Crises e resistências: os desafios e possibilidades da Via Campesina

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Coordenador do Projeto Editorial Praxis Prof. Dr. Giovanni Alves Conselho Editorial Prof. Dr. Antonio Thomaz Júnior – UNESP Prof. Dr. Ariovaldo de Oliveira Santos – UEL Prof. Dr. Francisco Luis Corsi – UNESP Prof. Dr. Jorge Luis Cammarano Gonzáles – UNISO Prof. Dr. Jorge Machado – USP Prof. Dr. José Meneleu Neto – UECE

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Santos, Agnaldo dos Crise do capitalismo global no mundo e no Brasil / Agnaldo dos Santos, Francisco Luiz Corsi, José Marangoni Camargo e Rosângela Lima Vieira. - - Bauru, SP: Canal6, 2013. 310 p. ; 21 cm. (Projeto Editorial Praxis) ISBN 978-85-7917-247-2 1. Economia. 2. Crise Econômica Mundial. 3. Crise Financeira Mundial. I. Santos, Agnaldo dos. II. Corsi, Francisco Luiz. III. Camargo, José Marangoni. IV. Vieira, Rosângela Lima V. Título. CDD: 338 Copyright© Canal 6, 2013

Capítulo 6

Crises e Resistências: os desafios e possibilidades da Via Campesina Mirian Claudia Lourenção Simonetti1 Adriane de Sousa Camargo2

O

processo de globalização,1que2integrou a produção e a economia mundial numa escala sem precedentes, não se produziu sem resistências, sem encontrar oposição de vários setores da sociedade. Simultaneamente ao processo de reprodução ampliada do capital, e as suas consequências, novas forças sociais foram se constituindo e articulações cada vez mais amplas e diversas foram se formando até se configurarem em organizações internacionais. No plano da agricultura, a maior organização que se constituiu foi a  Via Campesina, como 1

Professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista, Campus de Marília. Doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo. Coordena o Centro de Pesquisa e Estudos Agrários e Ambientais (CPEA) da UNESP/ Marília. Bolsista Produtividade 2 CNPq.

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Discente do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora do Centro de Pesquisas e Estudos Agrários e Ambientais (CPEA) da Universidade Estadual Paulista (UNESP).

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expressão da emergência organizativa dos camponeses e indígenas de diferentes lugares do mundo. Desde então, a Via Campesina se tornou um dos principais atores no questionamento da atual ordem econômica mundial e das suas instituições mais representativas tais como o FMI, o Banco Mundial, OMC, bem como na crítica das ações grandes empresas transnacionais e outros agentes econômicos e financeiros que atuam no domínio das atividades agrícolas. Esse processo se intensificou nas últimas três décadas no Brasil, e em diferentes países do mundo, promovendo mudanças significativas na agricultura camponesa e uma ampliação das monoculturas ligadas ao agronegócio de exportação. Como resultado, verifica-se uma enorme concentração de terras para poucos proprietários, a destruição das florestas nativas e a migração de camponeses para as cidades. As consequências ecológicas desse processo são bem conhecidas: a destruição das florestas destrói a biodiversidade, os mananciais, os rios e as comunidades camponesas. Esse processo vincula-se ao avanço do capitalismo financeiro e das empresas transnacionais na agricultura e no sistema alimentar dos países. Esse avanço envolve desde a privatização das sementes e a venda de agrotóxicos até a compra dos produtos, bem como seu processamento, transporte, distribuição e venda ao consumidor. Cada vez mais a produção, distribuição, circulação e consumo dos produtos agrícolas estão centralizados em um número reduzido de empresas. A consequência disso é que os alimentos deixam de ser um direito e tornam-se cada vez mais mercadorias. Verifica-se também uma ofensiva do capital sobre os recursos naturais. O processo de reprodução ampliada do ca-

