Crítica à solução de Peter van Inwagen à questão especial da composição (versão reduzida)

May 24, 2017 | Autor: Gustavo Lunz | Categoria: Metaphysics, Mereology, Peter van Inwagen
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Crítica à solução de Peter van Inwagen à questão especial da composição Gustavo Adolfo Machado Cunha Lunz 1. Introdução. Dedica-se a Mereologia a investigar o que é a relação parte-todo e as condições de seu aparecimento, mais especificamente, o que é um todo e quais as condições em que devem seus constituintes se encontrar para que possam ser considerados como uma unidade (esta sua questão especial). É um campo da Metafísica que mereceu a atenção dos filósofos desde Antiguidade. Muito embora diversos de seus aspectos tenham sido competentemente abordados ao longo da História da Filosofia, fato é que ainda hoje não se tem claro o que ela envolve propriamente, sobretudo em entes materiais. É com esse foco que filósofos como Peter Inwagen trabalham. Em obra específica sobre o tema1, mais especificamente a constituição de seres materiais, o filósofo norteamericano construiu resposta surpreendente para as suas questões principais. Ainda assim sua solução enseja críticas e comporta “melhoramentos” capazes de alterá-la sobremaneira. É objetivo do presente trabalho indicar os pontos em que tal resposta parece falha e oferecer alternativas à aparente dureza daquilo que o próprio autor denominou de “negação”, atomismo radical que só admitiria como exceção a autonomia existencial dos organismos vivos. 2. Mereologia. Princípios. Em que consiste propriamente “fazer parte”, “integrar” no que toca os objetos materiais? Autores como Inwagen assinalam que, mais do que estar em determinada situação espaço-temporal, uma tal relação envolve de alguma forma causação. Uma definição do que seja parte tende a emergir como óbvia e até circular se tomada como correlata à relação de continência que se estabelece entre o todo (a princípio entendido 1

“Material Beings”, Peter Van Inwagen, 1990, Cornell University Press, New York, USA.



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como a livre fusão de quaisquer entes/objetos2) e suas partes. Se ela se insinua primitiva em relação a outras tantas funções identificáveis dentre os objetos materiais, por outro lado é também possível indicar que se submeta a certos princípios e que ostente traços bem característicos. De modo muito geral é possível afirmar que a relação “parte-todo”, que o “fazer parte de”, “possuir como parte”, pressupõe maior fundamentabilidade das partes em relação ao composto e traduz uma ordenação dessas mesmas partes integrantes no composto34. Mais que isso, tem-se que tal relação é reflexiva, transitiva e antissimétrica. 2.1. Reflexividade. Pxx Não há muito o que dizer da reflexividade no que toca às relações parte-todo: é possível afirmar peremptoriamente que todo x é parte de si próprio, no que se enuncia e esclarece totalmente o que veicula o princípio. No campo das objeções, há visadas que refutam haver todos/inteiros com apenas uma parte, casos em que não se poderia identificar a relação objeto deste estudo5 . Nesses termos, uma unidade dita fundamental não abrigaria qualquer relação de índole mereológica, o que negaria o princípio. A reflexividade é traço que também serve para diferenciar a relação mereológica do grounding, de caráter explanatório, hiperintensional e apta a captar apontar a prioridade metafísica entre seus relata. Os demais princípios vigentes para a relação de grounding são todos semelhantes àqueles da relação mereológica, como seja a antissimetria e a

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Entender o que propriamente pode ser considerado um todo permanece um desafio. Como dito, por princípio é admitida a livre fusão entre quaisquer objetos de forma que constituam um todo. Ao longo da História da Filosofia, inúmeros autores se dedicaram à diferenciação entre todos e meros agregados. Contemporaneamente, David Lewis apontou que tais restrições pecam pela vagueza de critérios. O tema é competentemente explorado em artigo de Rhamon de Oliveira Nunes, publicado na Revista do Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ, v. 5, n. 1, 2014. 3 Inwagen considera haver certa causação entre as partes e o todo; mais recentemente diversos autores vem indicando que a relação mais adequada é a de “grounding”. 4 Ao longo do texto, serão indicados casos de autores que consideram, ao contrário, ser o composto detentor de precedência ontológica em relação aos seus constituintes. 5 O que já seria uma primeira objeção à definição bifronte de Inwagen que admite partículas indivisíveis como representativas da relação.

