Criptomoedas - um novo paradigma

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CRIPTOMOEDAS – UM NOVO PARADIGMA. Nicole Julie Fobe

RESUMO. O presente artigo tem por objetivo realizar um estudo descritivo das criptomoedas – e particularmente de sua espécie mais conhecida, o Bitcoin – classificando-as como forma monetária inserida no grupo das moedas paralelas. Atentar-se-á, no entanto, às peculiaridades deste novo instrumento, que se diferencia dos instrumentos criados por particulares até o presente – principalmente devido ao seu caráter desinstitucionalizado e “anárquico” – como descrito pelos próprios usuários. Para uma melhor diferenciação, explorar-se-á ainda um outro caso prático, o caso do Banco Palmas, conhecido por ter aliado a coesão de uma comunidade à emissão e circulação de uma moeda própria de circulação restrita que levou a um desenvolvimento significativo da comunidade. A utilização das criptomoedas, no entanto, além de trazer vantagens e desvantagens tanto para os seus utilizadores quanto para o sistema monetário como um todo, carrega ainda o emblema da mudança de paradigma que pode ser observada desde Bretton-Woods: assiste-se a um deslocamento dos centros responsáveis pela política monetária então consagrados como exclusivos e necessários para tanto – os Bancos Centrais –, para iniciativas particulares (por vezes dotadas inclusive de incentivo público) que têm por objetivo desafiar e propor alternativas ao sistema consagrado. PALAVRAS-CHAVE. Moeda – Moedas Paralelas – Criptomoedas – Bitcoin – Direito e Desenvolvimento – Política Monetária.

1.

INTRODUÇÃO. .... nada é mais difícil na sua preparação, mais duvidoso no êxito e mais perigoso nos seus efeitos que estar junto com pessoas que querem promover inovações. Nicolau Maquiavel.

A vida em sociedade pressupõe uma série de convenções que, se não forem seguidas, tornam a convivência difícil ou impossível. Duas dessas convenções, a moeda e o direito, acabam se encontrando em diversos pontos teóricos e práticos – por vezes, coexistindo pacificamente e, em outras, trazendo relações de complexidade e inevitáveis conflitos.1 As moedas paralelas, que põem em cheque a soberania nacional e levam a diversas contradições econômicas e jurídicas, são um bom exemplo de complexidade com a qual o direito ainda não consegue lidar. Diversos países tendem a regular ou proibir suas subespécies – duas das quais serão aqui desenvolvidas, como as moedas sociais2 e as criptomoedas. Este trabalho tem por objetivo, em primeiro lugar, construir um diagnóstico de duas formas de moedas paralelas. A primeira parte tratará da conceituação dos meios de pagamento paralelos e trará, ainda, a contextualização de uma de suas espécies, mais tradicional e “simples”, se comparada à complexidade tecnológica atrelada às criptomoedas. Cada uma 1

Não se abordará, nesta parte introdutória do trabalho, uma definição exaustiva de moeda, tampouco far-se-á uma retrospectiva histórica – que já foi extensivamente desenvolvida tanto por autores da Economia quanto por autores da Sociologia. Fato é que o instituto “moeda” é dotado de tamanha complexidade econômica, sociológica e jurídica que seria impossível oferecer novo conceito sem extrapolar o verdadeiro objetivo deste trabalho. Para os nossos fins, no entanto, assume-se como ponto de partida que o fenômeno monetário pode ser analisado sob três aspectos: (i) o aspecto jurídico, que compreende o estudo da moeda como um fenômeno regulado pelo Estado, em que se considera moeda aquilo que o Estado estipula como o sendo; (ii) o aspecto econômico, no qual a moeda é o meio de troca necessário para que sejam realizadas transações concernindo bens e serviços, além de assumir também o papel de reserva de valor; e (iii) o aspecto sociológico, em que moeda é definida como o instrumento – devidamente reconhecido por determinada comunidade – apto a promover trocas. Importa, aqui, a análise do aspecto sociológico e as suas implicações no mundo jurídico. 2 As moedas sociais têm despertado diferentes reações estatais. Na maioria dos casos – como no brasileiro – elas são consideradas um movimento inexpressivo e passam a ser ignoradas pelos bancos centrais. Se, no entanto, elas assumem um papel importante e passam a ser bem-sucedidas, a segunda reação mais comum é proibi-las por meio de normas. É o caso, por exemplo, da Áustria e Alemanha nos anos 30. A terceira reação – que só tem um reflexo na realidade – é aquela adotada pelo banco central da Nova Zelândia, que não apenas tolera as moedas sociais como as considera um meio para reduzir o desemprego e a inflação (afinal, se há mais “dinheiro” em circulação, o Estado pode retirar, pouco a pouco, a moeda oficial e controlar os preços com a ajuda da moeda paralela). (LIETAER, 1999, p. 115). 1

delas possui peculiaridades e diferenças substanciais, mas ambas passam ao largo da regulação estatal e procuram, de alguma forma, suprir aquilo que o Estado não consegue prover. As moedas sociais “fecham” determinada comunidade monetariamente, proibindo a circulação da moeda oficial e regionalizando, com isso, o desenvolvimento econômico. Já as criptomoedas, dentre as quais o Bitcoin é o exemplo mais conhecido, esmeram-se por promover a circulação e emissão do instrumento sem a organização e regulação de um banco central. O estudo das criptomoedas é o objeto da segunda parte do trabalho, que tratará da contextualização dessa nova forma monetária, suas vantagens e desvantagens e um diagnóstico de mudança de paradigma desencadeada pela sua utilização. A terceira parte do trabalho apresenta, a título de conclusão, reflexões acerca desses movimentos e a sua relação com a) no caso das moedas sociais, uma postura inexiste do Estado, qual seja, a de não prover a seus cidadãos condições básicas de desenvolvimento; e b) no caso das criptomoedas, a postura ativa do Estado no tocante à regulação, que é vista pelos usuários do sistema como prejudicial à circulação e ao desenvolvimento econômico. 2.

MOEDAS PARALELAS. A. CONCEITO. “No caso da unidade monetária (...) encontramos um substantivo que, aparentemente, é utilizado para denotar um objeto. Mas não há objeto algum; a palavra cessou de denotar algo. Sem dúvida, ela desempenha um papel importante quando é utilizada de certa maneira, de acordo com o direito e com os costumes sociais. É pelo seu intermédio que se realizam todos os intercâmbios de bens e serviços (...). Ninguém se interessa por perguntar quais os supostos objetos designados pela palavra que menciona a unidade monetária; os bens, o serviços, as posições negativas e os meios para se liberar delas são o que realmente interessa.” (OLIVECRONA, 2002, p. 40. Tradução livre).

Afinal, o que efetivamente constitui uma moeda?3 O que define um instrumento como sendo suficiente para carregar, em si, um valor reconhecido

3

Para uma análise histórica do surgimento das moedas, ver as obras do autor SERVET, JeanMichel, principalmente “Essai sur les origines des monnaies” e “Genèse des formes et pratiques monétaires”, ambas no Cahiers monnaie et financement, nº 8 e nº 11, respectivamente. 2

por determinada sociedade? A proposta que se defende é que, além de uma mera imposição estatal, a moeda é, antes de tudo, um fenômeno social. 4 É o reconhecimento por uma determinada comunidade de usuários que faz com que certo meio circulante tenha valor e seja amplamente aceito para intermediar trocas e transações. Assim, moedas paralelas são aquelas que carecem de reconhecimento jurídico por parte do Estado, mas são utilizadas e reconhecidas enquanto meio circulante por aqueles que as empregam. Tanto as moedas sociais quanto as criptomoedas são espécies do gênero moedas paralelas. As moedas paralelas, por sua vez, são aqueles instrumentos monetários5

utilizados

por

determinada

sociedade

em

conjunto

ou

paralelamente ao instrumento monetário oficial do país. A dolarização de uma economia, por exemplo, consiste em que o dólar seja uma moeda paralela a uma outra moeda. Atualmente, no entanto, assistimos ao surgimento de diversos instrumentos monetários paralelos, que não mais se restringem a moedas estrangeiras. Estes instrumentos paralelos têm, por característica, (i) o fato de serem unidades de cobrança diferentes da unidade de cobrança nacional e (ii) não serem dotados do poder liberatório legal. (BLANC, 1998). Aliás, o fato de uma moeda ser ou não considerada forte e segura por seus utilizadores não altera o surgimento das moedas paralelas, embora nos períodos de crise econômica recrudesça fortemente a criação e circulação desses instrumentos. Abaixo temos um gráfico6 que mostra a criação, nos Estados Unidos, de sistemas de trocas locais. Nem todos fazem uso de instrumentos físicos reconhecidos por “moedas”, mas podemos ter uma ideia

