Crio Personagens e Invento Situações para Construir Espaços de Liberdade

June 3, 2017 | Autor: Carlos Fragateiro | Categoria: Teatro, Teatro Latinoamericano
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Crio Personagens e Invento Situações para Construir Espaços de Liberdade Carlos Fragateiro

“Tudo aquilo que o homem é capaz de fazer, todos os homens são igualmente capazes.(...) Todas as pessoas podem dirigir um país, até mesmo os políticos. Todas as pessoas podem guerrear, até mesmo os soldados. Todas as pessoas podem escrever, até mesmo os escritores. Todas as pessoas podem falar, até mesmo os oradores. Todas as pessoas podem fazer teatro, até mesmo os actores!." Boal 1980

A minha obsessão, e falo de obsessão porque o trabalho de pesquisa obriga a que estejamos obsessivamente à procura de algo, ou, por outras palavras, que estejamos profundamente apanhados por uma ideia, é a da personagem, da personagem principal, pois para mim hoje é fundamental que cada um assuma como principal objetivo a sua condição de personagem principal da sua própria vida. Tenho cada vez mais consciente que a sociedade atual tudo faz para que cada um não seja mais do que um figurante da sua própria vida, espectador passivo de objetos que outros produzem, peça duma cadeia de produção cada vez mais automatizada, consumidores de produtos que outros desenham, numa prática quotidiana onde somos meras peças duma grande máquina que acaba por ser conduzida e controlada por aqueles que socialmente se consideram no direito e com todo o poder de manipular. Como se voltássemos aos Tempos Modernos que Chaplin também retratou no seu filme, como se a Sociedade Irracional de que nessa altura se falava, tivesse finalmente ganho direito de cidadania. E tudo isto enquadrado por um grande sistema de controlo, onde todos os nossos passos podem ser escrutinados, pois os sistemas de vigilância estão tão sofisticados que até são capazes de nos convencer que nunca fomos tão livres como no interior deste sistema capaz de policiar o mundo inteiro. Como se finalmente o “1984″, de George Orwell se tivesse tornado realidade. E isto é feito em contracorrente ao que hoje nos mostram os avanços da neurociência, e da tomada de consciência das múltiplas potencialidades que tem o nosso cérebro e que até agora fomos incapazes de explorar, dos estudos sobre os modelos de organização das comunidades e das empresas, onde não basta haverem grandes líderes para que as coisas funcionem, pois não serão eficazes se não tiverem com eles pessoas autónomas, capazes de produzir ideias, de trabalhar em equipa e com toques de 1

genialidade. A estrutura das orquestras e das equipas desportivas são hoje uma referência em termos organizativos, e não é por acaso que cada vez vemos mais gestores e líderes de opinião a frequentarem cursos, dirigidos por treinadores ou maestros, para perceberem a lógica de funcionamento duma grande orquestra ou duma equipa desportiva de referência. Nas performances desportivas ou musicais não é possível pensar que o maestro ou o treinador são o centro de tudo, os grandes responsáveis pelo sucesso, pois no terreno de ação a performance de cada músico ou atleta é fundamental, assim como o trabalho de equipa, e as grandes vitórias e as interpretações geniais devem-se à capacidade da equipa para trabalhar em conjunto, ao talento e genialidade de cada jogador, e, naturalmente, à capacidade e ao modelo da liderança.