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transitividade. Essa distinção não impede que se trace grounding entre as partes e o todo6 que elas constituem (onde o enfoque metafísico pode reservar ao todo ou às partes a posição de fundamento), mas não se deve ignorá-la sob pena de assimilar ilegitimamente relações que são em si distintas. 2.2. Transitividade. (Pxy ∧ Pyx) → Pxz Prosseguindo, tem-se que a relação mereológica é transitiva: se um dado x é parte integrante de um y, e esse por sua vez integra z, então x é parte de z. Esse traço/princípio recebe uma direta objeção que merece exame detido. Descendo a exemplos, pensemos na perna de um ser humano. Esse membro integra o corpo desse homem, é possível afirmar sem titubear que o membro do corpo de um homem é uma sua parte integrante (x é parte de y). Estamos aqui diante de uma primeira hipótese de relação parte-todo. Esse mesmo homem pode integrar uma família, e novamente é possível identificar uma típica relação parte-todo (y integra z). Mas será que a perna é parte da família do homem a quem pertence? Não cai por terra a transitividade? O problema se dissolve se atentarmos para a natureza de cada uma das relações de composição aventadas no exemplo. Em verdade, elas diferem entre si. A primeira delas trata de composição material, na medida em que um corpo humano dispõe de membros (cada um desses membros também pode ser encarado como um todo composto de tecidos, de células, órgãos intracelulares, moléculas, átomos, partículas subatômicas...). No entanto, parece inegável que a relação de composição havido na segunda parte do exemplo possui outra natureza, que marca e particulariza essa outra relação de composição. Se família, 6

Neste particular aponta-se que há reservas em se estabelecer relação de grounding entre particulares, substâncias. Há autores que preferem reservar a condição de relata apenas a proposições factuais e ainda excluem aquelas que se limitam a atestar a existência de entes, como é o caso de Paul Audi. Pessoalmente, acreditamos que essa redução preserve o caráter hiperintensional do grounding e evita alguns problemas, sendo certo sua utilidade e conceitualidade são postos em dúvida por parcela respeitável daqueles dos filósofos dedicados à Metafísica. No que diz respeito à defesa da noção de grounding remetemos o leitor à leitura do Capítulo 3 escrito por Paul Audi na obra “Metaphysical grounding: understanding the structure of reality”, editado por Fabrice Correia, Benjamin Schnieder. Cambridge/New York/Melbourne/Madrid/Cape Town/Singapore/São Paulo/Delhi/Mexico City, 2012. Para uma competente crítica ao conceito, o trabalho de Jessica M. Wilson, “No work for a Theory of Grounding” é de valiosa leitura.



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trupe, equipe são compostas por seus “membros” (aqui um termo equívoco), isso não se dá do mesmo modo que objetos materiais7 ou coloquialmente nominados de concretos, e por isso não se pode verificar a transitividade mencionada. 2.3. Antissimetria. (Pxy ∧ Pyx) → x=y Se o princípio da transitividade se abre a objeções bem fundadas, isso se amplia sobremaneira no que toca à antissimetria. Nesse sentido, o clássico exemplo da estátua e do material de que é composta. Tendo em mente esses dois elementos é sempre possível afirmar que elas são partes uma da outra mas não iguais (autores que sustentam a hipótese são Thomson, Haslanger e Koslicki), o que contrariaria o princípio. Outros numerosos contraexemplos8 são imaginativamente apontados pela literatura especializada no fictício Aleph concebido por Borges9, sustentado por Sanford; uma parede trazida de volta no tempo e miniaturizada de forma a ser utilizada para a fabricação de um e apenas um dos tijolos que posteriormente a constituirão; a Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, que são a um só tempo parte e todo, iguais e distintos entre si (mistério divino aceito professado pela cristandade); qualquer sentença/proposição S ventilando que o universo existe, pelo que o universo seria parte da sentença mas não idêntico à mesma; ainda no campo da linguagem, o par de proposições P e Q, sendo P a proposição de que Q é verdadeira e Q a afirmação de que P é contingente. As referidas objeções não são impassíveis de resposta. Maiores considerações não merecem os exemplos colhidos na Literatura, porquanto a ficção é terreno próprio para

