Crítica à solução de Peter van Inwagen à questão especial da composição

May 25, 2017 | Autor: Gustavo Lunz | Categoria: Metaphysics, Mereology, Peter van Inwagen, History of Philosophy
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

Gustavo Adolfo Machado Cunha Lunz



Crítica à solução de Peter Inwagen à questão especial da composição

RIO DE JANEIRO 2015



UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

Gustavo Adolfo Machado Cunha Lunz

Crítica à solução de Peter van Inwagen à questão especial da composição

Monografia apresentada ao Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro para obtenção do título de Bacharel em Filosofia.

Professor Orientador: Guido Imaguire

RIO DE JANEIRO 2015



Gustavo Adolfo Machado Cunha Lunz

CRÍTICA À SOLUÇÃO DE PETER VAN INWAGEN À QUESTÃO ESPECIAL DA COMPOSIÇÃO

Monografia apresentada ao Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro para obtenção do título de Bacharel em Filosofia. Aprovada em:

Orientador: Prof. Guido Imaguire

1o Avaliador: Prof. Ulysses Pinheiro

2o Avaliador: Prof. Fernando Rodrigues





Agradeço Elaine, Daniel, Rafael, Neyde, Flavio; Zuzu, Taty, Garu, Ruby, Capenguinha, Preto. Todos, meus pássaros.





SUMÁRIO 1. Introdução. Objetivos do Trabalho. ................................................................ 6. 2. Mereologia. Princípios. ................................................................................... 7. 2.1.

Reflexividade. ...................................................................................... 7.

2.2.

Transitividade. ..................................................................................... 8.

2.3.

Antissimetria. ....................................................................................... 9.

3. Histórico da Questão. .................................................................................. 11. 3.1.

Antiguidade. ....................................................................................... 11.

3.2.

Idade Média. Boécio. Escolásticos. Tomás de Aquino. Raimundo Lúlio. Jungius. ............................................................................................. 13.

3.3.

Modernidade. Spinoza. Leibniz. Kant. ............................................... 17.

3.4.

Séculos XX/XXI. Os estudos atuais sobre Mereologia. ..................... 21.

4. A resposta de Inwagen à questão especial da composição. Seus pressupostos. ............................................................................................... 26. 5. Críticas. ........................................................................................................ 30. 5.1.

Resposta circular, não explanativa..................................................... 30.

5.2.

Arbitrariedade. Heteronomia injustificável. Causalidade final introduzida e arbitrariamente interrompida. Possibilidade de ubiquidade dos compostos.......................................................................................... 31.

6. Conclusão. Proposta radicalmente nihilista .................................................. 35. BIBLIOGRAFIA. ................................................................................................. 36.





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Crítica à solução de Peter van Inwagen à questão especial da composição Gustavo Adolfo Machado Cunha Lunz DRE 109146862

1. Introdução. Objetivos do trabalho. Dedica-se a Mereologia a investigar o que é a relação parte-todo e as condições de seu aparecimento, mais especificamente, o que é um todo e quais as condições em que devem seus constituintes se encontrar para que possam ser considerados como uma unidade. É um campo da Metafísica que mereceu a atenção dos filósofos desde Antiguidade. Muito embora diversos de seus aspectos tenham sido competentemente abordados ao longo da História da Filosofia, fato é que ainda hoje não se tem claro o que ela envolve propriamente, sobretudo em entes materiais. É com esse foco que filósofos como Peter Inwagen trabalham. Em obra específica sobre o tema1, mais especificamente a constituição de seres materiais, o filósofo norte-americano construiu resposta surpreendente para as suas questões principais, tese que merece aplauso. Ainda assim sua solução enseja críticas e comporta “melhoramentos” capazes de alterá-la sobremaneira. É objetivo do presente trabalho indicar os pontos em que tal resposta parece falha e oferecer alternativas à aparente dureza daquilo que o próprio autor denominou de “negação”, atomismo radical que só admitiria como exceção a autonomia existencial dos organismos vivos. 1



“Material Beings”, Peter Van Inwagen, 1990, Cornell University Press, New York, USA.

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2. Mereologia. Princípios. Em que consiste propriamente “fazer parte”, “integrar” no que toca os objetos materiais? Autores como Inwagen assinalam que, mais do que estar em determinada situação espaço-temporal, uma tal relação envolve de alguma forma causação. Uma definição do que seja parte tende a emergir como óbvia e até circular se tomada como correlata à relação de continência que se estabelece entre o todo (a princípio entendido como a livre fusão de quaisquer entes/objetos2) e suas partes. Se ela se insinua primitiva em relação a outras tantas funções identificáveis dentre os objetos materiais, por outro lado é também possível indicar que se submeta a certos princípios e que ostente traços bem característicos. De modo muito geral é possível afirmar que a relação “parte-todo”, que o “fazer parte de”, “possuir como parte”, pressupõe maior fundamentabilidade das partes em relação ao composto e traduz uma ordenação dessas mesmas partes integrantes no composto 3 4 . Mais que isso, tem-se que tal relação é reflexiva, transitiva e antissimétrica.

2.1. Reflexividade. Pxx Não há muito o que dizer da reflexividade no que toca às relações parte-todo: é possível afirmar peremptoriamente que todo x é parte de si próprio, no que se enuncia e esclarece totalmente o que veicula o princípio. No campo das objeções, há visadas que refutam haver todos/inteiros com apenas uma parte, casos em que não se poderia identificar a relação objeto deste estudo 5 . Nesses termos, uma

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Entender o que propriamente pode ser considerado permanece um desafio. Como dito, por princípio é admitida a livre fusão entre quaisquer objetos de forma que constituam um todo. Ao longo da História da Filosofia inúmeros autores se dedicaram à diferenciação entre todos e meros agregados. Contemporaneamente, David Lewis apontou que tais restrições pecam pela vagueza de critérios. O tema é competentemente explorado em artigo de Rhamon de Oliveira Nunes, publicado na Revista do Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ, v. 5, n. 1, 2014. 3 Inwagen considera haver certa causação entre as partes e o todo; mais recentemente diversos autores vem indicando que a relação mais adequada é a de “grounding”. 4 Ao longo do texto, serão indicados casos de autores que consideram, ao contrário, ser o composto detentor de precedência ontológica em relação aos seus constituintes. 5 O que já seria uma primeira objeção à definição bifronte de Inwagen que admite partículas indivisíveis como representativas da relação.



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unidade dita fundamental não abrigaria qualquer relação de índole mereológica, o que negaria o princípio. A reflexividade é traço que também serve para diferenciar a relação mereológica do grounding, de caráter explanatório, hiperintensional e apta a captar apontar a prioridade metafísica entre seus relata. Os demais princípios vigentes para a relação de grounding são todos semelhantes àqueles da relação mereológica, como seja a antissimetria e a transitividade. Essa distinção não impede que se trace grounding entre as partes e o todo6 que elas constituem (onde o enfoque metafísico pode reservar ao todo ou às partes a posição de fundamento), mas não se deve ignorá-la sob pena de assimilar ilegitimamente relações que são em si distintas.

2.2. Transitividade. (Pxy ∧ Pyx) → Pxz Prosseguindo, tem-se que a relação mereológica é transitiva: se um dado x é parte integrante de um y, e esse por sua vez integra z, então x é parte de z. Esse traço/princípio recebe uma direta objeção que merece exame detido. Descendo a exemplos, pensemos na perna de um ser humano. Esse membro integra o corpo desse homem, é possível afirmar sem titubear que o membro do corpo de um homem é uma sua parte integrante (x é parte de y). Estamos aqui diante de uma primeira hipótese de relação parte-todo. Esse mesmo homem pode integrar uma família, e novamente é possível identificar uma típica relação partetodo (y integra z). Mas será que a perna é parte da família do homem a quem pertence? Não cai por terra a transitividade?

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Neste particular aponta-se que há reservas em se estabelecer relação de grounding entre particulares, substâncias. Há autores que preferem reservar a condição de relata apenas a proposições factuais e ainda excluem aquelas que se limitam a atestar a existência de entes, como é o caso de Paul Audi. Pessoalmente, acreditamos que essa redução preserve o caráter hiperintensional do grounding e evita alguns problemas, sendo certo sua utilidade e conceitualidade são postos em dúvida por parcela respeitável daqueles dos filósofos dedicados à Metafísica. No que diz respeito à defesa da noção de grounding remetemos o leitor à leitura do Capítulo 3 escrito por Paul Audi na obra “Metaphysical grounding: understanding the structure of reality”, editado por Fabrice Correia, Benjamin Schnieder. Cambridge/New York/Melbourne/Madrid/Cape Town/Singapore/São Paulo/Delhi/Mexico City, 2012. Para uma competente crítica ao conceito, o trabalho de Jessica M. Wilson, “No work for a Theory of Grounding” é de valiosa leitura.



