Cristãos e Muçulmanos - Controvéria

June 14, 2017 | Autor: Saul António Gomes | Categoria: Christian Apologetics, Late medieval Portugal
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Carlos de Ayala Martínez es catedrático de Historia Medieval en la Universidad Autónoma de Madrid y coordinador del proyecto de investigación Génesis y desarrollo de la guerra santa cristiana en la Edad Media del occidente peninsular (ss. X-XIV), que ha permitido la elaboración de este libro. Sus líneas principales de investigación giran en torno a órdenes militares, guerra santa y espiritualidad militar, y sobre los problemas de legitimación religiosa del poder político en la alta y plena Edad Media peninsular.

Isabel Cristina Ferreira Fernandes é coordenadora científica do Gabinete de Estudos sobre a Ordem de Santiago – Município de Palmela e membro do C I D E H U S - U niversidade de Évora. Tem coordenado várias obras colectivas e actas de jornadas científicas e é autora de diversos artigos das especialidades que tocam os seus principais interesses de pesquisa: história, arqueologia e arquitectura do período medieval, nomeadamente das ordens militares.

Esta obra procura contribuir para o diagnóstico e a explicação das bases ideológicas e doutrinais do confronto entre cristãos e muçulmanos, que teve lugar no cenário peninsular, durante a Idade Média. O objectivo foi incidir em temas que continuam muito carentes de análise e de uma revisão actualizada, dentro da nossa realidade peninsular: a visão do “outro”, a construção de imagens do adversário, as justificações propagandísticas, o diálogo e/ou o confronto doutrinário, a construção de relatos míticos legitimadores, a fundamentação canónica do confronto, as suas motivações ideológicas. Do seu desenvolvimento vão depender, em grande medida, modelos teóricos que servirão para justificar o poder das principais formações políticas que se foram sucedendo na península durante esse longo período histórico.

Esta obra quiere contribuir al diagnóstico y explicación de las bases ideológicas y doctrinales de la confrontación entre cristianos y musulmanes que tuvo lugar en el escenario peninsular a lo largo de la Edad Media. El objetivo es el de incidir en temas que siguen muy necesitados de análisis y revisión actualizadora en el marco de nuestra realidad peninsular: la visión del ‘otro’, la construcción de imágenes del adversario, las justificaciones propagandísticas, el diálogo y/o confrontación doctrinal, la construcción de relatos míticos legitimadores, la fundamentación canónica del enfrentamiento, sus motivaciones ideológicas. De su desarrollo van a depender en buena medida modelos teóricos que servirán para justificar el poder de las principales formaciones políticas que se fueron sucediendo en la Península a lo largo de ese dilatado período histórico.

CRISTÃOS CONTRA MUÇULMANOS N A I D A D E M É D I A PE N I N S U L A R CRISTIANOS CONTRA MUSULMANES EN LA EDAD MEDIA PENINSULAR

Edições Colibri Universidad Autónoma de Madrid

Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação CRISTÃOS CONTRA MUÇULMANOS NA IDADE MÉDIA PENINSULAR

Cristãos contra muçulmanos na Idade Média peninsular : bases ideológicas e doutrinais de uma confrontação : (séculos X-XIV) = Cristianos contra musulmanes en la Edad Media peninsular : bases ideológicas y doctrinales de una confrontación : (siglos X-XIV) / coord. Carlos de Ayala Martínez, Isabel Cristina F. Fernandes. – 1ª ed. – (Extra-colecção) ISBN 978-989-689-525-9 I – AYALA MARTÍNEZ, Carlos de,. 1957II – FERNANDES, Isabel Cristina F., 1957CDU 94(46)”09/13”(042)

La edición de este libro ha sido parcialmente subvencionada con la financiación del Ministerio de Economía y Competitividad, Secretaría de Estado de Investigación, Subdirección General de Proyectos de Investigación, Referencia: HAR2012-32790.

