo depois de “pagarem” a pena (nesse caso, com marcações como os antigos passaportes dos degredados e as folhas de antecedentes criminais). Da prisão resultaria um indivíduo duplamente estigmatizado, que, nos extramuros, terá que sentir o peso da experiência da prisão. O estigma de criminoso parece aderir à pele e, mesmo quando o indivíduo “paga sua dívida social”, tem de conviver com as dificuldades da chamada

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“ressocialização”. A prisão minimiza a possibilidade de acessão social de seus egressos, furta-lhes a possibilidade de reconstruir uma vida dignamente, criando indivíduos ainda mais vulneráveis ao “mundo do crime” Se antes era apenas um potencial criminoso em face do estigma social a ele imposto em função das suas condições materiais de existência, após cárcere, o indivíduo torna-se outra vez alvo do mundo penal, agora marcado pelo estigma da prisão que com ele seguirá ao longo na vida. O “novo” estigma será sentido em atividades comuns do cotidiano, tais como procurar emprego, sofrer uma abordagem policial de rotina e mesmo quando necessitar solicitar a emissão de um documento de identificação. A prisão fabrica e “devolve” à sociedade um potencial reincidente, cujos olhos do Estado repressor se voltam com maior acuidade. Além de não lhe oportunizar condições de um retorno digno à sociedade, o mundo penal cria mecanismos que intensificam a vigilância sobre ele. Torna-os ainda mais aptos para compor outra vez as estatísticas que o Estado utiliza, arbitrariamente, como prova de que tem solucionado a violência, isto é, o aumento do número de encarcerados, como se houvesse uma correlação entre repressão e solução dos problemas sociais.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS O sentido da estigmatização do “criminoso” ganha suporte dentro da própria lógica de estruturação do sistema penal. Conforme lembra Wacquant (2001), a ampliação do sistema penal não se processou sozinha, mas, com ela, desenvolveu-se a política neoliberal e reduziram-se as políticas públicas. Da articulação desses elementos difundiu-se pelo mundo um modelo políticoeconômico que tende a marginalizar a pobreza, “higienizar” a sociedade do mal causado pelas camadas “indesejáveis” da população, que só causam entraves à maximização do potencial econômico e, somente, atrás dos muros da prisão podem ser aproveitados para a produção de capital. A concatenação desses três elementos revela uma lógica cruel que desemboca na marginalização da pobreza. Ignora-se, pois, os problemas mais críticos da sociedade e busca-se resolvê-los a partir dos mecanismos violentos do sistema penal. Não pode ser à toa que a parcela da população que mais sofre a ação repressiva do Estado seja, justamente, as camadas mais pobres, compostas por aqueles que carregam consigo o estigma de potencial criminoso, enquanto os chamados “criminosos de colarinhobranco”, os de posição social mais abastada, isentam-se facilmente da violência estatal. A difusão do estigma do crime no imaginário social, a estruturação do sistema prisional e seu consequente fracasso, em referência à solução para as mazelas sociais, ganham sentido lógico à medida que, para o Estado atual, livrar-se do incômodo provocado pelos pobres, delinquentes e todos os outros grupos socialmente indesejáveis

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torna-se mais fácil e prático que programar políticas públicas efetivas. As questões acima levantadas permitem, pois, afirmar que o estigma é o recurso, dentro da lógica do mundo penal, utilizado para selecionar suas vítimas e diferenciá-los dos “socialmente desejáveis”, marginalizando a pobreza e dando a ela um tratamento mais penal do que social.

REFERÊNCIAS FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987. GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Brasil: Zahar editores, 1980. LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2011. MEROLA, Edilane. Policial que matou homem que segurava furadeira será indiciado por homicídio doloso. Disponível em: < http://oglobo.globno.com/rio// mat/2010/05/19/policial-que-matou-homem-que-segurava-furadeira-sera-indiciadopor-homicidio-doloso-916629100.asp>. Acesso em: 24 set. 2011. MOLINA, Antônio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flavio. Criminologia: Introdução a seus fundamentos teóricos. Introdução as bases criminológicas da Lei 9099/95 – Lei dos Juizados Especiais Criminais. 6. ed. São Paulo: RT, 2008. PUGLIESE, Urbano Félix. Uma Nova visão do Principio da Intervenção Mínima no Direito Penal. Salvador: Òmnira, 2011. SELL, Sandro César. A etiqueta do crime: considerações sobre o “labelling approach”. Disponível em: . Acesso em: 08 set. 2011. WACQUANT, Loïc. A estigmatização territorial na idade da marginalidade avançada. Tradução Regina Guimarães. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2011.

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WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

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CAPÍTULO IX

A INFLUÊNCIA MIDIÁTICA NO DISCURSO CRIMINOLÓGICO Géssica Lorena Alves de Souza Paloma Oliveira de Jesus Jambeiro Resumo: Este artigo objetiva explicitar a influencia que os veículos de comunicação exercem sobre o discurso criminológico, vez que a mídia assume papel de imenso destaque no cotidiano das pessoas, interferindo nos diversos aspectos de suas vidas. Contudo, a influência midiática, na grande maioria das vezes, inibe o senso crítico do receptor, transmitindo-lhe mensagens de cunho informativo, dotadas de parcialidade e interesses implícitos. Palavras-Chave: Crime; mídia; alienação. SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. A MÍDIA QUE SE VENDE; 3. A INFLUÊNCIA MIDIÁTICA NO CAMPO JURÍDICO; 4. DISCURSO CRIMINOLÓGICO MIDIÁTICO; 5. TRIBUNAL MIDIÁTICO; 6. A MÍDIA QUE JULGA E OS CASO DE REPERCUSSÃO SOCIAL; 7. O SENSO COMUM E O DISCURSO MIDIÁTICO; 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.

No ar que se respira, nos gestos mais banais em regras, mandamentos, julgamentos, tribunais, na vitória do mais forte, na derrota dos iguais a violência travestida faz seu trottoir, [...] Na mídia, na moda, nas farmácias, a violência travestida faz seu trottoir. Humberto Gessinger96

A Violência travestida faz seu trottoir.

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1 INTRODUÇÃO Os veículos de comunicação de massa, sobretudo a televisão, alcançam quase todos os segmentos sociais no país e assumem papel importante na vida das pessoas, mantendo-as informadas em tempo real sobre os acontecimentos locais e mundiais ou ainda oferecendo-as entretenimento. A ideia de mídia como veículo de comunicação e principalmente como meio mais rápido de se adquirir hoje informação, infelizmente, não passa de utopia aos olhos da maioria dos “críticos”, que entendem que a mesma, na prática, não oferece credibilidade e valor à sua principal finalidade. A descredibilidade do discurso midiático se dá, entre outros fatores, pelo seu total envolvimento com os interesses das classes dominante, sendo a mídia assim, um veículo de poder capaz de alienar pelo discurso Silva (p.02) afirma que a mídia está “fazendo um grande número de pessoas enxergar o mundo por suas lentes, seus vieses”, principalmente as pessoas com baixo nível de escolaridade. Atualmente, os veículos de comunicação discutem sobre os mais variados assuntos, nas empresas televisivas esses temas são distribuídos em uma programação cuidadosamente planejada. A disposição desses horários nada mais é do que uma jogada de mestre no jogo de alienação, cada programa busca alcançar um público específico. Deste modo, abordam temas que possam interessar tal alvo, esse cálculo fica explícito quando observamos a programação dos telejornais. Dessa forma, identificamos, tranquilamente, que são sempre nos horários em que a maioria dos adultos estão provavelmente, com “tempo disponível” para assistir TV, ou seja, sempre nas primeiras horas da manhã, no intervalo do meio dia e a noite. Com essa precisão, os canais televisivos conseguem fisgar todos os estilos de telespectadores, trazendo para eles informação e entretenimento. O planejamento do espaço desses programas é perspicaz, pois como sabido o lucro desses canais televisivos depende do sucesso da programação, que só pode ser conquistado com audiência. De acordo com dados do Instituto Marplan Brasil, para grande maioria da população os telejornais são o único meio pelo qual elas têm acesso à informação do que se passa no país e no mundo. Essa informação trouxe muita preocupação haja vista, que as polêmicas criminais vêm dominando praticamente todos os jornais e telejornais e consequentemente dificultando o senso crítico dessas pessoas na compreensão da natureza criminal. Nilo Batista (p.03), tratando do tema aponta uma das características da ideologia midiática:

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O novo credo criminológico da mídia tem seu núcleo irradiador na própria idéia de pena: antes de mais nada, crêem na pena como rito sagrado de solução de conflitos.

No ano de 2009, o STF julgou inconstitucional a Lei de Imprensa (Lei n. 5.520/67) instituída em período ditatorial, vez que a mesma tolhia a liberdade de expressão dos meios de comunicação. Ficou entendido, por maioria, que a dignidade da pessoa humana não se contrapõe ao direito à manifestação de pensamento. O Ministro Menezes Direito defendeu a autonomia da imprensa, ressaltando a importância de seu papel na sociedade, já que a população depende dos meios massivos de comunicação para se manter atualizada quanto aos acontecimentos políticos do país. Não obstante, o ministro Joaquim Barbosa, de maneira louvável, opinou pela revogação parcial da referida Lei, asseverando a importância de uma imprensa que não seja somente livre, mas dotada de pluralidade de ideologias, em contraposição à restrição midiática à alianças de poder, fato que ofende patentemente a democracia.

2 A MÍDIA QUE SE VENDE A mídia televisiva está muito longe de ser só um veículo de informação livre de deturpações e de interesses implícitos. Isso se dá devido ao forte vínculo que prende o meio midiático aos detentores de poder político, econômico ou ainda religioso. Para se manter de pé a mídia deve acima de tudo, nos dizeres de Gessinger: “professar a fé de quem patrocina’’. Hélio Paz (2008, p. 01) indica os principais patrocinadores midiáticos: São eles os bancos, o agronegócio de grande porte [...], as multinacionais de alimentos artificiais repletos de gordura trans, a indústria automobilística, a indústria de produtos de higiene e limpeza (cujos resíduos químicos detonam o meio ambiente), a indústria de aparelhos eletrônicos, as indústrias de tabaco e álcool (drogas lícitas) e as lojas de departamentos.