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É dessa classe de objetos de que trata a solução de Inwagen. Fonte: Enciclopédia de Filosofia de Stanford. Verbete “Mereology” encontrado na web, endereço: http://plato.stanford.edu/entries/mereology/#ComPri, página acessada em 02/08/2014. 9 “(...); vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph, e no Aleph novamente a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.” O Aleph, Jorge Luís Borges, tradução de Flavio José Cardozo, São Paulo, Globo, 2001, 3a edição, página 171. 8

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qualquer possibilidade de criação humana, mesmo hipóteses que encerrem contradições evidentes ou sem qualquer pretensão descritiva do real. No entanto, emergem relevantes os contraexemplos colhidos na Teologia e na Filosofia da Linguagem, embora a pretensão descritiva da primeira não possa ser considerada sem compromisso de fé, ou seja, a alguém que não partilhe as crenças religiosas envolvidas o conteúdo descritivo emerge vazio, fantasioso. Mais que isso, tem-se que as objeções estão limitadas ao campo específico de sua construção. Fora da Linguagem10 e do paradoxo religioso (“mistério da fé”), a antissimetria possui plena vigência como princípio básico da Mereologia. Não há maiores dificuldades em admiti-la como princípio quando a solução do problema e a crítica que se pretende empreender têm por objeto entes materiais. Por fim, no que toca à objeção clássica que consiste na estátua e seu material constituinte, não há mesmo como apontar uma distinção absoluta entre os dois entes que se pretende distintos mas que materialmente coincidem. Todas as propriedades detidas por ambos coincidem, a destruição/transformação de um sempre importará na mesma alteração em relação a esse “outro”. A distinção da estátua em relação ao material que a compõe depende de uma autonomia que se atribua à forma em relação à matéria (e vice-versa) como duplo aspecto identificável nas substâncias (hilemorfismo). Desde que não se adote um tal modelo de inspiração aristotélica, tem-se esvaziado o contraexemplo. 3. A resposta de Inwagen à questão especial da composição. Seus pressupostos. Em síntese, Peter van Inwagen indica que sua tese (“negação”) importa em que seres materiais (o que grosseiramente poderíamos chamar de entes extensos) possam ser considerados “todos” existentes como unidades. Os objetos macroscópicos com os quais nos deparamos no dia-a-dia seriam antes meros aglomerados, junções de constituintes 10

Sendo certo que aí também parece evidente que a relação de referência linguística não poderia ser assimilada à relação de continência que estabelece entre os todos e seus constituintes.



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menores, e a tais conjugações de partículas não se pode atribuir existência. Existentes seriam apenas os constituintes últimos de tudo o que se pode observar no mundo (como sejam partículas subatômicas dotadas de extensão) às quais são acrescidos, apenas, os organismos vivos. A tese de Inwagen sempre nos pareceu surpreendente. Longe está de ser gratuita. Ao contrário, assenta-se sobre uma lista numerosa de pressupostos coesos. A contraposição de uma objeção à conclusão do referido autor importa no seu exame, até mesmo para indicar em que aspecto ela parece trair as suas confessadas premissas (“ten philosophical constraints”). Vamos a elas: 1.

Inwagen adota uma teoria “clássica” ou “absoluta” da identidade, sem a qual admite que seu postulado central restaria eivado de grandes falhas. Não há uma explicação maior sobre o tema, mas seu objetivo flagrante passa por considerar errôneas proposições tais como x e y serem pessoas distintas apesar de possuírem um mesmo organismo.

2.

Seres materiais perduram no tempo e se alteram ao longo do mesmo. É recusada a pretensão de que sejam/possuam extensões temporais. Objetos materiais não são fatias tridimensionais de objetos também dotados de dimensão temporal. Eles não são expressões de uma tal dimensão temporal: o tetradimensionalismo é descartado para a construção da tese central.

3.

A Lógica padrão ou “clássica” é aquela utilizada para a construção da tese. Conquanto contraintuitiva, afirma Inwagen que sua tese só a infligiria em casos extremos, no que acredita haver compatibilizado sua pretensão com os fatos ordinários, experimentados quotidianamente.

4.