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Moeda é, ao mesmo tempo, uma linguagem específica (o sistema de contas), um objeto (os instrumentos de pagamento), e uma instituição (as regras de moedagem). Ela não é somente um objeto, uma mercadoria meio de troca mercantil, como em seu sentido mais comum na economia; ela não se reduz tampouco a uma simples linguagem especial de comunicação, como na visão destacada por alguns sociólogos; mas ela não é também apenas uma instituição, um sistema de regras, tal como o afirma frequentemente a economia institucionalista. Ela é um fato social total que tem simultaneamente estas três dimensões, o fenômeno da moeda sendo ao mesmo tempo econômico, político e simbólico. (THÉRET, 2008, p. 25). 5 Por instrumento monetário adotamos a concepção de Jérome Blanc (1998), que reconhece o caráter monetário a determinado instrumento quando este assume a função de cobrar e pagar. 6 Retirado de: https://ijccr.files.wordpress.com/2012/05/ijccr-vol-12-2008-1-demeulenaere.pdf. Acesso em 27/03/2014. Este gráfico é parte de um relatório anual que cataloga todas as experiências de instrumentos monetários complementares. A íntegra do relatório pode ser acessada no endereço http://www.complementarycurrency.org/ccDatabase/les_public.html. 3

do número e do desenvolvimento de alternativas ao sistema econômico vigente com o passar dos anos.

B. AS MOEDAS SOCIAIS. As moedas sociais são retratadas, pelo professor Jérome Blanc, como moedas criadas por grupos sociais sem que haja uma finalidade comercial específica ou qualquer tipo de intervenção estatal no processo. A lógica desses instrumentos é o fomento de uma circulação local e recíproca de riquezas, organizado sobre um sistema de confiança comunitária. Entre 1988 e 1996, cerca de 10% dos instrumentos monetários utilizados mundialmente podiam ser classificados como moedas sociais. As moedas sociais têm como importante característica a integração social dos seus atores, bem como o fator primordial e de extrema importância da confiança. É a confiança em um objetivo comum, em uma determinada comunidade e, principalmente, nos seus líderes que levarão, conjuntamente, ao sucesso ou fracasso de uma iniciativa de emissão de moeda social. Os sistemas monetários paralelos e, particularmente, as moedas sociais, vão de encontro ao aspecto da soberania estatal que reconhece uma moeda única, exclusiva e própria do Estado. Elas têm por base, portanto, a lógica do incentivo à circulação7 em um grupo bastante reduzido de pessoas como forma 7

O incentivo à circulação como forma de desenvolvimento econômico foi tratado, de forma mais pormenorizada, por Silvio Gesell, economista alemão que desenvolveu a tese dos “juros invertidos”. De acordo com o teórico, um fator preponderante que tolhe a circulação da riqueza nos dias atuais é o fato de o dinheiro “guardado” em um banco, ou seja, o dinheiro que está fora do ambiente da circulação, render juros. Isso estimula o comportamento de apropriação e posterior retirada de circulação. Gesell propõe, então, uma lógica inversa: o dinheiro guardado deve, na verdade, perder o seu valor por meio de juros negativos, que depreciariam dia a dia a 4

de promover o desenvolvimento econômico, utilizando-se, para isso, de instrumentos físicos identificados e utilizados enquanto moeda. Mas o que faz surgir essa necessidade de instrumentos paralelos? Por que uma comunidade carente precisa tomar para si uma tarefa de promoção do desenvolvimento quando, em tese, esta função caberia ao Estado? Como veremos adiante, fato é que o Estado Nacional como o conhecemos não consegue mais abarcar e responder às exigências dos seus cidadãos. Atende-se expectativas dos grupos sociais que se conseguem fazer ouvir, enquanto as comunidades carentes, as pessoas excluídas da ordem econômica não conseguem, sem um mínimo de organização, inserir-se em um diálogo com o poder público. Sendo assim, e no caso brasileiro, principalmente, o povo toma para si atividades e objetivos que deveriam caber ao Estado8, simplesmente por reconhecer neste uma incapacidade ou falta de vontade em reconhecê-los enquanto cidadãos, destinatários de direitos sociais e civis. Isto nos conduz ao terceiro estado da moeda, seu estado propriamente social, o estado institucionalizado no qual ela aparece como a forma política de uma comunidade de pagamento que não é outra coisa senão o todo social representado sob forma monetária. (THÉRET, 2008, p. 16).

Moedas sociais são, portanto, moedas em sentido jurídico. Elas são moedas por articularem instrumentos concretos que permitem a compra e o pagamento de dívidas, por atuarem enquanto um “sistema de resolução de dívidas que se traduz pela existência de um sistema de pagamentos”, e por assumirem, em uma lógica sistemática, também um caráter institucional – afinal, a instituição “moeda” é caracterizada, de um lado, por regras constitutivas e, por outro, pela socialização dos seus atores. (BLANC, 1998, p. 8).

quantia retirada de circulação. Isso estimularia, para ele, uma maior circulação do capital e, consequentemente, um maior desenvolvimento econômico. 8 Jérome Blanc (2006, p. 4) justifica da seguinte forma a emissão de moedas por um grupo de indivíduos (em contraposição ao Estado): “while local public administration’s goals are mainly to protect or stimulate local economics or to finance themselves (when it is not a case of claiming sovereignty), groups of citizens either aim at stopping a currency shortage or at transforming the nature of exchanges according to an ideological basis, whereas businesses aim at organizing exchanges and purchases on the basis of which they can develop their activity.” (Grifou-se). 5

C. O CASO DO BANCO PALMAS.9 Os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui facilmente, com a cumplicidade ou a indolência displicente das instituições e costumes (Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil). Portanto, quanto mais lentas (ou postergadas) são a estabilização econômica e a reforma social, (...) mais as desigualdades se agravam e mais se debilita o acordo moral básico do qual dependem a manutenção da ordem democrática e o funcionamento da economia. E quanto maior é a velocidade desse processo, menor é a efetividade dos direitos fundamentais restabelecidos pela abertura política, uma vez que a miséria, as decepções e a falta de perspectivas minam a estabilidade institucional, esgarçam os laços de solidariedade e abrem caminho para o ‘hobbesianismo social’”. (FARIA, 2010, p. 129-130)

O Banco Palmas configurou a primeira experiência brasileira em se tratando de moedas sociais. O banco comunitário existe até hoje e atualmente coordena e auxilia na criação de novas iniciativas semelhantes. Tudo começou em uma favela de 30.000 habitantes, no interior do Ceará, quando alguns líderes de uma comunidade extremamente carente deram início ao primeiro caso de sucesso dos bancos comunitários.10 11