Esses patrocinadores, representados pelas classes dominantes, necessitam do assentimento ou apoio social para que possam agir em defesa de seus negócios da maneira que lhes for mais conveniente, como assevera David Netto (2002, p. 188):

Tais classes que exercem pressão sobre o Estado, podem, e fazem, uso dos meios de comunicação para estender os seus interesses a todos da nação, fazendo parecer uma opinião classista se tornar homogênea.

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Nesse ponto é que se percebe o porquê dessa absurda violência ideológica que a mídia vendida tenta inserir na sociedade, espalhando todo um discurso alienador ao longo da programação diária, através dos telejornais, novelas, comerciais, e programas de suposto cunho educativo ou científico, tornando inexistente o caráter de imparcialidade. Em seu livro Showrnalismo: a notícia como espetáculo, José Arbex Junior (2001, p. 58) afirma:

A televisão é um pólo ativo do processo de seleção e divulgação das notícias e também dos comentários e interpretações que delas são feitas. Ela não é mera ‘observadora’ ou ‘repórter’: tem o poder de inferir nos acontecimentos.

Esse caráter comercial da mídia televisiva serve para comprovar que a mesma nem sempre (ou quase nunca) está preocupada com as questões sociais, uma vez que mostra ter um total desrespeito pelos telespectadores que em sua grande maioria acreditam com total convicção na seriedade das informações transferidas pela programação das emissoras de televisão. E se para agradar o patrocinador vale tudo, então porque não informar erradamente a população, opinando em assuntos que não se tem nenhum conhecimento técnico ou ainda acusando pessoas sem nenhuma prova concreta, utilizando-se do sensacionalismo para despertar o ódio e a revolta da sociedade, anulando dela o caráter racional e a capacidade de discernir e avaliar? É nesse ponto que se insere a influência negativa do campo midiático no meio jurídico.

3 A INFLUÊNCIA MIDIÁTICA NO CAMPO JURÍDICO Como assume influência nos mais variados temas discutidos em sociedade, a mídia não tem agido de maneira distinta no tangente ao âmbito jurídico. O meio de comunicação televisivo opina nos poderes legislativo e judiciário, utilizando-se abusivamente de discursos sensacionalistas, defendendo exclusivamente, mais uma vez, os interesses das classes dominantes que se sentem ameaçadas pelos marginalizados ou advindos de classes sociais menos abastadas. Assim, a mídia percebe a necessidade de criar nas mentes das pessoas a ideia de terror e perigo sempre iminente, é preciso que a população se sinta apavorada, então criam-se estatísticas que indicam o aumento estarrecedor da violência, empregandose juntamente uma superevidência no tocante aos delitos corriqueiros ocorridos no país (sobretudo nos crimes contra o patrimônio). Daí a necessidade de despertar na população um sentimento de comoção extrema, a mídia mexe, covardemente com o psicológico das pessoas. Hellius Keunecke (2009, p.01) assevera que:

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A forte influência da mídia  sobre o legislador acaba por determinar a criação de normas desproporcionais ou elaboradas às pressas, tudo com o fito de aplacar a sensação de insegurança e impunidade que paira sobre o seio da sociedade.

Torna-se válido frisar uma vez mais que o sentimento de horror e temor profundo em relação à violência, ou melhor, em relação aos pobres, é proveniente das elites do país que são amplamente favoráveis a uma política de enrijecimento da pena aliada à prática da “tolerância zero”, a mesma definida por LoïcWacquant, que dá passe livre às autoridades competentes para que as mesmas possam“[...] perseguir agressivamente a pequena delinquência e reprimir os mendigos e os sem-teto nos bairros deserdados.” Nota-se assim um caráter de perseguição da mídia em relação às vítimas das mazelas sociais, percebendo-se, por exemplo, tamanha hipocrisia no que concerne ao slogan “Responsabilidade social: a gente vê por aqui”, pertencente à Rede Globo. O movimento “Cansei” ocorrido no ano de 2007, encabeçado pela elite paulista, representada por famosos foi mais um meio encontrado pela grande mídia de pressionar as autoridades estatais a tomarem medidas que deem segurança e melhores condições de vida à “toda” a nação. Na edição de número 126, do mês de setembro de 2007, a Revista Caros Amigos tece críticas ao caráter ridículo, elitista e alienador do movimento, e houve de acordo com a matéria feita pelo jornalista João de Barros (2007, p.29), quem reagisse ao movimento:

A Central Única dos Trabalhadores esboçou lançar o ‘Cansamos’, para se contrapor ao ‘Cansei’, invocando temas do meio sindical- ‘Cansamos de trabalho escravo, da sonegação de impostos, da mídia que não aborda os movimentos sociais e criminaliza os movimentos populares’. Até o exgovernador paulista Cláudio Lembo, do DEM, manifestou-se com ironia: ‘Cansei é um termo muito usado por dondocas enfadadas em algum momento das vidas enfadonhas que vivem. É um segmento da elite branca.

4 DISCURSO CRIMINOLÓGICO MIDIÁTICO Numa sociedade capitalista, todos os meios que favoreçam o capital são cercados pelo interesse político. O universo midiático é mais uma das facetas da era capitalista, pois o mesmo possui como base a venda de marcas e ideologias. Os patrocinadores que divulgam suas marcas através das propagandas, apresentam importância lucrativa secundária para o sustento dos meios de comunicação, as fontes principais, são as ideologias transmitidas, pois as mesmas representam a vontade e interesse das classes dominantes. Na prática a mídia explora o campo criminal, ao passo que esse possui “importância” e correspondem as exigências editorias, ou seja, essas matérias garantem ibope ao mesmo tempo em que estigmatizam grupos, agentes ou classes sociais envolvidas no delito. Na prática, percebe-se, segundo Wolf apud Budó (2006, p. 08) que: “quanto mais negativo, nas suas conseqüências é um acontecimento, mais probabilidades tem de

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se transformar em notícia”. Segundo afirmações de Rondelli, os veículos de comunicação, abordam os acontecimentos criminais como se os mesmos fossem diretamente relacionados à pobreza. Diante dessas informações, a maioria dos telespectadores passa a estigmatizar os vulneráveis, identificando na realidade social desses grupos a origem para maioria dos crimes e violência. Nos dizeres de Brige, Vieira e Alves (p. 01): Os jornalistas, políticos e outros formadores de opinião fomentam o medo em relação a determinados grupos sociais, tanto por aquilo que defendem como por aquilo que não divulgam. Os veículos de comunicação, na busca pelo maior índice do ibope, aumentaram seus investimentos na reconstrução dos fatos criminais ao passo que esse, é um mecanismo simples para conseguir audiência e infiltrar o pânico dentro da sociedade. O programa Linha Direta é um exemplo desse sensacionalismo. Diante desse contexto, no qual se afirma que a pobreza é responsável pela criminalidade, a mídia não necessita discutir que os resultados encontrados na área criminal são as consequências de políticas governamentais não comprometidas efetivamente com as necessidades sociais. Fatos políticos e econômicos relevantes na maioria das vezes deixam de ter a repercussão necessária para dar lugar aos fatos que atraem o interesse dos telespectadores (violência). A carência de investimentos na área de educação e saúde e os milhões que serão gastos na construção e reforma de estádios para a copa de 2014, por exemplo, quase passaram despercebidos nos veículos de comunicação o que comprova a falta de comprometimento social da nossa mídia.

5 TRIBUNAL MIDIÁTICO A situação de ameaça ocasionada pelo descontrole da criminalização divulgada pelos veículos de comunicação incita na sociedade o apelo por medidas preventivas e punições rápidas para esses criminosos. Alguns programas televisivos são responsáveis pela organização de “júris midiáticos”, os mesmo fazem as acusações e apontam uma possível sentença de acordo com as discussões entre apresentadores e conhecedores da área jurídica. Dessa forma, a mídia vem assumindo um papel para o qual ela encontra-se incapacitada e desprovida de embasamento intelectual para explorar. Ultimamente os veículos de comunicação, em especial os programas televisivos, ao anunciarem algum tipo de crime, delito ou infração penal convidam alguns especialistas para comentar o assunto e explicar as normas possivelmente aplicáveis. Advogados, Promotores e, em casos de grande repercussão, juízes participam de discussões a respeito desses fatos trazendo também seu ponto de vista sobre a eficiência ou ineficiência das Leis. É notório o sensacionalismo e a vulgarização dos temas penais ao passo, que os

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assuntos jurídicos são tratados com insuficiência de fundamentação teórica. Nesse contexto, não podemos deixar de reconhecer a capacidade técnica desses convidados, todavia não devemos ser ingênuos ao ponto de acreditar na pureza dessas interpretações visto que, o espaço midiático prioriza a divulgação dos discursos da camada dominante. Dessa forma, segundo Bourdieu apud Batista (p. 09): A regra de ouro deste circo, embora nem sempre percebida claramente, é que a fala do especialista esteja concorde com o discurso criminológico da mídia: se algum trecho se afasta do credo, será banido na publicação.

Segundo interpretação de Budó, a principal falha da intervenção midiática na área criminal é a aniquilação em suas exposições das garantias e direitos fundamentais dos suspeitos, acusados e condenados reduzindo dessa forma todas as garantias previstas para esses acusados nos ditames Constitucionais “defendendo” que esses direitos atuam na proteção dos criminosos. Nessa análise, a maior agressão proporcionada pelo “júri midiático” é a condenação do acusado antes do julgamento legal e a violação de seus direitos personalíssimos.