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O problema se dissolve se atentarmos para a natureza de cada uma das relações de composição aventadas no exemplo. Em verdade, elas diferem entre si. A primeira delas trata de composição material, na medida em que um corpo humano dispõe de membros (cada um desses membros também pode ser encarado como um todo composto de tecidos, de células, órgãos intracelulares, moléculas, átomos, partículas subatômicas...). No entanto, parece inegável que a relação de composição havido na segunda parte do exemplo possui outra natureza, que marca e particulariza essa outra relação de composição. Se família, trupe, equipe são compostas por seus “membros” (aqui um termo equívoco), isso não se dá do mesmo modo que objetos materiais7 ou coloquialmente nominados de concretos, e por isso não se pode verificar a transitividade mencionada.

2.3. Antissimetria. (Pxy ∧ Pyx) → x=y Se o princípio da transitividade se abre a objeções bem fundadas, isso se amplia sobremaneira no que toca à antissimetria. Nesse sentido, o clássico exemplo da estátua e do material de que é composta. Tendo em mente esses dois elementos é sempre possível afirmar que elas são partes uma da outra mas não iguais (autores que sustentam a hipótese são Thomson, Haslanger e Koslicki), o que contrariaria o princípio. Outros numerosos contraexemplos 8 são imaginativamente apontados pela literatura especializada no fictício Aleph concebido por Borges 9 , sustentado por Sanford; uma parede trazida de volta no tempo e miniaturizada de forma a ser utilizada para a fabricação de um e apenas um dos tijolos que posteriormente a constituirão; a Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, que são a um só tempo parte e todo, iguais e distintos entre si (mistério divino professado pela 7

É dessa classe de objetos de que trata a solução de Inwagen. Fonte: Enciclopédia de Filosofia de Stanford. Verbete “Mereology” encontrado na web, endereço: http://plato.stanford.edu/entries/mereology/#ComPri, página acessada em 02/08/2014. 9 “(...); vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph, e no Aleph novamente a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.” a O Aleph, Jorge Luís Borges, tradução de Flavio José Cardozo, São Paulo, Globo, 2001, 3 edição, página 171. 8



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cristandade); qualquer sentença/proposição S ventilando que o universo existe, pelo que o universo seria parte da sentença mas não idêntico à mesma; ainda no campo da linguagem, o par de proposições P e Q, sendo P a proposição de que Q é verdadeira e Q a afirmação de que P é contingente. As

referidas

objeções

não

são

impassíveis

de

resposta.

Maiores

considerações não merecem os exemplos colhidos na Literatura, porquanto a ficção é terreno próprio para qualquer possibilidade de criação humana, mesmo hipóteses que encerrem contradições evidentes ou sem qualquer pretensão descritiva do real. No entanto, emergem relevantes os contraexemplos colhidos na Teologia e na Filosofia da Linguagem, embora a pretensão descritiva da primeira não possa ser considerada sem compromisso de fé, ou seja, a alguém que não partilhe as crenças religiosas envolvidas o conteúdo descritivo emerge vazio, fantasioso. Mais que isso, tem-se que as objeções estão limitadas ao campo específico de sua construção. Fora da Linguagem 10 e do paradoxo religioso (“mistério da fé”), a antissimetria possui plena vigência como princípio básico da Mereologia. Não há maiores dificuldades em admiti-la como princípio quando a solução do problema e a crítica que se pretende empreender têm por objeto entes materiais. Por fim, no que toca à objeção clássica que consiste na estátua e seu material constituinte, não há mesmo como apontar uma distinção absoluta entre os dois entes que se pretende distintos mas que materialmente coincidem. Todas as propriedades detidas por ambos coincidem, a destruição/transformação de um sempre importará na mesma alteração em relação a esse “outro”. A distinção da estátua em relação ao material que a compõe depende de uma autonomia que se atribua à forma em relação à matéria (e vice-versa) como duplo aspecto identificável nas substâncias (hilemorfismo). Desde que não se adote um tal modelo de inspiração aristotélica, tem-se esvaziado o contraexemplo.

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Sendo certo que aí também parece evidente que a relação de referência linguística não poderia ser assimilada à relação de continência que estabelece entre os todos e seus constituintes.



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3. Histórico da Questão. 3.1. Antiguidade. Já os pré-socráticos se ocuparam das relações parte-todo. O atomismo defendido por filósofos como Empédocles11, Anaxágoras12, Leucipo e Demócrito de Abdera13 foi uma primeira tentativa de reducionismo no que toca ao tema, a indicar que apenas os átomos (mínimos constituintes) possuíam efetiva existência e determinavam por sua natureza e disposição (formato e tamanho) as propriedades que os agregados a que dão origem podem deter. Platão, embora não tenha deixado diálogo ou carta que tratasse especificamente o tema, enxergou a relação parte-todo de modo distinto em diversas passagens de suas obras que nos chegaram. Parece haver sempre mostrado seu dissenso em relação ao reducionismo atomista, simplesmente criticando um modelo que assimilava o todo ao simples somatório das partes ou propondo alternativa que destacava a estrutura e a função que determinadas partes exercem no composto14. O composto teria algo mais do que a singela soma das partes; não se identificava com a simples coleção de partes e demandava uma estruturação própria que o individuaria15. 11

“e Empédocles – acrescentando a terra como quarto princípio aos já mencionados” (ar, água, fogo). “Estes – diz ele – conservam-se sempre e somente estão submetidos ao devir pela agregação ou desagregação ao se unirem numa unidade ou dela se separarem.”, Aristóteles, Metafísica, Livro I, 3, 984a8 – Metafísica, Aristóteles. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini, Bauru, SP, Edipro, 2006. 12 “Anaxágoras de Clazômenas, anterior a Empédocles na idade, mas posterior na produção de obras, afirma que os princípios são infinitos. Quase todas as coisas, formadas de partes semelhantes (como a água e o fogo), diz ele que são geradas e destruídas unicamente por combinação e dissolução, e de outra maneira não são geradas nem destruídas, mas permanecem eternas.”, Aristóteles, Metafísica, Livro I, 3, 984a11 – idem. 13 (Leucipo e Demócrito) “Afirmam ser essas (os átomos) as causas materiais das coisas. E tal como os que fazem da substância subjacente uma unidade geradora de todas as outras coisas através de suas modificações, supondo o raro e o denso como primeiros princípios dessas modificações, do mesmo modo esses pensadores sustentam que as diferenças (nos elementos) são as causas de tudo o mais”, Aristóteles, Metafísica, Livro I, 3, 985b10 - ibidem 14 Nesse sentido as conclusões de Verity Harte em sua obra “Plato on parts and whole: The Metaphysics of Structure”, a quem remetemos à leitura aqueles interessados no tratamento platônico do tema. 15 “Plato's model of composition is presented against the background of his exploration of what he takes to be an inadequate conception of composition. Central to this inadequate conception is the thesis that composition is identity. This — and the desire for ontological innocence that lies behind it — marked the principal point of contact between ancient and modern discussions of composition that I identified at the start of this book. The problem with innocence, I argued, is that it threatens to