O Lugar do Teatro

Ao mesmo tempo que estava a ultimar este artigo, preparava uma formação sobre as práticas de teatro enquanto espaços de libertação, e este andamento conjunto entre a estruturação do plano de formação, a sua realização e a escrita do artigo, acabou por criar um sistema de vasos comunicantes que acabaram por influenciar e transformar tanto a minha prática na oficina de formação, como a estrutura deste texto. E porquê? Considero o teatro como a manifestação humana onde tudo pode acontecer, como um espaço e um tempo onde cada um pode dar corpo e tornar visíveis as suas potencialidade de dar corpo e comunicar uma ideia, e o sentido de presença é hoje fundamental para cada um de nós, sem esse sentido não passaremos de sombras que furtivamente vagueiam pelo mundo, mas que nunca ninguém verá ou ouvirá falar, de quem nunca se dará conta. Falamos de uma presença que tem voz, e da oportunidade dessa voz ser ouvida, pois se o personagem não tem voz nunca poderá ser um personagem principal, num jogo que abre a possibilidade de cada um jogar diferentes personagens, os personagens que tem dentro de si e que o quotidiano social em cada momento faz crescer e transformar, e ao interpretá-las descobre outras perspetivas, descobre a multiplicidade do seu ser que é capaz de falar a várias vozes, de interagir com outros personagens e ficcionar situações que revelam o quotidiano, reavivam o passado e inventam os futuros possíveis. Como escreve Boal (2002) na introdução à 5ª edição do livro Jogos para atores e não-atores a “linguagem teatral é a linguagem humana por excelência, e a mais essencial. Sobre o palco, atores fazem exatamente aquilo que fazemos na vida cotidiana, a toda a hora e em todo o lugar. Os atores falam, andam, exprimem as ideias e revelam paixões, exatamente como todos

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nós em nossas vidas no corriqueiro dia-a-dia. A única diferença entre nós e eles consiste em que os atores são conscientes de estar usando essa linguagem, tonando-se, com isso mais aptos a utilizá-la. Os não-atores, ao contrário, ignoram estar fazendo teatro, falando teatro, isto é, usando a linguagem teatral, assim como Monsieur Joudain, o personagem de O burguês fidalgo de Molière, ignorava estar falando em prosa, quando falava.”(p. IX)

A prática do teatro deveria hoje ser uma prática obrigatória, entendendo a ideia de obrigatário como algo que cada um de nós sente como fundamental para o seu bem-estar, tal como aconteceu com a ideia da manutenção física e da ida ao ginásio que passou a fazer parte das nossas preocupações quotidianas, no que considero uma vitória estratégica dos especialistas da motricidade humana. Na verdade hoje muito pouca gente diz que não faz manutenção e que não frequenta o ginásio, até porque as nossas mazelas físicas sentem-se, mas em contrapartida muito poucos se preocupam com a manutenção do cérebro, esse músculo da inteligência, pois a única manifestação de que tomamos consciência é a de nos cansarmos quando temos de pensar um pouco mais. E a verdade é que o cérebro é um músculo que se não o treinarmos atrofia como todos os músculos, e daí a nossa ideia do teatro obrigatório, de frequentarmos as oficinas de teatro ou os ginásios da imaginação e da inteligência, uma das estratégias possíveis e necessários para a afirmação do personagem ou dos personagens que habitam dentro de nós, personagens que devem ser capazes de intervir e refletir sobre a realidade social onde vivem, e, ao mesmo tempo, inventar formas de ultrapassar as crises ou de ir cada vez mais longe na afirmação pessoal e comunitária. Personagens que, como acontece com os surfistas que na Nazaré estão à procura de cavalgar a grande onda, sejam capazes de surfar as ondas da crise, de ver e pensar para além da espuma dos dias.

A Revelação

Na prática que normalmente desenvolvo a minha primeira ideia é a de desenvolver uma conjunto de exercícios, para mim já clássicos, onde, a partir de jogos extremamente simples, se criam condições e desenvolvem estratégias para que cada um dos participantes se revele e desvende aos outros, uma prática teatral onde cada pessoa tem espaço para descobrir e viver diferentes personagens e situações, e, ao fazê-lo acorda capacidades desconhecidas ou adormecidas, desenvolve todas as cordas sensíveis do seu ser, revela-se e, em suma, cresce. Tudo começa com uma folha de papel branco, o espaço vazio, onde aos poucos e poucos, tal como no laboratório do fotógrafo, se vão revelando os contornos de cada um e a sua imagem/fotografia se vai tornando cada vez mais nítida e intensa. Aqui a folha 3