6 A MÍDIA QUE JULGA E OS CASOS DE REPERCUSSÃO SOCIAL O demasiado sensacionalismo midiático objetivando audiência ilimitada utiliza-se dos meios mais torpes para a consecução de tal fim. O principal deles é o de despertar na sociedade o sentimento de ódio, no que tange ao julgamento, ou melhor, pré-julgamento de crimes com elevada repercussão na sociedade, sobretudo os crimes que atentam contra a vida. A mídia televisiva com o intuito de acentuar o caráter sensacionalista nas notícias que divulga, tende a julgar e até mesmo sentenciar o crime, mesmo sendo desprovida de qualquer competência para tanto. João Maurício da Rosa (p. 01)acentua que: Jornais mais sensacionalistas, segundo Barbeiro, costumam chamar suspeitos de ladrões ou assassinos, como se já tivessem sido julgados. Este é o receituário do jornalismo que exacerba emoções e transforma alguns jornalistas em policiais, juízes e, às vezes, executores da sentença.

Tal afirmação se torna pertinente quando se menciona casos de crimes com fortíssima repercussão nacional, a exemplo dos casos Isabela Nardone, do menino João Hélio, do índio Galdino Pataxó e ainda mais recente, o caso Eliza Samudio. O título do livro de José Arbex Junior, Showrnalismo: a notícia como espetáculo, se encaixa perfeitamente ao enfoque dado ao julgamento do casal Nardone. Foi absolutamente perceptível o caráter acusatório da mídia em relação ao casal, fazendo refletir na população brasileira uma repulsa patente em relação aos Nardone. Ora, porque apenas os jurados

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se mostrariam isentos dos sentimentos de comoção e revolta pertencentes a toda uma nação? Clara está a pouca probabilidade de que os jurados estivessem, no momento do júri, dotados de imparcialidade, fato que se refletiu no desfecho do julgamento com a satisfação quase sádica dos milhares de telespectadores, ávidos por uma votação que resultasse condenatória para o casal. É importante salientar que esse desejo de se fazer condenar um suposto criminoso independe de haver ou não provas em seu desfavor, vez que há uma maciça crença no palpite “infalível” que os telejornais distribuem, bastando este, para a grande massa de alienados, como suficiente prova de acusação. Flávia Rahal citada por Gláucia Milício (2010, p. 01) alerta que: Ver a Justiça como vingança não é Justiça. Para a sociedade, a reparação para o caso só vai ocorrer se eles forem condenados à pena máxima, mas o que é preciso observar é se existem provas para se chegar a esse resultado.

O caso do menino João Hélio, ocorrido em fevereiro de 2007, que fora brutalmente assassinado por cinco jovens numa tentativa de assalto do veículo em que se encontrava a vítima de apenas seis anos de idade, traz como particularidade o fato de um dos assassinos ter sido um menor de dezesseis anos, o que gerou uma mobilização muito grande por parte da mídia em implantar na opinião pública um sentimento vingativo atrelado inclusive ao desejo de se reduzir a maioridade penal. Vieira traça um interessante paralelo entre o caso do menino João Hélio e o do índio Galdino, ocorrido no mês de abril de 1997, também violentamente assassinado por cinco jovens, sendo que um deles era menor de dezessete anos. Nesse caso, Brige, Vieira e Alves observam o fato de a mídia ter dado diferentes enfoques aos dois assassinatos e analisam o porquê: João Hélio era branco, pertencente à classe média e seus assassinos além de negros são provenientes de baixas classes sociais. Já Galdino além de indígena era pobre, sem contar que os homicidas deste também contrastam com os do menino de seis anos, sendo que aqueles eram todos de classe média alta e cor branca. Essa comparação só torna mais notória o caráter elitista, preconceituoso e parcial da mídia televisiva brasileira que deu uma atenção extraordinária ao assassinato de João Hélio, em detrimento do caso do índio Galdino. O que se sabe é que os dois crimes representaram uma tragédia, não merecendo um mais enfoque que o outro. Contudo, mais uma vez a mídia vendida mostra seu real papel, o de proteger os poderosos e julgar e condenar os pobres. Prova-se isso, ainda com a comparação feita por Brige, Vieira e Alves (2007, p. 03) entre João Hélio, branco de classe média, com Galdino pobre e indígena, salientando:

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Politicamente, o primeiro era inofensivo ao sistema, enquanto o segundo se encontrava lutando pela demarcação de sua terra e tinha como inimigos os produtores de cacau e o senador baiano, Antônio Carlos Magalhães, invasores de seu território tradicional.

7 O SENSO COMUM E O DISCURSO MIDIÁTICO A análise do histórico das discussões criminais revela que a maior parte das instituições de poder principalmente o Estado e a mídia sempre contribuíram para socialização do discurso da direta relação entre crime e pobreza. Assim todas as normas e ideologias impostas às sociedades buscavam segregar as classes e defender interesses. Conforma LoïcWacquant (2001, p. 08): A sociedade brasileira continua caracterizada pelas disparidades sociais vertiginosas e pela pobreza de massa que, ao se combinarem, alimentam o crescimento inexorável da violência criminal, transformada em principal flagelo das grandes cidades.

A visão crítica do sistema penal revela que o a aumento do poder punitivo não é a solução para a criminalidade, por ser a criminalização o reflexo das complexidades políticas, econômicas e sociais. Assim, segundo Brige, Vieira e Alves (p. 05): Vale ressaltar que utilizar o Direito Penal como forma de conter a criminalidade, além de suprimirem direitos e garantias dos acusados, propicia a obstacularização da problematização dos fatores que contribuem para os altos índices da criminalidade, ou seja, este é um problema extremamente complexo no qual exige demasiada reflexão das autoridades.

Budó (2006) afirma que os veículos de comunicação ignoram o novo conceito de origem do crime logo que, a mídia persiste em tratar a maioria dos fatos criminais como sendo originários da pobreza e de suas consequências (tráfico, latrocínios, homicídios) insistindo consequentemente, na defesa da punição e repressão como meio mais eficaz para controle da criminalidade. Dessa forma, o discurso midiático em torno das questões criminais equivale ao discurso do senso comum, ou seja, não goza de credibilidade, pois não discorrem de acordo com teorias ou com pesquisas questionadoras do sistema penal que revelam os verdadeiros motivos da criminalidade.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS Por fim, diante do explicitado compreende-se que os meios de comunicação em sua totalidade, sobretudo o meio televisivo que tem um alcance bastante considerável em todo o país, possuem uma importância inquestionável no que concerne à difusão e globalização das notícias de cunho esportivo, cultural, religioso, educativo, programas

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que dão enfoque à saúde ou ao entretenimento e ainda os telejornais que distribuem notícias em tempo real fazendo com que as mesmas atinjam a todas as classes sociais. Contudo, a quantidade imensa de informações repassadas pelos programas de televisão passa a ser preocupantes e dignos de repúdio a partir do momento em que são usados pelos detentores de poder como instrumento de alienação e “moldamento” do pensamento e decisões dos telespectadores. É desanimador perceber a completa parcialidade midiática no repasse das notícias e o interesse sempre presente de se mudar ou recriar as informações de modo a atender às expectativas de patrocinadores em total detrimento dos milhares de telespectadores, é revoltante o uso da má-fé, a falta de profissionalismo e a total ausência de ética. A mídia é absurda e irresponsável quando opina de maneira inconsequente em assuntos que apresenta total despreparo intelectual, de modo a mal-informar a população composta por pessoas que muitas vezes tem o instrumento televisivo como única forma de conhecimento ou aprendizagem, pessoas essas que, muito infelizmente,acreditam piamente na veracidade das informações que lhes são transmitidas. É preocupante a existência e força atuante de uma mídia que julga, condena e incita o ódio, a violência e os preconceitos, uma mídia que desestimula o senso crítico e o exercício de pensar, disposta a fabricar uma massa infinita de acéfalos (obtendo êxito, infelizmente). A atuação odiosa da mídia vendida encontrará legitimidade para condenar inocentes, enquanto tiver como protetora a mão fria dos poderosos e até quando existir a fortíssima ação da ignorância e do senso comum sobre as pessoas. Alienados todos são até sentirem o desejo de se ter criticidade. Poucos desejam, mesmo que todos necessitem.

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TOLEDO, Renato Godoy de. O tráfico é o maior interessado na proibição das drogas. Disponível em: . Acesso em: 24 jan. 2011.

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CAPÍTULO XIV

A RESPONSABILIDADE DO ESTADO PERANTE OS PROBLEMAS DO SISTEMA CARCERÁRIO Lucas de Santana Oliveira Géssika Morgana Silva Santos Resumo: O presente artigo propõe uma reflexão acerca da responsabilidade do Estado na incidência criminal, através da análise de determinados aspectos diretamente relacionados com essa incidência, e a partir de tal apresentação, discutir suas implicações e possíveis soluções. Palavras-chave: Incidência criminal; responsabilidade do Estado; superlotação de presídios. SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. O PROBLEMA DA SUPERLOTAÇÃO DO SISTEMA CARCERÁRIO; 3. O DESCOMPASSO ENTRE O ESTATUTO EXECUTIVO-PENAL E A EXECUÇÃO PENAL; 4. A RESPONSABILIDADE DO ESTADO NA SELEÇÃO DE QUEM DEVE SER PUNIDO; 5. A PROBLEMÁTICA DA RESSOCIALIZAÇÃO E A CULPA DO ESTADO NA INCIDÊNCIA CRIMINAL; 6. A FALTA DE INVESTIMENTO FINANCEIRO E AS INSTITUIÇÕES PENAIS; 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS.

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1 INTRODUÇÃO É lícito verberar que o Estado brasileiro é um dos responsáveis pelos altos índices de criminalidade no país, pois não oferece a possibilidade de uma vida digna para seus habitantes, na medida em que não busca solucionar os problemas sociais e mantém sua estrutura falha inalterada, ou seja, não cumpre seu papel de garantidor e promotor do bem comum. Nesse sentido, Mario Bezerra da Silva (2011) argumenta que: [...] o Estado não dispõe de um modelo processual de persecução penal capaz de reverter ou ao menos reduzir a criminalidade. Há quem acredite que o crime não teve sua origem nas prisões, mas sim nas comunidades, onde o descaso por parte do Estado possibilita o surgimento de uma geração de excluídos que em resposta a essa exclusão com perspicácia e inteligência se orquestram de forma a suprirem suas necessidades básicas de sobrevivência.