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Aristóteles tratou do tema em quase todas as suas obras, identificando nuances até então inexploradas. Os todos são qualificados em função de possuírem partes simples ou outras também formadas elas próprias por outras partes; gêneros são apontados como exemplos de todos integrados pelas diversas espécies e a relação mereológica é aplicada ao hilemorfismo das substâncias: matéria e forma são tomadas como elementos constitutivos do todo substancial, seja ele Deus, um organismo vivo ou mesmo um artefato. É de grande interesse também que Aristóteles tenha identificado a diferença entre todo e agregado. No primeiro é possível a percepção de início, meio e fim, funções nas suas diversas partes (por exemplo, o corpo humano, um concerto musical). Isso não se dá nos agregados, cujas partes mostram-se homogeneamente integradas, sem funções próprias no contexto daquilo que integram (por exemplo, uma duna). A possibilidade de mutilação marca a diferença fundamental entre agregados (a duna de areia não deixa de ser uma duna se retirado um grão) e todos (pensemos no corpo de um homem de que fosse retirado um braço, ou mesmo o cérebro; um concerto de que fosse retirado um de seus movimentos), na medida em que apenas os últimos são dela passíveis. Dentre os todos, poder-se-ia ainda extremar os integrais e os essenciais. Em se tratando dos primeiros, é possível haver a separação de algumas partes, mas não de todas: a mutilação de determinadas levaria à descaracterização do todo que integram (v.g.: a mutilação de um dedo ou de um coração e as consequências advindas para o corpo humano que integram). No que diz respeito aos todos essenciais, todas as partes integrantes mostram-se imprescindíveis para sua constituição: qualquer delas, se separadas, levam à aniquilação / descaracterização undermine the status of a whole as an individual, rather than a collection of many. And the problem, I argued, that Plato sets out to solve is the problem of how to give an account of composition in such a way as to allow that a whole is an individual, rather than a collection. The model of composition that Plato develops in response to this problem is not as yet a fully developed theory of composition. It is better described as an attempt to say what a whole of parts must be like. However, the model does have certain key characteristics that suffice to contrast it with those of others. According to this model, wholes of parts are contentful structures, whose parts get their identity only in the context of the whole they compose. Thus, unlike Lewis, Plato makes structure essential to the constitution of a whole. But, unlike Van Inwagen, he takes such structure to be no less essential to the parts than to the whole.”, Verity Harte, “Plato on parts and whole: The Metaphysics of Structure”, pág. 273., Oxford University Press Inc., New York, USA, 2002.



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do constituído. Mais que isso, todos seriam mais do que a simples soma de suas partes integrantes; não poderiam ser assimilados a tais somatórios e possuiriam propriedades não detectáveis nas suas partes.

3.2. Idade Média16. Boécio. Escolásticos. Tomás de Aquino. Raimundo Lúlio. Jungius. Boécio17 se ocupa da mereologia ao comentar obra de Cícero (Tópicos), esta dedicada às proposições da linguagem e seus modos de formação. Embora o trabalho seja precipuamente voltado para a linguagem e como os argumentos podem se articular validamente para o deslumbre da verdade, o autor considera como objetos dessas proposições tanto conceitos como objetos materiais, o mesmo se dando para as partes integrantes: poderão elas ser espécies integrantes de um gênero (conceito) ou membros constituintes de um objeto material. Os todos são assimilados aos somatórios de suas partes. O primeiro dos escolásticos a tratar das relações mereológicas teria sido Garlandus Compotista18. A base para suas considerações acerca do tema foram os Tópicos de Aristóteles, de onde teria extraído duas proposições acerca dos todos, demonstrando a distributividade de suas propriedades (aquilo que ao todo é atribuído é também atribuído a cada uma de suas partes integrantes; aquilo que do todo é subtraído é igualmente subtraído de suas partes). Com elas construiu dois dicta (de omni; de nullo), ampliando e restringindo a predicação dos todos para indicar as consequências nos predicados das partes constituintes. De modo a esclarecer o ponto, temos como exemplo de “dictum de omni”: sendo todos os homens animais e sendo todos os animais mortais, segue-se que todos os homens 16

A maior parte dos dados bibliográficos encontrados nesta seção (no que diz respeito ao tratamento de Aristóteles ao tema) tem como fonte a obra de Hans Burkhardt e Barry Smith, “Handbook of o Metaphysics and Ontology”, 2 Volume, verbete “Part/Hole I: History”, pgs. 666 e segs.. Munich/Philadelphia/Vienna. 1991. Ed. Analytica. 17 Boécio, mártir e padre da Igreja Católica, nascido ca. 480 em Roma, teria morrido em 524/525, aos 44 anos, em Pavia, Itália. Traduziu, comentou ou resumiu, várias obras dos clássicos gregos além do Isagoge de Porfírio e do Organon de Aristóteles. Nesse conjunto vários tratados sobre matemática, lógica e teologia. 18 o Garlandus Compotista, lógico medieval do 11 século, da escola de Liège, Bélgica.



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são mortais. Corresponde ao silogismo BArbArA. “Dictum de nullo”: sendo todos os cavalos mamíferos e nenhum dos mamíferos provido de guelras, segue-se que nenhum cavalo é provido de guelra. Corresponde ao silogismo CElArEnt. Pedro Abelardo19 também dedicou-se ao tema Mereologia e em suas obras estabeleceu a distinção entre todos distributivos (definidos a partir de um universal) e coletivos (definidos a partir de uma conjunção entre suas partes integrantes) no interesse de resolver dificuldades como aquelas advindas da transitividade. Pedro da Espanha20 aprofundou a classificação dos todos estabelecida por Aristóteles na Física chegando a oito espécies21. Tomás de Aquino divide os todos e suas partes em três grandes grupos, conforme anota Contarato em monografia específica sobre o tema22. Todos e suas partes (homogêneas ou heterogêneas) podem ser integrais, conforme a relação que as una formando o todo não possa prescindir de nenhuma delas, pena de mutilação ou mesmo perda da identidade do constituído. O segundo grande grupo diz respeito aos todos universais e suas partes subjetivas, observada a nomenclatura própria de Tomás de Aquino. Tem-se em mira grandes conjuntos (todos universais) e seus elementos (partes subjetivas), no que se podem considerar como exemplos os gêneros (tendo as espécies como seus elementos) e as próprias espécies (subconjuntos que têm como partes os indivíduos. No que toca às partes subjetivas, elas podem ser identificadas no intelecto ou na realidade.

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Pedro Abelardo, filósofo escolástico, teólogo e lógico, nascido em 1079 na cidade de Le Pallet, proximidades de Nantes, na França. Morreu aos 62/63 anos na Abadia de San Marcel, Chalon-surSaône, também na França. 20 o Pedro da Espanha, “Petrus Hispanus”, lógico medieval do 13 século, de origem ibérica, autor do “Tractatus” , obra posteriormente conhecida como “Summulae logicales magistri Petri Hispani”. 21 Os dados e as informações encontradas nesta seção e na precedente (no que diz respeito ao tratamento de Aristóteles ao tema) têm como fonte a obra de Hans Burkhardt e Barry Smith, o “Handbook of Metaphysics and Ontology”, 2 Volume, verbete “Part/Hole I: History”, pgs. 666 e segs.. Munich/Philadelphia/Vienna. 1991. Ed. Analytica. 22 “Mereologia e metafísica em Tomás de Aquino”, Thiago S. Reis Contarato https://ppglm.files.wordpress.com/2008/12/dissertaccca7acc83o-de-mestrado-thiago-sebastiacc83omereologia-e-metaficc81sica-em-tomacc81s-de-aquino.pdf . Acesso 31/01/2015.



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A causalidade é o critério identificador do último grande grupo de todo/partes nas obras de Tomás de Aquino. Dito Potencial/Virtual, funciona a causa comum das virtudes23 e potências24 como o todo, e estas como suas partes. Contemporâneo a Tomás de Aquino, Raimundo Lúlio 25 concebeu a arte combinatória a preceituar um princípio universal de composição pelo qual cada todo/agregado existente no mundo (em verdade todos os objetos com os quais tomamos contato) poderia ser produzido pela combinação das menores e mais simples partículas do universo, e, em processo inverso, nelas resultaria se submetido a análise. Sua “Scientia Generalis” repercutiu muito nos trabalhos dos filósofos que se seguiram (entre eles Leibniz) e diversificaram sua aplicação em sentenças, silogismos e matemática em geral. Radulphus Brito 26 aborda o tema em seu comentário ao “De Differentis Topics” de Boécio, identificando uma distinção nos todos integrais27, como sejam homogêneos e heterogêneos. Nos todos integrais homogêneos a essência é observada em toda e qualquer parte componente, o que não se observaria nos heterogêneos (digamos uma casa que tem paredes, telhados e fundação como suas constituintes). Além da diferenciação desses dois subtipos de todos integrais, Brito construiu uma série de inferências acerca da existência/inexistência dos termos antecedentes em silogismos que construiu tomando por base as partes e os todos, e como isso serviria para que se pudesse concluir se o todo enfocado é integral homogêneo ou heterogêneo. 23

“Sendo assim, fica estabelecido que o “virtual” diz respeito a toda a atualidade dos efeitos que a causa possui, de modo que podemos dizer que os efeitos estão contidos virtualmente na causa.”, Contarato, op. cit., pág. 122. 24 O autor anota que Tomás utiliza partes virtuais como sinônimas de partes virtuais, diferenciando aquelas pelas peculiaridade de serem entre si heterogêneas, efeitos múltiplos e particulares da causa que funciona como seu todo, sem que se possa indicar um traço comum que a própria noção de virtude comunicaria. Contarato, idem, págs. 125/128. 25 Raimundo Lúlio, escritor, filósofo, poeta, missionário e teólogo da língua catalã. Nascido ca. 1232 em Palma de Majorca. Faleceu em 1315, aos 83 anos, na mesma cidade, então Reino de Majorca, hoje Espanha. 26 Radulphus Brito, também conhecido como Raul Bretão (dados biográficos controvertidos), foi o o filósofo e gramático especulativo que viveu em Paris entre os 13 e 14 séculos, tendo trabalhado como professor na universidade ali sediada. 27 Como indicado em seção precedente, todo integral é aquele que pode ser privado de algumas de suas partes, mas não quaisquer delas, pena de mutilação ou mesmo descaracterização/perecimento. Em contraste, nos todos essenciais todas as partes integrantes mostram-se imprescindíveis para sua constituição: quaisquer delas, se separadas, levam à aniquilação / descaracterização do constituído.