9

Parte do expôsto nesta seção é resultado, em parceria com o colega Renato Vilela, de pesquisa financiada pela FGV no âmbito do projeto da Casoteca. A íntegra dos resultados pode ser conferida em http://direitogv.fgv.br/casoteca/moedas-sociais-mecanismo-dedesenvolvimento-desafio-multidisciplinar. 10 Ainda não há, no Brasil, marco regulatório que trate de moedas complementares. Muito embora a Constituição Federal de 1988 disponha que é competência exclusiva da União a emissão de moeda (art. 164), argumenta-se que as moedas sociais possuem natureza diversa da moeda nacional de curso forçado, além de não terem por objetivo – teoricamente – a substituição ou restrição ao uso do Real. Atualmente, o Banco Central e a SENAES (Secretaria Nacional de Economia Solidária) estudam uma possível parceria para regular a moeda social. Tramita também no Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar nº 93/2007, apresentado pela deputada Luiza Erundina. O PL estabelece a regulamentação dos bancos comunitários e das moedas sociais. Dispõe o artigo 10º: “Art. 10º Os Bancos Populares de Desenvolvimento Solidário estão autorizados a prestar os seguintes serviços financeiros, nas condições e limites fixados pelo Conselho Nacional de Finanças Populares e Solidárias, e mediante expressa autorização do mesmo: X - Operar moedas sociais de circulação adstrita à sua área de atuação;” 11

Para uma análise detalhada da iniciativa dos bancos comunitários, ver FERREIRA, 2014, pp. 56 e ss. 6

R$1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil Reais). Era essa a quantia gasta mensalmente por todos os moradores do Conjunto Palmeira. 12 Diante dessa quantia, os líderes da Associação de Moradores perguntaram-se como o bairro podia ser tão pobre, e chegaram à conclusão de que o problema não estava na arrecadação, e sim na circulação do dinheiro: os moradores gastavam fora do Conjunto, ou seja, ganhava-se o dinheiro na comunidade, mas não se gastava nela: o desenvolvimento era tolhido pelos próprios habitantes. Surge então uma proposta visando à permanência do meio circulante no próprio bairro. Como já havia sido experimentado com sucesso em outros lugares (como o WIR, na Suíça e o LETS, no Canadá e Estados Unidos), deu-se início à implantação de um mecanismo alternativo à moeda oficial: o Palma. Os líderes comunitários reuniram-se com os comerciantes da região, com ONGs13, com parceiros estrangeiros14 e com instituições financeiras15 e iniciaram a emissão da primeira moeda social brasileira. A integração entre todos os grupos econômicos da região foi vital para o sucesso do empreendimento. Como se verá adiante, a relação de confiança é fundamental à concepção de moeda social – e ao conceito de moeda como um todo. Para manter a moeda circulando apenas no bairro, e coibir a “fuga” de capital16, a implantação do sistema baseou-se em duas frentes: os comerciantes e os consumidores. Comecemos a análise pelos comerciantes.

12

Conforme o Informativo do Banco Palmas do ano de 2009. Dados mais detalhados podem ser encontrados no Relatório “Avaliação de Impactos e de Imagem: Banco Palmas - 10 anos”, na p. 20. 13 As ONGs que colaboraram com a implantação do Banco Palmas foram (i) a Cearah Periferia, que emprestou os primeiros R$ 2.000,00 necessários ao funcionamento do banco e (ii) a Sitawi, que também contribuiu com recursos. 14 O InStroDI (Instituto Strohalm de Desenvolvimento Integral) é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) que existe no Brasil desde 2002. O Instituto é parte da Fundação holandesa STRO (Social Trade Organisation), que desde 1970 fornece know-how, treinamento e recursos a iniciativas locais de desenvolvimento. 15 O Banco do Brasil, por meio do Banco Popular do Brasil (BPB), disponibiliza uma carteira de crédito para o Instituto Palmas no valor de 1,5 milhão de Reais, e atua como correspondente bancário em outras comunidades, aceitando o Palmas para o pagamento de contas e demais ações bancárias. Além disso, em 2009 o Banco Central assinou um termo de parceria com o Ministério do Trabalho (SENAES) para criar um marco regulatório que tenha por objeto os bancos comunitários e as moedas sociais. 16 A grande lógica inerente às moedas sociais está ligada ao “fechamento” da comunidade promovido pela circulação de uma moeda local. Em síntese, a moeda oficial pode ser gasta “fora” da região, o que contribui para um escoamento da riqueza gerada na comunidade. A partir da emissão de uma moeda social, consegue-se inverter este processo, já que a moeda 7

Os comerciantes que desejavam expandir seus negócios podiam fazer um empréstimo do Banco Palmas em Reais, mas só podiam saldar sua dívida em Palmas. Se, posteriormente, o comerciante precisasse efetuar uma compra de um fornecedor externo à comunidade, ele poderia trocar os Palmas que tivesse por Reais. Isso forçaria o comércio local a aceitar a moeda local em vez do Real. Além disso, convencionou-se, para o bem da comunidade, que os empreendedores deveriam dar um desconto de 5 a 10% aos clientes que realizassem seus pagamentos em moeda social. Essa estratégia tinha por objetivo não apenas popularizar o uso dessa moeda, mas também aumentar a confiabilidade da população e, como benefício ao comerciante, haveria ainda a fidelização do consumidor. Em 2009, 240 empreendimentos, entre produção, comércio e serviços, aceitavam a moeda local.17 18 Já os consumidores poderiam adquirir Palmas de duas maneiras: trocando a moeda nacional pela moeda local, ou através de um empréstimo – sem juros.19 Incentivados pelos descontos no comércio local e sensibilizados pelo ideal de ajuda à comunidade20, lentamente o Real passou a ser retirado de só é aceita localmente. Com isso, assegura-se que o dinheiro circule na e enriqueça apenas a própria comunidade. A ideia de circulação permeia sempre as medidas relacionadas às moedas sociais e é, no fundo, o principal objetivo da sua emissão. O fato de se ter um controle do destino da riqueza produzida internamente – sendo possível direcioná-la – além da restrição à circulação da moeda oficial gera um interessante fenômeno econômico, qual seja, a existência de duas realidades monetárias distintas: uma que oferece incentivos à acumulação, por meio de juros e investimentos no mercado especulativo, e outra que preza apenas pela circulação, pelas trocas, pela movimentação do dinheiro. 17 A iniciativa expandiu-se do comércio para serviços públicos: a passagem de ônibus paga em “palmas” é 8% mais barata que aquela paga em Reais. Ou seja, de certa forma, a moeda social acaba valendo mais do que o Real, embora a paridade seja de 1:1. Atualmente, há 36 mil “palmas” por mês circulando no bairro e nos seus arredores, e o banco Palmas conta inclusive com um cartão de crédito, o “Palmacard”. (Cartilha Instituto Palmas, 2009). 18 O comércio local, que adotou a moeda Palmas, é tributado? Sim. O comércio local aceita, naturalmente, Palmas e Reais. Está sujeito a carga tributária e recolhem os impostos normalmente como se todas as transações fossem realizados em reais.” (idem) 19 A moeda é indexada ao real (1 palmas vale 1 real) e lastreada na moeda nacional (...). Os empreendimentos cadastrados podem fazer o câmbio (a troca de palmas por reais), na sede do Banco Palmas, caso necessitem de moeda nacional para reabastecerem seus estoques”. (idem) 20 Após dez anos de circulação, a moeda Palma foi objeto de uma pesquisa pela Universidade Federal do Ceará, na qual se chegou ao seguinte: “(...), estes mesmos entrevistados apontam que o motivo principal que os leva a utilizar a moeda social é por que ajuda a desenvolver o comércio do bairro (43%), surpreendentemente bem a frente e uma causa mais nobre que os 22% que enfatizaram fazê-lo pelo desconto conseguido com o uso da moeda social no Conjunto Palmeiras.” - Fonte: Avaliação de Impactos e de Imagem - Banco Palmas 10 anos. Coordenação: Jeová Silva Jr. Juazeiro do Norte, Ceará, 2008, p. 54. Relatório e pesquisa integral disponível em: 8

circulação. Há moradores, inclusive, que alegam não possuir mais nota oficial alguma.

