Crise entre religião e ciência em \"Um cântico para Leibowitz\"

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CRISE ENTRE RELIGIÃO E CIÊNCIA EM "UM CÂNTICO PARA LEIBOWITZ"*

MÁRCIO QUARANTA** Resumo: o texto aborda as relações entre a religião e a ciência na obra de ficção científica apocalíptica ‘Um cântico para Leibowitz’ de Walter M. Miller Jr. Em um mundo arrasado por uma guerra nuclear, os monges da Ordem Albertiana de Leibowitz, da Igreja Católica Romana, preservam um conjunto de livros e outros documentos da civilização destruída, a “Memorabilia”. Em um tempo cíclico, a história se repete: a humanidade retoma o progresso científico, as relações entre a Igreja e o poder temporal se deterioram, diferentes blocos políticos digladiam-se e nova guerra nuclear ocorre. Uma espaçonave da Igreja Católica Romana parte, com religiosos, cientistas e crianças, para um planeta em outro sistema solar, para tentar preservar a cultura humana e reiniciar a história, com pessoas mais responsáveis e éticas. Palavras-chave: Ficção Científica. Ciência. Guerra Nuclear. Igreja.

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 reocupações típicas da pós-modernidade, a incerteza e o medo do Homem sobre sua subjetividade, seu desenvolvimento científico e tecnológico, e seu futuro, já eram levantadas, desde o século XIX, por um tipo de literatura considerado por muito tempo de segunda linha e voltado a um público específico: a ficção científica (FC), um produto da modernidade. No final do século XVIII e no início do século XIX, as invenções tecnológicas aplicadas à produção, ao comércio e economia, sucessos do conhecimento objetivo e suas legitimadoras, facilitaram a transformação do 93

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ser humano em um indivíduo secular, intelectualmente capaz, não dogmático, permeado pelas idéias de igualdade e liberdade, apto a mudar sua sociedade a partir da razão. Nesse terreno brotou a FC (OLIVEIRA, 2007). A primeira obra do gênero, Frankenstein, de Mary Shelley, data de 1818; no mesmo século XIX, Jules Verne e H. G. Wells escreveram sobre viagens interplanetárias ou através do tempo, máquinas inteligentes e experimentos biológicos com homens e animais. Para Tavares (1992), a FC, uma forma de cultura de massa, narra fenômenos extravagantes, admite várias liberdades e traz poucas racionalizações científicas: ela se volta mais para a magia, compromete-se com a imaginação e a fantasia; cultiva o espírito heróico e aventureiro, adquire um sentido de processo de iniciação; temas como o triunfo sobre universos hostis, ou a defesa da harmonia de outros, ligam a FC às mitologias religiosas, aos contos de fadas, às lendas e às narrativas épicas e folclóricas. Os personagens, com suas crises de identidade, representam arquétipos bem definidos e enfrentam desafios para mudar o mundo. Desdobra-se uma tensão entre o Eu (conhecido) e o Outro (estranho), e perante reproduções da alteridade: o homem enfrenta robôs, computadores, extraterrestres, além de criaturas similares a si mesmo, porém, alteradas: mutantes, andróides, ciborgues, clones... Dos primeiros contos, fantasias tecnológicas espaciais ou futuristas com muita ação, a FC evoluiu para enredos com especulações metafísicas, misticismo, mentes artificiais, estados alterados de consciência, universos alternativos, mundos com a história modificada, emprego de poderes paranormais e seres humanos como programas a navegar pelo espaço virtual (como em Matrix). Isto remete às idéias de Baudrillard (1991) sobre o processo de simulação (fingir ser o que não se é), em que se esvai a distinção entre o real e o imaginário, o verdadeiro e o falso, e se geram simulacros. Estes, para o autor, dividem-se em: naturais e naturalistas, com base na imagem, na imitação, no fingimento, otimistas, harmoniosos, que visam a restituir ou instituir uma natureza à imagem de Deus (ligado ao período pré-moderno), como nas utopias da literatura que descrevem universos radicalmente diferentes do cotidiano (Platão, Campanella, More, etc.); os produtivos, baseados nas forças, materializados pela máquina e pelo sistema de produção, a liberar quantidade ilimitada de energia (da modernidade), caso das narrativas e filmes de ficção científica com naves interestelares, pilotadas por criaturas humanas ou não; os simulacros de simulação, , Goiânia, v. 8, n. 2, p. 93-111, jul./dez. 2010