Título: Cristãos Contra Muçulmanos na Idade Média Peninsular. Bases ideológicas e doutrinais de um confronto (séculos X-XIV) Cristianos Contra Musulmanes en la Edad Media Peninsular. Bases ideológicas y doctrinales de una confrontación (siglos X-XIV) Coordenação: Carlos de Ayala Martínez / Isabel Cristina F. Fernandes Edição: Edições Colibri / Universidade Autónoma de Madrid Editor: Fernando Mão de Ferro Paginação: Abílio Alves Revisão dos textos: I. C. Fernandes; J. F. Duarte Silva Capa: Raquel Ferreira; imagem criada a partir da fotografia do alto-relevo da Igreja Matriz de Santiago do Cacém. Foto A. Chapa – Município de Palmela Depósito legal n.º 398 140/15

Lisboa, Outubro de 2015

Cristãos e Muçulmanos na literatura apologética medieval portuguesa Saul António Gomes

A memória da presença muçulmana no território português, reino e país “filhado a mouros” é multipolar1. Uma memória em cujo úbere se congraçam histórias de pagãos e de árabes, de cristãos e de moçárabes, composições literárias populares e eruditas, orais e escritas, etimologias de dizeres e gestualidades de fazeres no campo e fora dele, lógicas e discursos de lembranças e de esquecimentos. No imaginário social popular, rural ou urbano, sobrevivem, no domínio de uma “literatura oral” popular, maravilhosas lendas e contos de encantar de princesas e cavaleiros árabes. Estes contos sobrevivem por todo o Portugal muito em especial nas áreas geográficas da Reconquista portuguesa dos séculos XII e XIII. Mas é ou foi também no alfobre da cultura popular que sobreviveu longos séculos um romanceiro de cavalaria épica triunfante, devedora das sagas carolíngias, sobre reis e exércitos inimigos dos cristãos2. Antigas histórias de Portugal, como a de 1

Cf. MATTOSO, José, Identificação de um País. Ensaio sobre as origens de Portugal. 1096-1325, 2 vols. Lisboa: Estampa, 1985. GAMA BARROS, H., «Judeus e Mouros em Portugal em tempos passados (Apontamentos Histórico-Etnográficos)», Revista Lusitana, Vols. XXXIV e XXXV 1936 e 1937, p. 165-265 e 161-238; BARROS, Maria Filomena Lopes de, Tempos e Espaços de Mouros. A minoria muçulmana no reino de Portugal (séculos XII a XV), Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian-Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2007; COELHO, Maria Helena da Cruz, «A construção histórica da multiculturalidade», in LAGES, Mário Ferreira, e MATOS, Artur Teodoro de (coord.), Portugal. Percursos de Interculturalidade, vol. 1. Raízes e estruturas), Lisboa: Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI, I.P.), 2008, p. 70-129; REI, António José da Silva Botas, Memória de Espaços e Espaços de Memória. De Al-Razi a D. Pedro de Barcelos, Lisboa: Ed. Colibri, 1998; GERRARD, Christopher, «Opposing Identity: Muslims, Christians and the Military Orders in Rural Aragon», in Medieval Archaeology XLIII (1999), p. 143-160. 2 Num exercício social e antropológico de memória que se prolonga, ainda, pelos territórios de colonização portuguesa como sucede com o Brasil. Vd. COELHO, Adolfo, Contos Populares Portugueses, Lisboa: Pub. Dom Quixote, 5.ª ed., 2002; DIAS, Aida Fernanda, Sentimento heróico e Poesia Elegíaca no Cancioneiro Geral, separata de