O “dinheiro” novo, por ser aceito apenas localmente, não pode ser gasto em outras cidades. Isso faz com que não ocorra a “fuga” de capital, que impedia o desenvolvimento e o enriquecimento do bairro. Dispondo de recursos, a Associação dos Moradores conseguiu transformar o que antes era apenas uma favela, sem saneamento básico e com poucas iniciativas, em um bairro reformado e empreendedor, cujo conceito de banco comunitário é hoje exportado para diversas cidades do Brasil. O modelo do Banco Palmas tem ainda outras peculiaridades. Ele atua em um setor no qual o sistema bancário nacional não consegue penetrar, devido ao excesso de burocracia necessária e à exigência de que as instituições financeiras sigam os parâmetros do Sistema Financeiro Nacional. Os moradores, por exemplo, não conseguem ter acesso a empréstimos da rede oficial devido aos juros elevados e à exigência de diversos comprovantes e documentos que a maioria não sabe como conseguir.21 Semelhantemente ao ganhador do Nobel de economia, Muhammad Yunus, criador do Grameen

http://www.banquepalmas.fr/IMG/pdf/Rapport_Jeova_Evaluation_BP.pdf. Último acesso em 16/04/2014. 21 Segundo dados levantados pelo IPEA, 60% da população brasileira nunca entraram em uma agência bancária. No Nordeste, o índice de adultos sem uma conta em banco ultrapassa os 50%. Caderno Economia & Negócios, Estadão, 10 de maio de 2014. Disponível em http://economia.estadao.com.br/noticias/economia-geral,sem-banco-guardam-r-650-bilhoesembaixo-do-colchao-no-brasil,153374,0.htm. Último acesso em 11/05/2014. 9

Bank,22 a iniciativa brasileira visava à concessão de microcrédito àqueles excluídos do sistema de crédito bancário oficial. Porém, Bernard Lietaer, entusiasta das moedas complementares23 e um dos responsáveis pelo implemento do Euro, em entrevista à Folha de São Paulo 24 afirmou que o Banco Palmas ultrapassa em complexidade o Grameen Bank, assemelhandose mais ao WIR, rede que transaciona também em moeda nacional25. O avanço em relação ao empreendimento de Bangladesh consiste em manter o dinheiro circulando apenas localmente. Com um espaço delimitado, além de conceder empréstimos a pessoas carentes e incentivar novas iniciativas comerciais, consegue-se multiplicar o desenvolvimento dentro da comunidade, sem eventuais “perdas” para comércios ou fornecedores de outras localidades. Além disso, a criação de um instrumento monetário traz uma integração ainda maior entre os moradores da comunidade, o que, nas palavras de João Joaquim de Melo Segundo, um dos fundadores do Banco Palmas, é imprescindível ao sucesso de um banco comunitário. Ou seja, para além do fornecimento de empréstimos sem juros a uma comunidade carente, o banco cearense esmerou-se por promover a solidarização entre os moradores e a retenção do dinheiro no local, o que teve por consequência o desenvolvimento da comunidade como um todo, e não apenas de iniciativas individuais. Hoje, o volume de compras na região gira em torno de R$ 6 milhões26: quatro vezes superior ao período anterior à moeda social.27 22

O Grameen Bank (Bangladesh) foi a primeira iniciativa do mundo a fornecer microcrédito, focando principalmente na concessão de crédito a mulheres pobres. Atualmente, conta com 2.185 agências, já emprestou dinheiro para 6,61 milhões de pessoas (97% das quais são mulheres) e sua taxa de inadimplência é de 1,15%. (Informações retiradas de http://www.grameen-info.org/. Acesso em 27/03/2014). Cabe salientar que há uma iniciativa semelhante no Brasil, do Banco do Nordeste, chamada CrediAmigo, Considerado por Paul Singer a “maior entidade de microcrédito da América Latina”, o programa possui cerca de 400 mil clientes ativos. (Revista online Faces do Brasil, 20/10/2009) 23 A grande virtude das moedas sociais está, segundo ele, no fato de que elas possibilitam trocas que, de outra forma, não ocorreriam. Elas conectam recursos, impulsionam a economia local e promovem uma solução sistêmica e endógena, bem como possibilitam a criação de uma poupança interna. 24 Jornal Folha de São Paulo 02/02/2009. 25 Embora realize transações em Reais (concedendo empréstimos a comerciantes, por exemplo), o Banco Palmas só coloca em circulação a sua própria moeda. 26 ValorOnline, 04/02/2010. 27 Em junho de 2010, uma reportagem veiculada pelo site Economia IG (disponível em http://economia.ig.com.br/mercados/casa+da+moeda+pode+imprimir+dinheiro+dos+bancos+so ciais/n1237674002428.html. Acesso em 27/03/2014) apresentou a possibilidade de que os então 51 bancos comunitários no Brasil teriam o auxílio da Casa da Moeda na emissão dos 10

3. UMA EXPERIÊNCIA DIGITAL: AS CRIPTOMOEDAS. A. CARACTERÍSTICAS. As críticas centrais são contundentes. Muitos atribuem a volatilidade da taxa de conversão à sua iliquidez - o que talvez seja explicado pelo fato de que cartões de débito e de crédito têm abrangência e penetração tão grandes e universais que realmente é difícil competir com eles. Mas, acima de tudo, a vantagem de não haver um banco central ou regulação é a sua maior desvantagem: um meio de pagamento precisa ser crível para ser disseminado e, no mundo 28 moderno, o Estado ainda representa a ordem e o curso forçado.

As “criptomoedas” (ou moedas digitais) recebem esta denominação por existirem apenas virtualmente.29 A criptomoeda mais discutida atualmente é conhecida por “Bitcoin” (BTC), e tem bastante relevância por ser o primeiro meio de pagamento completamente descentralizado e digital.30 Criados por meio de um programa open source31que funciona na base peer-to-peer, ou seja, diretamente de usuário para usuário, eles são transacionados particularmente e não estão vinculados a nenhum órgão central que regula a sua emissão, lastro ou valor. A “criação” dos Bitcoins se dá por seus diferentes “papel-moeda”. Além disso, a reportagem traz que o valor de crédito concedido em moeda social já supera o valor de R$ 155.000,00 e o montante de transações realizadas pelos bancos comunitários – que já ultrapassam o número de 11 mil – são superiores a R$ 5 milhões. 28 Jornal Valor Econômico Online. A Regulação dos Bitcoins. 31 de março de 2014. 29 Já existem, tanto no Canadá quanto em algumas cidades dos Estados Unidos, caixas automáticos (“ATMs”) que trabalham apenas com Bitcoins. Mesmo assim, não há como “sacar” uma moeda física da máquina – o Bitcoin é apenas digital. As operações de saque e depósito são realizadas por meio de um código de barras emitido pela máquina e escaneado pelo celular do usuário. Com isso, é possível realizar compras imediatamente ou atualizar o saldo de Bitcoins. (USA Today. Bitcoin ATMs come to USA. February 20, 2014 e USA Today. Bitcoin ATM dispenses cash for cryptocurrency. February 20, 2014). 30 A primeira transação realizada em Bitcoins ocorreu em maio de 2010, quando um usuário pagou 10.000 Bitcoins por duas pizzas. Hoje, este valor giraria em torno de 1.2 milhões de dólares. 31 Um programa “open source” (ou “código aberto” em português) é um programa que permite a sua constante atualização pelos usuários. Ou seja, caso haja uma falha no sistema de um antivírus open source, os próprios usuários podem tentar consertá-la por meio de sua própria experiência e habilidade. O Linux, sistema operacional, é um exemplo de programa open source. Já o Windows, por outro lado, carece de uma intervenção/atualização ativa por parte da Microsoft – os usuários são “excluídos” da sua formatação. Os princípios dos programas de código aberto são os seguintes: a) a distribuição é livre. Os seus criadores e demais usuários não podem restringir o acesso ao programa e aos seus componentes; b) o código fonte do programa deve ser acessível a todos os usuários, permitindo que estes possam fazer alterações no programa original – o que configura o terceiro princípio, dos trabalhos derivados; c) integridade do autor do código fonte. Quaisquer alterações no código originário devem ser divulgadas de forma que se saiba qual código a elas deu origem, ou seja, a autoria do código original não pode simplesmente ser esquecida ao longo das alterações; d) não discriminação. A distribuição do programa não discriminará pessoas, grupos ou áreas de atuação; e) licença. As licenças concedidas para o uso do produto são neutras, de ampla e livre utilização. 11