branca serve para explicar o modo como percebemos os outros que, num primeiro encontro, não passam de perfis sem nenhuma especificidade, sem nada ou com muito pouco que os e nos diferencie, como uma incógnita que é importante decifrar. O interessante em todo este processo de revelação é que não nos limitamos a dar forma às formas, mas sim a trazer, para o espaço de jogo, as ideias, os sentimentos e as emoções de cada um, dando forma a um espaço de vida que se torna e permite experiências muito mais intensas que no espaço de vida quotidiana. Uma das potencialidades do trabalho do teatro é que não nos estamos a afastar da vida, mas a experimentar uma vida muito mais intensa e condensada, numa vivência que levou e leva a que ao fim das primeiras 3 horas de trabalho experimentemos a sensação que o grupo já se conhecia há muito, muito tempo. É esta capacidade para estar disponível que, em interacção com as energias suplementares libertadas no teatro, na representação dos conflitos, no canto e na dança, no entusiasmo e nos risos, criam condições para que numa hora coisas surpreendentes se possam passar, sem a qual muitos desconhecidos que se encontram durante um curto momento não iriam muito longe. Por isso é que todo o processo concretizado por Boal tem uma importância crucial, principalmente porque não tendo uma mensagem específica, por nunca se dizer faça assim ou faça assado, é, no fundo, um método de descoberta do desejo de cada um ser dono do seu destino, o espaço onde se ensaiam e simulam formas possíveis de realização desse desejo ou desejos.

Cada Pessoa é Personagem Principal

- Chorei, sim, mas foi depois aqui no camarim. Eu me sentei e olhei o espelho! Sabe o que foi que eu vi? - O que foi que você viu? – perguntei, assustado. - Olhei o espelho e vi… uma mulher!... - E antes…o que é que você via, quando se olhava no espelho? - Antes de fazer teatro, no espelho eu via uma empregada doméstica.” Boal 2003

O depoimento desta empregada doméstica representa bem o poder do teatro enquanto experiência humana que nos ajuda na revelação, aqui já não da personagem que neste caso é a da empregada doméstica, mas a de nós mesmos, como acontece com esta mulher que se tinha deixado esconder atrás da sua função e das regras a que essa função a obrigava no dia-a-dia. E o que é preocupante é que estas realidades estão demasiado presentes em muitos dos domínios da nossa vida social, onde cada vez mais 4

pessoas se escondem debaixo da função, num processo onde, tal como acontece com o músculo do cérebro e a capacidade de pensar, se nós não praticamos quotidianamente a nossa própria personagem, se não praticamos quotidianamente o que nós somos no mais profundo do nosso ser, então a nossa personagem, nós próprios, vamos sendo substituídos pela função a que nos obrigaram e onde nos escondemos, e haverá um momento em que o nós já não existe, tendo sido substituído pela função. Por isso como Boal refere no “Stop c’ est magique” (1980, p.26), a prática do teatro é uma prática que toda e qualquer pessoa, independentemente do seu ofício e de não ser um especialista nessa forma de comunicação, pode desenvolver, e daí o nosso apelo para que cada um assuma a sua vocação para fazer teatro, para utilizar o teatro como linguagem, como um efetivo espaço de afirmação e de liberdade. O depoimento da Maria, a empregada doméstica que referimos atrás, torna este trabalho ainda mais pertinente quando antes de ela dizer que finalmente viu uma mulher ao espelho, ela viveu uma realidade que a obrigava, enquanto empregada doméstica, a ser invisível, pois quanto menos fosse vista, melhor. Um quotidiano de por e tirar a mesa, fazer a comida e as camas, lavar e passar, varrer a varanda, limpar o banheiro, banhar as crianças e as levar para escola, e tudo isto sem horário e evitando ser vista porque uma empregada não deve ser vista nunca. Por isso ela aprendeu a ser invisível. Daí o espanto quando ao ensaiar no palco reparou que “um técnico cuidava para que eu estivesse bem iluminada, com a cor dos holofotes adequada ao meu vestido: ele queria que todos me vissem, queria ressaltar minha figura. Uma boa empregada doméstica deve ser cega e muda, e nós aprendemos a nada ver e a emudecer. Hoje à tarde, outro técnico colocou um microfone no meu peito para que a minha voz fosse ouvida até à última fila, lá longe no balcão, mesmo quando eu falava em segredo… “(…) Agora há pouco, durante o espetáculo, a família para a qual eu trabalho, há mais de dez anos, estava inteira na plateia, no escuro, vendo o meu corpo e ouvindo a minha voz. Estavam atentos e calados, eles estavam-me vendo e me ouvindo. Eu trabalho para eles há mais de dez anos e acho que esta foi a primeira vez que me viram de verdade, eles me viram como eu sou e me ouviram dizer o que penso, dizendo alguma coisa mais do que o “sim, senhor; sim, senhora”. Hoje, fazendo teatro, todo o mundo me viu e ouviu! Agora sabem que eu existo, porque fiz teatro.”( Boal, 2003. pp. 12-13)