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Fernão de Oliveira, foram sensíveis e deram voz a lendas de grandes batalhas entre cristãos e muçulmanos3. Nalgumas povoações particularmente relevantes no imaginário nacionalista português, como acontece com Aljubarrota, por exemplo, preservaram-se memórias populares de batalhas entre imperadores cristãos e reis infiéis anteriores à famosa Batalha real de Aljubarrota de 13854. Alguns brasões de heráldica familiar5 e municipais portugueses − para além do próprio brasão nacional português e a sua representação simbólica das "cinco quinas" em que se tece uma memória da vitória de Ourique 6 − herdeiros de composições heráldicas medievais e fontes históricas que incorporam memórias identitárias de heroicidades locais, frequentemente medievas, apresentam iconografias do “outro”7 algo sanguinárias, neles se Biblos, Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Vol. 43, Coimbra, 1982; MENÉNDEZ PIDAL, Ramón, Romancero hispánico (hispano-português, americano y sefardi). Teoria e Historia, 2 vols., Madrid, 1968; CATALÁN, Diego et alii, El romancero pan-hispánico: catálogo general descriptivo, 3 vols., Madrid, 1982-1984; PINTO-CORREIA, João David, Os Romances Carolíngios da Tradição Oral Portuguesa, 2 vols. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1993; PINTO-CORREIA, João David, Romanceiro Oral de Tradição Portuguesa, Lisboa: Ed. Duarte Reis, 2003; SOROMENHO, Paulo Caratão, A organização da sociedade no romanceiro português, separata de Biblos, Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, vol. 43, 1982; PEREIRA, Evelin Guedes, O Rouco e castanho cantar de Ariano Suassuna: “O Rei Degolado nas Caantigas do Sertão ao Sol da Onça Caetana”, Uma proposta de leitura dos valores carolíngios (dissertação de Mestrado), Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2007; REI, António José da Silva Botas, «’A ‘Mão de Fátima’. Uma imagem ritual islâmica de protecção», in O Corpo e o Gesto na Civilização Medieval, Actas do Encontro, Universidade Nova de Lisboa / NCEM-FCSH, p. 179-186; REI, António José da Silva Botas, «O Legado Metrológico Islâmico em Portugal», in Xarâjîb n.º 1, Centro de Estudos Luso-Árabes de Silves, p. 23-26; REI, António José da Silva Botas, e MOREIRA, Isabel Alves, «Memórias Islâmicas na Gastronomia Portuguesa», in Xarajîb n.º 5, Celas-Silves, p. 111-118. 3 OLIVEIRA, Fernando de, História de Portugal (Séc. XVI), coord., intro. e fixação do texto de José Eduardo FRANCO. Lisboa: Roma Editora, 2006. 4 Vd. FROISSART, Jean, Crónicas. Duas passagens relativas a Aljubarrota, trad. do francês medieval por Ana Sofia LARANJINHA, notas críticas por Mário Jorge BARROCA, Lisboa: Fundação Batalha de Aljubarrota, 2008, p. 86-87. 5 Vd. AZEVEDO, Francisco de Simas Alves de, «Ecos do Islão em heráldica familiar portuguesa quatrocentista-quinhentista», in Svmmus Philologvs Necnon Verborum Imperator. Colectânea de estudos em homenagem ao académico de mérito Professor Dr. José Pedro Machado no seu 90.º aniversário, Lisboa: Academia Portuguesa da História, 2004, p. 143-149. 6 Vd. LIMA, João Paulo de Abreu, Armas de Portugal. Origem. Evolução. Significado. Lisboa: Inapa, 1988. 7 Particularmente do “judeu”. Vd. TAVARES, Maria José Ferro, «O estereótipo do Judeu português na época dos Descobrimentos», in PONTE, Salete da, e ROMERO, Helena (coord.), Os Judeus e os Descobrimentos, Actas do Simpósio Internacional, Tomar,

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representando castelos, cavaleiros e cabeças cortadas de muçulmanos8. Este figurino encontra-se também nalguma pintura e imaginária ou escultura medieval portuguesa − como no relevo escultórico de Santiago do Cacém, que dá mote, aliás, ao cartaz deste encontro internacional ou, ainda mas pelo prisma oposto, nos relevos do antigo ossário dos Mártires de Marrocos, existente no Museu de Machado de Castro, em Coimbra − em que emerge um cavaleiro São Tiago de espada em riste exterminando mouros e sarracenos inimigos9.