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Outro filosofo do período que também investigou o tema Mereologia foi Alberto da Saxônia28, primeiro dos reitores da Universidade de Viena. Uma de suas contribuições foi a conceituação dos todos quantitativos e qualitativos. Todos quantitativos são na sua concepção dotados de partes “externas” (não sobrepostas, não interpenetradas) umas às outras e nenhuma delas se coloca em relação de potência ou poderia ser mais perfeita pela ação de qualquer outra que pertença ao constituído. Todos qualitativos possuem características opostas a estas, com partes onde essa externalidade não se observa e que se sujeitam a maior perfeição em função de outras constituintes. Finalmente, há que se abordar Joaquim Jungius29. À semelhança Alberto da Saxônia, Jungius estabelece a divisão entre todos qualitativos (quantum essentiale) e todos quantitativos (totum quantitativum). Estes últimos, são homogêneos (similare)

ou

heterogêneos

(dissimilare),

de

acordo

com

as

homogeneidade/heterogeneidade de suas partes constituintes. Mais que isso, as partes de um todo quantitativo homogêneo ostentam as mesmas propriedades do constituído (pensemos em dada quantidade de água, por exemplo), o que já não ocorre com todos quantitativos heterogêneos (uma casa, constituída de paredes, telhados, janelas, portas, etc.). Outro aprofundamento trazido pelo seu trabalho foi aquele atinente à divisão dos todos quantitativos em permanentes ou sucessivos, no que se considera a integração de novas partes ao constituído ao longo do tempo. Mais que isso, Jungius atentou para a gradação de importância de algumas partes nos todos quantitativos, classificando-as assim como essenciais ou nãoessenciais. Privados de partes essenciais, os todos quantitativos podem perecer ou seguir mutilados. Ao contrário, a perda de um constituinte não-essencial não lhe acarreta mudança de monta (v.g., uma árvore que perde uma de suas folhas). Em todos puramente integrais essa gradação de importância das partes não é detectável.

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Alberto da Saxônia, nascido ca. 1320, falecido em 1390. Filósofo alemão que dedicou-se à Lógica e à Física, foi bispo de Halbertstadt (Saxônia, Alemanha), de 1366 até a sua morte. 29 Joachim Jungius, nascido em 1587 (Lübeck, Alemanha), faleceu em 1657 (Hamburgo, Alemanha). Foi filósofo, matemático e naturalista, tendo elaborado obras em todas essas ciências.



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3.3. Modernidade. Spinoza. Leibniz. Kant. Não foi possível encontrar artigo ou monografia que tratasse especificamente sobre o tema Mereologia por Spinoza, o que não quer dizer que o tema tenha sido por ele ignorado. Embora não ostente a mesma importância que a relação substância-acidente, numerosas são as referências à relação parte-todo na Ética, sua obra mais importante. A “Pequena Física” inserta no Escólio da Proposição 13 da 2a Parte da Ética30 veicula enunciados que ventilam a precedência ontológica do todo sobre suas partes31. Os corpos distinguem-se entre si pelo movimento ou pelo repouso, pela velocidade/lentidão do movimento que desenvolvam32, e não pela sua composição. A alteração dos movimentos dos constituintes é que pode alterar a identidade do composto33. Essa dinâmica da alteração dos compostos é levada à aplicação em compostos crescentemente complexos, que seriam mais sujeitos a alterações. Spinoza considera a natureza toda (Deus, como substância extensa) como o composto máximo, resultado da combinação dos infinitos compostos extensos34. 30

Para elaboração da presente monografia foi compulsada Ética de Spinoza, tradução de Thomas Tadeu, Ed. Autêntica, Belo Horizonte, 2009. 31 Falamos em precedência ontológica dos todos sobre as partes na medida em que Spinoza sustenta que os primeiros mantêm sua identidade inobstante a mudança de seus constituintes. Nesse sentido transcrevemos o Lema 4: “Se algum dos corpos que compõem um corpo – ou seja, um indivíduo composto de vários corpos – dele se separam e, ao mesmo tempo, outros tantos, da mesma natureza, tomam o lugar dos primeiros, o indivíduo conservará a sua natureza, tal como era antes, sem qualquer mudança de forma.” O Lema 5 trata da hipótese de alteração proporcional 32 Lema 1, Escólio da Proposição 13, 2ª Parte da Ética. 33 A contrario sensu dos Lemas 6 e 7, Escólio da Proposição 13, 2ª Parte da Ética. Lema 6: “Se algum dos corpos que compõem um indivíduo forem forçados a desviar seu movimento de uma direção para outra, mas de tal maneira que possam continuar a transmiti-los entre si, na mesma proporção de antes, o indivíduo conservará, igualmente, sua natureza, sem qualquer mudança de forma.”. Lema 7: “Um indivíduo assim composto conserva, além disso, sua natureza, que se mova em sua totalidade ou esteja em repouso, quer se mova nesta ou naquela direção, desde que cada parte conserve seu movimento e o transmita às demais, tal como antes.”. 34 Escólio da Demonstração do Lema 7, Proposição 13, Ética, 2ª Parte: “Vemos, assim, em que proporção um indivíduo composto pode ser afetado de várias maneiras, conservando, apesar disso, sua natureza. Até agora, entretanto, concebemos um indivíduo que se compõe tão-somente de corpos que se distinguem entre si apenas pelo movimento e pelo repouso, pela velocidade e pela lentidão, isto é, que se compõe de corpos mais simples. Se, agora, concebemos um outro indivíduo, composto de vários indivíduos de natureza diferente, veremos que também ele pode ser afetado de muitas outras maneiras, conservando, apesar disso sua natureza. Pois, como cada uma de suas partes compõe-se de vários corpos, cada uma delas poderá, portanto (pelo lema



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Leibniz, à semelhança de Lúlio, estabelece a relação parte-todo na base de sua ontologia. Tratou especificamente do assunto em sua obra “Dissertatio de Arte Combinatoria” (1666). A relação de composição é assinalada como presente em todos os níveis, envolvendo sucessivamente todos os constituintes do conjunto mais abrangente. O enfoque do estudo é limitado à relação todo-parte, não tratando das relações de ordem e lugar que as partes constituintes tenham entre si: Leibniz não consideraria distintos, por exemplo, os todos ABCD, ACDB, BDAC, etc.. Por óbvio, decisiva para distinção dos compostos era a identidade de suas partes, pelo que ABCD difere de EFGH ou mesmo ABCDX. Partindo daí, utiliza a assim chamada “arte combinatória” para, permutando premissas, gerar todos os silogismos possíveis e posteriormente eliminar os produtos inválidos. Leibniz também relacionou os dicta de omni et de nullo35 à relação continenteconteúdo, extremando-a da relação parte-todo. Será impossível identificar a transitividade que caracteriza as propriedades retratadas em tais dicta nos todos, distintos dos meros agregados justamente por serem predicados de propriedades não identificadas nas suas partes constituintes. Os conceitos de mundos de Leibniz variaram bastante ao longo da construção de sua extensa obra. Seus enfoques mereológicos também se alteraram. Em seus primeiros trabalhos, o mundo escolhido eleito por Deus para criação corresponderia ao composto dotado do maior número possível de partes, considerados para o cômputo os elementos mais simples e homogêneos entre si. Suas últimas obras ainda levam em consideração as propriedades dos indivíduos que compõem o conjunto máximo. Em todo o caso, a ordem e o lugar dos elementos precedente) sem qualquer mudança de sua natureza, mover-se ora mais lentamente, ora mais velozmente. Se concebermos, além disso, um terceiro gênero de indivíduos, compostos de indivíduos do segundo gênero, veremos que também ele poderá ser afetado de muitas outras maneiras, sem qualquer mudança de forma. E, se continuarmos assim, até o infinito, concebermos facilmente que a natureza inteira é um só indivíduo, cujas partes, isto é, todos os corpos, variam de infinitas maneiras, sem qualquer mudança do indivíduo inteiro. Se minha intenção fosse a de tratar expressamente do corpo, eu deveria ter explicado e demonstrado isso mais longamente. Mas já disse que outra é minha intenção, e só me detive nessas questões porque delas posso deduzi facilmente o que decidi demonstrar.” (grifos nossos). 35 Há uma explicação acerca de tais dicta na seção atinente à Filosofia Medieval e a contribuição de o Garlandus Compotista ao tema, pág. 8, 1 parágrafo e nota 14 supra.