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informáticos, oriundos de modelos, com operacionalidade total, hiperreais (pós-modernidade), em que a distância entre real e o imaginário, máxima na utopia, reduzida nos filmes clássicos da FC, desaparece. Um exemplo de simulacro do segundo tipo é o supercomputador Hal de “2001, uma Odisséia no Espaço”; do terceiro tipo, os andróides de “Blade Runner”, mais fortes e inteligentes que os humanos reais. A FC proporciona imagens do universo onde tudo se interliga, explora quebra-cabeças da lógica, encoraja a curiosidade, permite a síntese de diversas idéias (interdisciplinaridade). Seu caráter ambíguo afirma a liberdade e a responsabilidade do indivíduo pelas suas opções, e leva-o a iniciar processos cujas conseqüências em longo prazo ele não consegue avaliar; torna o tempo mais excitante e real: um turbilhão de possibilidades substitui o tempo hegeliano sequencial da modernidade (TAVARES, 1992). A FC questiona a modernidade por esta separar pensante e não-pensante, ciência e cultura, natural e artificial, real e ficção, e por permitir liberdade à fantasia, mas condenar a imprecisão e a falta de rigor científico. Ao dissolver limites entre ciências humanas e teórico-experimentais, humano e não-humano, visível e invisível, fato e ficção, a FC adquire um caráter de interrogação filosófica sobre o que é o humano e o lugar do Homem no mundo; na sociedade pós-moderna, aberta às multiplicidades, angariou respeito nos meios acadêmicos (OLIVEIRA, 2007). Para Leonardi (2007), a FC, rica em problemáticas, sugestões e experiências culturais, levanta problemas reais sobre o destino humano, constitui um privilegiado espaço para questões metafísicas e comumente traz embutido um sentido religioso: na felicidade trazida no início do progresso científico; na procura da salvação que o Homem não pode se dar; na temática do Outro (metáfora do Mistério); na percepção de algo a se esconder dentro e aquém da realidade. No tema do destino, os contos discorrem sobre os possíveis futuros e em geral trazem visões inquietantes: narram involuções (substituição do Homem por espécies tidas como inferiores); distopias ou utopias negativas (1984, Admirável Mundo Novo); mundos mecanizados (o Homem dominado por máquinas e robôs) e apocalipses (holocausto ambiental ou nuclear). “Um cântico para Leibowitz”, de Miller Junior (1982), conto apocalíptico, descreve o destino da humanidade após uma catástrofe nuclear, a recuperação de uma época de trevas, o reinício da ciência e a repetição da história até novo holocausto nuclear. 95

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RESUMO DA OBRA



O livro contém três partes: Fiat Homo (Faça-se o Homem), Fiat Lux (Faça-se a Luz) e Fiat Voluntas Tua (Faça-se a Tua Vontade). Na Idade da Luz, os cientistas inventaram máquinas portadoras do fogo infernal e as disponibilizaram aos líderes mundiais, que as aplicaram insanamente: o “dilúvio de fogo” (guerra nuclear global) dizimou a humanidade. Os sobreviventes culparam príncipes e magos pelo desastre: o ódio se alastrou; um sábio, ao cair nas mãos dos “simplórios”, os refutadores do conhecimento causador da tragédia, era queimado. Livros foram incinerados em massa; a incultura imperou na Idade da Simplificação. Isaac Edward Leibowitz, cientista judeu, cuja esposa morrera no conflito, ocultou-se num mosteiro e adotou a fé Católica Romana; ordenado padre, fundou a ordem monástica Albertiana de Leibowitz para salvar o conhecimento: monges coletavam, copiavam, memorizavam documentos e livros, cujo conjunto se denominava Memorabilia. Os simplórios o detiveram, estrangularam e queimaram vivo, logo após a Ordem edificar uma abadia no sudoeste dos antigos Estados Unidos. Nos séculos seguintes, mundo tribal, nova Idade das Trevas, a Igreja Católica Romana, cuja sede mudou frequentemente até se fixar em Nova Roma, conservou esse acervo com a história e as descobertas humanas, que os monges não sabiam interpretar. Fiat Homo: cerca de 600 anos após o dilúvio de fogo, o noviço Francis Gerard de Utah enfrenta uma vigília de penitência, silêncio e solidão, jejum e abstinência, no deserto vizinho à Abadia do Beato Leibowitz. Ao erigir um refúgio de pedra contra os lobos, avista um velho peregrino judeu que lhe indica a rocha certa para completá-lo. Ao removê-la, Francis se depara com um abrigo subterrâneo (para sobreviventes do dilúvio nuclear): explora-o e descobre um crânio com um dente de ouro junto a uma caixa. Dentro desta, acha um bilhete, desenhos e diagramas, que imagina serem relíquias do Beato. Narra tais fatos em confissão ao padre Cheroki, que lhe ordena retornar à Abadia; Francis obedece, após receber alimento e água do malnascido irmão Fingo, mutante albino com manchas coloridas na pele e dentes multicoloridos, que esculpe uma imagem em madeira do Beato. No mosteiro, o noviço tagarela com os colegas: espalha-se a versão de que teria visto o próprio Leibowitz, o que o coloca em conflito com o rígido Abade Arkos, que o castiga por seu relato prejudicar a cano, Goiânia, v. 8, n. 2, p. 93-111, jul./dez. 2010

