Cristotecas católico-carismáticas: performance da tradição ou tradição em performance? (capítulo de livro)

May 26, 2017 | Autor: E. José Sena da S... | Categoria: Marketing, Religion, Comparative Religion, Cultural Studies, Sociology of Religion, Media Studies, Festivals and music, Social Sciences, History of Religion, Religion and Politics, Culture, Masculinity, Social Media, Consumer Behavior, Market Research, Masculinities, Consumer Culture, Media, Consumer Research, Constructions of masculinity, História e Cultura da Religião, Religious Studies, Antropología cultural, Jóvenes, Antropología Social, Juventud, Filosofia, Epistemologia, Economia, Administração, Teologia, Religião, Sociologia, Antropología, Cristianismo, Juventude, Antropologia Urbana, Pentecostalism and Charismatics, Consumo, Masculinidad, Sociologia da Religião, Religião, Ciências da Religião, Consumo Cultural, Juventudes y política, Masculinidades, Estudios Sobre Juventud, Antropologia da religião, Catolicismo, Consumption Culture, Mídia, Ciência da religião, Anthropology of Religion, Antropology, Consumer Behaviour, Antropologia, Media Studies, Festivals and music, Social Sciences, History of Religion, Religion and Politics, Culture, Masculinity, Social Media, Consumer Behavior, Market Research, Masculinities, Consumer Culture, Media, Consumer Research, Constructions of masculinity, História e Cultura da Religião, Religious Studies, Antropología cultural, Jóvenes, Antropología Social, Juventud, Filosofia, Epistemologia, Economia, Administração, Teologia, Religião, Sociologia, Antropología, Cristianismo, Juventude, Antropologia Urbana, Pentecostalism and Charismatics, Consumo, Masculinidad, Sociologia da Religião, Religião, Ciências da Religião, Consumo Cultural, Juventudes y política, Masculinidades, Estudios Sobre Juventud, Antropologia da religião, Catolicismo, Consumption Culture, Mídia, Ciência da religião, Anthropology of Religion, Antropology, Consumer Behaviour, Antropologia
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CRISTOTECAS CATÓLICO-CARISMÁTICAS: Performance da tradição ou tradição em performance?

(Capítulo do livro: PEREZ, Léa Freitas; AMARAL, Leila; MESQUITA, Wania Mesquita (orgs.) Festa como perspectiva e em perspectiva. Rio de Janeiro: Garamond, 2011, p.87-104) Emerson Sena da Silveira1

INTRODUÇÃO A construção da identidade como tarefa empreendida pelos carismáticos católicos2, submersa nos atuais fluxos de mídia e consumo, é um trabalho religioso extenuante, já que as fronteiras entre a sociedade, outros grupos religiosos e fenômenos sociais precisam ser repostas a partir de diversas estratégias de diferenciação intra e extragrupo. Há centenas de eventos festivos nas mais diversas cidades (São Paulo, Rio de Janeiro, Juiz de Fora), especialmente os que envolvem a juventude, promovidos pelos católicos carismáticos por meio de duas instâncias organizacionais3: os grupos de oração, junto com os ministérios e coordenações e as comunidades carismáticas. Entre esses eventos, destacam-se as cristotecas 4. O jogo entre as estratégias de produção da diferença e da semelhança marca a experiência contemporânea do crer e do pertencer no âmbito católico-carismático. Nesse sentido, as cristotecas, constituem-se num espaço de negociações identitárias, um espaço-rito ou espaço-performance. Assim, não é possível referir-se a essas festas sem se referir às formas de consumir e de celebrar a imagem, o corpo e a emoção. A festa passa a ser perspectivação do devir carismático, um horizonte de significado produzido em torno dos conflitos entre esferas socioculturais e a adesão religiosa individual a uma tradição.

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Antropólogo, Doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) com pós-doutorado em Antropologia. Professor do Departamento e do Programa em de Ciência da Religião (PPCR), UFJF, Brasil. 2 O movimento carismático católico ou RCC (Renovação Carismática Católica) surgiu em 1967, entre Universidades Norte-Americanas ligadas ao catolicismo. Em 1976, a sede do movimento carismático foi transferida dos EUA para Roma. O papa Paulo VI designou um cardeal belga, D. Suenens, para romanizar o movimento, atrelando-o às estruturas administrativas da Igreja Católica. Porém, a RCC rapidamente alcançou expansão planetária. No Brasil, a partir de 1969, percorreu uma trajetória de crescimento e complexificação com diversas tipologias, práticas e agrupamentos, como as comunidades de vida e aliança (CARRANZA, 2000). Alguns calculam entre 3 e 5 milhões de adeptos brasileiros. 3 A RCC estruturou-se no Brasil sob diversas formas (OLIVEIRA, 1978). Carranza (2000) destaca que a institucionalização do movimento, com a formação de instâncias de administração, iniciou a rotinização do carisma, entendido num sentido weberiano. Em virtude da permanência das tensões internas, surgiram as comunidades de vida e aliança, agrupamentos autorizados pelo bispo diocesano em que um grupo de adeptos vive integral ou parcialmente por conta das atividades feitas pela e na comunidade (vida e aliança). 4 Assim são denominados os eventos festivos realizados pela RCC em diversos locais (salões ou templos católicos), abarcando em geral o público jovem. Com luzes e decoração similar a uma discoteca, apresentam músicas, bandas e dança.