Urna-relicário dos Mártires de Marrocos (Séc. XIV), com representação do Miramolim Aboidil, da cidade (Ceuta?) e dos frades franciscanos missionários que com ele disputam a "verdadeira Fé" (Coimbra, Museu Nacional de Machado de Castro. Foto do autor)

1992, p. 15-25; TAVARES, Maria José Ferro, «Proselitismo, segregação e apologética. A convivência entre cristãos, judeus e muçulmanos no Portugal medievo», in MOTA, Guilhermina (coord.), Minorias Étnicas e Religiosas em Portugal. História e Actualidade, Coimbra: Faculdade de Letras, 2003, p. 53-60; AFONSO, Luís Urbano, «Iconografia antijudaica em Portugal (séculos XIV-XV)», in Cadernos de Estudos Sefarditas n.º 6 (2006), Lisboa, p. 101-132. 8 O guerreiro a cavalo, associável a Santiago ou a Geraldo sem Pavor ou a outros Palmeirins, braços de guerreiros empunhando espadas, ou a outras histórias locais, com ou sem "cabeças decapitadas" de “mouros vencidos” e “mouras mortas”, é tema presente, por exemplo, nos brasões municipais antigos de Elvas, Évora, Mértola, Moura, Ourique, Santiago do Cacém ou Torres Novas. Vd. SEIXAS, Miguel Metelo de, Heráldica, representação do poder e memória da nação. Lisboa: Universidade Lusíada Ed., 2011, p. 583-655. 9 Sobre este tipo de iconografia e representação do “mal” e do muçulmano, vd. BARBOSA, Pedro, «A simbólica do Mal nas pinturas da Igreja da Colegiada de Guimarães», in Actas do Congresso Histórico de Guimarães e Sua Colegiada. 850.º aniversário da Batalha de S. Mamede (1128-1978), vol. IV, Guimarães, 1981, p. 367-373; DEBBY, Nirit Ben-Aryeh, «Visual rethoric: images of saracens in florentine churches», in Anuario de Estudios Medievales 42/1 (enero-junio de 2012), p. 7-28.

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Estas composições mentais e culturais coletivas portuguesas são eco das heranças, mas também de resistências e depurações memoriais, de convivências inter e multiculturais da própria história do país, assim como são também, e de algum modo, manifestação de uma visão do “outro” que pressupõe o diálogo, a disputa e, em tempos medievos, uma apologética geralmente intitulada de controvérsia e de “pugio fidei”10. No espaço Português existiu, desde cedo, tradição apologética11, encontrando no monge cisterciense Fr. João de Alcobaça, no século XIV, um dos seus cultores12. Essa tradição, todavia, foi mais frequentemente virada para a realidade religiosa judaica do que gentilista ou islâmica. Em Portugal, aliás, encontram-se frequentes manifestações de ódio ao judeu, traduzida em levantamentos populares e pilhagens das judiarias − culminando na tristemente célebre noite de S. Bartolomeu, na Lisboa de 1506 − mais do que de guerra declarada, posto que houvesse quem a defendesse13. Já a atitude anti-islâmica medieval portuguesa parece ter-se concretizado não tanto no campo de eventuais pogrons populares contra mourarias, ou no suscitar de interesse polemista e apologético junto do clero, especialmente o regular, mas antes e 10

Vd. MARTI, Ramon, Pugio fidei adversus Mauros et Iudaeos, Paris: Ed. M. e J. Henaut, 1951; HERNANDO, Josep, «Tractatus adversus Iudaeos. Un tratado anonimo de polemica antijudia (S. XIII)», in Acta Historica et Archeologica Mediaevalia, n.º 7-8 (1987), Barcelona, p. 9-18. Também na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra preserva-se um volumoso manuscrito em pergaminho, de Fr. Raimundo Marti, Pugionem christianorum ad impiorum perfidiam jugulandam set maximam Judeorum (Ms. 720). Cf. PONTES, J. M. da Cruz, Estudo para uma edição crítica do Livro da Corte Enperial, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1957; ANTUNES, José, «Apologética», in LANCIANI, Giulia, e TAVANI, Giuseppe (org. e coord.), Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, Lisboa: Caminho, 1993, p. 57-58; ANTUNES, José, «Acerca da Liberdade de Religião na Idade Média. Mouros e Judeus perante um problema teológico-canónico», in Revista de História das Ideias, Vol. 1, (1989), Coimbra, p. 63-84. 11 Vd., por exemplo, ALBERTO, Paulo Farmhouse, e FURTADO, Rodrigo (ed.), Orósio, História Apologética. O livro 7 das Histórias contra os Pagãos e outros excertos, Lisboa: Ed. Colibri, 2000. 12 GOMES, Saul António, «A questão judaica nos autores medievais portugueses», in Cadernos de Estudos Sefarditas, n.º 9 (2009), Lisboa, p. 93-148. 13 O parecer que o Infante D. João, por 1432 ou 1433, dirigiu ao seu irmão, rei D. Duarte, acerca da guerra justa, é significativo acerca da visão que uma parte da elite política nobiliárquica portuguesa do tempo tinha acerca dos judeus. Declarava o ínclito Infante que: "Não deviamos ousadamente cometer tal guerra contra e nom digo tam somente contra mouros, mas ainda contra judeus que som a mais roym gente do mundo. (...) Ainda guerra de mouros nom, somos certos se he serviço de Deus, porque eu non vy nem ouvy que Noso senhor nem algum dos seus apostolos nem doctores da Igreja mandassem que guerreasem infieis mas antes per pregação e milagres os mandou converter (...)." Apud DIAS, João José Alves, e OLIVEIRA MARQUES, A. H. de, Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte. (Livro da Cartuxa). Edição Diplomática, revisão de A. H. OLIVEIRA MARQUES e Teresa F. RODRIGUES, Lisboa: Estampa, 1982, p. 43-44.