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pital lança as grandes empresas numa guerra de privatização que as leva a expulsar camponeses, comunidades indígenas, privatizando suas terras, territórios, florestas, biodiversidade, água e minérios. O cultivo de agrocombustíveis (cana-de-açúcar) em grandes monoculturas industriais também é razão dessa expulsão, amparada em argumentos sobre crise energética e climática. A realidade por trás destas últimas facetas da crise tem a ver com a atual matriz de transporte de longa distância dos bens, e individualizado em automóveis. Esse fenômeno vincula-se ao contexto da globalização neoliberal que é “caracterizada por uma concentração cada vez maior das riquezas e do poder na ordem territorial e, certamente, pelo aumento da degradação ambiental” (PENNAFORTE, 2001, p. 09). Tal fenômeno corresponde a um novo regime de acumulação do capital, que aprofunda a desigualdade da distribuição das riquezas entre países ricos e países pobres e a desigualdade social em seus âmbitos nacionais. Nesse contexto, a agricultura, em diferentes países, assumiu novas funções diferentes daquelas que desempenhou no período anterior, caracterizada pela substituição de importações e industrialização. Nota-se um aumento da produção agrícola no período neoliberal, mas uma produção centrada em alguns produtos e em algumas regiões do continente, controlada principalmente por grandes estruturas econômicas e orientada para o mercado internacional. Esse modelo de desenvolvimento agrícola leva a concentração de terras, o aumento da pobreza rural e a diminuição do emprego no campo. À politica de globalização neoliberal é preciso opor uma política de resistência ao di-

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ktat dos que repetem incessantemente que não há alternativa. O capitalismo, o neoliberalismo, a globalização predadora não são o fim da história. Nem o único caminho da história. (NUNES, 2005, p. 92). Nesse sentido, diante do aprofundamento do processo da globalização neoliberal, e de suas consequências danosas, o campesinato vem buscando se organizar por meio da ação coletiva e a buscar seus direitos e suas demandas. No que concerne às questões da agricultura, são muitos os movimentos sociais organizados, mas, para efeito desse texto, destacamos as ações da Via Campesina, tanto pela sua articulação, como pela amplitude de sua intervenção na sociedade contemporânea. Seus integrantes a consideram como um movimento social internacional que coordena organizações camponesas, pequenos e médios produtores, organizações rurais de mulheres, comunidades indígenas, organizações de Sem Terra, organizações da Juventude rural, trabalhadores agrícolas migrantes, dentre outros de diferentes países e continentes (VIA CAMPESINA, 2011). A Via Campesina surge em 1992, em Manágua (Nicarágua), durante o Congresso da Unión Nacional de Agricultores y Granaderos (UNAG) como uma rede transnacional de movimentos sociais rurais. Em 1993, na cidade Mons na Bélgica, realiza a Primeira Conferência Internacional da Via Campesina, momento em que foram decididas as metas, as formas de atuação do movimento, bem como a sua institucionalização formal. Possui uma trajetória de 20 anos completados em 2013.

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Desde a sua formação, a Via Campesina age como um articulador de interesses dos camponeses no cenário mundial. Atualmente, abrange 150 organizações, que representa aproximadamente 200 milhões de camponeses e indígenas, localizadas em 70 países da África, Ásia, Europa, e América. Em seus documentos, considera-se um movimento autônomo, plural e multicultural, sem filiação partidária. Além disso, se propõe a defender os interesses dos seus membros buscando atuar através da influência nos grandes centros de poder para interferir na formulação e promoção de políticas agrícolas que afetam, direta ou indiretamente, seus membros. Atualmente é o principal interlocutor dos camponeses junto a diferentes organizações internacionais, dentre elas a Food and Agriculture Organization (FAO). (LA VIA CAMPESINA, 2011). Entre as atuações da Via Campesina ainda no início de sua formação, destaca-se seu posicionamento na Assembléia Global sobre Segurança Alimentar, que ocorreu em 1996 em Quebéc, realizada pela FAO, momento em que a organização assumiu uma posição significativa como ator transnacional. Também, no mesmo ano, participou da Cúpula Mundial da Alimentação, demonstrando seu posicionamento político. A Via Campesina foi um ator político ativo e visível na Cúpula Mundial da Alimentação (CMA), realizada em Roma, convocada pela FAO.  Seus membros desafiaram a FAO a reconhecer a sua legitimidade como representantes dos camponeses e pequenos agricultores em um dos

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maiores movimentos agrícolas do mundo e pediu para ser concedido o estatuto de representante oficial da CMA. (DESMARAIS, 2007, p. 08)3. Porém, para que esse posicionamento fosse possível, seu principal objetivo, durante o primeiro ano de existência da Via Campesina, foi estreitar e fortalecer as relações entre os movimentos sociais rurais locais. Segundo Desmarais, claramente, a Via Campesina está preenchendo um vazio importante. Sua existência é a evidência de novas estruturas de ação coletiva no campo; suas estratégias desafiam modelos tradicionais de organização no setor rural, e da magnitude de sua presença internacional – sua natureza dinâmica, a diversidade cultural e a distribuição geográfica ampla – fala a suas potencialidades transformadoras. (DESMARAIS, 2007, p. 09)4. 3

The Vía Campesina was an active and visible political actor at the World Food Summit (WFS), held in Rome and convened by FAO. Its members challenged the FAO to recognize their legitimacy as representatives of peasants and small farmers in the one of the largest farm movements in the world and requested to be given official delegate status at the WFS. (DESMARAIS, 2007, p. 08, tradução nossa).