A teoria de contrapartes não é adotada para a construção da “Negação”, embora acredite Inwagen ser ela compatível com a tese e até propiciadora de ganhos para

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enfrentar algumas dificuldades identificadas no Capítulo 14 de “Material Beings” hipóteses de interrupção/suspensão temporal do curso da vida; disjunção espacial de partes de um organismo vivo; critério de identificação de um

organismo

multicelular; impossibilidade teórica de afirmar a necessária continuidade temporal de simples (subpartículas que se adequem ao conceito do átomo de Demócrito); afirmação do conceito de vida como suficiente para assegurar a persistência temporal e a identidade transmundana dos todos apontados pela segunda parte de sua formulação. 5.

A matéria é aquilo última e absolutamente particular nos seres materiais: são elas as partículas elementares, átomos mereológicos ou ainda os simples metafísicos. Por tal, o estabelecimento da identidade de partículas constituintes leva a inarredável identidade dos objetos constituídos.

6.

Tendo em conta o que se estabeleceu no item 5, não seria possível que dois objetos fossem constituídos da mesma parcela de partículas ao mesmo tempo.

7.

Predicados mentais sempre possuem um sujeito, algo capaz de ser predicado. No nível da linguagem não há sempre esse compromisso de existência efetiva em relação ao sintagma nominal cogitado (nem toda nominalização corresponde a um objeto no mundo). Mas algo outro se dá com os predicados mentais. Sensações (p.ex.: sentir dor, sentir frio) e representações (p.ex.: pensar sobre a aula de amanhã, pensar sobre a Copa do Mundo) exigem que algo esteja a elas submetido ou que as opere: nos exemplos dados, é preciso que exista alguém que sinta frio, dor, ou pense sobre a aula de amanhã, sobre a Copa do Mundo.

8.

Pessoas, sujeitos são objetos materiais, nunca virtualidades. Afasta-se assim a analogia do piloto no navio. São (somos) organismos vivos e por isso materiais. Eles



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continuam sendo os mesmos apesar da mudança de suas partículas constituintes. O essencialismo mereológico não procede. 9.

Existência nunca é apenas estipulação. Ela “precede” estipulações. Convenções são destinadas a regular condutas e padrões lingüísticos. Estipulações não possuem fatos como seus objetos, mas significados para termos. Estipulações mereológicas não são válidas para estabelecer existentes. Teorias que primam pela estipulação como possível fundadora de existência são inconciliáveis com o uso tradicional de estipulações como nomeadoras, etiquetas, sinais distintivos designadores de objetos materialmente existentes.

10. Relações parte-todo são espaciais e causais, internas ao sistema. Afastadas as teorias do “continuador mais próximo” e “melhor candidato”, por serem incompatíveis com a premissa. Sem explicar muito as teorias rivais da premissa, Inwagen indica que elas tendem a estabelecer critérios outros do que a espacialidade e a causalidade para identificar um mesmo objeto em momentos futuros. Há uma “quebra” do internalismo proposto, ao serem estabelecidos critérios outros de identidade através do tempo. A formalização da resposta de Inwagen à questão especial da composição sobre o que deve ocorrer aos constituintes para que eles formem efetivamente um todo, algo que seja dotado de existência real e não apenas convencional (vide premissa 9 supra) é a seguinte: (∃y tal que os x’s compõem y) se e somente se as atividades dos x’s constituem uma vida ou existe apenas um dos x’s.

Uma primeira análise da resposta de Inwagen nos indica que ela se assenta em duas categorias ontológicas distintas, como sejam os particulares x’s (tomadas como as menores

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partículas extensas de matéria) e eventos (o que se pode entender de atividades dos x’s e vida. Isso dá à definição uma feição bifronte como antecipado na introdução deste texto: de um lado há um atomismo radical consistente em considerar como efetivamente existente apenas as partículas elementares de matéria (subpartículas atômicas que possam desempenhar o papel dos átomos de Demócrito – dotadas de extensão e massa); de outro há um apelo a uma ontologia de eventos que se coordenam para a formação de um evento “mais abrangente”, ou “totalizador”. A compreensão depende de definições fornecidas pela Física (caso das subpartículas extensas) e da Biologia (evento/atividade vida). 4. Críticas As críticas desenvolvidas nesse trabalho partem de um ponto-de-vista eminentemente atomista. Nesse sentido, não se ataca a segunda parte da fórmula proposta pelo autor (onde afirma a existência de compostos constituídos de apenas uma parte, uma partícula indivisível), mas a primeira. As objeções são bem simplórias, mas a nosso ver, difíceis de serem evitadas e suficientes para a recusa à solução proposta por Inwagen. São genéricas e procuram explorar a falha explanativa da resposta proposta não tomando para isso nenhum caminho específico. Não se pretende assim indicar que a resposta falhe como por não se adequar às formulações modais, redutivas, de “truth makers” ou próprias do “grounding” (o livro foi escrito antes do “ground” despontar como tema