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nização do fundador da ordem, não o ordena monge naquele ano e proíbe falatórios sobre o velho. O noviço, convicto de sua vocação, enfrenta novos retiros. Arkos ordena o fechamento da cripta: o material coletado segue para Nova Roma e para estudo pelos dominicanos. Após sete anos de noviciado e retiros no deserto, Francis é chamado para conversar com um enviado de Nova Roma, informado sobre a reabertura do processo de canonização do Beato e professa seus votos monacais. Sob as ordens do bom Irmão Horner, passa a trabalhar como aprendiz de copista; conhece o Irmão Sarl, inventor de um método para recuperar o conteúdo de textos antigos, e o cético Irmão Jeris, questionador do conteúdo dos documentos e da missão da Ordem. Horner permite-lhe reproduzir um diagrama (de um circuito elétrico) encontrado no abrigo e fazer uma cópia de seu manuscrito, enfeitada com iluminuras. Dois enviados de Nova Roma vêm à Abadia para inquiri-lo: o advogado do Santo, Monsenhor Malfredo Aguerra, defensor da canonização, e Monsenhor Flaught, advocatus diaboli, opositor da causa, que o incentivam a acabar a cópia. Cerca de quinze anos após Francis encontrar as evidências (o crânio com dente de ouro era de Emily Leibowitz), o Beato é canonizado. O novo monge segue para Nova Roma para assistir a cerimônia: leva o documento original e a iluminura que passou anos a preparar, para presenteá-la ao Papa. Na estrada, perto do vale dos Malnascidos, enfrenta três bandidos (dois mutantes), que roubam a réplica (ele salva o original); para resgatála, precisa trazer ouro. Em Nova Roma, após a missa da canonização, lamenta-se em audiência pessoal com o Papa pela perda do presente que levava; Leão XXI consola-o, elogia o belo trabalho na iluminura que poupou o original dos ladrões; através de Malfredo, com quem se confessara Francis, dá a este um pacote com ouro para o resgate. No local do assalto, o monge espera e ora; um mutante dispara uma seta que penetra por entre seus olhos e trespassa seu crânio. O judeu peregrino, que indicara a rocha no abrigo antinuclear, depara-se com o cadáver parcialmente devorado pelos urubus, enterra-o, notifica Nova Roma: a Igreja leva o corpo e o inuma na Abadia. Fiat Lux: Anno Domini 3174. Os porões do mosteiro, que resistiu a ataques de nômades e cismáticos, conserva a Memorabilia, com o conhecimento de antes da Simplificação. A Idade das Trevas se dissipa com o brilho de espíritos luminosos. Hannegan II, o soberano de Texarkana, açula um conflito do Reino de Laredo e do Império de , Goiânia, v. 8, n. 2, p. 93-111, jul./dez. 2010

Denver (onde fica a Abadia) contra os nômades da Planície: pretende unificar todas essas terras sob seu domínio. Seu primo, Mestre Taddeo Pfardentrott, pesquisador secular, recebe uma carta do Irmão Kornhoer sobre velhos documentos autênticos da Memorabilia, que merecem um exame, e quer estudá-los no Collegium de Texarkana. O Núncio Apostólico neste país, Monsenhor Marcus Apollo, avisa Nova Roma e Dom Paulo, Abade de São Leibowitz, sobre os planos de Hannegan e Taddeo, através de seu assistente, Irmão Claret. A estátua de madeira do Santo, com seu curioso sorriso, ocupa um nicho no escritório do pio Dom Paulo, que refuta a ida da Memorabilia a Texarkana. Hannegan envia seu primo com uma guarda (espiões) para a Abadia. Baseado nas teorias de Taddeo, o Irmão Kornhoer prepara no porão do mosteiro um gerador de essências elétricas que alimenta uma lâmpada de arco: esta brilha, algo diabólico para o bibliotecário chefe, Irmão Ambruster, e excitante para Taddeo, alojado no aposento outrora ocupado pelo poeta com um olho de vidro, que ganhou no jogo a cabra de cabeça azul pelada do ermitão judeu. Pfardentrott pesquisa num cubículo da biblioteca, alumiado pela lâmpada colocada no lugar de um crucifixo (profanação, diz Ambruster). Dom Paulo se aconselha com o último judeu, Benjamin, que recorda fatos da época do Venerável Francis, a quem enterrou, garante ser Lázaro, ressuscitado por Jesus, espera pelo Messias e previne o Abade contra governantes assessorados por sábios. Hannegan, aliado de Laredo e dos nômades da planície, arma o chefe destes, Urso Doido, para enfrentar Laredo, que envia gado contaminado para infectar o dos nômades. Texarkana anexa os dois territórios. Apollo alerta: agora é a vez de Denver, com a Abadia como base das operações; traído por Claret, é preso e enforcado por ordem de Hannegan; este decide punir com a morte a lealdade à Igreja Católica Romana, que o excomunga. Os espiões da guarda desenham detalhes das defesas da Abadia: denuncia-os o poeta, que deixa seu olho de vidro com Taddeo; este, ao pesquisar a Memorabilia, verifica ser apenas um redescobridor de conhecimentos. Convidado pelo Abade, ministra conferência aos monges sobre indução e dedução, o fim da ignorância, o império da Verdade (exime os sábios de responsabilidade pelos erros do progresso e as guerras): ao interrompê-lo, o judeu constata não ser ele o Messias. O poeta desaparece. O Mestre discute com Dom Paulo sobre o conhecimento (não deve ser reservado apenas a um mundo sem o mal); falha ao tentar convencer Kornhoer a se unir aos investi, Goiânia, v. 8, n. 2, p. 93-111, jul./dez. 2010