Todavia, ele nega-se a aceitar tal fato, e argumenta que a culpa da elevada criminalidade é da crueldade inata dos criminosos. A ideologia capitalista é excludente e miserabiliza muitos, sendo que essa exclusão é maximizada na medida em que o nosso Estado tem seus interesses confundidos com os anseios da pequena elite capitalista, e reproduz a ideologia oriunda de tal sistema, que alega que não se é bandido apenas porque é pobre, mas sim porque é de má índole. Acrescente-se ainda, que o Estado promove uma política prisional voltada para a defesa dos interesses das classes detentoras do poder e para massacrar os miseráveis. Sem sequer analisar e atacar as causas do crime, o Estado usa o instituto da prisão como um único instrumento para tentar suprir insuficiências públicas e individuais, além da tentativa fracassada de resolver determinados conflitos sociais utilizando-se desse instituto, quando poderia resolvê-los de forma mais eficaz através de outras áreas do Direito.

2 O PROBLEMA DA SUPERLOTAÇÃO DO SISTEMA CARCERÁRIO O sistema carcerário brasileiro encontra-se em estado preocupante de superlotação, e este constitui um dos mais graves problemas de tal sistema. A discrepância gritante entre a capacidade das celas e o número de presos que nelas se encontram, acaba por não permitir que haja o mínimo de dignidade no tratamento dado aos presos. Em virtude disso, não raramente, os presídios passam por rebeliões, que ocorrem na maioria das vezes como forma de retaliação às reivindicações dos presos não atendidas pelos responsáveis pela administração prisional. Nesse sentido, afirma Foucault (2006):

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Quem quiser tem toda a liberdade de ver nisso apenas reivindicações cegas ou suspeitar que haja aí estratégias estranhas. Tratava-se bem de uma revolta, ao nível dos corpos, contra o próprio corpo da prisão. O que estava em jogo não era o quadro rude demais ou ascético demais, rudimentar demais ou aperfeiçoado demais da prisão, era sua materialidade medida em que ele é instrumento de vetor de poder; era toda essa tecnologia do poder sobre o corpo, que a tecnologia da “alma” – a dos educadores, dos psicólogos e dos psiquiatras – não consegue mascarar nem compensar, pela boa razão de que não passa de um de seus instrumentos.

Essas reivindicações são diversas, pois diversos também são os problemas dos presídios: deficiências estruturais, funcionários despreparados, mal remunerados e em número insuficiente, entre outros, que contribuem para o agravamento da situação extremamente precária do sistema prisional brasileiro. A superlotação também é responsável pelo ambiente propício à proliferação de epidemias e doenças em que a prisão se tornou. A falta de higiene dos presídios e presidiários maximiza essa proliferação. Aliado a isso, o acompanhamento médico é quase inexistente nas prisões, o que viola os artigos 12 e 14 da Lei de Execução Penal, segundo a qual o preso ou internado, terá assistência material, em se tratando de higiene, a instalações higiênicas e acesso a atendimento médico, farmacêutico e odontológico. César Barros Leal (1998, p. 878) revela a realidade da falida instituição carcerária, ventilando a falta de dignidade humana que ali existe: De fato, como falar em respeito à integridade física e moral em prisões onde convivem pessoas sadias e doentes; onde o lixo e os dejetos humanos se acumulam a olhos vistos e as fossas abertas, nas ruas e galerias, exalam um odor insuportável; onde as celas individuais são desprovidas por vezes de instalações sanitárias; onde os alojamentos coletivos chegam a abrigar 30 ou 40 homens; onde permanecem sendo utilizadas, ao arrepio da Lei 7.210/84, as celas escuras, as de segurança, em que os presos são recolhidos por longos períodos, sem banho de sol, sem direito a visita; onde a alimentação e o tratamento médico e odontológico são muito precários e a violência sexual atinge níveis desassossegantes?

A existência da superlotação deve ser atribuída à incapacidade do Estado em promover ações preventivas eficazes, tais como educação de qualidade e oportunidade de emprego, a fim de evitar a incidência do indivíduo na criminalidade. Aliado a isso, o Estado ainda contribui para o contingente excessivo de presidiários, na medida em que prende de forma desnecessária, quando em determinadas situações, poderia estabelecer diferentes sanções, pois a prisão deveria ser utilizada em ultima ratio.

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3 O DESCOMPASSO ENTRE O ESTATUTO EXECUTIVO-PENAL E A EXECUÇÃO PENAL As garantias legais previstas durante a execução da pena estão previstas em diversos estatutos legais, tanto em nível nacional como mundial, sobretudo no que tange aos direitos humanos do preso. Diversas são as convenções internacionais que abordam o tema, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Resolução da ONU que prevê as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso, além de existir ainda legislação nacional específica, a denominada Lei de Execução Penal. O estatuto executivo-penal brasileiro é tido como um dos mais democráticos existentes, e este se fundamenta na ideia de que a execução da pena privativa de liberdade deve ter por base o princípio da humanidade, sendo que qualquer modalidade de punição desnecessária, cruel ou degradante será de natureza desumana e contrária ao princípio da legalidade. No entanto, é de notório conhecimento da sociedade que a violação dos direitos dos presos é constante, e na prática não há qualquer observância das garantias legais previstas na execução das penas privativas de liberdade. Sobre o tema, Rafael Damaceno de Assis (2011) afirma que: A partir do momento em que o preso passa à tutela do Estado ele não perde apenas o seu direito de liberdade, mas também todos os outros direitos fundamentais que não foram atingidos pela sentença, passando a ter um tratamento execrável e a sofrer os mais variados tipos de castigos que acarretam a degradação de sua personalidade e a perda de sua dignidade, num processo que não oferece quaisquer condições de preparar o seu retorno útil à sociedade.

Ao garantir que sejam asseguradas aos presos as garantias previstas em lei, busca-se não apenas descaracterizar o depósito de “lixo humano” e seres insensíveis que a prisão se tornou, mas possibilitar a readaptação efetiva do egresso, de forma a concretizar a premissa maior do Direito Penal, a pacificação social.

4 A RESPONSABILIDADE DO ESTADO NA SELEÇÃO DE QUEM DEVE SER PUNIDO Observa-se de forma muito evidente que a tipificação dos crimes e suas penalidades são feitas de forma a selecionar quem deverá ser atingindo pelo Direito Penal. Antes de determinar, por exemplo, que determinado crime deve ser passível de punição através de privação de liberdade, é feita toda uma análise acerca de qual o perfil das pessoas que cometem esse crime, se são compatíveis com o perfil que o Estado quer retirar das ruas e encarcerar, o qual engloba indivíduos pobres, negros, analfabetos, desempregados. A pena privativa da liberdade de locomoção tornou-se um poderoso

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instrumento da elite e do Estado contra os indivíduos mais debilitados em função da sua condição social e financeira. As sanções são destinadas, quase que exclusivamente, àqueles que, na verdade, necessitam da proteção do Estado. Desta forma, como bem destaca Bauman (2005, p. 01):

Os agentes do Sistema Penal utilizam a prisão como o principal artifício para punir a parcela oprimida da sociedade. O cárcere representa um instrumento de exclusão do convívio social, que priva a liberdade das pessoas intituladas criminosas. Estas são representadas por grande parte da população que, por serem excluídos, ou seja, considerados lixo, devem ser jogados no lixão (que representa o cárcere).

Exempli gratia, pode-se citar o fato de serem noticiados regularmente, pequenos furtos, muitas vezes para a própria alimentação dos indivíduos que os cometem, e que acabam por serem presos e taxados por toda a sociedade como criminosos, sendo amplamente marginalizados. Em contrapartida, também de forma regular, são publicados grandes escândalos que envolvem quantias extremamente significativas de dinheiro, a exemplo de alguns políticos que desviam verbas públicas, e estes, ao contrário dos intitulados de miseráveis, não são considerados criminosos, inclusive muitas vezes, sequer sofrem algum tipo de sanção, sendo que raramente quando esta ocorre, não se dá na forma de privação do direito de locomoção, mas em formas mais brandas de pena, tais como a multa. Diante desse exemplo, indaga-se: porque furtos insignificantes são punidos com a prisão e grandes desvios financeiros ficam impunes? Nesse sentido Zaffaroni e Pierangeli (2009, p. 66): “o sistema penal se dirige quase sempre contra certas pessoas mais que contra certas ações”. De facto, é sabido pelo Estado que os indivíduos marginalizados não possuem sequer acesso à possibilidade de corrompê-lo, e que quem o faz são os “fortes” – pequena elite detentora dos meios de produção – os quais manipulam a máquina estatal em seu próprio interesse a qualquer custo. O Estado não tem força para ir de encontro às aspirações dessa elite, assim como também não a tem para punir as ilegalidades por ela cometidas, ainda que fosse esse o seu desejo. Fica claro aqui, que não existe a tão proclamada igualdade entre todos perante a lei, como confirma Guimarães (2007, p. 260): Em um país como o Brasil, em que a democracia, a igualdade perante a lei – principalmente a lei penal – a cidadania e outros direitos inerentes ao respeito à dignidade humana ainda não se concretizam, permanecendo no campo meramente formal como uma noção abstrata e, ainda assim, a poucos revelada, resta configurado um campo propício para a repressão dos não-cidadãos através do Direito Penal, forma extrema de violência institucionalizada.