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Clearly, La Vía Campesina is filling important void. Its very existence is evidence of new structures of collective action in the countryside; its strategies defy traditional patterns of organizing in the rural sector; and

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A organização não possui sede fixa e sua estrutura se compõe de grupos e movimentos sociais, localizados em diferentes países. O órgão mais importante da Via Campesina é o Comitê Coordenador Internacional (CCI), que é composto por representantes de todas as regiões5 em que ela se apresenta, e o Secretariado Operacional Internacional (SOI), que é responsável pela coordenação do CCI; sendo eles definidos durante suas Conferências Internacionais. Cada uma das regiões possui dois representantes, um homem e uma mulher, o que revela a preocupação da rede com a equidade de gênero em sua representação. Os dezesseis membros da Comissão de Coordenação Internacional – com dois representantes (um homem e uma mulher) de cada uma das suas oito regiões – é o elo mais importante entre as várias organizações camponesas. Fora da Conferência Internacional, o CCI é uma equipe chave de tomada de decisão e de coordenação do corpo da Via Campesina. Todas as decisões importantes são tomadas em consulta com os seus dezesseis membros. Sobre questões-chave do processo de consulta, essa questão vai além da autoridade do CCI, uma vez que cada coordenador regional the sheer magnitude of its international presence – its dynamic nature, cultural diversity, and wide geographical distribution – speaks to its transformatory potential. (DESMARAIS, 2007, p. 09, tradução nossa). 5

São oito regiões, a saber: África, América do Norte, América do Sul, leste e sudeste da Ásia, Sul da Ásia, América Central, Cuba e Caribe, e Europa.

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deve refletir as necessidades, preocupações e decisões das organizações dentro de sua região. É somente através de uma comunicação ampliada e de consulta que os coordenadores regionais ganham autoridade para apresentar posições e resoluções para o CCI. Para as organizações da Via Campesina, as regiões são os principais pontos de intersecção entre as comunidades e lutas nacionais e internacionais. (DESMARAIS, 2007, p. 30)6. Cabe destacar que a transnacionalização de movimentos sociais abarca as relações sociais originadas das tensões existentes entre o local e o global, formadas entre agentes coletivos além dos limites territoriais dos países, que em graus variáveis de institucionalização, congregam membros dos mais variados países, possibilitando uma atuação mais efetiva em busca de seus interesses. 6

The sixteen-member International Co-ordinating Commission – with two representatives (one man and one woman) from each of its eight regions – is the most important link among the various peasant organizations. Outside of the International Conference, the ICC is the key decision-making and co-ordinating body of the Vía Campesina. All major decisions are made in consultation with its sixteen members. On key issues the consultation process goes beyond the ICC, because each regional co-ordinator must reflect the needs, concerns, and decisions of the organizations within his or her region. It is only through extended communication and consultation that the regional co-ordinators gain a regional mandate to present positions and resolutions to the ICC. For Vía Campesina organizations, the regions are the key points of intersection between communities and national and international struggles. (DESMARAIS, 2007, p. 30, tradução nossa).

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Assim sendo, ao se tornarem movimentos transnacionais, os movimentos sociais nacionais, regionais e locais aumentam sua escala geográfica de abrangência. No caso da Via Campesina, a organização possibilita que os grupos sociais com atuação local encontrem espaço para atuarem em escala global. Nesse ambiente, onde são reunidos inúmeros movimentos sociais que possuem as mesmas reivindicações, a organização torna seus membros mais fortes no que tange ao poder de pressão que passam a exercer perante os atores internacionais. Essa organanização atua como um movimento coletivo internacional que coordena organizações camponesas, pequenos e médios produtores, organizações rurais de mulheres, comunidades indígenas, organizações de Sem Terra, organizações da Juventude rural e trabalhadores agrícolas migrantes. A vinculação ao movimento internacional permite a participação dos movimentos sociais a exemplo do Movimento dos Sem Terra, no Brasil, nas ações e debates sobre as questões mais amplas que afetam o campesinato e comunidades indígenas, em diferentes lugares do mundo. Em contrapartida, permite a Via Campesina intervenções locais, regionais, cujas intensas variações determinam a imbricação do local e global. O lugar se recria a partir da articulação do movimento local ao mundial. As lutas se definem em cada lugar segundo as formas e os ritmos próprios dos movimentos sociais e das ações políticas criadas pelos sujeitos a partir de suas realidades e demandas. A Via Campesina é um movimento social em construção, cujas diretrizes se estabelecem a partir dos encontros realizados nas suas conferências a cada 04 anos. Nesse sentido, ve-