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gadores do collegium (pois se completavam). Hannegan agora chefia a Igreja em Texarkana. O crucifixo volta ao lugar. O Abade questiona Taddeo sobre a responsabilidade do investigador e o apego ao erro; seu interlocutor devolve-lhe os desenhos feitos por oficiais da guarda e se vai (leva ao primo o olho de vidro). Dom Paulo expira; Benjamin peregrina. O poeta morre após matar um oficial da cavalaria de Texarkana que perseguia refugiados: seus cadáveres nutrem lobos e urubus. Fiat Voluntas Tua: Anno Domini 3781. A tecnologia humana superou a do estágio antediluviano; colonizam-se outros planetas. Guerra fria: as superpotências a Liga Asiática e Confederação Atlântica mantêm arsenais proibidos de bombas H. Código secreto: Lúcifer caiu (explosão nuclear). Conferência de imprensa: o cínico Ministro da Defesa da Confederação Atlântica nega haver altos níveis de radiação na costa noroeste e armas nucleares no espaço. Na Abadia de São Leibowitz, padroeiro dos eletricistas, o abade Jethras Zerchi avisa Nova Roma para reativar o projeto Quo peregrinatur grex (migração interplanetária em caso de guerra nuclear global). O velho judeu pressente maus agouros ao caminhar pela estrada que liga a Abadia a uma cidade próxima. O pesquisador Irmão Joshua coleta amostras que confirmam o aumento do nível de radiação no ar. Em nova conferência de imprensa, transmitida para toda a Coalizão Cristã, o Ministro da Defesa da Confederação, indagado sobre a destruição de Itu Wan, cidade da Liga Asiática, atribui-a a uma explosão subterrânea e irrita-se com a sugestão de ter sido um teste nuclear de seu governo. O Irmão Joshua e o Abade conversam com a Sra. Grales, vendedora de tomates, em cujo ombro cresce uma segunda cabeça, Raquel, que ela gostaria de ver batizada; Joshua vê Raquel sorrir. O idoso eremita judeu vai à Abadia: quando Zerchi indaga seu nome, afirma ser Lázaro. Joshua sonha com Raquel a dizer: sou a ”Imaculada Conceição”. A Confederação Atlântica ataca bases espaciais da Liga Asiática: esta retruca e um míssil nuclear arrasa Texarkana City. Dom Zerchi olha para a velha estátua de madeira de São Leibowitz (retirada de um porão), que lhe lembra Lázaro, lamenta a loucura humana e critica os donos do poder; aprovada por Nova Roma a Quo peregrinatur grex, detalha os planos a Joshua e convida-o a integrar a missão; o monge aceita e segue com outros escolhidos para Nova Roma. A Corte Internacional declara um cessar-fogo; as superpotências conferenciam. A Abadia oferece abrigo às vítimas do ataque nuclear. Zerchi recomenda ao Dr. Cors, da Estrela Verde, não enviar feridos para a eutanásia; após ler um livro do lendário Santo Poeta , Goiânia, v. 8, n. 2, p. 93-111, jul./dez. 2010

do Milagroso Olho de Vidro, observa a instalação de um “Campo de Misericórdia” perto da Abadia; ordena a preparação de cartazes para um protesto. O Dr. Cors relata-lhe haver indicado a eutanásia a uma mulher e sua filha. Finda a conferência, o Papa Gregório deixa de rezar pela paz no mundo; a diplomacia do Vaticano considera inevitável uma guerra. Aves carniceiras sobrevoam o campo da Estrela Verde. Ao tentar evitar o sacrifício da mulher e da criança, o Abade é detido pela polícia; a mulher opta pela própria morte e a da filha. A Polícia inibe o protesto dos monges contra o Campo de Misericórdia; Cors tenta dialogar com Zerchi, leva um soco, contudo não presta queixa da agressão. Liberado, o Abade se confessa com seu prior e a seguir recebe a confissão da Sra. Grales; ouve Raquel falar. Um artefato nuclear explode nas proximidades; o edifício em colapso cai sobre ele; ao recuperar a consciência, está imerso até a cintura em um mar de rochas. A explosão abriu as criptas do templo; um crânio perfurado por uma seta está ao seu lado. Urubus famintos por carniça o rondam. Desfalece; acorda com uma pessoa a cantar: é Raquel, no corpo rejuvenescido da Sra. Grales; Zerchi retira cacos de vidro de seu braço, tenta batizá-la, ela se afasta, a seguir oferece a Eucaristia ao Abade. Este a recebe; nos seus estertores, divisa nos olhos verdes de Raquel dons preternaturais perdidos pelo Homem: a inocência primitiva e a promessa de ressurreição. Expira. Alhures, Joshua, outros religiosos, cientistas e crianças embarcam na espaçonave da Igreja; um clarão no horizonte mostra a face de Lúcifer na forma de cogumelo; a nave parte para a colônia em Alpha Centauri, levando a Memorabilia microfilmada. FÉ E CIÊNCIA As religiões do mundo, segundo Küng (2004), podem ser divididas em quatro grupos: as tribais, como as dos aborígenes da Austrália; as de conteúdo místico, de origem indiana, como o budismo; as sapienciais, de origem chinesa, como o confucionismo; as proféticas semíticas, do Oriente Médio, como o Judaísmo, o Cristianismo, o Islamismo. Estas religiões de Fé, com caráter histórico, marcadas por figuras proféticas, possuem livros sagrados e acreditam em mandamentos que expressam a vontade de Deus. Eliade (1992) separa as sociedades em dois tipos: as tradicionais e arcaicas vinculam o Homem ao Cosmo e a seus ciclos; as históricas, sob a , Goiânia, v. 8, n. 2, p. 93-111, jul./dez. 2010