meio de um processo digital chamado, pelos usuários, de “Bitcoin mining”, ou seja, mineração de bitcoins. O programa do qual a criptomoeda é extraído foi desenhado em 2008 por um programador anônimo conhecido como Satoshi Nakamoto32, e é constituído basicamente por diversos códigos de programação. Entre esses códigos, há códigos que são identificados como Bitcoins. Vamos supor que haja uma linha de código 3498x09dx982l.33 Um Bitcoin é x09dx. Para poder “minerar” o sistema, cada usuário precisa de um código que o identifique. Assim, se o usuário 45njf encontrar o Bitcoin x09dx, esse Bitcoin passa a ser encontrado no sistema como 45njfx09dx, pertencendo, portanto, ao usuário que o “minerou”. Diversos usuários criaram programas que ficam analisando os códigos 24 horas por dia (e o próprio sistema Bitcoin provê um sistema desses, de acesso livre e gratuito), encontrando as combinações que equivalem à criptomoeda e acrescentando-as ao seu patrimônio. Com o passar do tempo, os códigos mais evidentes já foram encontrados, o que torna a mineração cada vez mais difícil, até atingir o limite de 21 milhões de Bitcoins. Assim como a mineração de metais preciosos – que é limitada de acordo com os recursos, que também são limitados – a mineração de Bitcoins também terá um fim de acordo com o seu substrato limitado. Calcula-se que o último Bitcoin será minerado por volta de 2140.34 A questão mais complexa em relação às moedas digitais é justamente o fato de não haver um intermediário entre as transações. Se uma pessoa compra um livro pela internet e realiza o pagamento com cartão de crédito, a empresa de cartão de crédito retirará o valor correspondente da conta dessa pessoa e depositará o mesmo valor na conta de quem vendeu o livro. Sem a 32

A pessoa identificada por Satoshi Nakamoto publicou, em 2008, um artigo acadêmico de nove páginas (disponível em https://bitcoin.org/bitcoin.pdf) trazendo um arcabouço criptográfico do qual poderia ser extraído um número limitado de uma moeda virtual, denominada por ele de Bitcoin. Em 2009 o mesmo personagem disponibilizou um software open source constituído pelo arcabouço criptográfico imaginando por ele, constituindo com isso o lançamento da rede Bitcoin. Após a disponibilização do sistema, diversos programadores e entusiastas trabalharam na rede, aprimorando-a, chegando ao Bitcoin como o conhecemos hoje. Nakamoto deixou de participar ativamente na sua criação em meados de 2010, quando declarou estar seguindo “novos interesses”. 33 Este é um exemplo meramente ilustrativo. Os códigos encontrados no sistema passam da casa das centenas de números. 34 BRITO e CASTILLO. Bitcoin: a primer for policymakers. POLICY, Vol. 29 No. 4, Summer 2014-2014, p. 5. 12

existência desse intermediário, o dinheiro digital poderia ser gasto várias vezes: ao enviar o dinheiro da minha “carteira” virtual para outra pessoa, uma cópia desse arquivo-dinheiro continua no meu computador. É como um anexo de email – ao enviar um documento, o documento original continua comigo. Sem que haja alguém para controlar quem enviou o quê e “excluir” o arquivodinheiro da minha conta, as margens para fraude são enormes. Este problema é chamado, na ciência de computação, double-spending, ou seja, gasto duplo. O Bitcoin foi o primeiro sistema a impedir que isso acontecesse, eliminando a necessidade de um ledger, ou seja, de um intermediário que controle a movimentação de dinheiro entre contas.35 Isso porque, ao efetuar uma transação, o código do usuário muda automaticamente dentro do sistema. Assim, se o usuário 45njf vende o Bitcoin 45njfx09dx para o usuário 908jlf, esse Bitcoin passa a ser identificado como 908jlfx09dx. Ele sai, portanto, da esfera de utilização do usuário 45njf, que não tem mais acesso a esse Bitcoin específico. Além disso, o sistema dos Bitcoins não tem um banco central que controla o seu valor. O preço de um Bitcoin36 é determinado puramente pela oferta e demanda dos seus usuários. Importante aqui destacar que, além da mineração de Bitcoins, uma forma por assim dizer “primária” de aquisição, há ainda o mercado secundário da criptomoeda, que conta com “brokers” (casas de câmbio) ou “marketplaces” (páginas eletrônicas que colocam usuários em contato) para que possa ocorrer tanto a compra e venda de Bitcoins como a sua troca por outras moedas. Por exemplo, se eu quiser adquirir 10 Bitcoins, posso completar uma transação oferecendo dólares, reais ou euros se a outra parte estiver disposta a vender suas criptomoedas por essas moedas correntes.

35

No sistema Bitcoin, há um ledger público, chamado de Blockchain. É neste registro público que se encontram todas as transações já realizadas no sistema e é também como os usuários controlam a existência e remessa da moeda para cada usuário. O Blockchain é atualizado segundo a segundo, e pode ser conferido por qualquer pessoa com acesso a internet no site https://blockchain.info/. 36 No dia 6 de abril de 2014, um Bitcoin equivale a US$ 459 (quatrocentos e cinquenta e nove dólares). A cotação atual pode ser consultada no site http://www.coindesk.com/price/. 13

Muito

se

tem

comentado

acerca

do

“anonimato”

no

sistema

criptomonetário. Na verdade, o correto seria dizer que ele funciona por meio de pseudônimos (isto é, as partes se identificam como quiserem), e não de forma anônima (as partes não se identificam). O sistema Bitcoin é como um universo fechado de códigos, dentro do qual todos os usuários, todas as transações e todos os Bitcoins ficam registrados. Este “universo” é registrado no “blockchain”37: trata-se de uma corrente de códigos, em que absolutamente tudo fica registrado. Se um determinado usuário for procurado no interior do sistema, a partir do seu código identificador, todas as suas transações serão identificáveis. A partir daí, diversos estudos38 relatam que a verdadeira identidade do usuário seria facilmente encontrada, por exemplo, por meio do rastreamento do número de IP ou demais “pegadas digitais” deixadas no acesso à internet.

B. VANTAGENS. A principal pergunta por trás dos Bitcoins é: por que eu deixaria de usar a minha moeda oficial em troca de uma moeda que eu sequer consigo 37

Ver nota 37 supra. O estudo mais citado neste campo é o de Elli Androulaki, et al. Evaluating User Privacy in Bitcoin, IACR Cryptology ePrint Archive 596 (2012). 14 38

entender muito bem como funciona? De fato, o funcionamento praticamente matemático do sistema das criptomoedas acaba tornando-o hostil a muitos aspirantes a usuário. No entanto, a crescente utilização de Bitcoins por diversos setores da sociedade confirma que os usuários creem – e efetivamente obtêm – vantagens com o seu uso. Em primeiro lugar, a utilização de Bitcoins permite uma diminuição dos custos de transação inerentes às transações em que consta um intermediário. O exemplo mais emblemático é o das operadoras de cartão de crédito: para que uma loja possa aceitar cartões de crédito dos seus clientes, elas precisam desembolsar taxas diversas em todas as etapas da negociação – para aderir à bandeira do cartão, para se fidelizar à operadora, por operação realizada, dentre outras. Isso acaba impossibilitando a aceitação de cartões de crédito por pequenas empresas e pequenos negócios – o que impacta também negativamente o seu faturamento por diminuir o espectro de clientes com que podem contar. Nesse aspecto, os Bitcoins passaram a ser bastante utilizados por pequenos negócios como alternativa ao sistema dos cartões de crédito.39 Além disso, as transações realizadas com criptomoedas são instantaneamente debitadas da conta virtual de cada um dos usuários, o que não é o caso das transações bancárias.40 Essa rapidez também é um fator importante na opção de empresários pelo Bitcoin. Evita-se ainda uma fraude bastante comum com os cartões de crédito, que ocorre quando o comprador alega que não realizou determinada compra ou que o produto encomendado não chegou ou ainda que se arrependeu da compra e exige o dinheiro de volta (“charge-backs”). Isso faz com que o empresário

venha

a

perder

não

somente

o

produto

(no

caso

do

arrependimento, o consumidor é obrigado a enviar o produto de volta, no entanto) como também a quantia recebida – além de ter de pagar uma taxa pelo retorno do dinheiro ao consumidor. Como o Bitcoin atua em uma chave instantânea e é imediatamente debitado, é impossível que exista esse “retorno” 39