Na primeira parte do artigo, serão abordadas as questões teóricas sobre o fluxo identitário e transfronteiriço entre religião, festa e consumo. Na segunda parte, a partir da escolha de um evento festivo (as cristotecas realizadas em uma pequena comunidade carismática de Juiz de Fora – MG), rastreiam-se os espaços-fluxo na tradição e como a performance dissolve e repõe, ao mesmo tempo, polarizações socioculturais e religiosas no grupo carismático (SILVEIRA, 2008).

IDENTIDADE EM TRANSE

Maffesoli (2001) argumenta que os fluxos culturais, os nomadismos da cultura e do desejo (reais e imaginários), na atual contemporaneidade, só podem ser pensados a partir de uma dialética irresolúvel e agônica. As paisagens culturais tornaram-se polimorfas à medida que o tráfego migratório, o fluxo de mercadorias e da mídia, ou combinações entre os mesmos, introduzem modalidades perceptivas e comunicativas que estabelecem novos processos de produção das identidades (HANNERZ, 1997). Assim, “um gesto, uma música [...] quer sejam transmitidos por meios eletrônicos [...] quer trazidos por um estrangeiro que desembarca no lugar, poderiam ser imediatamente compreendidos, de modo que uma distribuição é modificada e um limite é transcendido, com rapidez e facilidade” (HANNERZ, 1997, p. 23). Baseando-se no historiador americano Jackson Turner, Hannerz (1997) analisa o conceito de fronteira, cuja ênfase recai sobre a linearidade/homogeneidade, e que será transposto posteriormente às argumentações antropológicas sobre os processos de produção da identidade étnica e cultural. Mas é Barth (1995, 2000) quem rompe com as concepções essencialistas de identidade, ao estudar a forma como as etnias mobilizam memórias, emoções e recursos para estabelecerem quem é e quem não é membro do grupo. As etnias não são essências, mas intercâmbios permanentes em que forma-conteúdo e dentro-fora do círculo étnico é a matéria-prima da política identitária (BARTH, 1995, 2000). No processo de identificação, o principal elemento é a vontade de marcar os limites entre eles e nós, traçando, portanto, uma fronteira (BARTH, 1995). Na medida em que essa fronteira é o resultado de um compromisso entre o que o grupo pretende marcar e o que os outros querem designar-lhe, ela nasce do jogo de compromissos, sendo, portanto, social e simbólica. A análise barthiana refere-se aos grupos etnoculturais, desfazendo a ambiguidade entre cultura e identidade. A participação em uma determinada cultura não significa uma adesão automática a um tipo de identidade. As mesmas raízes culturais podem ser instrumentalizadas por determinados grupos ao ponto de construírem estratégias opostas de identificação (BARTH, 2000, 1995). É esse jogo

estratégico que a esfera religiosa tem realizado atualmente com as outras esferas socioculturais, mobilizando intensamente recursos midiático-tecnológicos. A análise barthiana pode ser aplicada à investigação das fronteiras entre o catolicismo carismático e as culturas pós-modernas de mídia e consumo, bem como à investigação de como os atores religiosos estabelecem suas identidades em diálogo com essas mesmas culturas. Por outro lado, ao abordar a questão das fronteiras lógicas e epistêmicas da modernidade, Bauman (2008) utiliza os termos liquidez/fluidez para descrever as relações travadas na sociedade atual. Dessa liquidez, não escapa a religião, tanto em nível da grande metanarrativa (dogma e tradição), quanto de pequena narrativa (trajetórias intersubjetivas). Derreter os sólidos, dissolver aquilo que persiste no tempo e imune ao seu fluxo é o espírito da nova fase na história da modernidade:

O que está acontecendo hoje é, por assim dizer, uma redistribuição e realocação dos ‘poderes de derretimento’ da modernidade (...). Chegou a vez da liquefação dos padrões de dependência e interação. Eles são agora maleáveis a um ponto que as gerações passadas não experimentaram e nem poderiam imaginar; mas, como todos os fluidos, eles não mantêm a forma por muito tempo (BAUMAN, 1998, p.13).

As fronteiras podem ser traduzidas como o esforço para sistematizar sensações e afetividades que, na corrosão efetivada pelos poderes de solvência da modernidade, multiplica os pontos de fuga, ratificando a metáfora deleuziana. No entanto, a alta modernidade, ou modernidade líquida, não é puro fluxo como um rio caudaloso sem margens, ou uma rede, sem nós e intercruzamentos. Latour (1994), ao criticar a modernidade como projeto irrealizado, afirma que só podemos definir o local e sua fronteira através das características que se acredita poderem atribuir ao global, e versa: é “possível compreender a força do erro que o mundo moderno inflige a si mesmo” ao ignorar que os pares natural/social, local/global são adjetivos e não substantivos que designam regiões ontológicas de vida (LATOUR, 1994, p. 120). Os antimodernos (sólidos, conservadores, essencializadores), polo de oposição aos modernos (líquido, corrosivos, desessencializadores), caíram no conto do vigário:

Que o Ocidente racionalizou e desencantou o mundo, que ele realmente povoou o social com monstros frios e racionais que estariam saturando todo o espaço, que ele transformou de vez o cosmos pré-moderno em uma interação mecânica de matérias puras. Mas, invés de ver nisto, como os modernizadores, conquistas gloriosas, ainda que dolorosas, o antimodernos veem nisto uma catástrofe sem igual (LATOUR, 1994, p. 120).