de grande interesse da Metafísica

Contemporânea). Talvez não sejam originais (muitos autores empreenderam objeções à tese principal de “Material Beings11), mas ainda assim merecem registro. 4.1. Resposta circular, não explanativa. O primeiro problema identificado na segunda parte da resposta de Inwagen (“∃y tal que os x’s compõem y sse as atividades dos x’s constituem uma vida...”) é problemática 11

Inwagen escreveu uma réplica a três de seus críticos. Trata-se do artigo “Reply to Reviewers”, in “Philosophy and Phenomenological Research”, Vol. 53, No. 3 (Sep., 1993), pp. 709-719. Disponível em http://www.jstor.org/stable/2108096 , acessada em 23/out/2015.



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porque pretende uma explanação do fenômeno mereológico apenas lançando mão de termos sinônimos, como seja a constituição. Em verdade, indica como fundamento da relação de composição entre particulares a ocorrência dessa mesma relação no que diz respeito a suas “atividades” (eventos) e que resultem12 no evento “vida”. Ora, a relação parte-todo aparece nas duas partes da resposta sem que nada se informe sobre sua natureza (ainda que nesse ponto seja possível dar razão à Inwagen e reconhecer o caráter primitivo da relação parte-todo, e talvez só Deus pudesse conceber uma fórmula que a definisse sem lançar mão de termos também mereológicos, como compor, constituir, formar, etc.), sobre a possível fundamentalidade dos constituintes ou da precedência metafísica do composto, pelo que parece circular e não informativa. A leitura do restante da obra indica que, além do aspecto final das atividades dos x’s (eventos em que se envolvem as partículas formadoras das células de um organismo uni ou pluricelular) elas ocupam esse lugar de fundamento da existência do composto, são metafisicamente mais fundamentais que o organismo vivo que compõem. 4.2. Arbitrariedade. Heteronomia injustificável. Causalidade final introduzida e arbitrariamente interrompida. Possibilidade de ubiquidade dos compostos. Outro ponto de crítica à resposta de Inwagen é atinente à sua dependência de noções próprias da Biologia. A fórmula é tributária de um conceito que não é exposto com clareza (o que, admite-se é uma mera irregularidade formal), mas que também pressupõe mesmo a unidade. A circularidade uma vez mais se insinua na resposta de Inwagen a mostrar que ela é válida apenas quando se mostra o mais nihilista possível, apenas quando se mostra comprometida com um atomismo radical (2a parte da fórmula). Tivesse o autor incorporado extensivamente qualquer das diversas conceituações de vida à sua resposta, a circularidade ficaria ainda mais evidente. O conceito biológico que se 12

A causalidade é admitida por Inwagen como traço da relação parte-todo, sendo no entanto omitida na sua resposta. Sua inserção aqui se faz em benefício de um melhor entendimento da formulação.