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não é considerada para identificação de tais complexos de indivíduos, como afirmado anteriormente. A relação parte-todo também foi aplicada por ele à Lógica ao concluir que os conceitos também eram mereologicamente estruturados, podendo ser divididos em conceitos-parte elementares. Sua visão sobre o assunto evoluiu ao longo da elaboração de sua obra. Inicialmente considerou que tais conceitos-partes eram cognoscíveis e acessíveis aos homens, o que veio a negar em seus trabalhos posteriores. Mais importante, Leibniz empreendeu a redução da relação substância acidente à relação conceito – conceito-parte, ainda que conceitos não fossem considerados como todos propriamente ditos36. No esquema classificatório leibniziano, foram distinguidos todos “legítimos” e meros agregados despidos de estrutura interna, simples resultado da soma das partes consideradas e que podem existir separada e independentemente do agregado que eventualmente integrem. A presença dessa estrutura interna gera consequências para esses todos, que podem ser essenciais (a separação de qualquer de suas partes leva ao seu perecimento) e integrais/mistos (que possuem partes separáveis e outras essenciais à sua existência). Outro aspecto explorado foi o da hereditariedade das propriedades observáveis nos todos e sua repercussão nas partes integrantes e vice-versa. Leibniz bem percebeu que as propriedades mereológicas podem transitar nos dois sentidos, estando presentes nos todos e em suas nas partes constituintes e viceversa37; jamais operar essa transição tanto no sentido descendente (do todo para as partes) como no ascendente (das partes para os todos)38; finalmente, fazer isso em 36

Conceitos complexos não eram considerados como todos legítimos por Leibniz. Eles estão antes caracterizados por uma relação de continência, que Leibniz extremava da relação parte-todo. Partes de um todo deveriam ser diretamente inferidas ou resultado de uma relação causal direta, o que não seria perceptível na relação entre contido e continente. Burkhardt anota que tais considerações do autor estão presentes em sua Characteristica Geometrica, obra de 1679. 37 Exemplo de uma tal propriedade é a extensão: todos extensos são constituídos por partes igualmente extensas, do mesmo modo que a reunião de partes extensas resulta em todos necessariamente extensos. 38 O mais interessante exemplo de propriedade metamereológica instável é a de ser a melhor. O melhor mundo possível leibniziano não é aquele dotado das melhores partes. Do mesmo modo, a reunião das melhores partes para formar um mundo (máximo composicional não resulta no melhor mundo possível.



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apenas uma das duas direções possíveis. O argumento foi desenvolvido no §64 da Monadologia 39 . As mônadas foram concebidas como desprovidas de partes constituintes, únicas e desprovidas de qualquer relação mereológica interior40. Tudo o mais é dotado de partes constituintes, entrando no esquema classificatório acima exposto, figurando as mônadas na base fundadora das relações mereológicas que resultam nesses compostos (complexos não são formados por cadeias infinitas de relações mereológicas; em dado momento as mônadas figuram das relações que formam seus constituintes). Kant passou para a História da Filosofia, entre outros importantíssimos aspectos de sua obra, por força da tese de inacessibilidade ao homem das coisas nelas mesmas, proposta antimetafísica ou de impossibilidade da Metafísica. A relação mereológica ou traço mereológico das coisas não está incluído nas categorias epistêmicas, estabelecidas no período mais tardio de sua obra. A relação parte-todo é considerada ali como inteiramente intelectual, dada por operação imaginativa. No entanto, em sua juventude confrontou o tema nos livros “Gedanken von der wahren Schätzung der lebendingen Kräfte” (Pensamentos sobre o verdadeiro valor das forças vivas – 1747) e “Monadologia physica” (1756), obras escritas antes da década “silenciosa” sucedida pela Crítica da Razão Pura. As teses mais importantes ali estabelecidas são as de que, embora a matéria extensa possa ser infinitamente dividida em partes por operação do intelecto, isso não significa que tais partes realmente existam na realidade; que partes só podem existir na medida em que possuam relações com outras coisas nesse mundo, sendo esta sua precípua

39

“64. Thus the organic body of each living being is a kind of divine machine or natural automaton, which infinitely surpasses all artificial automata. For a machine made by the skill of man is not a machine in each of its parts. For instance, the tooth of a brass wheel has parts or fragments which for us are not artificial products, and which do not have the special characteristics of the machine, for they give no indication of the use for which the wheel was intended. But the machines of nature, namely, living bodies, are still machines in their smallest parts ad infinitum. It is this that constitutes the difference between nature and art, that is to say, between the divine art and ours. (Theod. 134, 146, 194, 403.)”, Leibniz, “Monadology”, traduzida para o inglês por Robert Latta, em http://oregonstate.edu/instruct/phl302/texts/leibniz/monadology.html site acessado em 12 de maio de 2015. 40 “1. The Monad, of which we shall here speak, is nothing but a simple substance, which enters into compounds. By 'simple' is meant 'without parts.' (Theod. 10.)”, Leibniz, idem.



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nota de pertencimento. Ausente, remete-a a qualquer outro dos mundos possivelmente criados por Deus. De todo modo, a Mereologia ficou desde então bastante alijada das investigações filosóficas. Esse quadro só veio a se alterar no início do século XX. As contribuições que então vieram a lume são objeto da próxima seção.

3.4. Séculos XX/XXI. Os estudos atuais sobre Mereologia. Husserl investigou a Mereologia na primeira parte de suas “Investigações Lógicas” (1901), ligando-a a outros conceitos metafísicos como a dependência existencial. Ela também foi tema de trabalhos de Bolzano e Brentano no mesmo início do século XX. No entanto, foi Lesniewski41 o filósofo que voltou a dar-lhes contornos mais autônomos em seus estudos no início do século XX (“Foundations of a General Theory of Manifolds” -1916). Escrita em polonês, a obra permaneceu por muito tempo sem a devida divulgação, muito embora tenha trazido inegáveis avanços acerca do assunto e, segundo anotam Burkhardt e Smith, fosse mais exata e superior nas suas conclusões aos estudos muito mais divulgados à época de Whitehead42, Leonard e Goodman43. A situação alterou-se a partir de 1945 com as primeiras traduções das obras de Lesniewski e as contribuições delas tributárias que partiram de Chisholm (“Person and Object” – 1976) e Wiggins (“Sameness and Substance” – 1980). O novo alento aos estudos que têm a Mereologia por objeto em muito se deve à diferenciação não só entre todos e suas partes, mas entre todos e classes. A 41

Stanisław Leśniewski (1886–1939) foi um dos principais filósofos que se dedicaram à Lógica no início do século XX, integrando escola importante que floresceu na Polônia no período havido entre as duas Grande Guerras. Concebeu sistema heterodoxo de fundamentos da Matemática ao fixá-los na Lógica de proposições e suas funções (“Prototética”); Lógica de nomes e funções de ordem, arbitrária (“Ontologia”), e na Mereologia. “Prototética” e “Ontologia” estão entre aspas seja porque não se encontrou referências em português ao primeiro domínio de conhecimento (a tradução do termo é nossa), seja porque a acepção que Lesniewski empresta ao segundo termo se afasta daquele tradicionalmente utilizado em Filosofia. 42 “An Enquiry Concerning the Principles of Natural Knowledge” (1919). 43 Journal of Symbolic Logic, 1940; Structure of Appearance (1951), uma releitura do artigo de 1941.