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sobretudo no campo belicista e cruzadístico efetivo, reduzindo-se, no contexto da Reconquista, as populações muçulmanas das vilas e cidades conquistadas ao cativeiro e à escravatura14. Em anais e cronicões, ou nas vitae de santos e varões exemplares, do século XII e XIII portugueses, o muçulmano surge menorizado, turba nefanda, associado ao paganismo − abaixo, portanto, da dignidade dos que têm religião − e ao mal. Na Vida de Martinho de Soure, quando este foi feito cativo e levado para o cárcere de Santarém, o autor da sua vida, de origem cultural coimbrã, escreveu significativamente o seguinte: “In Scallabi castri menia, que tunc spurcissimis paganorum turbis pollebant perductus est”15. Nos anais e cronicões de Santa Cruz de Coimbra, latinos e em língua romance, o sarraceno é o inimigo temível com o qual o cristão combate afortunada e infortunadamente. A descrição, na Chronica Gothorum, crúzia, acerca do rei Esmar e da batalha de “Aulic”, é significativa do que afirmamos. Uma narrativa, aliás, que mostra possuir o seu auctor uma visão tanto geográfica e política do “outro”, dos seus espaços e das suas gentes e família, quanto maravilhosa e mítica, ao colocar, por exemplo, mulheres “amazonas” a combaterem entre os exércitos sarracenos: “Era MCLXXVII. Octauo Calendas Augusti in festiuitate sancti Jacobi apostoli anno regni sui undecimo. Idem Rex Donnus Alfonsus magnum bellum commisit cum rege Sarracenorum nomine Esmar in loco qui uocatur Aulic. Ille namque Rex Sarracenorum cognita uirtute et audacia Regis Donni Alfonsi, et uidens eum frequenter intrare in terram Sarracenorum, et depredari, nimiumque atterere suam regionem, voluit si facere posset ut eum incautum, et imperatum alicubi inueniret, ut cum eo gereret bellum, quadam itaque uice cum rex D. Alfonsus cum suo exercitu intraret per terram Sarracenorum et esset in corde terre eorum. Esmar Rex Sarracenorum congregata infinita multitudine Sarracenorum transmarinorum quos secum adduxerat, et eorum qui morabant citra mare a termino Sibillie, et de Badalioz, et de Eluas, et de Elbora, et de Begia, et de omnibus castellis usque Santarem uenerunt ei obuiam, ut pugnaret cum eo, confidens in multitudine virtutis sue, et suis exercitus, qui erat copiosus in tantum quod etiam mulieris ibi affuerunt Amazonico ritu belligerantes, sicut exitus postea probauit in eis que ibi occise inuente fuerunt, licet Rex D. Alfonsus esset cum paucis suorum, 14

GOMES, Saul António, «Grupos Étnico-Religiosos e Estrangeiros», in OLIVEIRA MARQUES, A. H., e SERRÃO Joel (dir.), COELHO, Maria Helena, e HOMEM, Armando Luís de Carvalho (coord.), Nova História de Portugal, Vol. 3, Portugal em Definição de Fronteiras. Do Condado Portucalense à Crise do Século XIV, Lisboa: Presença, 1996, p. 309-383. 15 NASCIMENTO, Aires A. (ed. crítica), Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra. Vida de D. Telo, Vida de D. Teotónio, Vida de Martinho de Soure, Lisboa: Ed. Colibri, 1998, p. 240-241.