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serve das funções fisiológicas para apontar a ocorrência da vida sempre pressupõe que elas se deem em um organismo (uma célula, composta de moléculas, átomos, subpartículas) uni ou pluricelular. Ainda em Biologia, uma definição dita entrópica indica que em nível superior os seres vivos são sistemas termodinâmicos dotados estrutura molecular organizada: sua unidade é pressuposta quando são considerados “sistemas”. Mas não é esse o ponto principal desta seção. Evidencia-se a arbitrariedade da opção de Inwagen em privilegiar a vida como conjunto de eventos que indica estarem os diversos componentes reunidos para formar uma unidade, resultado de relações de caráter mereológico. Por que a predileção? Parece-nos que qualquer outro processo químico que envolvesse os diversos x’s componentes seria capaz de produzir a mesma unidade, não havendo justificativa para que apenas no caso do evento “constituído pela reunião das atividades dos x’s” (evento composto) seja uma vida poder encarar-se o conjunto dos x’s como um todo. É possível imaginar uma série de outros eventos até mais homogêneos do que uma vida ocorrendo como resultado das “atividades” dos x’s (digamos a oxidação de uma porção de minério de ferro pela ação da água ao longo do tempo) e que poderiam muito bem se candidatar a ostentar o status de todo que Inwagen reserva aos organismos vivos. E, não havendo justificativa plausível para a restrição, não há como sustentar a primeira parte da resposta. As subpartículas formadoras de qualquer átomo (seja de hidrogênio ou outro elemento superpesado, desses considerados instáveis por terem curta duração, comumente resultado de experimentos em laboratório) também podem ter suas atividades reunidas em outro evento composto, como seja a formação do átomo em questão. Lembre-se que a duração da composição não é requisito para que ele seja assim considerada, como um todo. Mais uma vez, por que não considerar também esses átomos como todos, compostos mereológicos dotados de unidade? Um cometa, um planeta em sua órbita também efetuam



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trocas de elementos com seu ambiente, mantendo reunidos sob uma mesma trajetória espaço-temporal uma infinidade de x’s “cujas atividades”, por que não, também poderiam ser encaradas como um todo. A escolha de Inwagen além de arbitrária, introduz uma causalidade final igualmente injustificada quanto a seus limites. De fato, emerge arbitrário o “corte” no horizonte de eventos consistente na vida do organismo em questão, tido como um todo. Ressalvada a hipótese de organismos mantidos isoladamente (por exemplo em laboratórios), toda a vida observável na Terra está integrada em biomas interconectados, cuja manutenção, funcionamento, unidade, são dependentes dos membros que o integram. Mesmo que se mantenha o cunho biológico privilegiado pela resposta de Inwagen para a detecção de todos, ainda assim enfrenta-se outro problema de arbitrariedade, essa concernente em detectar o ponto de corte dessa unidade, dada sua inegável integração com eventos ainda abrangentes, resultados da reunião de uma infinidade de vidas coordenadas em um sistema. O alargamento da resposta para admitir outros tipos de todos (químicos, físicos, humanos, etc.) sofreria com o mesmo problema. A crescente junção/ampliação das unidades só teria limite no conjunto U. A hipótese monista é até simpática mas apresenta problemas outros, porque se levada às suas últimas consequências impede a comunicação eficiente. É difícil, senão impossível lidar com o ser “parmenídico”. Ele tornaria arbitrária e sem sentido qualquer predicação acerca de suas partes. O problema da eficiência da linguagem obviamente também atinge atomistas radicais, contrários a qualquer concessão que aumente sua expressividade. Sintagmas nominais não correspondem sempre a objetos efetivamente existentes no mundo. Podem se tratar de meras nominalizações referidas ao modo como objetos são. No que nos importa (compostos mereológicos), podem não passar de uma certa quantidade de átomos dispostos

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de determinado modo. No entanto, se no mundo restarem apenas “átomos”, como será possível o discurso13? Algum revisionismo da posição nihilista deve ser admitido. Finalmente, parece que a resposta de Inwagen abre possibilidade para absurdo como a da ubiquidade dos organismos. Se para que se observe a unidade/todo basta que as atividades dos x’s componham o evento vida, como devemos encarar a separação de uma célula viva de um organismo, durante o tempo em que viva se mantenha? De um tecido? Será que alguém que, por exemplo, faz uma doação de sangue, dá origem a um outro indivíduo? Ou seria o caso de se pensar que aquele mesmo organismo está agora dividido e ao mesmo tempo presente em duas coordenadas espaciais distintas e não contíguas? O autor escreveu artigo respondendo a críticas tais14 . Quase sempre Inwagen entende que sua resposta é a única possível dadas as dez premissas (“philosophical constraints”), expostas na seção 3 supra. Não nos parece assim. Ao contrário, quaisquer das objeções passa pelas premissas, que se mostram imaginadas “a posteriori”, como forma de acomodar a resposta formulada. No que diz respeito à hipótese de separação de células/tecidos vivos de organismos, Inwagen apenas indica que os x’s envolvidos na cisão estariam sujeitos a cadeias distintas de eventos causais, não podendo ser considerados como em unidade com os organismos dos quais se separaram. Além de não indicar se esse conjunto de x’s poderia ser considerado uma outra vida (no caso de uma bolsa de sangue que é doado, as trocas de moléculas entre as células se mantêm naquele ambiente determinado), parece errôneo indicar que as cadeias de eventos ligados pela causalidade sejam suficientes para indicar sua separação em relação ao organismo que primitivamente integraram. A resposta proposta não é capaz de diferenciar a vaca do capim que ela pasta... 13