KAROL, Gabrielle, Small Business Owners Say Bitcoins Better Than Credit Cards, FOX Business, Small Business Center (12 de abril de 2014). 40 Embora no Brasil a maioria das transações bancárias seja efetivada no mesmo dia, esse não é o caso em outros países como a Alemanha e os Estados Unidos. Na Alemanha, um depósito em caixa pode demorar até três dias úteis para constar da conta bancária do favorecido, enquanto nos EUA, o prazo pode chegar a uma semana. 15

à situação anterior. Resguarda-se, assim, qualquer direito de arrependimento ou

fraude

nesse

sentido.

Dada

a

coexistência

entre

os

sistemas

criptomonetários e de crédito, o consumidor e o empresário são livres para escolher a chave que melhor lhes aprouver. A existência dessa alternativa é, por si só, vantajosa – em uma economia de mercado, ela promove, ainda que indiretamente, a concorrência entre os dois sistemas e termina por beneficiar (teoricamente) as partes envolvidas. Os Bitcoins também podem ser extremamente relevantes na remessa de dinheiro do exterior para o país de origem.41 Sabe-se que grande parte dos países subdesenvolvidos recebe quantia substancial de emigrantes que trabalham no exterior e enviam dinheiro ao seu país, e que em 2012 a quantia de remessas chegou a 478.5 bilhões de dólares.42 Abaixo, uma tabela que demonstra a porcentagem da participação das remessas feitas no exterior em relação ao PIB:

País Albânia Armênia Bangladesh República Dominicana Equador El Salvador Gâmbia Geórgia Guatemala Haiti Honduras Índia Jordânia Kosovo Líbano 41

2006 14.9 10.2 8.8

2007 13.7 9.1 9.6

2008 11.5 9.0 11.2

8.5 6.3 18.8 9.7 8.1 12.2 21.8 21.6 3.0 10.1 19.7 23.2

8.2 6.6 18.4 7.0 8.7 12.4 20.5 21.3 3.0 20.1 19.4 23.0

7.9 5.0 17.5 6.7 8.3 11.4 21.4 20.5 4.1 17.3 18.1 23.9

Um fator importante envolvendo as operações em Bitcoins é o valor mínimo que pode ser transacionado. Alguns intermediários estabelecem valores mínimos para envio ou troca de dinheiro, e a unidade monetária nacional costuma ser transacionada em valores absolutos (R$10, R$100 e assim por diante). No caso da moeda virtual, o menor valor transacionável é -8 10 BTC, o que permite uma maior flexibilidade de remessas, valores e transações. 42 Informação de http://data.worldbank.org/topic/financial-sector. Para ver a quantia exata recebida por país, basta consultar a página do Banco Mundial http://data.worldbank.org/indicator/BX.TRF.PWKR.CD.DT (acesso em 6 de abril de 2014). 16

Nigéria Filipinas Senegal Tajiquistão

11.6 12.5 9.9 36.0

Fonte: Dados do Banco Mundial.

10.8 10.9 10.6 45.5

9.2 10.7 11.0 49.3

43

Essa remessa é feita, normalmente, por meio de agências de câmbio como a Western Union que cobram taxas significativas para efetuar a transação, além de precisarem de diversos dias úteis para efetivar a transferência. Na simulação a seguir44, uma transferência feita pela internet teria taxas de US$4 a US$15. Se a mesma transferência fosse feita pessoalmente ou por telefone, os valores seriam, respectivamente US$8 e US$34. O tempo médio necessário é de 3 dias úteis.

A realização dessas transações em Bitcoins teria um custo praticamente irrisório e seria imediata. Essa possibilidade é considerada inclusive um atrativo para as próprias empresas que lidam com remessas de câmbio. 45 Em suma, a utilização de criptomoedas nesse contexto poderia trazer ganhos consideráveis aos países em desenvolvimento – que são, em última instância, os maiores beneficiários das remessas realizadas no exterior. 43

Disponíveis em http://data.worldbank.org/indicator/BX.TRF.PWKR.DT.GD.ZS/countries/1W?page=1&display=d efault (último acesso 6 de abril de 2014). 44 Simulação feita no site da Western Union, sendo a remessa feita da Alemanha para o México, no valor de US$1000, em 6 de abril de 2014. Fonte: https://www.westernunion.com/price-estimator/continue?REF_ID=4DJ9-FMBF-VJ1H-T05KR7K9-9BCK-4CFU-AUB8&2. 45 JOHNSON, Andrew R. Money transfers in bitcoins? Western Union, MoneyGram weigh the option, The Wall Street Journal (18 de abril de 2014). 17

Ainda na tecla do desenvolvimento, alguns atestam a importância das criptomoedas na inclusão bancária da população que não tem acesso a serviços bancários. No Brasil, por exemplo, 39,5% dos brasileiros não possuem conta em banco.46 Conforme já citamos acima no caso dos bancos comunitários, essa exclusão se dá tanto pelo pouco apelo econômico dessa parcela da população (não “compensa” para os bancos investir na criação de agências devido ao baixo retorno esperado) como pela ausência de interesse das próprias comunidades em ser “integrada” em termos bancários. Partindose do pressuposto de que a inclusão no espaço econômico se dá, principalmente, via sistema bancário, diversos países subdesenvolvidos têm apostado em formas digitais de inclusão bancária – como é o caso do Quênia, Tanzânia e Afeganistão.47 Alguns desses serviços já são compatíveis com criptomoedas, possibilitando a regiões pobres uma inserção barata e rápida no cenário econômico mundial. E o principal motivo que desencadeou a utilização do Bitcoin – a criação de um sistema paralelo independente de políticas monetárias promovidas por bancos centrais – é, naturalmente, percebido como uma vantagem pelos usuários. A alternativa a momentos de hiperinflação ou de crise econômica é um atrativo do sistema criptomonetário – o número limitado de unidades a serem encontradas e a questão do preço lastreado somente na oferta e demanda entre usuários faz com que a inflação artificial da moeda seja impossível. Ademais, o sistema Bitcoin permite não apenas que os usuários “escapem” a políticas monetárias restritivas (é o caso da Argentina, que sofre atualmente com uma inflação de 25% ao ano e controles de capital estritos)48 como também de uma política lato sensu restritiva. Por exemplo, em países como o Irã ou a China, é impossível realizar certas transações online – como a 46

Segundo levantamento do IPEA, 39,5% da população não possuem conta bancária. Na região Norte, a exclusão é maior: 50% de seus moradores não têm vinculo algum com uma agência. Na região Nordeste, o número chega a 52,6%. Na região Sul, que é a menos excluída, esse percentual é de 30%. Fonte: Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS), IPEA, 2011. http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_sistemaindicadores_sips_0 1.pdf. 47 FONG, Jeff. How Bitcoin Could Help the World's Poorest People, PolicyMic (maio de 2014). 48 MATONIS, John. Bitcoin’s Promise in Argentina. Forbes (27 de abril de 2014) e WELLS, Georgia. Bitcoin downloads surge in Argentina. The Wall Street Journal Money Beat (17 de julho de 2014). 18

compra de um pacote premium em blogs ou a aquisição de licenças de música e vídeo.49 As transações em Bitcoin, portanto, por não estarem sujeitas a controles nacionais dão ensejo a uma maior liberdade tanto em termos econômicos quanto em termos políticos.