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influência do Judaísmo e Cristianismo, valorizam a História. As primeiras transmitem uma história sagrada através de mitos que preservam paradigmas, modelos exemplares para as atividades humanas, revelados no início dos tempos, regeneradores periódicos do Cosmo e da sociedade. Um gesto humano torna-se paradigma, adquire significado de realidade, ao repetir um ato primordial: seu significado o define como sagrado e ritual. O Eterno retorno: repetição cíclica do que houvera antes. No Centro, local com caráter sagrado pelo ato de sua criação, a unir Terra, Céu e Inferno, há uma árvore, um altar ou um templo. Este último tem um protótipo celestial, reproduz a essência do universo. As regiões desconhecidas e perigosas, à sua volta, constituem o caos, o profano: o caminho penoso que as atravessa e leva ao Centro constitui um rito de passagem do profano ao sagrado. O Centro abole o tempo concreto, tornado mítico por imitar arquétipos e repetir atos paradigmáticos: os rituais comemoram episódios do drama divino, cósmico; os monarcas consideravam-se imitadores de um herói primordial, de um modelo arquetípico. No fim e no início de cada período de tempo havia nova criação, purificação periódica. Uma cosmogonia acreditava em uma única regeneração, na repetição de arquétipos apenas no final dos tempos: a hebraica. A vitória de Yahveh sobre o caos primordial significava a Criação do Cosmo e a Salvação do Homem. Irado com os pecados de seu povo, que dele se afastava, Yahveh o punia (sua vontade impunha o sofrer). As visões aterradoras dos profetas confirmavam e ampliavam os castigos sobre o povo; as catástrofes confirmavam as profecias, traziam pessoas de volta a Deus (ira de Yahveh: arquétipo da teofania negativa). Os profetas atribuíam valor à história, transcendia-se a visão de ciclo, descobria-se o tempo unidirecional. O Deus judeu intervinha na História, revelava sua vontade em episódios: os fatos históricos possuíam valor religioso. A História como epifania de Deus, invenção hebraica, foi assimilada pelo Cristianismo: a Revelação monoteísta se caracteriza pela duração histórica, ocorre em um tempo. Calamidades cósmicas e históricas anunciariam o fim do mundo (Apocalipse), a ocorrer pela combustão universal pelo fogo (tema de origem iraniana, passado a judeus e gregos). O Messias, representante da divindade na Terra, tinha a missão de regenerar toda a natureza: sua vitória sobre as trevas e o caos remetia-se ao futuro. A História, diálogo temeroso com Yahveh, findava com a salvação final do povo escolhido pela chegada 101

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do Messias. Surgia nova dimensão, a Fé, adquirida na experiência religiosa: o Deus pessoal ordena sem justificativa racional; para Ele tudo é possível. O Cristianismo traduz a regeneração periódica do mundo na regeneração do ser humano no tempo presente, a qualquer momento: a regeneração pessoal cósmica, pelo nascimento, morte e ressurreição do Salvador. Este ensinou uma mensagem de amor, exemplo a imitar. A comemoração da Vida e Paixão do Salvador reatualiza aqueles dias; no ano litúrgico persistem elementos de uma periódica regeneração da história. O místico, o homem religioso em geral, vive num presente contínuo e atemporal, pela repetição dos gestos de outro. Para o Cristianismo, o tempo é real por ter um significado: a redenção. O pensamento cristão transcende a repetição eterna. O sofrimento, que sempre teve um significado, valoriza-se no Cristianismo: transforma a dor em experiência com conteúdo positivo (sofrimento na catástrofe). E a Beatitude imita a condição divina (ELIADE, 1992). Os arquétipos, imagens primordiais simbólicas estruturadoras da consciência, refletem a realidade única na imaginação, revelam a verdade, antes da razão, pelo mito. Este expressa na mente imaginativa a realidade última, mistério transcendente, propicia o participar da experiência vivida por um poeta ou profeta, dá ao homem um lugar no universo, organiza aspectos de sua vida; narração simbólica, emerge das profundezas da experiência do contato humano com o mundo natural e histórico e sua linguagem poética envolve sentidos, afeições, sentimentos, vontade, razão; aceita novos elementos e refuta antigos, à medida que a consciência humana se complexifica; origina religiões. A Bíblia utiliza essa linguagem simbólica e poética. Ao analisar símbolos bíblicos, Griffiths (2000) interpreta o ato de comer o fruto da árvore do conhecimento como romper com a natureza, escolher a violência e o conflito, preterir a paz original; compara a jornada pelo deserto a uma libertação humana dos poderes do mundo, de sistemas escravizadores do ser humano a forças materiais; a busca da terra prometida equivale a tentar harmonizar o Homem e a Natureza, ao retorno do primeiro à segunda. Peregrinar (atravessar o deserto) significa abrir-se ao mistério transcendente da existência e se afastar da escravidão ao mundo material, em que o Homem caiu pelo pecado da arrogância, ao se julgar senhor do universo; seu pecado original, a revolta contra a natureza, que ele tenta dominar por todos os meios disponíveis, pode destruir a Terra. A ciência ocidental apresenta limitações: o conhecimento , Goiânia, v. 8, n. 2, p. 93-111, jul./dez. 2010

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não resulta apenas do pensamento abstrato e conceitual, que separa Homem e Natureza, cria um mundo artificial, afasta o espontâneo e o imaginativo (renegados no Ocidente); seu excessivo racionalismo afeta as religiões ocidentais, avessas à intuição (vinda da autoconsciência, da reflexão da mente sobre si mesma, não da observação, experimento, conceitos, razão) que mana dos sentimentos, sentidos e imaginação. Conectada à emoção, não à reflexão, a intuição visualiza o todo, não a fragmentos, como faz a ciência. A linguagem da razão abstrata não se acerca mais da realidade que a da imaginação; mente racional e intuição precisam se completar; separadas, causam desgraças. A razão é inteligente, mas estéril, sem a intuição; esta, sem a razão, é fértil, contudo cega. Integrar a mente racional com a intuitiva religa Homem e Natureza em uma profunda unidade. As dimensões racional e intuitiva da natureza humana se religam no poeta e no artista, cujos arquétipos emergem na consciência: pela razão, ambos transmitem as riquezas da experiência profunda, da vida emocional, imaginativa (GRIFFITHS, 2000). Os mitos cristãos (criação e queda, paraíso, terra prometida, o Messias e seu reino) se materializam na figura de Cristo, cuja vida e morte situaram-se no contexto histórico de um povo. Na visão linear cristã, tudo vem de Deus e ruma para um fim; o cristianismo supervaloriza eventos temporais, despreza a realidade intemporal. Intuitiva, a Fé valida valores transcendentes, abre-se ao mistério divino, como a mente intuitiva se abre ao todo. A experiência cristã fundamental busca a realidade absoluta (êxtase místico), a verdade absoluta, a bem-aventurança absoluta; ao procurar a Salvação espiritual, o místico supera os limites do corpo e da alma, transcende a si mesmo, descobre o ser infinito, imutável, eterno, além do fluxo do tempo e da mudança, do pensamento e do sentimento: a transcendência absoluta responde a todo questionamento do Homem. O Messias, rei guerreiro hebreu, ora servo sofredor, suporta a iniquidade, a ignomínia; Filho do Homem, participa das dores da humanidade (Jesus repete o homem arquetípico); seu reino recupera o espírito de sabedoria e compreensão humana, restabelece a sua harmonia original com a natureza, abole a guerra, consolida a paz. A Igreja, instituição histórica, tem caráter universal e dimensão cósmica. O Espírito de Deus concita as pessoas a amar, a servir, inspira-as com o ideal de sacrifício e a experiência mística. Cabe ao Homem peregrinar em busca da verdade, da realidade, da realização final; nenhuma 103