No fundo estamos a falar de uma experiência onde a pessoa foi levado a confrontar-se e a expressar situações e desejos que há muito estavam esquecidos, de tão interiorizados e reprimidos que foram, num processo cada vez que quanto mais profundo e complexo for, mais rica é a dinâmica de descoberta e de crescimento, num processo de procura do outro que é também o eu. A pessoa, tal como o ator, é exaltada pelo ato de representar e quando representa em boas condições e desenvolve uma verdadeira pesquisa é "melhor" do que o que ela é na vida. Quando cessa de o fazer e volta à vida quotidiana já não é a mesma pois a sua vida alimentou-se da sua experiência no palco, 5

como o que ela representa se alimenta daquilo que ela é na vida. A criação teatral tem de ser entendida como uma viagem ao interior da criação, onde, para aproveitar todas as possibilidades dessa viagem, cada participante deve ser capaz de tentar outros trajetos, de arriscar outras descobertas, para além do roteiro que tinha ou lhe tinham feito à partida.

O Desenvolvimento do Jogo

Se na minha perspetiva a dimensão das narrativas eram encontradas a partir de diferentes associações que cada um teria de fazer a partir de diferentes estímulos, a palavra que se associa a um desenho, o objeto que se desfuncionaliza, a imagem que dá origem a um produto, a história que se conta ao ouvido, recuperando o jogo que os surrealistas faziam com o Cadavre-Exquis, o que permitia combater o óbvio, o encerramento das histórias, procurando sempre novas saídas que só mais tarde, quais peças dum puzzle, eram organizadas. Não tendo à partida nenhuma temática a trabalhar, era para nós claro que as diferentes situaçãoe e histórias que emregiam eram produto direto de cada um dos participantes, das suas preocupações e obsessões, nunca pensando introduzir Temas exteriores ao grupo e com uma forte dimensão social. E foi aqui que o compromisso de escrever sobre o processo do Augusto Boal, numa dimensão que atravessou um longo caminho que o levou do social à terapia, sempre na procura de fazer emergir o mais profundo de cada um, de cada pessoa, que me confrontei com uma notícia de jornal sobre o corte de luz no Bairro do Lagarteiro no Porto e as múltiplas implicações sociais que esses cortes estavam a ter. Se antes tinha tido como preocupação não o conteúdo das histórias/narrativas, mas a forma como se comunicavam, a consciencialização da importância do ritmo, da estrutura dramática, do efeito surpresa, e da qualidade das imagens, e de que para que tudo isso funcionasse era necessário trabalhar com pessoas que estivessem presentes e bem na sua pele, com capacidade rápida de resposta.aos estímulos com que eram confrontadas, capazes de associarem ideias, e com um grande treino de adaptação e flexibilização, a partir do momento em que introduzimos a dimensão do social e encontramos a notícia do Bairro do Lagarteiro e do desligar das luzes e das situações dramáticas que isso provocou, a preocupação principal foi o como inventar uma argumentação que não se limitasse aos sound-bytes e aos discursos histéricos que se tornam inaudíveis e que já não emocionam ninguém.