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rificamos nas declarações das conferências internacionais da Via Campesina que temáticas trabalhadas pelo movimento são diretamente ligadas à questão da soberania alimentar. Desde a Declaração de Mons (VIA CAMPESINA, 1993), fruto da I Conferência Internacional da Via Campesina que ocorreu em 1993, o movimento já a apresentava como uma de suas principais demandas a luta pela soberania alimentar. Consta nesse documento que é “direito de todo país de definir sua própria política agrícola de acordo com seus interesses nacionais e em concertação com as organizações campesinas e indígenas, garantindo sua real participação” (VIA CAMPESINA, 1993)7, indicativo do que podemos chamar de “estado embrionário” das discussões que culminariam com a apresentação do conceito de soberania alimentar em sua segunda conferência internacional (VIA CAMPESINA, 1996). Dentre as diversas temáticas discutidas nessa primeira conferência, destacamos a crítica à agricultura neoliberal, que, segundo o movimento, permite a coexistência da fome com o superávit agrícola, paradoxo diretamente ligado às políticas promovidas por organizações internacionais, como a OMC e a FAO. Destacamos também a preocupação com a questão ambiental, expressa em uma agricultura ecologicamente sustentável, e o reconhecimento da portabilidade do conhecimento tradicional, ligado ao direito da permanência das populações camponesas, indígenas, no campo e no reconhecimento de sua importância social na definição e imple7

“The right of every country to define its own agricultural policy according to the nation’s interest and in concertation with the peasant and indigenous organizations, guaranteeing their real participation.” (VIA CAMPESINA, 1993, tradução nossa).

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mentação do desenvolvimento, principalmente o rural (VIA CAMPESINA, 1993). Os demais temas que aparecem nessa declaração são: pobreza e êxodo rural, fome, repressão, acesso à terra e mecanismos de compliance, este último versando sobre a estruturação do movimento. Na II Conferência Internacional da Via Campesina, que ocorreu em Tlaxcala/México, em 1996, foi publicizada pelo movimento a Declaração de Tlaxcala. Nesse documento são reafirmados os temas trabalhados na primeira conferência, com a inserção das questões relacionadas aos recursos fitogenéticos e da questão de gênero. (VIA CAMPESINA, 1996). A Via Campesina considera que a “Conferência em Tlaxcala [...] é um enorme e importante passo em direção à justiça, à equidade e à liberdade para os que vivem e trabalham no campo” (VIA CAMPESINA, 1996)8. Nessa declaração, percebe-se que foram estruturados os primeiros eixos de trabalho, eixos esses que estão presentes nas conferências posteriores e que são responsáveis pelas diretrizes do movimento e de sua atuação até o momento. Tais eixos, presentes na Tabela 1, foram divididos em estratégias estruturais, referentes à própria estruturação da Via Campesina enquanto movimento, visto que a organização ainda se estruturava naquele momento, e em estratégias propositivas, que estabelecem os meios de sua atuação no cenário internacional, de modo a facilitar sua distinção. Na Tabela 2, encontram-se as estratégias delineadas na Conferência de Maputo, última conferência internacional realizada pela Via Campesina, o 8

“[...] Conferencia em Tlaxcala [...] es um enorme e importante passo em dirección a la justicia, la equidad y la libertad para los que viven y trabajan em el campo” (VIA CAMPESINA, 1996, tradução nossa).

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que permite a visualização do aprofundamento e atualização dos temas e das propostas do movimento. Tabela 1: Estratégias apresentadas na II Conferência Internacional da Via Campesina em Tlaxcala. Estratégias da Via Campesina Articular e fortalecer organizações regionais. Construir relações de solidariedade entre as organizações membros da Via Campesina. Estratégias estruturais

Promover o trabalho organizacional através de redes entre as mulheres da Via Campesina e suas organizações. Construir secretarias operativas à nível regional. Fomentar mecanismos de comunicação interna e externa. Promover o trabalho organizacional através de redes entre os diferentes setores da produção regional e entre as regiões. Introduzir os objetivos da Via Campesina nos debates das organizações internacionais. Desenvolver respostas regionais apropriados para acordos comerciais bilaterais e regionais.