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noção de classe é própria da Teoria dos Conjuntos, e sua elaboração está ligada às tentativas de solução de seus paradoxos apelam para axiomas. Originariamente classes são ali identificadas com propriedades que não dão origem a conjuntos (P.ex.: x=x ; x∉x) e assim evitam que se gerem paradoxos como o de Russell44. O conjunto imaginado por Russell não se diz mais um conjunto, mas uma classe; uma tal propriedade (x∉x) não define conjunto. Trasladada a noção para a Metafísica, tem-se que classes também não podem ser identificadas com os todos, são outro tipo de “entidade”. Todos se distinguem de conjuntos que abstrata e/ou arbitrariamente disponham dos mais díspares elementos, pluralidades que não possuam um traço distintivo de unidade. A Metafísica Contemporânea vêm usualmente identificando os objetos de investigação de seu subcampo Mereologia com objetos concretos, com “seres materiais”. Refinamento

teórico

contemporaneamente

introduzido

diz

respeito

à

temporalidade/atemporalidade da Mereologia e a detecção de suas relações típicas em diversos mundos possíveis, sua identidade transmundana. Modo geral, parte-se de uma Mereologia atemporal (em inglês, “tenseless”) com extensões que a tornem adequada ao enfoque das variações de tempo e mundos. Muitas das versões menos sofisticadas da Mereologia têm em mira fazer dela um substitutivo da Teoria de Conjuntos cujos problemas foram acima referidos. As propriedades ou princípios essenciais são aqueles abordados na seção 2 supra, aos quais autores contemporâneos costumam acrescentar as propriedades da existência (se a é parte de b, então ambos existem) e da suplementaridade (se a é parte de b, então b possui uma parte disjunta de a, ou seja, distinta de a e que não se sobrepõe a ela). Não se logra uma grande vantagem explicativa com uma tal adição, se for considerado que eles decorrem ou estão já presumidos pela própria relação partetodo ou pelo princípio da antissimetria tal como exposto na seção 2 deste trabalho45. 44

O paradoxo de Russell foi aquele que o filósofo identificou na obra seminal de Frege, Leis Fundamentais da Aritmética (“Grundgesetze der Arithmetik”- 1983). A hipótese é a de um conjunto definido pela propriedade de que seus elementos são conjuntos que não possuem eles próprios dentre seus elementos, e o paradoxo de que um tal conjunto é e não é seu elemento: por não possuir a si próprio como elemento ele se credencia a ser elemento próprio e, assim, exclui-se da definição. Assemelha-se ao paradoxo do barbeiro. 45 É o caso do princípio de coextensão identificado referido por Burkhardt e Smith, que emerge como simples decorrência da antissimetria: se a e b possuem as mesmas partes eles são idênticos. A única



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Há ainda de se fazer menção aos postulados condicionais (um tanto quanto óbvios) de que indivíduos que se sobrepõem possuem uma única maior parte comum; de que quaisquer indivíduos existentes podem ser considerados numa soma mereológica (livre soma mereológica); de que uma tal soma mereológica é sempre possível numa classe que não seja nula ou vazia (soma). Os

sistemas

mereológicos

de

Lesniewski

e

Leonard/Goodman

são

considerados clássicos no que se trata do tema e reúnem justamente as propriedades/princípios enumerados na seção 2 (reflexividade, transitividade e antissimetria) além da existência, assimetria46 e soma, soma livre. A soma de todos os indivíduos denotará o universo. Alguns outros autores adicionam o zero à guisa de analogia com a classe vazia; outros tantos desconsideram os princípios da soma e soma livre para fins mereológicos por enxergarem aí a fonte de confusão ao se admitir como todos mero agregados, distintos ontologicamente de todos integrais. É variado o acervo de princípios/propriedades que cada autor atribui à relação partetodo, não sendo objetivo do presente trabalho a descrição pormenorizada de cada opção que foi tomada na hoje vasta bibliografia47 sobre o tema. Campo próprio de aplicação de tal versão da Mereologia são parcelas de matéria espaço-temporalmente localizadas e a respeito das quais não faz sentido perquirir sobre a mudança de suas partes e a identidade do todo em função de tal variação. Burkhardt e Smith apontam que também eventos e processos são adequados a este “approach” desde que o fator tempo não desempenhe papel de relevo na detecção da relação parte-todo. Descendo a exemplos, os autores indicam que a Batalha de Borodino é considerada parte da Campanha Russa de Napoleão e aqui temos uma típica relação parte-todo em que eventos 48 necessariamente diferença em relação ao primeiro princípio é que em lugar da mútua continência coloca-se em relevo a circunstância de todas as suas partes serem comuns. 46 Antissimetria assim se caracteriza: a µ b à ¬(a µ b). Se a é parte de b, então b não é parte de a. 47 Ambas as obras de Burkhardt e Smith compulsadas para a elaboração deste histórico indicam a larga bibliografia que trata diretamente sobre o tema Mereologia na Lógica e Metafísica Contemporânea. 48 Grosso modo eventos podem ser definidos como sucessões de estados de coisas com limites temporais. São assim por tudo distintos de objetos materiais que se caracterizam por serem parcelas de matéria limitada espacialmente.



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figuram como constantes da relação mereológica não fazendo sentido perguntar quando esse pertencimento/constituição se deu. Por outro lado, também é possível que a “coordenada” tempo desempenhe um papel importante na aferição e descrição da relação parte-todo. Para tanto, basta que pensemos em entes que preservam sua identidade ao longo do tempo mas que, por outro lado, tenham alteradas suas partes constituintes. Assim, seja no caso do navio de Teseu, da seleção brasileira ou de qualquer organismo multicelular de maior complexidade, é necessário que se estabeleça o modo de funcionamento de uma Mereologia Temporalizada (em inglês Tensed Mereology), indexando temporalmente as constantes da relação mereológica, tomando como perene (ou seja considerando como sempre ocorrente) princípios orientadores tais como os da existência e suplementaridade. Mais que isso, a indexação temporal parece abrir caminho para contraexemplos aos princípios da antissimetria e coextensão, tornando possível que se detectem sucessores distintos e disjuntos para um ente único em dado ponto do tempo, a contraintuitiva afirmação da ubiquidade de um objeto material decorrente da alteração de suas partes constituintes. Ainda a demandar maior desenvolvimento, a Mereologia Modal cuida da essencialidade ou acidentalidade da parte tomada na relação mereológica para investigar as consequências de sua modalização (estipulação de cenários de possibilidade ou necessidade) de sua ocorrência e as consequências para a permanência ou perecimento do todo. Contemporaneamente Chisholm defende um essencialismo mereológico ao sustentar que a identidade de um objeto é dependente das partes que o integram, de modo que qualquer alteração desse conjunto leva à alteração da essência desse objeto. A Mereologia ressurgiu como foco de investigações metafísicas e, como indicado nos parágrafos anteriores, comporta princípios, abordagens e soluções próprias conforme a utilização que dela se pretenda ou as circunstâncias relevantes de observação. Em síntese, todos esses aspectos serão distintos em função de se ter em foco objetos materiais, conceitos, cortes de espaço-tempo, estipulações ou abordagens plurimundanas. Parece muito difícil senão impossível tudo reduzir tudo a um conjunto mínimo de princípios que regulem essas múltiplas “Mereologias”, o que

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difere de reduzir a relações mereológicas aquilo que se observa no campo mais amplo da Metafísica49. Inwagen procurou tratar de um subconjunto possível de objetos sujeitos a tais relações mereológicas como sejam objetos materiais, entes extensos e dotados de coordenadas espaço temporais. Sua solução para as questões da mereologia e os pressupostos que o conduziram a ela serão descritos na próxima seção.

49

Em seu artigo sobre a Mereologia na Filosofia de Leibniz, Hans Burkhardt e Wolfgang Degen indicam que a obra coletiva “Parts and Moments” reúne uma quase exaustiva bibliografia de tudo o que se publicou acerca do tema desde sua retomada por Bolzano no final do séc. XIX.



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4. A resposta de Inwagen à questão especial da composição. Seus pressupostos. Em síntese, Peter van Inwagen indica que sua tese (“negação”) importa em que seres materiais (o que grosseiramente poderíamos chamar de entes extensos) possam ser considerados

“todos” existentes como unidades. Os objetos

macroscópicos com os quais nos deparamos no dia-a-dia seriam antes meros aglomerados, junções de constituintes menores, e a tais conjugações de partículas não se pode atribuir existência. Existentes seriam apenas os constituintes últimos de tudo o que se pode observar no mundo (como sejam partículas subatômicas dotadas de extensão) às quais são acrescidos, apenas, os organismos vivos. A tese de Inwagen sempre nos pareceu surpreendente. Longe está de ser gratuita. Ao contrário, assenta-se sobre uma lista numerosa de pressupostos coesos. A contraposição de uma objeção à conclusão do referido autor importa no seu exame, até mesmo para indicar em que aspecto ela parece trair as suas confessadas premissas (“ten philosophical constraints”). Vamos a elas: 1.