Os próprios polos de oposição, modernos e antimodernos, são, na prática,

invenções

irrealizáveis. Dessa forma, nomear os movimentos dos carismáticos como modernos, quanto à forma como usam os instrumentos de comunicação, e antimodernos, quanto ao conteúdo, não é constatar uma essência presente nas relações da religião católica com os mundos sociais do seu entorno. Quando muito, essa nomeação é instrumento de poder, de contenção de hibridizações, as quais são irrealizáveis, na medida em que se baseiam numa distinção desconstruída. Essas oposições alimentam-se de si mesmas, mais do que das realidades às quais atribuem essência e movimentação. Os modernos, os antimodernos e os pós-modernos acusam-se de transgredir as fronteiras: Quanto mais os antirreducionistas, os românticos, os espiritualistas desejam salvar os sujeitos, mais os reducionistas, os cientistas, os materialistas acreditam possuir o objeto [...] A defesa da marginalidade supõe a existência de um centro totalitário. Mas, se este centro e sua totalidade são ilusões, o elogio das margens é ridículo (LATOUR, 1994, p. 121).

Baseando-se nessa argumentação, é possível, a partir dos eventos festivos católicocarismáticos e da sua relação com os fluxos de mídia e consumo, questionar os modelos antropológicos que os consideram antimodernos. Há um caminho duplo e tenso, com movimentos circulares, em que tanto o mercado quanto a Igreja não conseguem prever e regular as condutas e as experimentações que decorrem da dupla relação entre religião, mídia e consumo.5 Nessa dupla relação, a tradição religiosa (re)apropria-se do marketing, da mídia e do consumo e, num processo recíproco, o consumo (re)apropria-se dos elementos simbólicos das religiosidades. Mas, de que forma esse mundo religioso interage com o mundo das relações cotidianas do catolicismo-carismático? Quando eles se cruzam? Na cristoteca? Como os fluxos midiáticoconsumeristas afetam e se relacionam aos processos de produção da identidade católicocarismática? Trata-se de questões que demandam um itinerário de respostas elaborado a partir das visitas a comunidades e das percepções deste autor sobre algumas práticas dos carismáticos.

Há uma intensificação do processo a partir das décadas de 1960 e 1970, em que esses fenômenos “neo-religiosos” proliferam: seitas e religiosidades multifacetadas (a New Age), ressurgência de estilos de vida e de crença em religiões tradicionais (o carismatismo católico) e o protestantismo (o neopentecostalismo ou pós-pentecostalismo). As imagens e símbolos associados à religiosidade passam, então, a irromper da própria modernidade, ou seja, a religião assume modos de ser que a fazem ser concebida como moderna e pós-moderna, particularmente a partir de dois elementos: a decisão e escolha pessoais e o marketing aplicado ao conteúdo religioso de igrejas e de credos. Houve a ruptura entre a moral religiosa, o comportamento social e o mundo da cultura, operada pela modernidade, compreendida como a força secularizante. Tal rompimento acontece em vários níveis: o da linguagem simbólica e o do comportamento institucional; por um lado, desvincula-se a sacralidade, produzida pela religião, de imagens e símbolos coletivos e individualmente experimentada nas sociedades; por outro lado, retira-se da Igreja e instituições religiosas o poder de normalização do comportamento social coletivo. 5

Há tensões, na medida em que, se do lado da tradição, a partir da visão institucional católica, trata-se de usar novos meios de comunicação e expressão para divulgar as verdades da fé (SILVEIRA, 2008), do lado do consumo, trata-se de mais uma opção no mercado religioso, tão competitivo e concorrido. Ontologia, por um lado, metáfora, por outro. Porém, a festa, (a cristoteca) permite, como perspectiva, a transação entre ontologias e metáforas em tempo e espaço simultâneos. Nesse sentido, o consumo e a mídia tornaram-se, para os carismáticos, estratégias possíveis de criação e ultrapassagem de fronteiras: um espaço-fluxo em que “recriam” sua identidade (CASTELS, 2005). A tradição torna-se, como corpus da doxa, amalgamada ao consumo, à mídia e ao lúdico. Frestas na Festa: consumo e performance entre jovens carismáticos6