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et esset in quodam promuntorio fixis tentoriis ex omni parte obsessus, et circumuallatus est a Sarracenis a mane usque ad uesperam. Electi milites irruerunt in eos fortiter pugnantes cum eis, expulsos extra castra occiderunt et diuiserunt eos, quod cum vidisset rex Esmar scilicet virtutem christianorum, et quod parati erant magis vincere, aut mori, quam fugere, fugit ipse, et omnes qui cum eo erant, omisque illa multitudo Paganorum partim occisione partim fuga occisa est et dispersa. Rex etiam Esmar illorum superatus per fugam euasit, comprehenso ibi quodam suo consuprino, et nepote Regis Hali nomine Homar Atagor; et interfectis ex parte sua viris innumeris, et sic D. Alfonsus diuina se protegente gratia magnum et inimicis obtinuit triumphum, et ex illo tempore fortitudo, et audacia Sarracenorum valde infirmata est”16.

Nas Chronicas Breves, compostas no mesmo mosteiro cerca de duzentos anos mais tarde, as notícias deste tipo são reduzidas ao mínimo, silenciando-se os contextos e as dimensões dos guerreiros muçulmanos e desaparecendo, até, o vocabulário “sarraceno” para dar lugar simplesmente a “mouros”: “Em o anno de mil C.XC.VIII aalem de crasto verde no campo dourique lidou o dicto Rey dom affomso anriquez com cinquo Rex mouros, e o de mayor poder auia nome Ismar, e prouue a deus que os venceo”17. Textos histórico-cronológicos, aliás, que refletem a dinâmica e a evolução das ideias e ideologias acerca muçulmano, no caso, do sarraceno infiel que se renomeia depreciativa e crescentemente por mouro. Haverá que explorar, naturalmente, outros textos narrativos literários18, iconísticos e mesmo normativos ou legais19, para aferir mais rigorosamente das lógicas de lembrança e de esquecimento do elemento muçulmano na construção da memória e identidade do Portugal cruzadístico. As disputationes fidei foram cultivadas nos ambientes mendicantes. Franciscanos e Dominicanos deram particular importância às missões evangelizadoras em territórios sob o domínio muçulmano. É bem conhecido, em Portugal, o caso dos cinco mártires franciscanos de Marrocos, cujos exempla 16

Texto da Chronica Gothorum, pub. Portugaliae Monumenta Historica a Saecvlo octavo post Christvm vsqve ad qvintvmdecimvm. Scriptores, vol. I, Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1856, p. 12-13. 17 Pub. Portugaliae Monumenta Historica. Scriptores..., p. 24. 18 Cf. REI, António da Silva Botas, Memória de Espaços e Espaços de Memória. De Al-Razi a D. Pedro de Barcelos, Lisboa: Ed. Colibri, 2008; REI, António da Silva Botas, «Literatura Moçárabe. Memória de uma cultura de resistência (Séculos VIII − XII)», in Medievalista n.º 4 IEM/FCSH-UNL, 22 p. [on line: http://www2.fcsh.unl.pt/iem/ medievalista/]. 19 MARQUES, Maria Alegria Fernandes, «As minorias na legislação sinodal portuguesa medieval», in Minorias Étnicas e Religiosas em Portugal. História e Actualidade, MOTA, Guilhermina (coord.), Coimbra: Faculdade de Letras, 2003, p. 33-48.