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ciência, filosofia ou teologia abarca a Verdade, nenhuma poesia, arte ou instituição humana a contém em si (GRIFFITHS, 2000). O Homem histórico consciente e voluntariamente cria a História. A concepção linear do tempo começou com Santo Agostinho; concepções cíclicas eram aceitas, em parte, na Idade Média, por pensadores como Santo Alberto Magno, São Tomás de Aquino, Dante, Roger Bacon; no Renascimento, por Bruno, Campanella e Kepler. Francis Bacon defendia a concepção de tempo linear, que se impôs e levou, a partir do século XVII, a uma fé no progresso infinito, reforçada, no século XIX, por Hegel e Marx, ao valorizarem as forças sociais, políticas e econômicas (ELIADE, 1992). A expressão Idade das Trevas, para Eco (1989), cairia bem para a alta idade Média (até o ano 1000), época de decadência de cidades, deterioração dos campos, fomes, invasões e mortes em tenra idade. A angústia e insegurança faziam da vida monacal uma opção de vida ordenada e tranqüila. O mosteiro medieval produzia e armazenava conhecimentos; os monges copistas reproduziam e protegiam obras antigas. A partir do século XI, aumentou a vida urbana e foram criadas escolas e universidades, cujos professores liam e copiavam velhos textos nos mosteiros (BRAGA et al., 2003). O diálogo de homens da ciência com músicos, poetas, artistas plásticos e teólogos elaborava teorias para explicar fenômenos naturais; produziam-se novos conhecimentos repassavam-se os antigos, criavam-se inovações técnicas. A ordem Dominicana fornecia professores às Universidades: São Tomás de Aquino valorizou a razão como forma de alcançar a verdade e a certeza. Os Franciscanos, ligados à Natureza, estudavam-na para melhor conhecê-la; para Robert Grosseteste e Roger Bacon, o saber prático complementava a especulação teórica, a matemática era necessária ao estudo da natureza; Willian de Ockham negou a possibilidade de se alcançar causas reais de fenômenos naturais pelos conhecimentos racionais; pregou um empirismo radical, em que o conhecimento viria das experiências (a indução geraria certezas). No Renascimento, os Estados emergentes contestaram o poder espiritual e político da Igreja, começou o absolutismo dos reis e a Ciência constituiu métodos próprios de investigação, valorizando a matemática (BRAGA et al., 2004). Para Francis Bacon, o conhecimento científico e técnico era fonte de desenvolvimento; inquiria-se a natureza por experiências e dos resultados obtidos vinha a generalização; conhecer a natureza permitiria o controle científico , Goiânia, v. 8, n. 2, p. 93-111, jul./dez. 2010

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do mundo, traria bem-estar aos homens. Descartes partia da dúvida: seu método científico fundava-se no pensamento racional abstrato da matemática, nas deduções. Galileu uniu o pensamento matemático ao experimental: a ciência partia de experimentos com a natureza e usava a matemática para descrever as experiências e formular leis. A ciência moderna seguiu um curso quase livre até atingir seus limites e sofrer críticas. Lorenz (1986) denunciou o falso culto ao progresso, religião tecnocrática que despreza as tradições culturais humanas, tidas como irrelevantes e superadas: para o cientismo, só o que se expressa na terminologia das ciências exatas e se comprova por quantificação é real; o único e legítimo método científico para adquirir conhecimento envolve medição e cálculo. Para Serres (1994), pelo desenvolvimento científico e tecnológico a humanidade se capacitou a destruir o seu mundo, a causar a própria extinção; ela deveria firmar um contrato de não-agressão com a Terra. As descobertas da ciência exigem cautela: pelo princípio de responsabilidade (JONAS, 2006), a humanidade frágil está assustada com as tecnologias perigosas que criou: precisa agir de modo a garantir a permanência de uma autêntica vida humana sobre a terra por tempo indefinido, sem a ameaça de extermínio. Rees (2005) aponta para uma série de riscos tecnológicos que ameaçam a humanidade no século XXI, por uso incorreto de tecnologias inovadoras (proposital ou não) ou acidentes; os piores concernem às nano e biotecnologias, porém não está totalmente afastada a ameaça nuclear (em especial através de atentados promovidos por pequenos grupos de terroristas ou indivíduos isolados). O período mais crítico da guerra fria pertence ao passado, porém, uma guerra nuclear regional (por exemplo, entre Paquistão e Índia), ao detonar cem bombas com a potência da usada em Hiroshima sobre grandes cidades, provocaria um resfriamento global e a redução das precipitações pluviométricas (em cerca de 10%), por mais de dez anos, diminuindo o suprimento de alimentos no mundo. A queima da grande quantidade de material combustível nas cidades produziria muita fumaça; esta seria levada por correntes atmosféricas à alta estratosfera, onde os mecanismos de remoção são lentos. O número de mortes se aproximaria do ocorrido na Segunda Guerra Mundial. Uma guerra nuclear global acarretaria um inverno nuclear, ameaça ainda mais grave (ROBOCK et al., 2007). Para Heisenberg (1996), o pesquisador científico tem responsabilidade sobre suas descobertas e há uma compatibilidade entre ciência e fé: uma separação muito nítida entre ambas conturba as sociedades humanas. 105

