Crise Humanitária: Tem solução? [Entrevista] - Revista História em Foco - Refugiados

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MOTIVOS POLÍTICOS, ÉTNICOS E RELIGIOSOS QUE FORÇAM AS MIGRAÇÕES

TEM SOLUÇÃO?

Especialistas apontam as saídas para a crise humanitária

R$ 9,90

História em Foco Refugiados - Ano 1, nº 1 - 2017

OS FILHOS

DE LUGAR NENHUM

CHOQUE DE CULTURAS

Como refugiados lidam com preconceitos e costumes diferentes

CRISE HUMANITÁRIA

Tem

solução?

Conheça os principais pontos que envolvem a difícil busca por uma saída concreta para a crise dos refugiados

Texto e entrevistas Victor Santos Design Rafael Nakaoka

É

uma situação praticamente insustentável. Países vizinhos lidando com demandas altíssimas de refugiados; milhares de pessoas morrendo na travessia ao mar tentando chegar à Europa – mais de um milhão deles atingiram o continente pelo oceano em 2015 –, além das polêmicas envolvendo a forma como os governantes europeus lidam com isso. Entenda a seguir todas as questões envolvidas na busca por uma solução dessa complexa crise humanitária.

Controvérsias no Velho Continente

Na questão europeia, de um lado está a premiê alemã Angela Merkel, que anunciou desde 2015 os planos para receber 500 mil refugiados ao ano. Ao mesmo

CAMPO DE REFUGIADOS

Desenvolvidos e mantidos com a ajuda de várias nações e de organizações internacionais como o próprio ACNUR e organizações nãogovernamentais como Cruz Vermelha e Médicos Sem Fronteiras, os campos de refugiados surgiram como uma solução temporária para a crise migratória. Construídos em países vizinhos de conflitos e a 50km de uma fronteira, esses locais fornecem o mínimo para a sobrevivência, como água, alimentação, abrigo, saneamento básico, atendimento médico-hospitalar e psicológico, e ainda procuram fornecer condições de tra-

tempo, explodem as controvérsias no país após casos como o estupro e assassinato de uma estudante de medicina de 19 anos na cidade de Freiburg. Preso, o acusado era um refugiado afegão de 17 anos, o que levou a uma comoção nacional e a questionamentos a respeito da política de Merkel – grupos mais conservadores defendem uma limitação ou mesmo o fim dessa absorção de refugiados pelo país, enquanto os moderados pedem para não julgarem todos os imigrantes pela atitude de um indivíduo. Do outro lado, o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán se sobressai como a voz abertamente contrária ao refúgio. A Hungria está na rota dos sírios que buscam entrar na Alemanha e chegou a ficar

em segundo lugar na lista de solicitações. “Orbán mandou construir uma cerca na fronteira do país com Eslovênia, Croácia e Sérvia para conter o fluxo”, relata o professor de atualidades, Paulo Galvão, “e a fala do premiê contém os diversos elementos que baseiam o discurso contrário aos refugiados, como o etnocentrismo, a ameaça aos empregos e benefícios sociais e às questões de segurança”. Tamanho caos levou a União Europeia (UE), em setembro de 2015, a propor um plano visando solucionar a crise migratória. Porém, as propostas esbarram em divergências internas do bloco e ainda em entraves burocráticos.

balho e educação. Porém, o que era para ser uma solução paliativa se torna algo cada dia mais definitivo por conta do agravamento de tensões em locais como a Síria. E essa não é a pior parte da história. “Uma questão cada vez mais complexa nos últimos tempos, diante do grande número de refugiados que os campos abrigam na atualidade, é que, no contexto e com a configuração atual, eles se tornam lugares propícios à prática de violência contra mulheres, crianças e pessoas mais vulneráveis”, destaca o professor de direito internacional Luciano Meneguetti. Em janeiro de 2016, o alto funcio-

nário da Organização das Nações Unidas Anders Kompass, após ter acesso a inúmeras informações abafadas que tratavam de acusações de abuso sexual contra menores em campos de refugiados da República Centro-Africana – por parte de soldados e funcionários da ONU –, vazou um relatório à imprensa listando todos os casos. Após a denúncia e o escândalo internacional que se seguiu, Anders entregou o cargo em junho do mesmo ano, alegando protestar contra a impunidade perante essas 99 denúncias relatadas no documento e outros casos de violação dos direitos humanos.

CRISE HUMANITÁRIA

Regulamento de Dublin

Assinado em 1990, o Regulamento de Dublin consiste em um tratado internacional que fixou as normas de refúgio entre os membros da União Europeia, e ainda inclui Suíça, Islândia, Noruega e Liechtenstein. Seu estabelecimento se deu para estruturar e agilizar as análises de refúgio nos países do bloco – mas na prática, em meio à complicada situação vivida no continente, a regulação acaba atrapalhando. “Em linhas gerais, esse acordo estabelece uma hierarquia de critérios para identificar o Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de asilo na Europa, para definir qual nação vai se responsabilizar por uma determinada pessoa requerente de asilo, bem como assegurar que pelo menos um Estado possa cuidar do assunto”, sintetiza o advogado e professor de direitos