Estratégias propositivas

Promover iniciativas que contribuam para o desenvolvimento do comércio justo com a concorrência direta dos produtores e consumidores, com uma campanha internacional antidumping. Instigar uma “rede de solidariedade e de resposta” contra os atos de violência contra os camponeses e agricultores, ampliando o movimento com a participação de diversas partes interessadas. Luta contra a privatização do patenteamento genético, através da criação de bancos de sementes para os agricultores, propondo iniciativas legais para garantir o patrimônio genético e elaborando relatórios sobre os perigos da bioprospecção.

Fonte: VIA CAMPESINA, 1996. Elaborado pelas autoras.

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Tabela 2: Temas e propostas da Via Campesina presentes na Carta de Maputo. Carta de Maputo Temas

Propostas

Soberania alimentar

Renacionalização e retirada do capital especulativo da produção dos alimentos.“A Soberania Alimentar baseada na agricultura camponesa é a solução para a crise.”

Crises energéticas e climáticas

“Disseminação de um sistema alimentar local, que não se baseia na agricultura industrial nem no transporte a longa distância, eliminaria até 40% das emissões de gases de efeito estufa.”

Reforma Agrária

“A Reforma Agrária genuína e integral, e a defesa do território indígena.”

Agricultura camponesa sustentável

“Somente a produção camponesa agroecológica pode desvincular o preço dos alimentos do preço do petróleo, recuperar os solos degradados pela agricultura industrial e produzir alimentos saudáveis e próximos para nossas comunidades.”

Violência contra a mulher

“O fim de todos os tipos de violência para com as mulheres, seja ela, física, social ou outras.”

Semente e água

“A semente e a água são as verdadeiras fontes da vida, e são patrimônios dos povos. Não podemos permitir sua privatização, nem o plantio de sementes transgênicas ou de tecnologia terminator.”

Criminalização de movimentos sociais

A “Declaração dos Direitos dos Camponeses e Camponesas na ONU, proposta pela Via Campesina, será um instrumento estratégico no sistema legal internacional para fortalecer nossa posição e nossos direitos como camponeses e camponesas.”

Juventude do campo

“É necessário abrir, cada vez mais, espaços em nossos movimentos para incorporara força e a criatividade da juventude camponesa, com sua luta para construir seu futuro no campo.”

Alimentação

“Nós produzimos e defendemos os alimentos de todos e todas.”

Fonte: VIA CAMPESINA, 2008. Elaborado pelas autoras.

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Verificamos que as estratégias propositivas presentes na Declaração de Tlaxcala (VIA CAMPESINA, 1996) são mais elaboradas na Carta de Maputo (VIA CAMPESINA, 2008) e traduzidas nos temas de discussão e de articulação do movimento na atualidade. Com a inserção, discussão e elaboração do conceito de soberania alimentar pela Via Campesina, verifica-se que a consciência da interdependência das questões pelo movimento fez com que esse se tornasse um conceito guarda-chuva, em que vai sendo construído e novos elementos vão se incorporando a ele. Tal processo é resultante da própria proposta do conceito, que é o de construir um novo modelo alimentar, que rompa definitivamente com o modelo neoliberal. Nesse sentido, todos os eixos de atuação pela Via Campesina, já arrolados anteriormente, são consubstanciados pelo conceito de soberania alimentar, na medida em que esta não existe na ausência ou na deficiência de qualquer um deles. A isso se soma a questão cultural, do respeito e reconhecimento da portabilidade do conhecimento tradicional, questões essas que dão unidade ao movimento. Nas demais conferências internacionais, verifica-se a retomada das questões elencadas na segunda conferência, o que demonstra que a Via Campesina tem focado sua atuação em torno dos eixos estratégicos definidos na Declaração de Tlaxcala (VIA CAMPESINA, 1996). Na III, IV e V Conferência Internacional da Via Campesina, ocorridas em Bangalore (2000), São Paulo (2004) e Maputo (2008), respectivamente, esses eixos são desenvolvidos e atualizados na medida em que o processo de luta vai ocorrendo.