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O autor não se opõe ao uso da linguagem das antigas religiões, com suas imagens e parábolas, cujo conteúdo gira em torno de questões referentes aos valores. A respeito destes, cabe lembrar que Wilson (2008), cientista secular, conclama a ciência e as religiões a se unirem para lutarem juntas contra o empobrecimento da biodiversidade na Terra e evitar um holocausto ambiental. O MUNDO REAL E O DESCRITO NO TEXTO DO LIVRO

O incêndio de todo um mundo se reflete em grau menor na queima de livros e pessoas, como a da Idade da Simplificação. Regimes fundamentalistas religiosos, além dos declarada ou disfarçadamente ateus, incineradores de obras e pessoas, exemplificam tentativas de erradicar culturas. A expressão “Idade das Trevas”, utilizada costumeiramente para a Idade Média, carrega um preconceito. Se a cultura praticamente limitou-se aos mosteiros, no início do medievo, deve-se louvar o labor dos monges copistas para preservar o conhecimento, o dos islâmicos, transmissores de saberes antigos e criadores de novos, e o dos europeus, notadamente monges pesquisadores, a partir do século XI. A “Idade das Trevas” após a Simplificação, e a sua substituição por uma nova idade da luz, com o advento de cientistas, no livro, reproduz o preconceito. Uma descrição mais fiel ocorre na referência aos dominicanos, guardiões da fé, que estudaram o material achado por Francis, algo típico de seu mister, assim como o relato sobre a pesquisa do Irmão Kornhoer, personagem comparável a um monge como Roger Bacon. Seu contraponto, o Irmão Ambruster, tipifica o conservadorismo obscuro rebelde ao avanço científico. Dom Paulo, embora conservador, dá sua anuência para o experimento de Kornhoer e preocupa-se com as conseqüências dos avanços da ciência, menosprezados por Mestre Taddeo. Este representa o pesquisador que redescobre antigos conhecimentos; ao partir da dúvida, valorizar as deduções e o uso da matemática, lembra Descartes; pela fé cega na ciência para controlar a natureza e desenvolver o saber humano, aproxima-se de Francis Bacon, mostra-se adepto do cientismo. O dogmatismo banha Taddeo e Ambruster: um crê na religião e manutenção do sistema; o outro, na ciência e no desprezo ao passado; a favor do segundo, ressalta-se o seu caráter de inovador de paradigmas. O collegium remete às universidades medievais (que admitiam religiosos, condição negada a Kornhoer).

Hannegan II, autocrata, monarca absoluto, perpetra um cisma religioso (como Henrique VIII) e martiriza Marcus (similar às vítimas das perseguições do poder secular a homens de fé), que divulgou seus planos imperialistas (atitude digna de quem não teme a morte). Ao assumir a chefia da sua própria Igreja, lembra os tsares russos e outros soberanos que submetem religiões aos interesses do Estado. A santificação de Leibowitz mostra as falhas nos processos de canonização embasados em provas frágeis. A postura de Dom Arkos, quanto a Francis, oscila do extremo rigor, ao entender que o noviço visionário prejudicava a canonização do fundador da ordem, ao reconhecimento pela sua contribuição ao sucesso do pleito. Francis, limitado, tenta a vida monacal como alternativa de vida segura num mundo perigoso; alcança o martírio ao morrer quando cumpria missão junto à Nova Roma. Seu assassino mutante também foi criado à imagem e semelhança de Deus; Eco (1989) lembra o lugar dos monstros no imaginário de beleza medieval. A viagem e a morte de Francis simbolizam o perigo da travessia pelo desconhecido, profano, rumo a um Centro. A Abadia de São Leibowitz e Nova Roma, lugares sagrados, Centros, representam em terra a Cidade de Deus de Santo Agostinho. A viagem espacial do grupo liderado pelo Irmão Joshua, rumo ao desconhecido, busca estabelecer novo lugar sagrado, novo Centro (não é mera coincidência ser ele homônimo do líder dos hebreus que entraram na terra Prometida), novo ato de criação, repetição do gesto arquetípico, porque o ser humano tornou a Terra, seu berço, um lugar profano. O sacrifício, tão significativo para o catolicismo, avulta nas mortes de Francis, do poeta, de Apollo, de Dom Zerchi, da mulher e da menina que o último tenta salvar; o Doutor Cors, médico que as destina à morte, configura a face implacável da ciência e da falta de caridade. Será melhor morrer do que viver e sofrer? O sacrifício de Dom Zerchi se associa à aquisição de uma alma por Raquel, que manifesta, na ingenuidade e ausência de malícia, dons preternaturais, perdidos pelo Homem ao se desligar da Natureza. O poeta e o escultor (este, mutante, também criado à imagem de Deus) são pessoas com os aspectos racional e imaginativo (intuitivo) integrados. A estátua, desprezada por Dom Arkos, inspira momentos de êxtase místico a Dom Paulo e de reflexão a Dom Zerchi. O velho eremita consagra a sobrevivência da religião judaica e a infindável espera por um Messias libertador. Ao afirmar que Leibowitz deixou de fazer parte da “gente”, condena-o por adotar outra religião; no diálogo com Dom Paulo, ressalta a raiz do catolicismo romano no 107