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5 A PROBLEMÁTICA DA RESSOCIALIZAÇÃO E A CULPA DO ESTADO NA INCIDÊNCIA CRIMINAL O Estado argumenta que a prisão tem como um de seus principais objetivos, promover a ressocialização para momento do egresso daqueles indivíduos outrora perturbadores da ordem social. Na verdade, o termo “ressocializar” é equivocado nesse contexto, uma vez que transmite a ideia de que o indivíduo não tinha convívio social, quando ele era na realidade, apenas marginalizado pela própria sociedade. De acordo com Foucault (2006), assim, não haveria que se falar em ressocialização, mas em uma adequação dos indivíduos ao modelo de sociedade vigente. Não somente o termo é equivocado, mas também a forma na qual o Estado promove a denominada “ressocialização”. Sua ineficácia é comprovada pelo elevado índice de reincidência dos criminosos outrora presos. Embora não haja números oficiais, especula-se que no Brasil, em média, 90% dos ex-detentos que saem das prisões voltam a delinquir, e, consequentemente, acabam retornando ao sistema prisional. Ao contrário do que afirma o Estado, as cadeias e presídios, salvo as exceções, se é que elas existem, tornaram-se verdadeiras “faculdades do crime”. O fato de não haver separação entre os indivíduos que cometeram diferentes espécies de crime, contribui para a falha da recuperação do detento, uma vez que pessoas que cometeram crimes insignificantes vivem em meio a criminosos de diversas índoles, assassinos, estupradores. Na maioria das vezes, ele sai de lá pior do que quando entra, tornando-se mais perigoso, e pondo em constante risco toda a sociedade. O sistema penitenciário brasileiro tem a característica marcante e degradante de punir e colocar a culpa dos problemas sociais naqueles que muitas vezes cometem ilegalidade em resposta das ilegalidades e perversidades que sofrem socialmente. Desta forma, afirma Paulo Queiroz (2008, p. 96): “Argumentam que todo o sistema penal gira em torno da idéia de culpabilidade individual (pessoal), desprezando por completo o ambiente ou o sistema social em que se insere”. Ele não assume a sua culpa nos problemas sociais e na consequente instabilidade das relações pessoais, e aparenta desejar livrar-se daqueles que dele dependem, sem se preocupar com as condições que ele está proporcionando para o seu povo, que é o elemento da sua existência e que necessita do seu amparo, e não da sua punição exagerada e muitas vezes desnecessária. García- Pablos e Luiz Flavio (2008) afirmam que: “a intervenção penal, por mais pronta, necessária e justa, é sempre tardia e incapaz de restaurar a auto-estima ou atenuar o sofrimento das vítimas; é uma intervenção traumática, cirúrgica e negativa”. Segundo tal raciocínio, o Estado deve promover ações que previnam de forma eficaz o acontecimento dos crimes, pois problemas estruturais demandam intervenções também estruturais e não simplesmente individuais.

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6 A FALTA DE INVESTIMENTO FINANCEIRO E AS INSTITUIÇÕES PENAIS Acrescenta-se à responsabilidade do Estado pelo agravamento dos problemas penitenciários, a falta de vontade de investir financeiramente nesse segmento. O Estado brasileiro, especialmente, é um Estado rico, arrecada muito dinheiro com o recolhimento de tributos, entretanto, não o gasta com as instituições carentes. Prefere não gastar, a promover melhorias no sistema penitenciário e causar uma permanência mais digna e transformadora dos delituosos no sistema carcerário. Quanto o Brasil tem para gastar com o sistema penitenciário? E quanto o Brasil investe? São as respostas dessas perguntas que apontam uma das razões do sistema penitenciário brasileiro estar tão debilitado. Segundo dados da FUNPEN104 (Fundo Penitenciário Nacional) o Brasil tem recursos financeiros suficientes para utilizar no setor penitenciário e melhorar a sua estrutura de forma a resolver ou atenuar os seus problemas. No período de 1995 a 2010, em todos os anos, o Brasil utilizou muito menos do que tinha disponível para investimento no segmento penitenciário. Em 2010, e.g. foram disponibilizados para o sistema penitenciário a quantia de R$ 252.848.591,00, não obstante as autoridades competentes só utilizaram R$ 25.447.371,00. Isto demonstra e ratifica que o governo brasileiro não tem interesse em melhorar a estrutura dos presídios e consequentemente, a vida dos detentos durante a reclusão, propiciando assim, um retorno à sociedade com menos problemas e maior qualificação. Nesse sentido, aduz Guimarães (2007, p. 280): O maior endurecimento do Direito Penal e diminuição das garantias imanentes ao ser humano sempre terão como destinatários os estratos pertencentes às classes vulneráveis ao direito punitivo, nunca aqueles que se encontram no poder, já que o poder é um imunizador eficaz contra o sistema penal.

O desinteresse do Estado em não gastar com o sistema penitenciário reforça os interesses políticos que dominam a sociedade brasileira. Isso porque o Estado passa para a sociedade que os males sociais, são oriundos dos indivíduos que cometem ilegalidades, e por isso promove na sociedade um sentimento de raiva, aversão por estes seres humanos. Assim, investir no sistema carcerário não rende votos para os políticos, 104

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e por essa razão não há interesse na construção de mais penitenciárias, na melhoria da estrutura das já existentes e em programas que favoreçam a socialização e a qualificação dos indivíduos reclusos. Outro motivo que contribui nos problemas do sistema carcerário é a força do capitalismo que domina e rege a sociedade e o presente Estado. O capitalismo, sendo um sistema econômico que visa o lucro máximo, não se preocupa com as desigualdades e não se interessa em dar oportunidades a todos. Segundo a visão capitalista, são os pobres que dão oportunidades, que dão subsídios, para a existência dos ricos. Assim, não é de interesse do Estado Capitalista promover uma melhoria na vida dos indivíduos no sistema carcerário, devolvendo-os para a sociedade com mais qualificação, porque eles precisam é de gente desqualificada, pessoas mais facilmente subordinadas às regras impostas pelos poderosos. O Estado e os empresários capitalistas não querem a concorrência, e sim a subordinação, que contribui diretamente na crescente ascensão social e financeira deles. Sobre isso, salienta Baratta (2002, p. 166): Não só as normas do direito penal se formam como também se aplicam seletivamente, refletindo as relações de desigualdades existentes nas relações sociais, mas também exercendo uma função ativa, de reprodução e produção a essa desigualdade.

Percebe-se, assim, que o Estado não promove uma melhoria no sistema penitenciário por que não tem vontade em dar aos indivíduos reclusos uma permanência digna e transformadora na sociedade penal. Esse descaso com os problemas penais refletem no regresso de indivíduos, que saem da prisão com sentimentos de revolta, com segregação social mais elevada, em virtude da rotulação que recebem por terem passado pelo sistema penal e por não terem recebido nenhuma ajuda do Estado que lhe possibilite desenvolver uma vida digna fora das celas. Nesse entendimento, Foucault (2006, p. 222) verbera que: “A prisão não pode deixar de fabricar delinqüentes. Fabrica-os pelo tipo de existência que faz os detentos levarem: que fiquem isolados, nas celas, ou que lhes seja imposto um trabalho inútil, para o qual não encontrarão utilidade.” Enfim, o atual quadro perverso no qual se encontra a sociedade penitenciária brasileira, não é fruto apenas de uma superlotação das celas, do “mau caratismo” de parte da população, mas também é reflexo do comportamento do Estado. Esse se apresenta como um notável responsável, influenciador da violência que vivenciamos e da penosa situação do sistema penitenciário. Em suma, diante dessas colocações e da realidade social, percebemos que o caos do sistema prisional tem sua origem e consequência, agravadas pela própria debilidade do Estado, pois esse é um grande responsável pelas

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mazelas e atrocidades presentes no sistema penitenciário.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Acreditando ser de grande valia, pretendeu-se aqui provar mediante o que foi exposto, que o Estado desrespeita de forma muito clara os direitos mais básicos dos indivíduos marginalizados, tanto aqueles que foram “resgatados” pelo sistema prisional, quanto os tidos como miseráveis que ainda não foram “abduzidos” por tal sistema, e atua de forma determinante para a ocorrência da incidência e reincidência criminal. O criminoso não escolhe o ser, mas é escolhido pelo próprio Estado, que só pune quem está na base da pirâmide criminosa. A adoção de medidas repressivas para tentar controlar a criminalidade é falha, pois só resolve o problema temporariamente, já que o presidiário um dia será egresso do sistema prisional, e a depender de como tenha sido tratado no período em que lá esteve, poderá não enxergar motivos para ser melhor. O Estado deve investir nas medidas preventivas, que envolvem a promoção de melhores condições de vida para a população, de forma a possibilitar ao indivíduo outrora sem perspectivas, a chance de escapar da abdução promovida pelo Direito Penal. Em última análise, percebeu-se aqui que o discurso de falta de verba para melhorias no sistema prisional não é dotado de validade, pois ficou provado que dinheiro existe, o que não há de fato, é o interesse estatal em fazê-las.

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CAPÍTULO XV

PRISÕES DO TRÁFICO: O FALCÃO CEGO NAS MASMORRAS DA SOCIEDADE Marcus Costa de Santana Ziron Sousa Rodrigues Filho Resumo: Este artigo apresenta uma análise da realidade enfrentada por crianças e adolescentes frente ao tráfico de drogas em suas comunidades. Compreender os motivos provocadores da inserção dos menores ao sistema do tráfico, sob a ótica da Criminologia, contempla uma série de ideologias instigantes capazes de modificar conceitos e opiniões. O desafio está na conscientização, transformação de valores e cobranças por ações políticas. Palavras-chave: Tráfico de drogas; crianças e adolescentes; mundo penal. SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. FAMÍLIA 3. DISCRIMINAÇÃO SOCIORRACIAL; 4. AUSÊNCIA DO ESTADO; 5. DETERMINISMO; 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS.