A proposta da Comissão Europeia para solucionar a crise migratória inclui a criação de cotas para refugiados em todas as nações do bloco, distribuídos conforme o Produto Interno Bruto (PIB) de cada país, a taxa de desemprego e o número de solicitações de refúgio recebidas nos quatro últimos anos

humanos e direito internacional, Luciano Meneguetti Pereira. O especialista explica que, geralmente, o país responsável é aquele no qual o requerente de asilo entra na União Europeia, e não a nação para onde o refugiado pretende ir. “Esse é um de seus aspectos negativos que talvez precise de uma reforma mais urgente”, comenta o pesquisador. Como salienta o também professor de direito Mário Lúcio Quintão Soares, “trata-se de um retrocesso, em termos humanitários, reforçar que o direito de asilo é um direito do Estado, e não um direito do indivíduo, como determina o Sistema Internacional de Direitos Humanos”. A própria Comissão Europeia, grupo que defende os interesses da UE, já admitiu que esse impedimento de fazer o pedido ao país que será destino final não está funcionando no contexto atual.

Imagens: iStock.com/Getty Images

A criação de cotas

Em meio às turbulências promovidas pelos intensos fluxos migratórios, a mesma Comissão apresentou um plano para tentar solucionar a questão. A proposta seria a criação de cotas para refugiados em todas as nações do bloco, distribuídos conforme o Produto Interno Bruto (PIB) de cada país, a taxa de desemprego e o número de solicitações de refúgio recebidas nos quatro últimos anos. “Essa é uma questão muito polêmica”, comenta Luciano, “pois, pelas regras do Direito Internacional, cada país é soberano para decidir quem recebe em seu território, não podendo haver, como regra, ingerências de outros Estados ou mesmo de organismos internacionais nesse sentido”. Ou seja, todo indivíduo tem o direito de requerer asilo, assim como o país tem direito de negá-lo, pelas regras internacionais. Além disso, diversos governos – Grã-Bretanha (que posteriormente pediu desligamento do bloco econômico), República Tcheca, Polônia, Eslováquia e Hungria – se opuseram fortemente a essa medida. A crise econômica mundial aparece frequentemente como argumento para impedir a entrada de indivíduos – o premiê húngaro já declarou que, além de ameaçarem a cultura europeia, os refugiados podem tomar empregos dos europeus.

Possíveis soluções?

Os especialistas consultados destacam que é necessária uma revisão urgente de todos esses procedimentos para tentar reverter esse quadro. A advogada especialista em imigração Ingrid Baracchini aponta que é necessária “uma maior clareza jurídica dos processos entre os Estados-membros. Toda a regulação de Dublin não pode durar mais de 11 meses para tomar conta de uma pessoa, ou nove meses para levá-la de volta”, diz. A profissional também reforça a importância de se obter garantias para os menores de idade. O advogado Luciano indica que o regulamento de Dublin já fixa a manutenção da unidade familiar, mas

que é preciso ir além. “Poderíamos pensar numa reforma do sistema de concessão de refúgio da União Europeia, e na flexibilização das políticas e legislações domésticas de imigração dos países, não só do continente europeu, mas de todo o globo”, pontua. Além disso, outra sugestão é a de um aperfeiçoamento no sistema de compartilhamento de informações sobre refugiados. Essa rede de comunicação entre os países poderia ajudar no sentido de melhor monitorar a movimentação global de pessoas. Por fim, como ressalta o professor de direito Mário Quintão Soares, “as soluções suscitadas passam pela observância do Sistema Internacional de Direitos Humanos”.

ATUAÇÃO MAIS EFETIVA Outro ponto bastante enfatizado nessa busca por um fim da crise humanitária dos refugiados diz respeito a uma ação na raiz do problema: o ponto de saída desses migrantes. E as grandes potências mundiais não estão obtendo sucesso no que diz respeito a isso, como o caso da Síria (mais detalhes na página 19) deixa explícito. “A redução ou o fim das guerras e conflitos armados, o respeito aos governos democráticos e aos direitos das minorias seriam as políticas necessárias e recomendáveis para que as pessoas não fossem forçadas a deixar seus países de origem e se tornarem solicitantes de refúgio”, resume a professora e pesquisadora na área de comunicação, migrações e interculturalidade, Denise Cogo. Dessa forma, o caminho passa pelo estabelecimento da paz e reconstrução do que foi destruído pelos confrontos, um trabalho de longo prazo. “E os países, especialmente aqueles que geram as guerras e conflitos que provocam o refúgio, teriam que se comprometer a receber um número de pessoas compatível com os atuais fluxos”, conclui a especialista.

CONSULTORIAS Denise Cogo, jornalista, professora e pesquisadora do programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) em São Paulo (SP), e autora de diversas obras na área como Mídia, Migrações e Interculturalidade (2006, E-Papers/CSEM); Ingrid Baracchini, advogada especialista em imigração da Associação Americana de Advogados de Imigração (AILA); Luciano Meneguetti Pereira, advogado, especialista em direito público, professor de direito constitucional, internacional e direitos humanos; Mário Lúcio Quintão Soares, professor adjunto dos cursos de bacharelado, mestrado e doutorado da Faculdade Mineira de Direito (PUC/MG); Paulo Galvão, professor de atualidades do Colégio Marista Arquidiocesano, em São Paulo (SP)

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