C. DESVANTAGENS. A maior desvantagem em relação ao sistema Bitcoin, amplamente alardeada pela mídia, é a flutuabilidade do preço desse instrumento. Desde 2011, quando passou a ser efetivamente utilizado em escala significativa no mercado, o Bitcoin sofreu cinco grandes flutuações no seu valor.50 Em 2011, em menos de uma semana, o Bitcon teve a maior queda no seu preço até hoje registrada – 68%. Cinco meses depois, em novembro de 2011, a moeda atingiu o valor de US$ 2, totalizando uma queda de praticamente 95% desde o início da crise.

Em janeiro de 2012, ainda com preços inferiores a US$ 10, o valor do Bitcoin chegou, em apenas dois dias, a metade do valor então transacionado.

49

BRITTO, Jerry. Bitcoin: more than Money. Reason. Dezembro de 2014, Vol. 45, p. 4. LEE, Timothy. An Illustrated History of Bitcoin Crashes. Forbes (11 de abril de 2014). Os próximos gráficos foram retirados do artigo em questão. As cotações foram realizadas com base na página http://bitcoincharts.com/charts/mtgoxUSD#czsg2012-01-13zeg2012-0122ztgSzm1g10zm2g25zl, que traz a paridade Bitcoin-dólar conforme transacionada pela agência de “câmbio” Mt. Gox, responsável por realizar a troca entre Bitcoins e moedas nacionais. 19 50

Crises semelhantes se repetiram em agosto de 2012, março e abril de 2014, mas não com a gravidade das flutuações acima. Essas flutuações de valor acontecem, normalmente, devido a a) um excesso de oferta ou b) um excesso de demanda. Os excessos de demanda são ocasionados por movimentos midiáticos que terminam por atrair atenção ao movimento e condensam “picos” de adesão ao sistema. Aqui cabe novamente retomar as duas formas de aquisição, pelos usuários, de Bitcoins. Um usuário pode tanto instalar no seu computador o programa “minerador” – que, no atual estágio criptográfico, demorará certo tempo até extrair do sistema um Bitcoin51 – ou simplesmente comprar, em instituições que lembram “casas de câmbio” Bitcoins já minerados anteriormente. Assim, quando diversos proto-usuários passam a fazer parte da comunidade Bitcoin, o valor da moeda dispara, pois a demanda é superior à oferta. Já o excesso de oferta se dá quando um dos usuários realiza, descobre ou desenvolve um incremento no sistema, lembrando que o programa-chave em que se mineram Bitcoins é open source, ou seja, aberto a melhorias em seu código primário por qualquer um que tenha o sistema instalado em seu computador. Assim, caso um usuário desenvolva uma chave que aumente a velocidade de mineração, diversos Bitcoins serão retirados do sistema em tempo recorde – o que gera um excesso da criptomoeda no mercado e, consequentemente, queda no seu valor. A

utilização

de

Bitcoins,

no

entanto,

continua

apesar

dessa

“instabilidade”, e atualmente 1 (um) Bitcoin pode ser vendido ou comprado por aproximadamente 51

US$

645

(seiscentos e

quarenta

e

cinco

dólares

Isso porque os códigos mais evidentes já foram encontrados. Quem começa a minerar hoje, junho de 2014, levará em média algumas semanas até conseguir obter uma parcela bastante pequena da moeda. 20

americanos).52 Isso porque a utilização da moeda virtual é voltada quase que exclusivamente para completar transações – ou seja, para o usuário que adquire Bitcoins em determinado dia, pouco importa qual será o valor da moeda dali a duas semanas. O seu interesse é adquirir um produto ou serviço em um futuro próximo. Assim, se o Bitcoin fosse utilizado majoritariamente com fins especulativos ou como reserva de valor, é possível que ele não existisse mais. No entanto, devido à sua intensa circulação, a volatilidade pouco afeta o seu uso mais difundido. Um outro desafio aos entusiastas e usuários da criptomoeda são as falhas de segurança decorrentes da sua natureza criptográfica. As contas de Bitcoin (ou “carteiras”, como são chamadas) estão sujeitas a furtos por parte de hackers. Além disso, caso os usuários cometam erros ao administrar suas carteiras, elas podem ser deletadas por engano ou salvas no nome (pseudônimo) de outra pessoa – nesse caso, por puro descuido, o valor perdese para sempre. Por fim, outra desvantagem que tem sido alvo da mídia e dos reguladores diz respeito aos possíveis usos ilícitos das criptomoedas, principalmente no tocante à lavagem de dinheiro e à compra de drogas, armas e financiamento do terrorismo. Aqui cabe salientar que o Bitcoin, enquanto meio de pagamento, está sujeito aos mesmos desvios que o dinheiro oficial de um país. O dólar, por exemplo, pode ser utilizado para todos esses fins. A questão é que a transferência de Bitcoins é infinitamente mais fácil de ser levada a cabo e exige um esquema muito mais complexo para poder ser controlada ou monitorada.

D. AS CRIPTOMOEDAS ENQUANTO MOEDAS PARALELAS. Como visto na primeira parte do trabalho, a definição de moeda paralela pode ser feita com base em dois aspectos. Em primeiro lugar, as moedas paralelas

circulam

concomitantemente

à

moeda

oficial

de

um

país,

concorrendo, portanto, no mesmo espaço físico e com os mesmos usuários do meio de pagamento oficial. Em segundo lugar, as moedas paralelas não possuem o reconhecimento jurídico dispensado à moeda oficial e carecem, 52

Cotação de 10 de junho de 2014, na página http://br.investing.com/currencies/btc-usd. 21

portanto, das características atribuídas pelo direito (curso legal e poder liberatório). O Bitcoin pode, assim, ser compreendido como moeda paralela. Trata-se de um meio de pagamento reconhecido como tal por seus usuários e que circula paralelamente ao sistema oficial. Sua utilização, ao contrário das diversas moedas oficiais em circulação, não conhece barreiras nacionais e é impulsionada pelo custo reduzido das transações que o utilizam. Como moeda paralela, a sua existência fatalmente traz consequências ao sistema oficial em vigor, o que no caso das moedas virtuais é amplificado devido ao seu alcance global e à dificuldade de controle por parte dos bancos centrais e demais instituições financeiras. A utilização de Bitcoins no Brasil, por exemplo, já abrange desde empréstimos até o pagamento de diárias em hostel53 e de uma revisão completa do automóvel no mecânico. A BTCJam54 é a maior rede de empréstimos de Bitcoins do mundo, e funciona na base da confiança entre os seus usuários.55 A grande inovação da plataforma – além da ausência de um intermediário entre credores e devedores – é o fato de, por promover a realização de transações em moeda virtual, um francês pode emprestar o valor necessário a um italiano que, por sua vez, pode financiar um pequeno negócio na Venezuela. No mundo da internet, não há fronteiras, não há línguas, não há taxa de câmbio e conversão em dólar, euro ou qualquer outra moeda nacional. Os BTC vêm aproximando negócios e pessoas por meio dos mais diversos caminhos. Em fevereiro de 2014, o programador André Horta transferiu o montante de 0,22 BTC – o equivalente a R$ 430 – ao mecânico Diego Silva. A transação ocorreu em Belo Horizonte, tendo como objeto a revisão mecânica do carro de André.56 No Brasil, 79 estabelecimentos comerciais declaram aceitar Bitcoins57, a grande maioria deles localizada nas regiões sul e sudeste, dentre uma gama que vai de bares a escritórios de design. A primeira loja física a comercializar 53

O Caracol Hostel de Florianópolis aceita BTC desde dezembro de 2013. Acesso da página da rede de empréstimos: https://btcjam.com.br/. 55 Se, por exemplo, A empresta 20 BTC a B, e B honra o seu compromisso, A “garante” uma boa reputação a B nos próximos empréstimos. Em inglês, a expressão seria “vouch”, ou seja, A vouches for B. 56 G1 - Moeda virtual bitcoin começa a ganhar espaço no comércio brasileiro - notícias em Tecnologia e Games, 14 de fevereiro de 2014. 57 Informação retirada do CoinMap (http://coinmap.org/) em 30 de julho de 2014. 22 54