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1 INTRODUÇÃO Quando se faz uma abordagem sobre os problemas desencadeados pelo sistema montado de tráfico de drogas, comumente é destacada a ineficiência do controle Estatal diante do poder paralelo e os efeitos gerados na sociedade. A proposta desse trabalho contempla a problemática do tráfico de drogas, todavia, sob outro patamar de pesquisa. Aproveitando-se do excelente trabalho “Falcão, Meninos do Tráfico”, documentário e obra literária, produzido por MV Bill e Celso Athayde, prioriza-se discutir os motivos que levam as crianças e adolescentes, moradores de comunidades periféricas, não exclusivamente do sexo masculino, a entrarem no sistema do tráfico, mesmo cientes dos erros e riscos decorrentes. Apesar de ser um tema bastante amplo, a pretensão de abranger diversos pontos em torno do foco principal satisfez a tentativa de polemizar e desconstruir juízos sob a ótica do objeto de estudo da Criminologia. Destarte, partindo-se do questionamento central, vislumbra-se desenvolver uma compreensão crítica capaz de desvincular-se de concepções postas na sociedade principalmente pelos meios midiáticos. Para tanto, desmembrando-se em quatro partes – família; discriminação sociorracial; ausência do Estado e determinismo – enfatiza-se a dura realidade vivida por crianças e adolescentes que são desassistidas em todos os sentidos. Sem orientação, equilíbrio familiar e apoio do Estado, são cercadas pelo vício, pelo medo, pelo esquema do tráfico, pelos policiais. Por esta razão, encaixam-se como “extremófilos” (PUGLIESE, 2011), já que vivem em condições extremas, fora dos parâmetros de “força” necessários para superar os sistemas de controle social. O título “Prisões do Tráfico: O Falcão Cego nas Masmorras da Sociedade” representa a intenção de mostrar o grau de aprisionamento vivido por aqueles que já nascem dentro do sistema do tráfico. O falcão, ave que possui o sentido da visão bem evoluído para captura das presas, simboliza metaforicamente o trabalho dos meninos de “vigia” que ficam nos pontos altos dos morros, acordados a noite inteira, para sinalizar por qualquer “perigo”. Nesse contexto, a cegueira retira qualquer possibilidade de ação. Os meninos do tráfico são falcões cegos porque não conseguem enxergar algum futuro longe da criminalidade. E se esses sonham com uma vida diferente, em regra, não conseguem, pois estão “presos” nas “masmorras” da sociedade, estigmatizados, em comunidades, favelas, guetos, nas quais o Estado só aparece através do sistema penal, punitivo, repressivo e violento. A credibilidade dessa pesquisa está no fato de ser norteada pela produção “Falcão, Meninos do Tráfico”, pois seus autores vivenciam a realidade tratada, trazendo assim não mais a análise de antropólogos ou sociólogos, e sim a visão de dentro do ambiente estudado. Logo, mostra-se o que realmente acontece e, ainda mais importante, o que os próprios meninos pensam, sentem e sonham. Ademais, este artigo fundamentase em vários teóricos e obras literárias de importante influência aos estudos criminológicos incrementando o teor de cientificidade necessário ao mesmo.

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2 FAMÍLIA É no seio familiar que a criança encontra o primeiro modelo de educação socializadora. Ela se torna referência em seus relacionamentos sociais. Segundo Contim (2001, p. 05), a família é considerada uma unidade primária de cuidados, pois ela é o espaço social onde seus membros integram, trocam informações, apoiam-se mutuamente, buscam e mediam esforços, para amenizar e solucionar problemas. A família deve ser entendida como um grupo dinâmico, variando de acordo com a cultura e o momento histórico, econômico, cultural e social que está vivenciando. Os familiares funcionam como pontos de referência no desenvolvimento de valores do ser humano. Quando essa fundamental instituição é corroída, põe-se em risco o futuro de todos envolvidos nessa relação, sobretudo do menor, tornando-o mais vulnerável. Oriundos de famílias pobres, as crianças ou adolescentes, que entram para o tráfico de drogas, têm geralmente como referência um modelo familiar fruto de uma brusca ruptura – separação, abandono ou morte – que causa grandes consequências na vida daqueles. Portanto, sua entrada ao mundo do tráfico de drogas não é propriamente um ato de escolha, sendo mais uma ausência da mesma. Devido às condições socioeconômicas das famílias, na maioria das vezes, os pais trabalham o dia inteiro e não têm tempo para acompanhar o desenvolvimento de seus filhos. Em muitos casos, também, a importante figura paterna não existe, pois já foram mortos “pelo tráfico” ou não assumiram a família. A falta de afeto e presença dos pais, somadas às dificuldades financeiras, propicia o envolvimento com o tráfico de drogas. Por estar em um momento muito importante de seu desenvolvimento físico e psíquico, a adolescência, fase esta muito complicada, em que há mudanças profundas, vários questionamentos, hormônios aflorados, a vulnerabilidade aumenta. Assim (Soul Brasil, 2011): Em qualquer classe social a adolescência é uma fase complicada. É uma época de construção de identidade, quando se começa a aprender quem se é. Para um adolescente de classe baixa, que vive em uma sociedade racista e elitista, tudo fica mais difícil. Ele se sente ignorado, invisível e muitas vezes rejeitado. O tráfico acaba preenchendo essa lacuna. Valoriza esses jovens, coloca-os num grupo onde são notados e respeitados. O adolescente se torna protagonista, produz reações nas pessoas, se torna alguém visível. Para muitos, a entrada no mundo do tráfico é uma tentativa desesperada de construir uma identidade.

A Constituição de 1988, no seu art. 226, garante especial proteção à família, sendo esta a base da sociedade. Contudo, o que se percebe na prática é uma incoerência; a omissão do Estado na assistência às famílias que se encontram em situações de vulnerabilidade acentuando ainda mais a exclusão social sofrida por elas. Percebe-se essa supressão estatal, ao observar as comunidades em que residem os indivíduos que

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compõem a base da sociedade, as condições precárias de existência, falta de saneamento básico, ausência de atendimento médico, carência de escola, enfim, há um cerceamento no acesso condizente ao que seria fundamentalmente elementar para a subsistência humana. A assistência que cabe ao Estado é substituída pela proteção e auxílio do chefe do tráfico que assume o papel paternalista dentro da comunidade. Qualquer necessidade que os moradores tenham, recorre-se a esses dirigentes. Destarte, as famílias marginalizadas e sem nenhuma assistência do poder público recorrem a meios ilegítimos. Diante dessa perversidade institucional, Venâncio (1999, p. 13) afirma que “desde os séculos XVIII e XIX, a única forma de as famílias pobres conseguirem apoio público para a criação de seus filhos era abandonando-os”. Assim, ante a omissão do Estado, a família recorre ao chefe do tráfico de drogas para suprir essa carência, fomentando a ideia da proteção proporcionada pelos traficantes. E o menor segue preso por uma corrente invisível que o obriga, manipula, influencia e determina seu futuro.

3 DISCRIMINAÇÃO SOCIORRACIAL A discriminação racial e social tem sido divisor de águas neste século; muito se tem lutado para desconstruir visões equivocadas acerca da temática. Segundo Celso Athayde (2006, p.63): “o sistema é branco e opressor. Os oprimidos, em geral, são os pretos que historicamente sempre cumpriram bem o papel de se matarem para atender à sede de sangue do poder”. Historicamente, o negro foi explorado e discriminado. Com a vinda desses, no Brasil colônia, fixou-se a base da economia e da riqueza no trabalho escravo. Após a “libertação”, provocou-se um desarranjo social; não foi fornecida estrutura para o acolhimento dessas vítimas no seio da sociedade. Toda essa conjuntura descrita provocou consequências sentidas até os dias atuais. Diante dessa realidade, o negro sem acesso a escola, ao trabalho e a meios de sobrevivência, foram se refugiando em quilombos, favelas e mocambos. Nessas circunstâncias, afirmar que o negro foi impelido para o mundo do crime pela sociedade e pelo próprio Estado não é uma afirmação vaga. Certo é que eles ficaram “fracos” e foram atingidos pelo Estado Penitência. Segundo Berkeley e Paris in Wacquant (1999, p. 06): Sabe-se, por exemplo, que em São Paulo, como nas outras grandes cidades, os indiciados de cor “se beneficiam” de uma vigilância particular por parte da polícia, têm mais dificuldade de acesso a ajuda jurídica e, por um crime igual, são punidos com penas mais pesadas que seus comparsas brancos. E, uma vez atrás das grades, são ainda submetidos às condições de detenção mais duras e sofrem as violências mais graves. Penalizar a miséria significa aqui “tornar invisível” o problema negro e assentar a dominação racial dando-lhe um aval de Estado.

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O relato de um jovem entrevistado por MV Bill (2006, p. 179- 180) ilustra bem a resistência da sociedade em incluir o negro e moradores de “bairros sensíveis”. O jovem justifica porque entrou para o tráfico de drogas: De verde: Pô, to aqui porque a sociedade aí fora não dá nenhum meio de vida pra gente agir aí fora. Se a gente quer procurar um trabalho, é difícil. Até pra procurar uma escola é difícil, a gente não tem escolha pra nada. [...] A gente tá aqui só pra trabalhar. Aqui é trabalhador comum, é civil comum. Gente que luta pra sobreviver de todas as formas.

Correlação entre negro ou pobre e o tráfico é justamente essa lacuna que existe, a negação da oportunidade, estes conformados de historicamente serem excluídos socialmente, procuram os meios não aconselháveis para sua sobrevivência. Este problema é de suma importância ser discutido, visto que a discriminação contra os mais pobres – e entre eles destaque para o negro – é uma questão cultural que está arraigada em nossos costumes e contribui muito para a criança, adolescente e o jovem possa seguir o caminho desolador do crime. Os negros, maioria residentes em favelas, são estigmatizados pela sociedade. Assim, as favelas brasileiras, fruto de um contexto histórico conturbado, abrigam pessoas vítimas da discriminação sociorracial em nosso País. Com uma formação precária e sem a assistência do poder público, os indivíduos moradores dessas comunidades, marginalizados, tornam-se vulneráveis ao crime. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a favela é dotada de cinco características básicas: acesso inadequado à água potável, falta de infra-estrutura ou saneamento básico, aglomeração de moradias, estrutura pobre de construção das casas e residências inseguras. Em 2000, a ONU elaborou um documento denominado Cidades sem Favelas, neste afirma que as “Favelas são produtos de políticas falidas, maus governos, corrupção, sistemas financeiros irresponsáveis e falta de vontade política” (FOLHA DE SÃO PAULO, 2003). Não se pode, enquanto sociedade organizada, ser mesquinho a ponto de não oportunizar a todos a possibilidade de construção de um futuro melhor, mais justo. Elencando que não é a cor que determina quem é o ser, assim como também não é a classe social que irá dizer se o indivíduo é ético, mas a oportunidade oferecida para que esse ser possa mostrar que é tão capaz e ético quanto qualquer outro que tenha tido o mesmo ensejo.