Inwagen adota uma teoria “clássica” ou “absoluta” da identidade, sem a qual admite que seu postulado central restaria eivado de grandes falhas. Não há uma explicação maior sobre o tema, mas seu objetivo flagrante passa por considerar errôneas proposições tais como x e y serem pessoas distintas apesar de possuírem um mesmo organismo.

2.

Seres materiais perduram no tempo e se alteram ao longo do mesmo. É recusada a pretensão de que sejam/possuam extensões temporais. Objetos materiais não são fatias tridimensionais de objetos também dotados de dimensão temporal. Eles não são expressões de uma tal dimensão temporal: o tetradimensionalismo é descartado para a construção da tese central.

3.

A Lógica padrão ou “clássica” é aquela utilizada para a construção da tese. Conquanto contraintuitiva, afirma Inwagen que sua tese só a infligiria



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em casos extremos, no que acredita haver compatibilizado sua pretensão com os fatos ordinários, experimentados quotidianamente. 4.

A teoria de contrapartes não é adotada para a construção da “Negação”, embora acredite Inwagen ser ela compatível com a tese e até propiciadora de ganhos para enfrentar algumas dificuldades identificadas no Capítulo 14 de “Material Beings” - hipóteses de interrupção/suspensão temporal do curso da vida; disjunção espacial de partes de um organismo vivo; critério de identificação de um organismo multicelular; impossibilidade teórica de afirmar a necessária continuidade temporal de simples (subpartículas que se adequem ao conceito do átomo de Demócrito); afirmação do conceito de vida como suficiente para assegurar a persistência temporal e a identidade transmundana dos todos apontados pela segunda parte de sua formulação.

5.

A matéria é aquilo última e absolutamente particular nos seres materiais: são elas as partículas elementares, átomos mereológicos ou ainda os simples metafísicos. Por tal, o estabelecimento da identidade de partículas constituintes leva a inarredável identidade dos objetos constituídos.

6.

Tendo em conta o que se estabeleceu no item 5, não seria possível que dois objetos fossem constituídos da mesma parcela de partículas ao mesmo tempo.

7.

Predicados mentais sempre possuem um sujeito, algo capaz de ser predicado. No nível da linguagem não há sempre esse compromisso de existência efetiva em relação ao sintagma nominal cogitado (nem toda nominalização corresponde a um objeto no mundo). Mas algo outro se dá com os predicados mentais. Sensações (p.ex.: sentir dor, sentir frio) e representações (p.ex.: pensar sobre a aula de amanhã, pensar sobre a Copa do Mundo) exigem que algo esteja a elas submetido ou que as opere: nos exemplos dados, é preciso que exista alguém que sinta frio, dor, ou pense sobre a aula de amanhã, sobre a Copa do Mundo.



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8.

Pessoas, sujeitos são objetos materiais, nunca virtualidades. Afasta-se assim a analogia do piloto no navio. São (somos) organismos vivos e por isso materiais. Eles continuam sendo os mesmos apesar da mudança de suas partículas constituintes. O essencialismo mereológico não procede.

9.

Existência nunca é apenas estipulação. Ela “precede” estipulações. Convenções são destinadas a regular condutas e padrões lingüísticos. Estipulações não possuem fatos como seus objetos, mas significados para termos. Estipulações mereológicas não são válidas para estabelecer existentes. Teorias que primam pela estipulação como possível fundadora de existência são inconciliáveis com o uso tradicional de estipulações como nomeadoras, etiquetas, sinais distintivos designadores de objetos materialmente existentes.

10.

Relações parte-todo são espaciais e causais, internas ao sistema. Afastadas as teorias do “continuador mais próximo” e “melhor candidato”, por serem incompatíveis com a premissa. Sem explicar muito as teorias rivais da premissa, Inwagen indica que elas tendem a estabelecer critérios outros do que a espacialidade e a causalidade para identificar um mesmo objeto em momentos futuros. Há uma “quebra” do internalismo proposto, ao serem estabelecidos critérios outros de identidade através do tempo. A formalização da resposta de Inwagen à questão especial da composição

sobre o que deve ocorrer aos constituintes para que eles formem efetivamente um todo, algo que seja dotado de existência real e não apenas convencional (vide premissa 9 supra) é a seguinte:

(∃y tal que os x’s compõem y) se e somente se as atividades dos x’s constituem uma vida ou existe apenas um dos x’s.



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Uma primeira análise da resposta de Inwagen nos indica que ela se assenta em duas categorias ontológicas distintas, como sejam os particulares x’s (tomadas como as menores partículas extensas de matéria) e eventos (o que se pode entender de atividades dos x’s e vida. Isso dá à definição uma feição bifronte como antecipado na introdução deste texto: de um lado há um atomismo radical consistente em considerar como efetivamente existente apenas as partículas elementares de matéria (subpartículas atômicas que possam desempenhar o papel dos átomos de Demócrito – dotadas de extensão e massa); de outro há um apelo a uma ontologia de eventos que se coordenam para a formação de um evento “mais abrangente”, ou “totalizador”. A compreensão depende de definições fornecidas pela Física (caso das subpartículas extensas) e da Biologia (evento/atividade vida).



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5. Críticas As críticas desenvolvidas nesse trabalho partem de um ponto-de-vista eminentemente atomista. Nesse sentido, não se ataca a segunda parte da fórmula proposta pelo autor (onde afirma a existência de compostos constituídos de apenas uma parte, uma partícula indivisível), mas a primeira. As objeções são bem simplórias, mas a nosso ver, difíceis de serem evitadas e suficientes para a recusa à solução proposta por Inwagen. São genéricas e procuram explorar a falha explanativa da resposta proposta não tomando para isso nenhum caminho específico. Não se pretende assim indicar que a resposta falhe como por não se adequar às formulações modais, redutivas, de “truth makers” ou próprias do “grounding” (o livro foi escrito antes do “ground” despontar como tema de grande interesse da Metafísica Contemporânea). Talvez não sejam originais (muitos autores empreenderam objeções à tese principal de “Material Beings50), mas ainda assim merecem registro.

5.1. Resposta circular, não explanativa. O primeiro problema identificado na segunda parte da resposta de Inwagen (“∃y tal que os x’s compõem y sse as atividades dos x’s constituem uma vida...”) é problemática porque pretende uma explanação do fenômeno mereológico apenas lançando mão de termos sinônimos, como seja a constituição. Em verdade, indica como fundamento da relação de composição entre particulares a ocorrência dessa mesma relação no que diz respeito a suas “atividades” (eventos) e que resultem51 no evento “vida”. Ora, a relação parte-todo aparece nas duas partes da resposta sem que nada se informe sobre sua natureza (ainda que nesse ponto seja possível dar razão à 50

Inwagen escreveu uma réplica a três de seus críticos. Trata-se do artigo “Reply to Reviewers”, in “Philosophy and Phenomenological Research”, Vol. 53, No. 3 (Sep., 1993), pp. 709-719. Disponível em http://www.jstor.org/stable/2108096 , acessada em 23/out/2015. 51 A causalidade é admitida por Inwagen como traço da relação parte-todo, sendo no entanto omitida na sua resposta. Sua inserção aqui se faz em benefício de um melhor entendimento da formulação.



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Inwagen e reconhecer o caráter primitivo da relação parte-todo, e talvez só Deus pudesse conceber uma fórmula que a definisse sem lançar mão de termos também mereológicos,

como

compor,

constituir,

formar,

etc.),

sobre

a

possível

fundamentalidade dos constituintes ou da precedência metafísica do composto, pelo que parece circular e não informativa. A leitura do restante da obra indica que, além do aspecto final das atividades dos x’s (eventos em que se envolvem as partículas formadoras das células de um organismo uni ou pluricelular) elas ocupam esse lugar de fundamento da existência do composto, são metafisicamente mais fundamentais que o organismo vivo que compõem.