Bitcoins no Brasil, a BitcoinToYou, foi aberta em 17 de junho, em Curitiba. E apesar da preocupação crescente em relação ao instrumento e à possibilidade ou não de uma regulação efetiva da moeda, o Banco Central brasileiro declarou, no começo do ano, que o assunto ainda não é relevante o suficiente para demandar uma maior atenção regulatória do órgão.58

4. A MUDANÇA DE PARADIGMA. Boaventura de Sousa Santos afirma que um dos reflexos da globalização na forma de agir dos Estados é a de-estatização dos regimes políticos, que pode ser identificada quando temos a transição da ideia de governo – chamada por ele de government – para uma ideia de governança, regulação – a governance. Assiste-se, assim, a uma mudança de polos de um modelo de regulação por parte do Estado, em que este assume uma função central na condução econômica e social de um país para o modelo “assente em

parcerias

e

outras

formas

de

associação

entre

organizações

governamentais, para-governamentais e não-governamentais, nas quais o Estado tem apenas tarefa de coordenação (...).” (SANTOS, 2002, pp. 37-38). Como já tratamos acima, a autorregulação dos atores sociais surge em um momento de falência do Estado, quando este se vê incapaz de realizar e implantar, entre outras, políticas sociais, além de promover uma insegurança no mercado ao estabelecer erraticamente políticas econômicas. A questão é: como explicar um novo modelo de Estado cuja governabilidade é, externamente, corroída pela globalização e, internamente, corroída pela própria comunidade que o constitui? Jérome Blanc, professor especializado no estudo e desenvolvimento das moedas paralelas, principalmente das moedas complementares e das moedas sociais, não considera que as iniciativas monetárias aqui relatadas contradigam ou sequer ameacem a ordem estatal. Para ele, “As moedas paralelas aparecem, portanto, não como um fenômeno patológico, e sim normal, no próprio centro dos sistemas monetários.” (BLANC, 1998, p. 9. Tradução livre. 58

“BC esclarece sobre os riscos decorrentes da aquisição das chamadas ‘moedas virtuais’ ou ‘moedas criptografadas’”, assessoria de imprensa do BACEN. Nota disponível em http://www.bcb.gov.br/pt-br/Paginas/bc-esclarece-sobre-os-riscos-decorrentes-da-aquisicaodas-chamadas-moedas-virtuais-ou-moedas-criptografadas.aspx. Acesso em 29 de julho de 2014. 23

Grifou-se). Esse aparecimento “normal” é decorrência direta justamente da falência e falta de confiança no Estado-providência, que tem sua ação diminuída por limitações fáticas, políticas, econômicas e mesmo sociais. Diante da inabilidade estatal em prover serviços jurídicos aos seus cidadãos, surgem as ordens jurídicas paralelas. Diante da impossibilidade de prover assistência social, insurgem-se as comunidades com iniciativas de auxílio mútuo. Com a escassez do meio circulante – que advém, em grande parte, da incapacidade ou impossibilidade regulatória do Estado ou no controle das taxas de juros e da inflação ou na redistribuição do volume de dinheiro em circulação, surgirão, necessariamente, formas alternativas de troca. Formas alternativas estas que podem, em um grau de desenvolvimento já bastante avançado, utilizar um meio circulante paralelo àquele oficial como forma de facilitar suas transações.59 O Palma e o Bitcoin surgem nesse contexto de mudança de paradigma, em que o público começa lentamente a ser substituído ou é obrigado a conviver com o privado. Cada um deles é afetado por formas diferentes assumidas pelo novo Estado regulador: com as sucessivas crises econômicas no século XX e XXI, priorizou-se uma atenção regulatória aos mercados. No entanto, a regulação excessiva do sistema financeiro acabou gerando insegurança nos seus usuários e engessando o caráter fluido do mercado. Quanto mais profunda a crise econômica, maiores os esforços estatais em tentar consertar o “estrago” por meio de leis, regulamentos e regras do jogo mais claras. Em algum momento, perdeu-se o ponto ótimo da regulação, e esse excesso levou justamente à busca de uma forma monetária alternativa que não fosse influenciada ou estivesse sob a égide de um sistema nacional propenso a falhas políticas e falhas de mercado. Enquanto o foco voltava-se majoritariamente para a questão econômica, esqueceu-se daqueles que não estavam inseridos na economia – aqui compreendida como uma economia de 59

Uma das principais preocupações relacionadas à utilização das moedas sociais diz respeito à inflação. Isso porque, em teoria, a inserção de mais “dinheiro” na economia – se desvinculada de um aumento correspondente na produção de bens. O fato de tais moedas paralelas não serem reguladas por um órgão central leva a uma propensão a que ocorra um aumento desenfreado de moedas em circulação, o que poderia levar a um processo inflacionário. A defesa do movimento consiste em alegar que o propósito das moedas paralelas é promover a circulação da riqueza, e não a sua acumulação, o que, teoricamente, não contribuiria, por si só, para o aumento ou diminuição da inflação. 24

mercado. Os excluídos do sistema oficial, carentes de poder econômico, foram se distanciando cada vez mais das prioridades atendidas pelo Estado regulador. A mudança de paradigma termina por afetar, assim, dois grupos diferentes e diametralmente opostos: tanto os super-incluídos, aqueles que dependem e são afetados diretamente pelas políticas econômicas adotadas pelo banco central de determinado país, como os super-excluídos que, por não figurarem como atores no sistema econômico, deixam de ser uma prioridade ao Estado, caindo no esquecimento.

5. CONCLUSÕES. A título de conclusão, é importante enunciar as principais diferenças entre os sistemas das moedas sociais e das moedas virtuais. Cada um desses mecanismos desafia a ordem oficial à sua maneira e possui alcance, grupo de usuários e motivações diferentes. No entanto, dada a mudança de paradigma abordada acima, é bastante provável que essas iniciativas ganhem tanto em força como em número – as moedas sociais, a nível nacional, e as moedas virtuais, a nível global – cada vez mais relevância. Os desafios sociais, políticos, econômicos e jurídicos que fatalmente decorrerão da sua crescente utilização não tardarão a surgir e, para que haja uma resposta eficiente do Estado regulador, é essencial que cada instrumento seja compreendido na sua lógica e escopo particular: no caso das moedas sociais, a exigência é por uma postura ativa em termos de políticas públicas, ao passo que no caso das criptomoedas, levando-se em conta que o seu surgimento é uma reação à excessiva regulação adotada pelos Estados – e, mais especificamente, pelos bancos centrais – a intervenção estatal deveria abordar principalmente os desafios ligados aos usos ilícitos da moeda e às falhas de segurança inerentes ao mundo virtual.

Resposta a Objetivo

Palma Bitcoin Ausência do Estado. Excesso de Estado. Objetivo de promoção do Objetivo de escape das políticas desenvolvimento. econômicas nacionais e do controle exercido pelos bancos centrais. 25

Usuários

Organização

Base Principais desafios

Ponto comum

Constituídos por membros Cyberativistas, idealizadores da de comunidades carentes, internet, libertários, pessoas ou “esquecidos” ou “alheios” entidades visando fugir do aos programas do Estado. controle estatal. Presença de uma liderança Não há organismo regulador ou comunitária, redes locais de controlador das atividades, escopo geográfico restrito, alcance da moeda é igual ao necessidade de bancos alcance da internet: ilimitado e comunitários físicos para irrestrito. Base do sistema está controlar a emissão da em chaves criptográficas. moeda. Laços comunitários. Tecnologia. Manutenção da rede de Alcançar estabilidade de valor, confiança, coexistência repressão dos usos ilícitos, maior pacífica com a moeda segurança para os usuários. oficial. Promoção da circulação do capital (não há incentivo para manter a moeda parada, como a previsão de juros, por exemplo).

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