4 AUSÊNCIA DO ESTADO Sempre quando são vinculadas notícias sobre algum fato ou situação que abre a possibilidade de uma ação penal, observam-se os sujeitos infratores e os diretamente afetados para logo chegar às justificativas daquele crime. Porém, tais observações não são fundadoras de interpretações concretistas abertas (BONAVIDES, 2004) para analisar adequadamente cada caso concreto, pois o que o Estado quer e o que a sociedade vê é a

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culpa dos mais “fracos”. Não por a sociedade ser “egoísta”, mas porque os conflitos que se resolvem pela via punitiva institucionalizada são criados para proteção dos interesses do Estado, dos mais “fortes”. Como bem insinua Zaffaroni e Pierangeli (2006, p. 56): “temse total impressão de que o ‘delito’ é uma construção destinada a cumprir certa função sobre algumas pessoas e acerca de outras, e não uma realidade social individualizável”. Apesar de surgirem alguns casos em que o sistema penal atinge pessoas condicionalmente “blindadas” pela posição social, econômica ou política que possuem, de modo geral, essas pessoas não são punidas por converterem a situação como se fossem vítimas, utilizando-se de “técnicas de neutralização”. Urbano Félix Pugliese (2011, p. 88) destaca tais situações ao afirmar que: Os fortes são manipuladores do mundo penal. Não sofrem estigmas. Não são vítimas do processo de criminalização. Quando pseudo-vitimizados, ganham algo com a posição de possíveis sofredores. Não precisam mostrar ao mundo quem são, o que fazem, como se comportam. O mundo depende deles, afinal de contas, são fortes. Os fortes colocam-se como vítimas quando cometem algum delito para não serem abrangidos pelo mundo penal: violento porque desequilibrado, envolvimento com drogas porque traumatizado, funcionário público corrupto porque perseguido pela Polícia e pelo Ministério Público. O discurso é cinzelado no afã de legitimação de atuação dos fortes, até quando acessados, raramente, pelo mundo penal.

Destarte, enquanto uma parcela da população reclama por falta de segurança, abstraindo-se o caráter de vítimas e sempre culpando o ato infracional, as crianças que nascem nas comunidades periféricas dos centros urbanos continuam “carregando” todo o peso do Estado ausente. Crescem em meio a um ambiente hostilizado, não recebem condições mínimas de progressão física e intelectual e, ainda, são impulsivamente inseridas ao trabalho do tráfico de drogas, o que representa praticamente a sentença de morte prematura, visto que eles são atingidos por todos os lados. Punidos pelo “comando”, se falham. Punidos pela ausência de proteção familiar e estatal. Punidos pelo mundo penal. As políticas contemporâneas de repressão ao tráfico de drogas, entendidas como fundamentais mecanismos de extermínio e exclusão, são claramente difundidas nas práticas policiais em que se subvertem a premissa, segundo Viana e Neves (2011), do “devem viver” – em outros termos, aqueles que se encontram mais enquadrados e inseridos no mercado de demandas e exigências sociais – e destaca o “devem morrer”. Explica Viana e Neves (2011): Aqueles que “devem viver” correspondem aos ditos “cidadãos de bem”, pagadores zelosos de seus impostos, respeitadores da lei e da ordem,

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potenciais consumidores de estilos e modos de vida “civilizados”. Em contrapartida, seu oposto equivale àqueles a quem se “deixa morrer”, ou se “faz” morrer: os que respondem por condutas marginais ou desviantes, apresentando-se, assim, como um perigo para os cidadãos de bem. Atualmente temos podido perceber que essa finalidade tem se (des) regulamentado ou modulado, justificando mesmo a morte dos chamados enquadrados – os que devem viver - se estas forem em prol do extermínio dos marginais do tráfico, dos ditos terroristas, operando uma lógica dos fins que justificam os meios e os acidentes de percurso que diariamente aparecem na mídia. O Racismo de Estado constitui, em última análise, a medida deste perigo: matar para não morrer.

E nessa lógica de “matar para não morrer”, não importa quem está morrendo, se são crianças, adolescentes ou jovens. Esses “meninos” já estão marcados para morrer, não há “interesse” na proteção desses vendedores de drogas, eles não geram lucros para o Estado; então por que ele deveria os proteger? Embora o Estatuto da criança do Adolescente conste em seu artigo 3º. (Grifos nossos): A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Essas são, inclusive, garantias Constitucionais, mas que na prática pouco ou nada se faz para resguardá-las. Em uma pesquisa realizada pelo UNICEF em 2010, descobriu-se que 64% das crianças pobres não vão à escola durante a primeira infância e que sessenta mil crianças com menos de um ano são desnutridas. Percebe-se então a ausência do Estado que não efetiva os direitos e garantias destinados aos menores. Acordamos com Alba Zaluar (2007, p. 61) da sua afirmação: “sempre houve, no Brasil, um hiato entre os direitos formais, escritos na lei, e os realmente praticados”. Portanto, são nessas condições que os menores, vendedores de drogas, se encontram: Em famílias pobres, marginalizadas, estigmatizadas, sem oportunidades de trabalho e sem proteção e assistência do Estado. Definitivamente, são “empurrados” para práticas ilícitas. O elo entre os menores de famílias pobres e o tráfico de drogas é a ausência do Estado, pois se este tornasse acessível pelo menos o essencial para a sobrevivência, com certeza não haveria tantas crianças e adolescente aliciadas para o tráfico de drogas.

5 DETERMINISMO Quando se percebe a verdadeira realidade vivida por esses “meninos do tráfico”, entrelaçando-se todos os fatores discorridos que os cercam nesse meio, através

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da desestrutura familiar, das discriminações sociorraciais e da violência estruturante, fica difícil não atribuir a criminalização ao determinismo social. Mas, como entender a existência de crianças e adolescentes que vivenciam o mesmo ambiente e sofrem com as mesmas “agressões” e não entram para o tráfico. Pensando mais além, como entender aqueles crimes cometidos por quem se situa em meio completamente inverso sem passar pelos problemas elucidados. Ainda que se juntassem as diversas teorias deterministas tradicionais para explicar tais indagações, permaneceriam muitas dúvidas sobre até que ponto esses menores tem liberdades de escolha, opções para seguirem caminhos paralelos. Diante de todas as circunstâncias, relacionar a complexidade da criminologia, sobre o tema aqui tratado, às contribuições científicas de Cesare Lombroso, é insuficiente. Apesar da ampla matéria decorrida de seu trabalho, não é possível explicar a vida dos meninos dentro do tráfico apenas como consequência de um fato natural que perpassa historicamente. Talvez seja real a influência de fatores biológicos na formação de uma personalidade mais agressiva, de um temperamento mais instável que provoque o cometimento de ações delituosas por impulsão, todavia, é limitado afirmar que o fato determinante já está no momento da existência e que, portanto, o inatismo é a causa conflitante. As justificativas da teoria inatista e suas relações são destacadas por Michael Martine (2011): Enfatizando os fatores maturacionais e hereditários, essa perspectiva entende que o ser humano é um sujeito fechado em si mesmo, nasce com potencialidades, com dons e aptidões que serão desenvolvidos de acordo com o amadurecimento biológico. Uma vez que é dotado de dons divinamente justificáveis, o ser humano, assim entendido, não tem possibilidade de mudança, não age efetivamente e nem recebe interferências significativas do social. Nada depois do nascimento é importante, visto que o homem já nasce pronto, incluindo a personalidade, os valores, os hábitos, as crenças, o pensamento, a emoção e a conduta social. O ser humano, concebido como biologicamente determinado, remete a uma sociedade harmônica, hierarquizada, que impossibilita a mobilidade social, embora o discurso liberal a afirme. Nessa perspectiva temos uma sociedade capitalista que valoriza o individual em detrimento do social, gerando competitividade, acirrando as diferenças de classe, gênero e etnia.

Em contraposição ao determinismo biológico, muitos teóricos destacam que o meio social é o fator determinante do comportamento humano e, consequentemente, o responsável pelas decisões e ações tomadas por qualquer indivíduo. Fazendo alusão aos estudos sobre aprendizagem de Lev Vygotsky (1984), as atitudes, o pensamento, as capacidades, enfim todo o comportamento humano surge do processo de aprendizagem, desde o nascimento, que é construído através de todo o convívio social e do ambiente que se passam as experiências. A respeito disso, de fato percebe-se que o convívio perto do tráfico, nascendo em família desestruturada, vivendo no “morro”, crescendo em meio a esta “cultura” de violência, influencia diretamente nos caminhos seguidos pelos “meninos do tráfico”. No entanto, essas teorias deterministas sociais são muito genéricas