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Cabe ressaltar que todos eles são compreendidos como condições necessárias para o estabelecimento da soberania alimentar. A pobreza e o êxodo rural aparecem como uma situação de deterioração total do mundo rural. Essa deterioração é “expressa através do aprofundamento da pobreza em todo o planeta e o êxodo em massa do campo, o que está elevando os níveis de desemprego globais e urbanização de grandes populações rurais” (VIA CAMPESINA, 1993)9. Segundo a Via Campesina, O sistema econômico neoliberal prevalente em todo o mundo tem sido a principal causa do empobrecimento dos pequenos agricultores, em geral, a população rural. Ele é responsável pelo aumento da destruição da natureza, terra, água, plantas, animais e recursos naturais, colocando todos esses recursos, sob a égide de sistemas centralizados de produção, fornecimento e distribuição de produtos agrícolas no âmbito da um sistema para um mercado global (VIA CAMPESINA, 1996)10. 9

“[...] expressed by deepening poverty across the whole planet and the massive exodus from the countryside, which is raising global unemployment levels and urbanising huge rural populations” (VIA CAMPESINA, 1993, tradução nossa).

10 “El sistema económico neoliberal prevalente a nivel mundial, ha sido la causa principal del empobrecimiento de los agricultores pequeños y, en general, de la gente del campo. Es responsable del incremento en la destrucción de la naturaleza, la tierra, el agua, las plantas, los animales y los recursos naturales, poniendo todos estos recursos bajo la égida de

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Nesse sentido, a Via Campesina tem afirmado que a permanência da agricultura camponesa é fundamental para a eliminação da pobreza, da fome, do desemprego e da marginalização. Nós acreditamos que a agricultura é parte essencial da soberania alimentar e soberania alimentar é um processo essencial para a existência da agricultura camponesa. (VIA CAMPESINA, 2004)11. Através da leitura das posições da Via Campesina, expressas nas declarações das conferências internacionais do movimento, verifica-se que este se manteve ativo em suas demandas e proposições frente à crise que se apresenta no plano internacional e em relação a sua oposição ao modelo neoliberal. Em que pese atuar sempre em re-ação às ações das empresas e instituições vinculadas aos interesses do capital, a Via Campesina vem se projetando nos fóruns mundiais e tem se revelado como um ator relevante que objetiva uma sistemas centralizados de producción, abasto y distribución de productos agrícolas en el marco de un sistema orientado a un mercado global.” (VIA CAMPESINA, 1996, tradução nossa). 11 “[...] que la permanencia de la agricultura campesina es fundamental para la eliminación de la pobreza, el hambre, el desempleo y la marginación. Estamos convencidos que la agricultura campesina es pieza fundamental de la soberanía alimentaria, y la soberanía alimentaria es un proceso imprescindible para la existencia de la agricultura campesina..” (VIA CAMPESINA, 2004, tradução nossa).

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ampla transformação social, visando a equidade e a justiça social. Para tanto, vem construindo junto aos movimentos sociais o conceito de “Soberania Alimentar”, em que a união do conceito de biodiversidade à valorização da cultura camponesa opera como uma das principais estratégias utilizadas para projetarem-se na luta contra os grandes oligopólios vinculados produção alimentícia. Verifica-se que a Via Campesina construiu, ao longo desses últimos vinte anos, uma organização influente e ativa, que atua na defesa dos seus membros e se opõe à nova ordem global. De fato, atua como um amplo movimento social, cujas ações coletivas viabilizam a organização dos camponeses e dos povos originários na demanda por seus direitos. A Via Campesina age por meio de redes sociais locais, regionais, nacionais e internacionais e utilizam-se das novas tecnologias de comunicação e informação. Suas ações vão desde a formulação de propostas e de denúncia, até às ações diretas, tais como mobilizações, grandes marchas, concentrações e demais enfrentamentos contra os poderes contituídos a nivel local ou global. Essas ações indicam a importância da articulação desses movimentos sociais na sociedade contemporânea. Com seus fluxos e refluxos são um campo de força social e político e suas ações impulsionam mudanças sociais diversas. Uma das questões fundamentais desse movimento é a crítica que ele faz a cultura do lucro, da mercantilização e privatização da vida e as suas conseqüências para o meio ambiente e o desrespeito aos direito humanos. Em oposição, defendem que ela deva ser substituída pela cultura da ética, do direito à vida, e do respeito aos direitos fundamentais.

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