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judaísmo (este diálogo exibe uma nítida tensão entre os dois credos). As aves carniceiras, sempre presentes no final de cada capítulo do “Cântico”, ilustram a temporalidade humana e a constante renovação dos ciclos da natureza. A espécie humana, uma fênix, ressurge das cinzas dos incêndios que ela mesma provoca, porém precisa procurar dentro de si mesma o caminho para sair da crise permanente em que se meteu, uma espécie de loucura, como afirma Dom Zerchi. Marcus Apollo critica a insensibilidade da ciência ao dizer que a avançada civilização anterior se destruiu por ser sábia apenas no campo material; faltou-lhe o componente intuitivo, presente na fé religiosa; esta não pode se cristalizar no dogmatismo, também presente em uma ciência convicta de ser a dona da verdade. O limite entre tempo linear e os ciclos se dilui no “Cântico”; ciclos longos se rompem na hecatombe nuclear, recomeçam e se repetem, até advir novo dilúvio de fogo, assimilado pelo judaísmo à religião de Zoroastro e herdado pelo cristianismo. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Homem tentou decifrar e dominar a natureza, primeiro pela magia, a seguir pela ciência. Sua triste realidade: perdeu o controle sobre processos que imaginava dominar. Em “Um cântico para Leibowitz”, distopia cíclica, vários elementos exigem debate: as especulações metafísicas (escatologia); a inquietante visão do futuro; os holocaustos nuclear e ambiental; o fim do mundo; os simulacros (seria a Ciência um deles?); os mitos; o misticismo; o dogmatismo da religião e da ciência; a cisão entre ciência e fé, e o aspecto complementar de ambas; o afastamento do Homem da Natureza e o seu lugar o mundo; a origem do cristianismo, a herança recebida do judaísmo e de outras fés, suas semelhanças e diferenças quanto a outras religiões; o progresso científico como mito de salvação; as responsabilidades de cientistas e governantes; as querelas entre religiões e o poder secular; a salvação do Homem (pela Fé, pela Ciência, por ambas ou por nenhuma das duas?). A obra transcende as propostas da FC como cultura de massa; requer uma leitura profunda, mais além da pesquisa que redundou neste artigo; é especialmente recomendada para cursos sobre ciências da religião e antropologia. Uma de suas lições: não se pode negar o progresso, nem estabelecê-lo como meta única da existência. A ameaça pelas armas nucleares não desapareceu; persiste alguma tensão entre os Estados , Goiânia, v. 8, n. 2, p. 93-111, jul./dez. 2010

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Unidos e a Rússia; países desenvolvidos enfrentam problemas agudos, como na economia; os emergentes anseiam pelo poder mantido pelos anteriores; líderes pretensamente messiânicos (simulacros) transformam, de fato, democracias em ditaduras (países da África, do Oriente Médio e da América Latina constituem campos férteis para tal experiência desastrosa), com ou sem o apoio de líderes religiosos “renovadores” ou mesmo conservadores fanáticos. Urge uma drástica e sincera mudança interior do ser humano, para a situação descrita no livro, ou outros tipos de apocalipse, como o que pode advir do aquecimento global, da biotecnologia e da nanotecnologia não se tornarem realidade e não provocarem uma grave destruição da vida na Terra. CRISIS BETWEEN RELIGION AND SCIENCE IN “A CANTICLE FOR LEIBOWITZ” Abstract: Walter M. Miller Junior’s apocalyptic science fiction tale ‘A Canticle for Leibowitz’ narrates the happenings in an Earth after a global nuclear war. The Albertian Order of Leibowitz, Catholic Roman Church, preserve books and other documents of the destroyed civilization, the “Memorabilia”. The time is cyclic: the human kind retakes the scientific progress; the relations between the Catholic Roman Church and the secular power are tenses; different politic blocks disputing the hegemony and occurs a new global nuclear war. A spatial nave of the Catholic Roman Church departs to another planet, in other solar system, transporting children, scientists, priests, monks and nuns, to preserves the human culture and to recommences the history, on the basis of ethic and responsibility. Keywords: Science Fiction. Science. Nuclear War. Catholic Roman Church. Referências BAUDRILLARD, J. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991. BRAGA, M.; GUERRA, A.; REIS, J. C. Breve história da ciência moderna: convergência de saberes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. v. 1. BRAGA, M.; GUERRA, A.; REIS, J. C. Breve história da ciência moderna: das máquinas do mundo ao universo-máquina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. v. 2. ECO, U. Arte e beleza na estética medieval. Rio de Janeiro: Globo, 1989. 109

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Recebido em: 29.09.2010 Aprovado em: 1º.10.2010

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Mestre em Educação pela Universidade de Sorocaba (2005). Graduado em Ciências Biológicas pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (1974). Analista ambiental no Parque Nacional do Itatiaia, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Parque Nacional do Itatiaia. E-mail: [email protected]

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