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e continuam sem tirar as dúvidas sobre a capacidade de escolha. A certeza que se tem é de que vários fatores existem para determinar os nossos comportamentos e, por conseguinte, o “destino” de nossas vidas. E mais do que isso, sabe-se das inúmeras “influências negativas” que cercam esses meninos que vivem em meio ao tráfico de drogas, tornando-se muito difícil a criação de expectativas diferentes das que são vividas. Contudo, deve-se “fugir” um pouco das teorias tradicionais para desmistificar a classificação que se faz de bandidos a esses meninos pelo fato de trabalharem para o tráfico. “O delinquente se distingue do infrator pelo fato de não ser tanto seu ato quanto sua vida o que mais o caracteriza” (FOUCAULT, 1987, p. 211). Como essas crianças vivem em meio às “delinquências”, a sociedade acaba as estigmatizando como “delinquentes”. No entanto, cabe esclarecer nas conclusões desse estudo que todas as influências, experiências, ausências e carências geram “conflitos internos” em cada um deles, e por esta razão, acabam cometendo crimes, mas disso não se pode classificá-los como criminosos.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Após as abordagens desses quatro assuntos essenciais, é possível compreender, ou pelo menos formar uma visão mais crítica correspondente à realidade vivida pelos “meninos (as) do tráfico” e, desta forma, deixar de analisar o problema sob préjulgamentos e opiniões sem fundamentações. A abrangência do tema, com o desenrolar das pesquisas e materialização de ideias, permite a formação de muitas conclusões que ultrapassam tais considerações finais. Agrupando-se todos os elementos dessa pesquisa, percebe-se que são vários os motivos que levam as crianças até os esquemas montados dentro do tráfico de drogas. Motivos tão fortes capazes de retirar o medo da morte e de transformá-los simplesmente em instrumentos de manutenção do ciclo formado dentro das favelas. Logo ao nascerem, os meninos se deparam com uma família desestruturada, geralmente sem a presença do pai, e em condições de extrema marginalização, visto que o Estado não possibilita nenhuma expectativa de pelo menos terem uma vida digna. Eles crescem sob agressões discriminatórias impregnadas culturalmente na sociedade, feita uma rotulação que é a pior inibidora de novas perspectivas. E em meio a tantos problemas, ainda há a questão da repreensão do Estado; mais uma forma de exclusão e opressão, pois os policiais, que deveriam significar proteção social, são os inimigos públicos. Portanto, diante de todos esses motivos, torna-se visível as consequências da omissão e da submissão do Estado. Os “morros” se formam como se não pertencessem à sociedade, como se fossem outro Estado, no qual o governo é o sistema do tráfico. “Os condenados são... outro povo num mesmo povo: que tem seus hábitos, seus instintos, seus costumes à parte” (FOUCAULT, 1987, p. 212). Fazendo analogia aos condenados encarcerados, podem-se equiparar os “meninos (as) do tráfico” àqueles, só que a diferença é que estão condenados à vida (ou à morte) que levam na favela.

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Refletindo-se também sobre as lições de Loïc Wacquant em “As Prisões da Miséria”, é importante enxergar a miséria vivida por estas crianças que já nascem em um local cuja “cultura do crime” reina como a principal chance de ganhar respeito e sustento econômico. Além de tudo, é preciso uma mudança de consciência da sociedade, pois se deve reconhecer que esses meninos não compõem um lado mau. Os crimes não acontecem por causa da falta de punição, de leis repreensivas, mas principalmente por causa dessa ausência do Estado como instrumento capaz de libertá-los da miséria.

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DOCENTES PARTICIPANTES DO LIVRO Bernardo Montalvão Varjão de Azevedo - Professor - Assistente na disciplina de Teoria do Direito junto à Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA); Professor de Direito Penal da Universidade Salvador (UNIFACS); Professor de Processo Penal da Universidade Católica do Salvador (UCSAL); Professor Convidado da Fundação Escola Superior do Ministério Público da Bahia (FESMIP); Professor convidado da Especialização em Ciências Criminais do JusPodivm; Professor Convidado da Especialização em Ciências Criminais da Fundação Faculdade de Direito vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA - na Linha de Limites do Discurso com a dissertação: O ato de decisão judicial - uma irracionalidade disfarçada. Pós-Graduado Lato Sensu em Ciências Criminais pela Fundação Faculdade de Direito vinculada ao Programa de Pós-Graduação da UFBA. Graduado em Direito pela UCSAL. Analista Previdenciário da Procuradoria Federal Especializada do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Autor dos livros: A importância dos atos de comunicação para o processo penal brasileiro: o esboço de uma teoria geral e uma análise descritiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008 e O Ato de Decisão Judicial: Uma Irracionalidade Disfarçada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. Área de dedicação e pesquisa: Direito Penal, Direito Processual Penal, Hermenêutica Jurídica e Filosofia do Direito. Fabiano Cavalcante Pimentel - Advogado Criminalista. Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/ BA. Membro do Instituto dos Advogados da Bahia - IAB. Membro da Academia de Cultura da Bahia. Conselheiro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas ABRACRIM Integrando o Conselho da Advocacia Criminal Brasileira na Bancada da Bahia. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Ciências Criminais pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Professor do Curso de Pós-graduação em Ciências Criminais da UNIFACS. Professor do Curso de Pós-graduação em Direito Eleitoral do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia. Professor da Escola Superior de Advocacia ESAD. Professor de Direito Processual Penal da Universidade do Estado da Bahia. Pedro Camilo de Figueirêdo Neto - Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (2012). Graduado em Direito pela UFBA (2006) e Especialista em Ciências Criminais pela UFBA (2008). Advogado. Ex-diretor do Centro de Observação Penal, da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado da Bahia (2007-2009). Ex-membro suplente do Conselho Penitenciário do Estado da Bahia (2011). Professor Auxiliar da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professor convidado do Programa de Pós-graduação “latu sensu” da Faculdade de Direito da UFBA e da FTC da cidade de Itabuna, Bahia. Professor da Faculdade Sete de Setembro (FASETE), em Paulo Afonso, Bahia. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal, atuando principalmente nos seguintes temas: direito penal e processual penal. Urbano Félix Pugliese do Bomfim - Possui graduação em Direito pela Universidade Federal da Bahia (2001). Curso de Graduação em Pedagogia na Universidade Federal da Bahia - Incompleto -. Especialista em Ciências Criminais pelo Jus Podivm/Faculdades Jorge Amado (2003). Especialista em Pedagogia Universitária pela Faculdade Maurício de Nassau (2008). Mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (2009). Doutorando em Direito, desde 2012, pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Foi professor de direito penal da Faculdade Baiana de Ciências/ Faculdade Maurício de Nassau, Curso para Concursos (preparatório para concursos públicos), Curso Cejus (preparatório para concursos públicos) e Direito Penal da Universidade Estácio de Sá (Salvador).

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URBANO FÉLIX PUGLIESE DO BOMFIM

Foi Coordenador do Colegiado de Direito da UNEB/Campus IV/Jacobina (2010-2011). Atualmente é professor Assistente de Direito Penal, Criminologia e Metodologia da Pesquisa da Universidade do Estado da Bahia (UNEB/Campus IV/Jacobina). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em direito penal e execuções penais.

DISCENTES PARTÍCIPES DO LIVRO Antônio Márcio Melo da Silva – Especialista em Ensino de História e da Cultura Africana e Afro-Brasileira pelo Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e Extensão (IBPEX); Licenciado em História pela UNEB; Bacharelando em Direito pela UNEB (Campus IV/Jacobina), cursando o quinto semestre; Atualmente professor no Ensino Médio e na Faculdade Cenecista de Senhor do Bonfim (FACESB) e na Plataforma Freire (PAFOR). Ceane Maria Cardoso - Bacharelanda em Direito pela UNEB (Campus IV/Jacobina), cursando o quinto semestre. Cristiane Lima Procópio - Especialista em Metodologia do Ensino e Geografia pela UNEB; Licenciada em Geografia pela UNEB; Bacharelanda em Direito pela UNEB (Campus IV/Jacobina), cursando o quinto semestre. Eliana Ferreira Santos - Especialista em Psicopedagogia Institucional pela Universidade Castelo Branco; Licenciada em História pela UNEB; Bacharelanda em Direito pela UNEB (Campus IV/Jacobina), cursando o quinto semestre. Fernando Santana de Oliveira Santos - Graduado em História; Bacharelando em Direito pela UNEB (Campus IV/Jacobina), cursando o terceiro semestre. Géssica Lorena Alves de Souza - Bacharelanda em Direito pela UNEB (Campus IV/Jacobina), cursando o quinto semestre. Gessika Morgana Silva Santos - Bacharelanda em Direito pela UNEB (Campus IV/Jacobina), cursando o terceiro semestre. Joab Costa de Carvalho - Licenciado em Língua e Literatura Portuguesa pela UNEB (2007); Bacharelando em Direito pela UNEB (Campus IV/Jacobina), cursando o quinto semestre; Funcionário Público Federal, desde 2002; Ministro de Música da Renovação Carismática Católica, desde 2000. Joelane Mirele Silva dos Santos - Bacharelanda em Direito pela UNEB (Campus IV/Jacobina), cursando o terceiro semestre. José Rodrigues de Jesus - Graduado em Licenciatura Plena em Letras pela UNEB (Campus IV/Jacobina); Bacharelando em Direito pela UNEB (Campus IV/Jacobina), cursando o terceiro semestre.

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CRIMINOLOGIA EM FOCO: PELAS SENDAS DE UM DIREITO PLURAL, SENSÍVEL E EMANCIPATÓRIO

Juliana Alves Oliveira Chaves - Especialista em Estudos Literários pelo IBPEX; Graduada em Licenciatura Plena em Letras pela UNEB (Campus IV/Jacobina); Bacharelando em Direito pela UNEB (Campus IV/ Jacobina), cursando o terceiro semestre. Jussivan Ribeiro da Gama – Licenciado em Pedagogia para a Educação Infantil e Séries Iniciais pela UNEB (Campus XVI/Irecê); Bacharelando em Direito pela UNEB (Campus IV/Jacobina), cursando o terceiro semestre; Soldado da Polícia Militar do Estado da Bahia. Lucas de Santana Oliveira - Bacharelando em Direito pela UNEB (Campus IV/Jacobina), cursando o terceiro semestre. Marcus Costa de Santana - Bacharelando em Direito pela UNEB (Campus IV/Jacobina), cursando o terceiro semestre. Monique Santana de Oliveira - Graduada em História pela UNEB (Campus IV/Jacobina); Bacharelanda em Direito pela UNEB (Campus IV/Jacobina), cursando o terceiro semestre. Paloma Oliveira de Jesus Jambeiro - Bacharelanda em Direito pela UNEB (Campus IV/Jacobina), cursando o quinto semestre. Railson do Nascimento Silva - Bacharelando em Direito pela UNEB (Campus IV/Jacobina), cursando o quinto semestre. Tainan Alves dos Santos Senna - Bacharelanda em Direito pela UNEB (Campus IV/Jacobina), cursando o terceiro semestre. Ziron Sousa Rodrigues Filho - Bacharelando em Direito pela UNEB (Campus IV/Jacobina), cursando o terceiro semestre.

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