A intensificação de atividades festivas no catolicismo carismático levou à ampliação da oferta de eventos: shows, encontros dos mais variados tipos e proporções, promovidos por grupos de oração, dioceses e comunidades. Atualmente, esse mercado ganhou uma dimensão incalculável. Basta dizer que, no Brasil, durante a Festa do Carnaval, mais de 600 cidades de grande e médio porte realizam eventos de massa, reunindo milhares de pessoas, bandas, músicas, enfim, consumo, corpos e imagens. Trata-se do “carnaval de Jesus” (SILVEIRA, 2008). Na década de 1990, incentivadas pela comunidade carismática “Aliança de Misericórdia”, sediada na cidade de São Paulo e coordenada por dois padres de origem italiana, iniciam-se as cristotecas, cuja missão e vocação estão voltadas para a juventude drogada e aidética. A partir do sucesso da cristoteca paulista, a experiência espalhou-se pelo Brasil, sendo realizada tanto em cidades do interior quanto em grandes metrópoles. Promovendo um verdadeiro surto de músicas católicas e animadas por famosas bandas do circuito católico-carismático, as cristotecas arrastam, em grandes capitais e cidades do Brasil, multidões de jovens. Para debater as questões postas neste artigo, foi escolhido um evento que acontece periodicamente em um grupo de oração jovem da cidade de Juiz de Fora, “Jesus é Jovem”, com 10 anos de existência e frequentado, em sua maioria, pela juventude católico-carismática local. As reuniões acontecem aos sábados e, pelo menos quatro vezes ao ano, desde 2007, o grupo promove a cristoteca. Divulgado nos 67 grupos de oração da cidade, nas livrarias e demais locais com afixação

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Em uma cristoteca ocorrida na cidade de Juiz de Fora (MG), no ano de 2008, este autor fez observações e realizou entrevistas com diversos jovens cujos verdadeiros nomes foram omitidos e substituídos por outros.

de pequenos cartazes em preto e branco, em blogs e outros meios7, o evento festivo foi apresentado na “propaganda carismática” como “uma verdadeira revolução”. Ocorrida em dezembro de 2008, na paróquia do bairro Benfica, na mesma cidade, a cristoteca reuniu mais de 50 jovens, entre membros do grupo de oração e pessoas que compraram o convite. A decoração lembrando boate, os cartazes fazendo alusões bíblicas (“Jesus é revolução!”, “Deixe-se revolucionar e seja diferente de verdade!”) marcavam a semântica religiosa. Ao fundo, um balcão onde se vendiam lanches e refrigerantes. No dizer de Rodrigo, 24 anos, noivo, coordenador do grupo e estudante de biologia, a festa é um sucesso: A inspiração veio quando o padre Jonas e o Dunga fizeram uma convocatória no Acampamento que fui. Eles diziam que era preciso se deixar inspirar pelo Espírito Santo para que ações criativas de evangelização surgissem e pudessem atingir a juventude. Aí me ocorreu que os jovens têm pouco lazer lá na comunidade e eu pensei que seria interessante um local prazeroso, que pudesse reunir a mensagem de Jesus ao mesmo tempo.

Atrás de uma mesa de som, Anjo Guerreiro, um DJ católico, dava breves explicações sobre as bandas e as músicas e comandava a pista improvisada, sobre a qual piscava um pequeno globo. Na verdade, Anjo Guerreiro, codinome de um jovem de 26 anos, estudante de direito, classe média, converteu-se num grupo de oração e se “apaixonou”, segundo ele, pelas bandas e músicas carismáticas, como Rosa de Saron, Beatrix, The Flandres e outras8. Sobre um pequeno balcão, dispunham-se CDs das bandas que estavam tocando, pequenos objetos, bonés e camisas de várias marcas, inclusive da Canção Nova. Às 22 horas, começou a festa com os organizadores dando as boas-vindas, orando e consagrando ao sangue de Jesus o local, a aparelhagem de som, o DJ, os participantes, a rua e o retorno de todos às respectivas casas. O evento estendeu-se madrugada adentro: “Se o diabo não perde tempo em seduzir as almas, como vamos perder tempo?”, afirmou um dos organizadores. A partir da meia-noite, o local ficou cheio e dançava-se o tempo todo. Para Moacir, negro, 19 anos, balconista de loja de materiais de construção, esse tipo de festa

É um espaço que faltava para os jovens que crê (sic) em Jesus. É legal porque a música penetra teu corpo e eu li que ela tem muita influência no que a gente faz ou deixa de fazer. Vim aqui pra música de Deus me penetrar, tomar conta do meu ser, porque quero fazer coisas boas e não coisas ruins, como drogas, roubo e outras coisas. 7

O uso das redes sociais on-line e de meios digitais de divulgação é feito em larga escala pela juventude carismática. De diversificados estilos, desde o chamado white metal ou white rock cristian ao pop, pagode e axé, essas bandas são muito conhecidas no circuito carismático. 8