5.2. Arbitrariedade. Heteronomia injustificável. Causalidade final introduzida e arbitrariamente interrompida. Possibilidade de ubiquidade dos compostos. Outro ponto de crítica à resposta de Inwagen é atinente à sua dependência de noções próprias da Biologia. A fórmula é tributária de um conceito que não é exposto com clareza (o que, admite-se é uma mera irregularidade formal), mas que também pressupõe mesmo a unidade. A circularidade uma vez mais se insinua na resposta de Inwagen a mostrar que ela é válida apenas quando se mostra o mais nihilista possível, apenas quando se mostra comprometida com um atomismo radical (2a parte da fórmula). Tivesse o autor incorporado extensivamente qualquer das diversas conceituações de vida à sua resposta, a circularidade ficaria ainda mais evidente. O conceito biológico que se serve das funções fisiológicas para apontar a ocorrência da vida sempre pressupõe que elas se deem em um organismo (uma célula, composta de moléculas, átomos, subpartículas) uni ou pluricelular. Ainda em Biologia, uma definição dita entrópica indica que em nível superior os seres vivos são sistemas termodinâmicos dotados estrutura molecular organizada: sua unidade é pressuposta quando são considerados “sistemas”. Mas não é esse o ponto principal desta seção. Evidencia-se a arbitrariedade da opção de Inwagen em privilegiar a vida como conjunto de eventos que indica estarem os diversos componentes reunidos para formar

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uma unidade, resultado de relações de caráter mereológico. Por que a predileção? Parece-nos que qualquer outro processo químico que envolvesse os diversos x’s componentes seria capaz de produzir a mesma unidade, não havendo justificativa para que apenas no caso do evento “constituído pela reunião das atividades dos x’s” (evento composto) seja uma vida poder encarar-se o conjunto dos x’s como um todo. É possível imaginar uma série de outros eventos até mais homogêneos do que uma vida ocorrendo como resultado das “atividades” dos x’s (digamos a oxidação de uma porção de minério de ferro pela ação da água ao longo do tempo) e que poderiam muito bem se candidatar a ostentar o status de todo que Inwagen reserva aos organismos vivos. E, não havendo justificativa plausível para a restrição, não há como sustentar a primeira parte da resposta. As subpartículas formadoras de qualquer átomo (seja de hidrogênio ou outro elemento superpesado, desses considerados instáveis por terem curta duração, comumente resultado de experimentos em laboratório) também podem ter suas atividades reunidas em outro evento composto, como seja a formação do átomo em questão. Lembre-se que a duração da composição não é requisito para que ele seja assim considerada, como um todo. Mais uma vez, por que não considerar também esses átomos como todos, compostos mereológicos dotados de unidade? Um cometa, um planeta em sua órbita também efetuam trocas de elementos com seu ambiente, mantendo reunidos sob uma mesma trajetória espaço-temporal uma infinidade de x’s “cujas atividades”, por que não, também poderiam ser encaradas como um todo. A escolha de Inwagen além de arbitrária, introduz uma causalidade final igualmente injustificada quanto a seus limites. De fato, emerge arbitrário o “corte” no horizonte de eventos consistente na vida do organismo em questão, tido como um todo. Ressalvada a hipótese de organismos mantidos isoladamente (por exemplo em laboratórios), toda a vida observável na Terra está integrada em biomas interconectados, cuja manutenção, funcionamento, unidade, são dependentes dos membros que o integram. Mesmo que se mantenha o cunho biológico privilegiado pela resposta de Inwagen para a detecção de todos, ainda assim enfrenta-se outro

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problema de arbitrariedade, essa concernente em detectar o ponto de corte dessa unidade, dada sua inegável integração com eventos ainda abrangentes, resultados da reunião de uma infinidade de vidas coordenadas em um sistema. O alargamento da resposta para admitir outros tipos de todos (químicos, físicos,

humanos,

etc.)

sofreria

com

o

mesmo

problema.

A

crescente

junção/ampliação das unidades só teria limite no conjunto U. A hipótese monista é até simpática mas apresenta problemas outros, porque se levada às suas últimas consequências impede a comunicação eficiente. É difícil, senão impossível lidar com o ser “parmenídico”. Ele tornaria arbitrária e sem sentido qualquer predicação acerca de suas partes. O problema da eficiência da linguagem obviamente também atinge atomistas radicais, contrários a qualquer concessão que aumente sua expressividade. Sintagmas nominais não correspondem sempre a objetos efetivamente existentes no mundo. Podem se tratar de meras nominalizações referidas ao modo como objetos são. No que nos importa (compostos mereológicos), podem não passar de uma certa quantidade de átomos dispostos de determinado modo. No entanto, se no mundo restarem apenas “átomos”, como será possível o discurso 52 ? Algum revisionismo da posição nihilista deve ser admitido. Finalmente, parece que a resposta de Inwagen abre possibilidade para absurdo como a da ubiquidade dos organismos. Se para que se observe a unidade/todo basta que as atividades dos x’s componham o evento vida, como devemos encarar a separação de uma célula viva de um organismo, durante o tempo em que viva se mantenha? De um tecido? Será que alguém que, por exemplo, faz uma doação de sangue, dá origem a um outro indivíduo? Ou seria o caso de se pensar que aquele mesmo organismo está agora dividido e ao mesmo tempo presente em duas coordenadas espaciais distintas e não contíguas?

52

Como exemplificado por Karen Benett em artigo referido na Bibliografia, como afirmar que “há uma torradeira na cozinha”?, sem alguma concessão por parte dos nihilistas?



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O autor escreveu artigo respondendo a críticas tais53. Quase sempre Inwagen entende que sua resposta é a única possível dadas as dez premissas (“philosophical constraints”), expostas na seção 4 supra. Não nos parece assim. Ao contrário, quaisquer das objeções passa pelas premissas, que se mostram imaginadas “a posteriori”, como forma de acomodar a resposta formulada. No que diz respeito à hipótese de separação de células/tecidos vivos de organismos, Inwagen apenas indica que os x’s envolvidos na cisão estariam sujeitos a cadeias distintas de eventos causais, não podendo ser considerados como em unidade com os organismos dos quais se separaram. Além de não indicar se esse conjunto de x’s poderia ser considerado uma outra vida (no caso de uma bolsa de sangue que é doado, as trocas de moléculas entre as células se mantêm naquele ambiente determinado), parece errôneo indicar que as cadeias de eventos ligados pela causalidade sejam suficientes para indicar sua separação em relação ao organismo que primitivamente integraram. A resposta proposta não é capaz de diferenciar a vaca do capim que ela pasta... É que nem mesmo em um mesmo organismo é possível afirmar que as cadeias de eventos a que estão sujeitos os diversos x’s constituintes/componentes sejam uma só. É evidente que nem tudo o que acontece com uma parte dos x’s siga um encadeamento causal uniforme, observável, por exemplo, para todo um corpo. A exceção feita ao nihilismo abriu o ensejo a uma série de críticas que desnudam a arbitrariedade da opção. A opção pelo semanticismo 54 (ainda que reconhecidamente incompatível com a “philosophical constraint” de número 9 55 ) resulta, a nosso ver, em uma resposta mais harmoniosa.

53

“Reply to Reviewers”, Peter van Inwagen, in “Philosophy and Phenomenological Research”, Vol. 53, N. 3 (Sep./1993), pp. 709-719. Disponível em http://www.jstor.org/stable/2108096 , acessada em 23/out/2015. 54 Tomamos a noção de semanticismo aplicada à Mereologia como aquela que reputa não haver na realidade nenhum evento distintivo capaz de indicar a formação de um todo, sendo as unidades mereológicas o resultado de estipulações da linguagem. 55 Vide seção 4, págs. 26/27 supra.



35



6.

Conclusão. Resposta radicalmente nihilista. Embora objeto de preocupação da Filosofia desde seus primórdios, a

investigação acerca da natureza da relação parte-todo vem integrando-a a um conjunto incomodamente extenso de noções primitivas, onde a atividade explanativa pouco indica além da semântica dos termos utilizados para veiculá-la (compor, constituir, fazer parte, integrar, etc.). Mais que isso, no que diz respeito à resposta da questão especial da Mereologia (o que deve ocorrer aos x’s para que eles componham um todo, algo) a resposta é simplesmente nada, porque a junção ou configuração dos diversos x’s (que o “estado da arte” da Física parece indicar serem subpartículas de mínima extensão) nada altera em sua natureza. A brecha conscientemente aberta por Inwagen na primeira parte de sua resposta traz mais problemas que vantagens explanativas. Resta flexibilizar o nihilismo da proposta, é preciso interpretar a linguagem dela retirando qualquer compromisso de existência em relação aos compostos, que devem ser entendidos como simples dispostos de modo determinado. Se isso realmente se choca com a premissa 9 dos “philosophical constraints” postulados por Inwagen, por outro lado garante que as proposições insertas em discursos (filosóficos ou não) permaneçam dotados de sentido.



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