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foram zelosamente recolhidos e difundidos em Santa Cruz de Coimbra e pela própria Ordem de S. Francisco20. Não são conhecidos, todavia, tratados medievos elaborados em Portugal focados na apologética cristã, com génese entre o clero regular, especialmente o mendicante, em contexto de proselitismo religioso em ambiente islâmico. Chega-nos todavia o testemunho do interesse que a matéria controversista religiosa despertava entre as elites intelectuais portuguesas no final da Idade Média. Na verdade, a obra Corte Enperial, recentemente dada à estampa21, apresenta-se como o único texto redigido em português totalmente debruçado sobre a disputa entre cristãos e os protagonistas de outros credos religiosos (filósofos gentios, rabis judeus, alfaquis muçulmanos e episodicamente um bispo grego)22. Segundo Adelino de Almeida Calado, editor deste manuscrito, esta obra não se deverá confundir com uma outra, que existiu na biblioteca do rei D. Duarte, que levava o título Livro da Corte Enperial. É uma proposta aceitável. O códice que nos chegou, por seu lado, é uma cópia de uma versão em português, datável linguisticamente do século XIV, de um tratado, eventualmente de origem catalã, latino, mais antigo23. Códice que corresponde a uma cópia produzida para um Álvaro Vasques de Calvos, que se sabe estar ativo pelas décadas de 1442-145024. Não seria, decerto, o manuscrito da biblioteca real. Contendo a tradução portuguesa trecentista de obra estrangeira, mais antiga, não deixa de ser importante assinalar que a parcimoniosa decoração deste manuscrito imita modelos de abecedários maiúsculos de tradição

20

Vd. MADAHIL, António Gomes da Rocha, Tratado da vida e Martírio dos Cinco Mártires de Marrocos, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1928; GONÇALVES, Flávio, «A representação artística dos “Mártires de Marrocos”, os mais antigos exemplares portugueses», Museu, 2.ª série, 6 (1963). PACHECO, Milton, «Os protomártires de Marrocos da Ordem de São Francisco. “Muy suave odor de sancto martyrio”», in Revista Lusófona de Ciência das Religiões, Ano VIII (2009), n.º 15, p. 85-108; DIAS, Isabel Rosa, «La légende des cinq martyrs franciscains du Maroc dans son contexte portugais», in Franciscana (2009), Spoleto, p. 1-25; DIAS, Isabel Rosa, «D. Pedro Sanches e a lenda dos cinco mártires de Marrocos», in O Imaginário medieval, Lisboa: Câmara Municipal de Torres Vedras e Ed. Colibri, 2014, p. 123-131. 21 CALADO, Adelino de Almeida (ed. interpretativa), Corte Enperial, Aveiro: Universidade de Aveiro, 2000. 22 Corte Enperial, cit., p. VIII. 23 PONTES, J. M. Da Cruz, Estudo para uma edição crítica do Livro da Corte Enperial, separata de Biblos, vol. XXXII, Coimbra: Universidade de Coimbra, p. 1-8; PONTES, J. M. Da Cruz, «Apostilas para a edição crítica do Livro da Corte Enperial», in Humanitas n.º 58 (2006), p. 229-252; SIDARUS, Adel, «Le Livro da Corte Enperial entre l'apologétique lullienne et l'expansion catalane au XIV.e siècle», in Actes du Colloque International de San Lorenzo de El Escorial, 1991, p. 131-172. 24 Corte Enperial, cit., p. IX-XI.

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românica, bem próprios de manuscritos e iluminuras dos séculos XII ou XIII25. Nesta obra, a protagonista é a Igreja, alegorizada pela Rainha Imperial ou “catolica rainha”, que disputa magistralmente com os entendidos das outras religiões os preceitos, as virtudes e as verdades da verdadeira Fé. Desalentada com a inconsequência da sua disputa com os rabinos, a Ecclesia volta-se então para os alfaquis26. “E tornou logo a catolica rainha sua façe contra onde estavam os mouros e dise asy: ‘E vós outros mouros, que dizedes da fe de Christo?’ E huu alfaquy respondeu e dise: ‘Rainha senhor, digo por mym e por estes outros mouros que asaz temos nós de boa creença e nom a queremos mudar por a vosa nem por outra’”27. Assim começa o diálogo ou disputa com os “mouros” presente no palácio imperial. A argumentação do autor é fundamentada e revela conhecer o pensamento religioso ou teológico islâmico, citando abundantemente o Coram e alguns seus comentaristas. Discute-se a divindade de Cristo e a natureza imaculista de Santa Maria reconhecidas, segundo o autor, por Mohamed, profeta inspirado por Deus28. Reconhecendo Mohamed o Testamento Velho, haveria que exigir-se aos mouros a observância dos dez mandamentos ou preceitos nele contidos. Examinam-se, então, um por um, sempre numa argumentação em que a conclusão recai na “maior verdade” do cristianismo. Provar-se-ia a falsidade da “ley de Mafomede” argumentado pelos preceitos bíblicos e pelas virtudes cristãs. Discordavam cristãos e mouros em torno da “unidade devinal” e, consequentemente, da Trindade. “A crença de huu Deus he mais alta per os christaãos que per os mouros”, argumenta a “Rainha”. Os cristãos consagravam mais dias à adoração e ao culto divino do que os mouros, dizia, que apenas lhe consagravam as sextas-feiras. A Igreja, na sua hierarquia eclesiástica, honrava mais a missão divina de que se intitulava promotora. Papa, cardeais, arcebispos, bispos e clérigos eram gente muita honrada, temendose a sua excomunhão, “e os mouros nom curam desto. Ca os seus que teem logo de bispo e de saçerdotes som proves e teem molheres e filhos e por a mayor parte som mesteiraaes”29. 25