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A Descoberta da Dimensão Social e Política

Entramos assim numa outra dimensão do teatro, a dimensão de laboratório de produção de um discurso fino e inteligente, onde o contraditório tivesse lugar e houvesse um leque alargado de opiniões que ajudasse a armar os ativistas sociais de argumentos que surpreendessem as pessoas, as levassem a pensar e fossem capazes de provocar emoção. Nada melhor do que recordar o exemplo do Presidente Mandela para perceber como as melhores respostas são as respostas inesperadas e mobilizadores, que numa altura em que toda a gente pensava que o seu projeto era expulsar os brancos da África do Sul, ele teve a visão, foi capaz de criar pilares e plataformas de diálogo que hoje são os suportes das pontes que permitam que a África do Sul tenha o potencial que tem. Neste momento mais do que espaço de libertação e descoberta do personagem de cada um, o teatro assume-se como um espaço do pensamento, de reflexão e invenção do novo mundo, enquanto prática que tem como terreno de ação a própria vida, onde a pessoa é o centro de todas as preocupações, coloca-o num lugar privilegiado da prática social. Um lugar privilegiado de onde podem emergir algumas das respostas às questões colocadas por aqueles que, nas diferentes áreas do saber, têm consciência que a actual fragmentação e especialização do conhecimento científico tem forçado o homem a abandonar o seu desejo de unidade do conhecimento. Fragmentação e especialização do conhecimento que se torna cada vez mais pertença de especialistas, o que impede que o homem, porque não lhe é devolvida uma imagem unitária do mundo em que ele vive, possua uma

teoria unificada no interior da qual possa encontrar pontos firmes de

referência para a compreensão da sua própria condição. O teatro tem o potencial - que não existe em nenhuma outra forma de arte - de substituir um ponto de vista único por uma multiplicidade de outras perspectivas. O teatro pode mostrar ao mesmo tempo um mundo em várias dimensões, enquanto o cinema, ainda que procure desde sempre o relevo, fica confinado a um único plano. Porque os homens do teatro são uma espécie de caçadores furtivos que, servindose do que têm à mão, procuram em todas as áreas o que pode ser útil e operacionalizam no fazer saberes e métodos de todas as disciplinas, a função das práticas teatrais no interior da estrutura social será a de descobrir relações ou ligações entre as áreas do saber, provocando encontros, motivando projectos e inventando novas práticas que obriguem a sair do pensamento encaixotado, a não se deixar fechar dentro do politicamente correto, a arriscar afrontar o desequilíbrio, o imprevisto e a insegurança, 7

trazendo para a comunidade a paixão e o mistério, a capacidade e a fantasia, a prospectiva e a utopia. Nesta perspetiva a intervenção do teatro poderá e deverá vir a ter um papel privilegiado no reforço desses traços de união e no estímulo a todo o tipo de trocas e de contaminação entre as áreas de conhecimento e na criação de projectos de fronteira. É para nós claro que o espaço da criação teatral deve ser o lugar onde, ao mesmo tempo que nos aventuramos no estudo e análise da história das ideias e dos movimentos sociais de que as artes são reflexo e produto, os resultados desse estudo devem ser confrontados com os da realidade actual onde a criação teatral tem lugar, o que dará ao espaço do teatro o privilégio de poder vir a ser em laboratório onde seja possível fazer a ponte em permanência entre o passado e o presente, entre a arte e as tecnologias, entre as diferentes áreas do conhecimento. Um processo que implica o suporte de um quadro teórico de referência que lhe sirva de suporte, quadro esse que só pode ser criado se se for capaz de transformar cada unidade de intervenção teatral num forum de discussão, debate e produção de pensamento. É preciso reconhecer que as práticas teatrais são, desde há muito, portadoras de potencialidades interdisciplinares, mobilizadoras dos mais diversos conhecimentos e competências. Os homens de teatro são desde sempre uma espécie de "caçadores furtivos", servindo-se do que têm à mão, procurando em todas as áreas o que lhes pode ser útil, operacionalizando no fazer saberes e métodos de todas as disciplinas. As expressões artísticas sentem-se bem na ligação das coisas, como pontes entre universos distintos. Pensando em como o teatro pode efetivamente ser não só um espaço de libertação da pessoa das suas opressões, num processo individual e de grupo de tomada de consciência, as práticas teatrais podem ir mais longe e pensar ou ajudar a que cada individuo trabalhe sobre a dimensão do mundo e dos desafios com que se confronta. Esta a razão por que fui recuperar um projeto já com alguns anos que hoje ganha uma pertinência redobrada. Porque o futuro passará pela procura sistemática da nossa terra incógnita, da nossa terra prometida, num barco que hoje atravessaria todos os mares e que poderia ou deveria tentar aportar em Lampeduza. Terra Incógnita Terra Prometida – O Mar como espaço da não fronteira “Fechar fronteiras é entregar as chaves às mafias. (...) Se os países ricos e desenvolvidos não tiverem a inteligência e a necessária vontade para mobilizar recursos para tratar a questão dos emigrantes