Pode-se dizer que a festa é um momento heurístico privilegiado porque o grupo, ritualmente, empreende reflexividades práticas, nas quais a metanarrativa da tradição é entrelaçada à pequena narrativa biográfica. Na festa, as cores, as formas e os sons mimetizam o mundo moderno/“pós-moderno” (BAUDRILHARD, 1980), apontam a onipresença do mesmo gênero de simulacros, comutando termos contraditórios e dialeticamente opostos: a comutabilidade do belo e do feio na moda, do verdadeiro e do falso nas mensagens da mídia, da seriedade e do lazer na religião. O espaço e o sentido do tempo modificam-se. Emerge a contrastividade consciente em face de muitos modos de ser/vestir/expressar apontados como “não religiosos”. No fluxo da festa, o espaço é abolido, as fronteiras tornam-se tênues e/ou performáticas.9 A cristoteca é uma festa no “fio da navalha”, como reconhece seu organizador: Na última festa de dezembro, a gente não esperava tanta gente. Bombou, como se diz. Deu (sic) muito trabalho as luzes, a pista, o som, mas mais ainda os casais que se formavam no salão. A gente sabe que o mundo contamina tudo e se não formos espertos, lá vai o pessoal sensualizando, e isso traz problemas, traz o desejo, quando a vontade precisa mesmo é se voltar para o sol que é Jesus e não pra os falsos brilhos. Tem gente que não adianta, vem com outras intenções, mas não podemos expulsar eles (sic), temos que orar e vigiar.

Realmente, durante a festa, casais formavam-se e desfaziam-se pelos cantos do salão. Alguns jovens saíam para namorar mais à vontade. Um jovem estudante de administração de uma faculdade particular, 20 anos, morador do centro da cidade de Juiz de Fora, ao voltar para o salão, depois de “ficar” com uma jovem afirmou:

A gente é de Jesus e Ele nos protege. Frequento grupos de oração, mas a gente sabe que o humano fala, grita em nós. A gente vai até perto, mas Jesus acende uma luz amarela em nossos corações. E porque não podemos experimentar ficar? Não concordo com o que o pessoal tipo Dunga fala disso, que ficar não é legal. Como você vai saber se a menina é legal para namorar, tipo assim, não basta ser de Deus, precisa ter afinidade, né?

Os argumentos usados pelos carismáticos para justificar a castidade e o namoro santo refletem outro olhar sobre a sexualidade. A gramática da regra e dos valores tradicionais fornece a moldura, perante a qual, os gestos e a linguagem não são senão a expressão da tensão agônica entre volúpia e ascese (índice de gramaticalização) (DUVIGNAUD, 1982). A festa, nesse sentido, nada mais é do que um cenário de comportamentos onde os grupos, ao dramatizarem suas relações com a

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Sobre outros fenômenos de hibridação entre catolicismo carismático e outras religiosidades, como a New Age, ver Oliveira (2003)

sociedade em geral, ao reafirmarem/romperem, simbólica/concretamente, com crenças e tradições religiosas, põem-se em jogo, arriscam de diversas maneiras. Ricardo, 25 anos, morador do bairro São Mateus, de classe média, não frequenta grupo de oração nem igreja, além de nunca ter ido a festas religiosas, questionou:

Poxa, a gente vem aqui empolgado, mas cadê as bebidas? Nunca vi festa sem cerveja. Tinha que rolar! O pessoal não fala que Jesus abençoa e ilumina? Então! Jesus pode colocar juízo na cabeça das pessoas para que elas, mesmo bebendo, não fiquem violentas, né? Ou ainda, porque não benzer as cervejas? E tem ainda que encontrar umas minas legais, pra namorar, porque as meninas do mundo estão muito safadas.

A ironia da fala desse jovem remete aos deslizamentos constantes entre a dimensão do religioso e do não-religioso. Amplas possibilidades de consumação estão reunidas (dança, poesia, música e outras artes), contribuindo para fazer do evento lugar e tempo de um “desencadeamento espetacular” (BATAILLE, 1993, p. 44). Às vezes, formavam-se no salão grupos de jovens que ensaiavam passos ritmados, de forma que um desses grupos, com cinco mulheres, destacou-se: usavam pulseiras de santos, anéis com o nome de Jesus e camisas estampadas com figuras de santos ou de programas da Canção Nova, como o PHN (Por Hoje Não Vou Mais Pecar).10 Elas movimentavam as pernas e os pés de forma sincronizada, balançando a cintura de um lado para o outro. Destacavam-se as camisas usadas pelos jovens, com as mais variadas cores – do azul ao vermelho rubro – e com os mais variados dizeres. A de Cintia, 15 anos: “Castidade. Eu posso, Deus quer”; a de Renato, 19 anos: “Jesus injetou vida nova em minha veia”; além de outros dizeres, como “Jesus no comando da minha vida”. Com uma inusitada frase na camisa, “Agora sou casta, e daí, vai encarar?”, Maria, 23 anos, segundo grau incompleto, noiva durante três anos, testemunhou publicamente que sofreu agressão do ex-noivo: “Botei ele pra correr, pois essa história de sofrer por amor, não tá com nada. Jesus amou e valorizou muito as mulheres. Madalena foi a primeira a ver Jesus na ressurreição”. Hoje está solteira e trabalha como empregada doméstica. Relatou ao autor sua história, que não faz questão de esconder, mas de exibir:

Jesus me tirou das trevas. Eu era muito doida! Aprontava todas, ficava com homem casado, beijava na boca mesmo, ia para as baladas com minhas amigas. Fiquei até com uma. Mas, me sentia muito infeliz e vazia. Fiquei muito mal, mesmo. Deprimida, queria morrer. Minhas amigas do mundo davam a pior receita, que era Inspirado no lema dos Alcoólicos Anônimos, esse “movimento” foi criado no fim da década de 1990, por Dunga, exdependente químico, membro da comunidade Canção Nova. O PHN apresenta um programa na TV Canção Nova, além de promover encontros anuais e dispor de uma rede de marketing e consumo associados, mobilizando milhares de jovens. 10

procurar esse comportamento louco. Mas, precisava parar, senão me acabava. Aí conheci Jesus nesse grupo, numa palestra que fui convocada por minha prima que já conhecia o grupo. Chorei muito, e Jesus tocou meu coração. Mas quando voltei para casa, as minhas amigas e vizinhas me encarnavam, me chamavam de beata, de tudo. Eu ficava injuriada, mas quanto mais ficava, mais elas pegavam no pé. Até que eles estavam vendendo aqui no grupo umas camisas, e essa foi perfeita! Foi só eu botar para elas pararem de falar.

É a exterioridade da festa que permite a bricolagem entre elementos tão distintos, entre tradição e pós-modernidade, fazendo com que a superfície, a convenção e o artifício constituam o espaço/tempo da atividade festiva. Para um olhar externo, há incorporação de mecanismos hipermodernos, uma imitação do marketing e das estratégias de mercado. Contudo, para um olhar interno, essa reapropriação não é artificial ou mimética, mas natural. Embora, discursivamente, demonizem o mundo, o consumo, as mídias e suas manifestações (músicas, moda, dança etc.), os jovens católico-carismáticos, em sua performance, reapropriam e ressignificam estilos/gestos provindos desses outros domínios da cultura, como Carolina, jovem de 18 anos, estudante de Letras, da Universidade Federal de Juiz de Fora:

Aqui a gente se sente muito bem. Quando a música toca, fico inebriada, quando vejo essa gente louvando a Deus, com passinhos, com gestos ritmados, fico como se tivesse tomado muitas bebidas (risos). É uma overdose de Jesus, do Espírito Santo. Olha que á a quinta vez que venho e trago amigas para cá. Vendo ingressos do grupo e desembarcamos em massa aqui (risos).

Na medida em que está cheia do Espírito Santo, a dança é divina: os corpos executam gestos que falam de Deus. Objetos (camisas, bonés, anéis) e símbolos (cruz, imagens da Virgem Maria e dos santos) são repostos em um novo circuito de significado. Por isso, na festa como perspectivação do devir católico-carismático, o consumo é um mecanismo chave. Consomem-se músicas, bandas, eventos, terços dos mais variados tamanhos e formas, camisas, chaveiros, cartões, livros, anéis com dizeres bíblicos, cordões, escapulários, pequenos objetos como pulseiras de madeira adornadas com pequenas fotos de santos(as), anéis com o nome de Jesus e camisas dos mais variados temas e figuras. Esse fluxo consumerista alimenta certa reflexividade e os processos de identificação (CAMPBELL, 2001). Na perspectiva antropológica, tão importante quanto à confecção dos bens é o sentido que adquirem. Ambos, confecção dos bens e sentido, pelo consumo lúdico desses materiais, criam performances/artifícios destinados a configurar a identidade. A festa intensifica, portanto, a importância da experiência estética fusionada à experiência religiosa. Na “cristoteca”, isso ocorre devido ao vasto repertório de objetos, cores e fórmulas legado pelo catolicismo.

O ápice foi a apresentação das músicas do DJ Anjo Guerreiro, e o sucesso católico “Pode parar com o pó” agitou o salão, com gestos acelerados, pulos e frenesi. Numa intensa circulação de sentidos, a tradição católica performatizou-se: o “Em nome do Pai” era feito de forma sincronizada por pequenos grupos, com gestos ritmados, rodopios e salvas de palmas. Um elemento crucial é o dançar, o deixar-se “tomar pelas mãos dos anjos”11 (expressão de uma jovem), e eventualmente das anjas, como observaram discretamente, e às vezes rindo de forma debochada, alguns jovens. À medida que dançavam ao som das músicas, o centro do salão parecia uma onda de braços, pernas e mãos. Aí há uma situação, no mínimo, ambígua, pois, segundo o organizador: E aí que o diabo entra. Na primeira festa tivemos um trabalho danado com isso. Alguns homens começaram a passar a mão em jovens e algumas corresponderam e andaram se atracando no salão. Tivemos que chamar atenção. A sensualidade está à flor da pele e, se não estivermos atentos, ela desvia os jovens de Jesus e chama o diabo.