Corte Enperial, cit., p. VIII-IX. O sucesso das conversões ao cristianismo de judeus e de mouros, por meio da pregação, foi sempre muito relativo e reduzido. Vd. TAVARES, Maria José Ferro, Os Judeus no Século XV, I Vol., p. 397-447; II Vol., p. 871 e 874. Sobre este tipo de convertidos à Fé cristã vd. BAQUERO MORENO, Humberto, «As Pregações de Mestre Paulo contra os Judeus Bracarenses nos Fins do Século XV» e «Novos Elementos Relativos a Mestre Paulo, Pregador do Século XV, contra os Judeus Bracarenses», in Exilados, Marginais e Contestatários na Sociedade Portuguesa Medieval. Estudos de História, Lisboa: Editorial Presença, 1990, p. 139-148 e 149-155, respetivamente. 27 Corte Enperial, p. 223. 28 Corte Enperial, p. 223-224. 29 Corte Enperial, p. 228-229. 26

Cristãos e Muçulmanos na literatura apologética medieval portuguesa 373

“Mafomede, quando foy feito rey, mandou que descabeçasem todos aqueles que nom quisesem seer mouros”, assim indo os mouros contra o quarto mandamento (“Não matarás”), não respeitando, ainda, o quinto preceito dado a Moisés: “Não fornicarás”. Argumenta o lado cristão, na Corte Enperial, que “os mouros mais fornigam que os christaãos porque os mouros podem aver quatro molheres e fornigar com tantas servas quantas poderem manteer, e Mafomede teve noventa molheres e nom deu liçença ao poboo senom de quatro. Outrosy os mouros esperam a aver em o paraiso muitas molheres e as outras cousas desonestas, e todo esto he signal que a sua ley he falsa”30. Não coincidiam cristãos e mouros no reconhecimento e prática dos sacramentos. Entre muçulmanos, apenas a circuncisão, masculina, portanto, enquanto entre cristãos o batismo era universal, homens e mulheres. Os “mouros” não aceitavam o “sacramento das chaves”, ou seja, a confissão, nem a extrema-unção, nem, pressupostamente, as quatro virtudes cardeais (justiça, prudência, fortaleza, temperança), nem as três teologais (fé, esperança, caridade), sem as quais não era o homem “comprido e perfeito”31. O ponto de vista da abordagem da “catolica rainha” é, como se vê, eminentemente cultural e ideológico, mais do que verdadeiramente teológico, em cujas questões históricas e teológicas, havia alguma concordância em princípios essenciais. Eram as questões práticas associadas aos comportamentos, às culturas etnográficas, à história, ao direito, à ética, aquelas que efetivamente abriam distinções e diferenças entre as religiões em diálogo, cumprindo, como se compreende quando o protagonismo de um texto apologético parte do mundo cristão, que o desenlace dessa disputa fosse o da exortação da maior verdade de uns − as maiorias sociais − sobre a dos outros − os das minorias étnico-religiosas.

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Corte Enperial, p. 230. Corte Enperial, p. 236.

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