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acabarão, também eles, com navios em insuportável deriva no seu interior”. Sena Santos 2001

Um barco carregado de refugiados aguarda à entrada de um porto, algures na Europa, na África ou na costa da Austrália, autorização para acostar, autorização que acaba por não chegar. A Terra Incógnita começa assim, neste barco ou nestes barcos cheios de gente que acreditaram que as fronteiras caíam com os muros e que de repente tomaram consciência que outros muros e outras fronteiras emergiram duma forma extremamente violenta, só lhe deixando o mar como espaço da não fronteira para fugirem. Só que esta fuga para o mar, para o espaço da não fronteira, fecha-lhes definitivamente todas as fronteiras, pois quem se arrisca a ser contaminado pela ideia da não fronteira dificilmente voltará à normalidade que a existência dos espaços de fronteira exige, e é assim que aos passageiros destes navios só lhes resta fazerem-se outra vez ao mar, assumirem-se definitivamente como habitantes da não fronteira e inventar aí um novo mundo, a “Terra Incógnita Terra Prometida”. Tudo começou com o movimento que veio dar origem à queda do muro de Berlim. Pensava-se então que, com o alargamento das brechas que começavam a aparecer nas zonas fronteiriças, a comunicação passava a ser mais fácil e o diálogo e a interacção entre as diferentes culturas europeias passaria a ser uma realidade. Puro engano, pois tinha-se desvalorizado o facto de que quando os muros desabam as pedras, em vez de desaparecerem no ar como por encanto, tombam para os dois lados e provocam alguma agitação. E na realidade a agitação foi tão grande que levou a que, contrariamente à ideia de uma Europa sem Fronteiras, estejamos a assistir ao ressurgir de novos muros que até aqui estavam adormecidos e que se têm revelado muito mais violentos que os muros e as fronteiras até então dominantes. A Europa vive hoje no interior de um processo conflitual entre uma realidade que tem na antiga Jugoslávia uma zona de fronteira extremamente violenta e as tentativas de alargamento da ideia de um espaço europeu sem fronteiras, como acontece com o projeto da Comunidade Europeia. E a realidade é tão contraditória que podemos dizer que hoje na Europa se estão a fechar as pontes entre os espaços de fronteira e de não fronteira, com os territórios que se querem afirmar como da não fronteira a construírem imensas fortalezas para impedir a entrada de gente provenientes dos países e das comunidades de fronteira, de tal forma que, por exemplo, à porta de Ceuta, a parte de Espanha que tem de proteger a fronteira sul da Europa da pressão magrebiana e centro-africana, foi já construída uma estrada de nove quilómetros na qual se colocarão muros elevados, redes e câmaras de televisão para impermeabilizar a 9

fronteira. Esta realidade que nos parece longe, mas com a qual nos confrontamos continuamente, voltou a acontecer recentemente com o navio Tampa que recolheu 438 náufragos, curiosamente saídos ou em fuga do Afeganistão, e que foram obrigados a ficar, em muito más condições de saúde e higiene, fundeados ao largo da Austrália, pois o governo australiano argumentou que “não podemos permitir que a Austrália seja vista no mundo como um país de destino fácil”, quando todos sabemos e estamos conscientes de que a Austrália foi construída por emigrantes que por acaso, ou não, eram brancos. Como escreveu Sena Santos “o caso do Tampa é simbólico. É o nosso navio, é o nosso destino, representa o nosso tempo. Faltam na terra lideranças políticas voluntariosas, ao mesmo tempo visionárias, sensíveis e determinadas. A questão das migrações sejam genuínos refugiados políticos que procuram escapar a perseguições, sejam os que fogem da pobreza – é uma das mais sérias na agenda internacional de hoje.”(p.11)