Rodopiando como piões no salão, braços entreabertos e cabeça caída para um dos lados, aos esbarrões, suaves trombadas ou grandes tropeços, os jovens dançavam ao som da música instrumental “Ave Maria”.12 Em seguida, ao contrário do suave bailar, como num efeito eletrificante, ouviu-se “Com muito louvor”, da cantora gospel Cassiane, da Assembleia de Deus. Formaram grupos de jovens pelo salão fazendo coreografias espontâneas e intensas, de forma que um deles marcava as letras com gestos sincopados. Ao som do refrão “ele abre os caminhos, retiras as barreiras e remove os espinhos”, sincronicamente os jovens moviam os braços para a esquerda e para a direita como se afastassem algo. Na sequência de gestos, levantavam os braços e as palmas das mãos como se fossem abrir e fechar alguma coisa. Por fim, espalmando as mãos com o polegar afastado dos outros dedos, indicando louvor ou uma atitude de combate ou de guerra, os pés giravam, movimentando a cintura num intenso bailar. Nesse frenesi de dança, apagaram-se as luzes e, ao som da música “Glória”, de Martin Valverde13, os jovens acenderam os celulares e fizeram uma coreografia, balançando-os de um lado para o outro, de modo que o salão ficou iluminado pelas luzes azuis e brancas das telas dos aparelhos. 11 Em São Paulo, nas cristotecas em que ocorre a dança, os carismáticos usam o termo “valsa dos anjos”. Maués (2003) analisa essas técnicas corporais. 12 A música está no CD “Ave Maria – Versões instrumentais para meditação”, vendido na categorização, em shopping eletrônico, como “catolicismo e new age”. O site VídeoLar.Com. Endereço: http://www.videolar.com/ProdutoCD.asp?ProductID=090472. Acesso em 18/09/2009. O autor é o maestro argentino radicado no Brasil, Carlos Slivskin, que atua em diversas gravadoras, entre elas Paulus, compondo músicas litúrgicas para quaresma, festas entre outras. 13 Cantor de origem latina, membro da RCC, compôs muitos sucessos, entre os quais a música “Ninguém te ama como eu”.

Ronaldo, branco, 21 anos, auxiliar de escritório, emocionado pelo balé de celulares, disse: É muito lindo (sic) as inspirações do Espírito Santo. E quem disse que Jesus não pode usar a tecnologia pra comunicar seu amor? Essas músicas falam ao coração, tocam. A música “As dores do silêncio” me tocou tanto, me fez chorar, lembrar das coisas que vivi; senti Jesus me abraçando. É uma sensação indescritível. Quando o solo de guitarra entra, sinto um arrepio, uma coisa boa em mim. O som grave e o agudo me levam ao longe, me movem o corpo e a alma.

Eduardo, seminarista, estudante de filosofia, num arroubo reflexivo, após ensaiar coreografias com os jovens, completou:

Deus dança, a criação é dança, o amor é dança. Deus é belo, por isso ele é dança e ao dançar cria, espalha pro todo universo seu amor. Amo a expressão ousada de santo Agostinho, que dizia, “Ó tão feliz culpa que nos fez merecer tão grande salvador!”.

Como em outras festas carismáticas, às duas da manhã, chegou o momento da evangelização com uma pequena peça teatral versando sobre a história de um drogado. Trajados de preto, dois jovens espalhavam no ar e ofereciam um pó branco – farelo de giz – a um grupo de jovens em farrapos. Vestidos de branco, outros dois jovens aproximavam-se dos jovens esfarrapados e tentavam resgatá-los. Os gestos suaves dos vestidos de branco contrastavam com os gestos violentos dos vestidos de preto. Como lembra Gadamer (1985, p. 28), é “função ontológica do belo cobrir o abismo entre o ideal e o real”. Pela beleza, chegam experiências com efeito de verdade, que pretendem transcender os territórios da subjetividade. Quase ao final da festa, num canto do salão, com gestos e toques por todo o corpo, do rosto às pernas e ao quadril, um casal se beijava. Embora sob a penumbra e fora da intensa circulação, os gestos eram perceptíveis para quem não estava freneticamente envolvido pela festa. Depois, fizeram questão de mostrar as alianças de noivado e me afirmaram em tom categórico: “Sensualidade e santidade podem, sim, coexistir, devem estar juntas a nosso ver, afinal é humano ser sensual”. Essencial em uma cristoteca, a música é fato de onde emergem paisagens subjetivas e a capacidade de agregação, as quais operam em tensão e paradoxo: ao mesmo tempo em que referências identitárias locais persistem, as identidades globais, flexíveis e móveis perturbam o solo do sagrado. Uma oscilação entre a identidade moderna/pós-moderna do eu e as referências tradicionais é verificada.

Ao meu redor / procuro entender / O que virá / se bem longe eu vou estar / Diante de Ti / Eu entreguei os meus caminhos / Pra Te sentir / E nunca mais chorar sozinho / Mas cansado estou e fraco a esperar / que Tua doce voz venha o meu sono despertar / Manda Teu espírito e vem me abraçar / (Refrão) / Pra eu não

chorar / Preciso de Ti aqui / Pra me consolar / Só Você faz o mar se acalmar / E traz paz iluminando o meu olhar / Sabes ouvir as dores do silêncio / E persistir em esquecer os meus lamentos / Sei que em Você / Encontro meu alento / Estendo as minhas mãos / E Te entrego os meus sentimentos / (Refrão) / Manda Teu espírito...