Como exemplificado por Karen Benett em artigo referido na Bibliografia, como afirmar que “há uma torradeira na cozinha”?, sem alguma concessão por parte dos nihilistas? 14 “Reply to Reviewers”, Peter van Inwagen, in “Philosophy and Phenomenological Research”, Vol. 53, N. 3 (Sep./1993), pp. 709-719. Disponível em http://www.jstor.org/stable/2108096 acessada em 23/out/2015.



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É que nem mesmo em um mesmo organismo é possível afirmar que as cadeias de eventos a que estão sujeitos os diversos x’s constituintes/componentes sejam uma só. É evidente que nem tudo o que acontece com uma parte dos x’s siga um encadeamento causal uniforme, observável, por exemplo, para todo um corpo. A exceção feita ao nihilismo abriu o ensejo a uma série de críticas que desnudam a arbitrariedade da opção. A opção pelo semanticismo 15 (ainda que reconhecidamente incompatível com a “philosophical constraint” de número 9) resulta, a nosso ver, em uma resposta mais harmoniosa. 5. Conclusão. Resposta radicalmente nihilista. Embora objeto de preocupação da Filosofia desde seus primórdios, a investigação acerca da natureza da relação parte-todo vem integrando-a a um conjunto incomodamente extenso de noções primitivas, onde a atividade explanativa pouco indica além da semântica dos termos utilizados para veiculá-la (compor, constituir, fazer parte, integrar, etc.). Mais que isso, no que diz respeito à resposta da questão especial da Mereologia (o que deve ocorrer aos x’s para que eles componham um todo, algo) a resposta é simplesmente nada, porque a junção ou configuração dos diversos x’s (que o “estado da arte” da Física parece indicar serem subpartículas de mínima extensão) nada altera em sua natureza. A brecha conscientemente aberta por Inwagen na primeira parte de sua resposta traz mais problemas que vantagens explanativas. Resta flexibilizar o nihilismo da proposta, é preciso interpretar a linguagem dela retirando qualquer compromisso de existência em relação aos compostos, que devem ser entendidos como simples dispostos de modo determinado. Se isso realmente se choca com a premissa 9 dos “philosophical constraints” postulados por Inwagen, por outro lado garante

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Tomamos a noção de semanticismo aplicada à Mereologia como aquela que reputa não haver na realidade nenhum evento distintivo capaz de indicar a formação de um todo, sendo as unidades mereológicas o resultado de estipulações da linguagem.

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que as proposições insertas em discursos (filosóficos ou não) permaneçam dotados de sentido.

BIBLIOGRAFIA - “Material Beings”, Peter van Inwagen, 1990, Cornell Univ. Press, New York, USA. “Reply to Reviewers”, Peter van Inwagen, in Research”,

Vol.

53,

N.

3

(Sep./1993),

“Philosophy and Phenomenological pp.

709-719.

Disponível

em

http://www.jstor.org/stable/2108096 , acessada em 23/out/2015. - “Problemas de Mereologia: O que é um todo?”, Rhamon de Oliveira Nunes. 2014. In Revista do Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ, v. 5, n. 1, 2014. (ISSN: 2236-0204). Disponível em https://seminarioppglm.files.wordpress.com/2015/02/10-nunes-problemasde-mereologia_-o-que-c3a9-um-todo.pdf . Acesso em 05/08/2014. - "Mereology", Achille Varzi, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer/2015 Edition), Edward N. Zalta, http://plato.stanford.edu/archives/sum2015/entries/mereology acesso 15/12/2014. - “O Aleph”, Jorge Luís Borges, tradução de Flavio José Cardozo, São Paulo, Globo, 2001, 3ª edição. - “Composition, Colocation, and Metaontology”, Karent Benett, in “Metametaphysics, new essays on the foundations of ontology”, ed. David J. Chalmers, David Manley & Ryan Wasserman, Oxford University Press Inc., New York, 2009.



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