Estas situações acontecem diariamente com os cidadãos do leste que entram em Portugal, com os que sulcam o estreito de Gibraltar ou as águas do Adriático, sulcados por uma “humanidade desesperada em barcos que tantas vezes não resistem ao peso dos passageiros ou à agitação do mar. Não sabemos quantas cargas humanas terão sufocado dentro de um contentor como aquele que foi descoberto no ano passado na doca de Dover.”(op.cit., p.11) O projeto “Terra Incógnita – Terra Prometida” propõe-se, através da construção de um discurso e de um produto artístico, ficcionar múltiplas hipóteses sobre o que será ou poderá vir a ser essa Terra Prometida, ou esse novo mundo, num discurso e numa prática artística que se assume como o espaço privilegiado de revelação dos movimentos e dinâmicas sociais emergentes e de invenção de uma outra realidade, do futuro. Um processo artístico que nos interessa não como algo fechado no discurso das artes, mas que parta desse mundo para simular um mundo outro, numa “Terra Incógnita – Terra Prometida” onde o homem seja entendido na sua globalidade e a felicidade seja possível. Isto implica também com as metodologias a utilizar, pois pensar hoje a criação artística num mundo que se quer em profunda mudança e sem fronteiras, obriga-nos a criar condições para que as várias áreas artísticas sejam obrigadas a largar a segurança em que vivem e que tem por base a defesa do seu estatuto enquanto disciplina, arriscando-se a entrar em diálogo com outras práticas artísticas e a perder-se nestas zonas difusas que são as zonas de todos e de ninguém, as zonas de fronteira. “Terra Incógnita Terra Prometida” é, no fundo, um projeto de procura de uma terra 10

onde o lazer seja algo de corpo inteiro e não um tempo livre entendido como tempo de passagem, de fronteira, onde se recuperam as energias entre dois tempos que não são livres, os tempos de trabalho, e onde a maior parte dos clientes são, na maior parte dos casos, consumidores ou espectadores passivos de diferentes acontecimentos ou produtos mais ou menos espetaculares. Na realidade há que ressituar a intervenção dos projetos de lazer no tempo de hoje, um tempo onde o próprio mundo do trabalho começa a tomar consciência de que não necessita unicamente de braços e mãos que sejam capazes de responder às rotinas das cadeias de montagem, mas também, e fundamentalmente, de homens e mulheres capazes de pensar e responder em cada momento a situações imprevisíveis. A ideia da invenção da “Terra Incógnita – Terra prometida” será desenvolvida paralelamente a um outro trabalho sobre esse momento mágico que é o “Eureka” que terá como tema central as invenções e os inventores que fizeram avançar o mundo, projecto que queremos que seja um desafio à necessidade de invenção dos espectadores enquanto actores de uma sociedade que necessita de gente com efectiva capacidade de descobrir novas ideias, uma provocação para todos aqueles que querem ser actores do desenvolvimento, pessoas de corpo inteiro neste mundo em mudança. Um processo e um trabalho que irá estar intimamente ligado ao desenvolvimento do processo de trabalho para criação do espectáculo sobre o mundo novo, o futuro, espectáculo onde tomarão forma e se ficcionarão os mundos que nós tivemos capacidade de inventar, num projecto que nos vai permitir visualizar os mundos possíveis e utópicos, a “Terra Incógnita – Terra Prometida”.

Carlos Fragateiro

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Bibliografia Boal, Augusto (1980), Stop: c´est magique, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira Boal, Augusto (1996), Teatro legislativo: versão beta, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira Boal, Augusto (2002), Jogos para atores e não atores, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira Boal, Augusto (2003), O teatro como arte marcial, Rio de Janeiro, Garamond. Boal, Augusto (2009), Teatro do oprimido e outras poéticas políticas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira Orwell, George (2007), 1984,Lisboa, Antigona.

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