(FARO, Eduardo. As Dores do Silêncio - CD Rosa De Saron. In http://letras.terra.com.br/rosa-de-saron-musicas/226447/)

Embora a letra da música não nomeie diretamente Jesus, Deus ou Espírito Santo, os pronomes em maiúsculas evocam a presença divina que pode ser reinterpretada dentro de qualquer tradição religiosa ocidental, entre outras. Não há fronteira dogmática na letra e no ritmo, mas aberturas e indícios que podem levar pessoas de outras religiosidades a se apropriarem da música. O “Você”, semanticamente ambíguo, torna as músicas da banda Rosa de Saron, passíveis de consumo por pessoas não filiadas ao catolicismo e a religiões institucionalizadas, por exemplo. Ao som dessa música, por volta de uma hora da madrugada, alguns jovens foram abraçandose e dançando de olhos fechados, alguns com os olhos lacrimejantes. De repente, soluçando alto, um jovem começou a se abraçar e a chorar no meio do salão. Os demais começaram a dar passos lentos, aleatoriamente, erguendo os braços e clamando “Jesus, quero ser amado por ti”. Entrelaçando seus corpos de forma lenta, como se navegassem à deriva, num oceano de tons e cores, um casal beijava-se e chorava simultaneamente, de forma que os lábios e as lágrimas misturavam-se. Uns balbuciando palavras como “Jesus, eu te amo”; “Jesus acalmou minha vida”; “Jesus, me toma”; outros, com cânticos graves ou agudos, em êxtase glossolálico. De braços abertos e olhos fechados, uma jovem cantava: “shun-rialá, cantariolá, amém, adonai, shum pá-ria to lá” (sic)14. Alguns se esbarravam porque dançavam de olhos fechados. Não muito tempo depois, encerrou-se a cristoteca com todos os que restaram dando as mãos e orando.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por serem práticas de fronteira, oscilando entre o metafórico e o ontológico, a hibridação efetivada na cristoteca avulta em riscos aos carismáticos ao possibilitar um duplo questionamento: [1] dos conservadores e dos progressistas, internamente, e [2] dos atores/agentes secularizados, externamente. Porém, o critério de vivência sócio-religiosa será agora o de experimentar a tradição, que necessitará da força performática da arte e da festa para convencer. A diferença, artificial se tomada do ponto de vista interno (a visão do grupo), é construída em termos contrastivos: mal/bem, santo/pecador, trevas/luz, alegria/tristeza, sexo/virgindade, luxúria/comedimento, referendadas pelas letras das músicas e nas palavras dos animadores do 14

A glossolalia, como um conjunto de palavras ou de canto enunciados em estado de êxtase ou de oração, é uma performance verbal. Não há sintaxe, morfologia ou sentido racionalmente inteligível na sequência de sílabas.

evento. Sob o ponto de vista externo ao grupo, os limites entre os contrastes citados são deslocados e naturalizados. A beleza apolínea do dogma (disciplinada) alterna-se, exigindo o belo dionisíaco (frêmito, perigo e improvisação) para a leitura de si na elaboração da apolineidade, e vice-versa. Há uma operação ritual estratégica da qual a identidade católico-carismática alimenta-se, permitindo a incorporação de uma reflexividade pragmática, sem perder as linhas da doxa. As fronteiras do e no evento produzem sentimentos religiosos por meio de corpos, imagens e ritmos. Sem o sensual e demoníaco, não é possível ao santo dançar, obter de sua luta uma performance vitoriosa e um efeito de verdade. Por isso, embora a qualquer momento a tentação e o elemento demoníaco possam entrar, ou seja, embora o namoro recatado possa descambar em sensualidade, e a euforia em desregramento, as fronteiras não estão resolvidas, pelo contrário, ficam em estado de suspensão tensa e irresolúvel, entre, por exemplo, sensualidade e santidade. Uns mais, outros menos, os jovens brincam com esse risco, e os organizadores da festa procuram as possíveis arbitrariedades das vontades que, a qualquer momento, podem introduzir perturbações. A convergência do conjunto de performances que emergem dentro do tempo/espaço da cristoteca aponta a festa como horizonte heurístico, pela intensa circulação de corpos, emoções e consumo. Como num jogo que compõe a própria existência, há uma circularidade que coloca em oposição/complementaridade (simultâneos), a metáfora e a ontologia, o sério e o lúdico. O corpo e a subjetividade metamorfoseiam-se no palco da fé, no teatro de emoções em que a doutrina é ontologicamente reescrita pelo jogo dos corpos e da experimentação. O controle total do dogma e da tradição sobre o comportamento individual não é restabelecido. Ao contrário, é possível que se abram cada vez mais linhas de fuga, pontos de força centrífuga, acelerando as hibridações em nível microssocial que, por sua vez, interagem com o nível macrossocial, onde estão situadas a própria tradição e a instituição que dela se diz guardiã. Há, portanto, um mundo pós-tradicional em efervescência, na medida em que a tradição precisa justificar-se como escolha. Em outras palavras, embora não seja mais natural e espontânea, ela precisa lançar-se nas redes do consumo, da mídia e do lúdico para se tornar pertinente e plausível aos indivíduos.

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