Crítica da religião em Sigmund Freud e Bertrand Russell

June 2, 2017 | Autor: A. Gonçalves | Categoria: Sigmund Freud, Bertrand Russell, Filosofia da Religião
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CRÍTICA DA RELIGIÃO EM SIGMUND FREUD E BERTRAND RUSSELL Acríssio Luiz Gonçalves Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Bolsista CNPq. [email protected]

Resumo:

Abstract:

O presente artigo busca apresentar algumas críticas à religião, elaboradas por Sigmund Freud e Bertrand Russell, bem como elucidar pontos de convergência entre as posições defendidas por tais autores, sobretudo em relação à natureza emotiva da crença religiosa.

This paper aims to present some of the criticism towards religion, such as elaborated by Sigmund Freud and Bertrand Russell, as well as to elucidate some points of convergence between the positions defended by both authors, mostly regarding the emotive nature of religious belief.

Palavras-chave: Freud, Russell, religião, filosofia.

Key-words: Freud, Russell, religion, philosophy.

Introdução A religião pode ser definida, em termos gerais, como um sistema cultural articulado em torno de um conjunto de crenças (por exemplo: Deus ou alguma divindade, a alma e sua imortalidade, etc.), do qual faz parte um código de práticas e celebrações (ROWE, 2011). Nos tempos atuais, a religião se faz objeto de estudo de diversas disciplinas, as quais se ocupam, por exemplo, da investigação (e avaliação) das afirmações e das práticas religiosas 1 O objetivo do presente trabalho consiste em expor algumas análises elaboradas por Sigmund Freud e Bertrand Russell a respeito da gênese e da consolidação das crenças religiosas. Para tal, apresentaremos a interpretação do fenômeno religioso elaborada por Freud no texto “O futuro de uma ilusão”, publicado no ano de 1927 e, posteriormente, a 1 As origens das religiões, os argumentos a favor (ou contra) à existência de Deus, a experiência mística, a relação entre fé e razão são esses alguns dos temas de enfoque das disciplinas que se ocupam do estudo da religião.

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posição de Russell sobre o tema, a partir de artigos publicados originalmente entre os anos de 1925 e 19302. Nesse caminho, elucidaremos pontos de convergência relacionados às críticas à religião elaborados por ambos os autores, sobretudo no que diz respeito ao caráter emotivo da crença religiosa. A crítica da religião em Freud A convicção de que a psicanálise pode ser aplicada a diversos campos do conhecimento encontra-se presente em diversos escritos freudianos. Nas “Conferências introdutórias sobre psicanálise” (1917/2006), por exemplo, Freud afirma que a técnica psicanalítica “pode ser aplicada à história da civilização, à ciência da religião e da mitologia não em menor medida do que à teoria das neuroses” (p.153). Em “O futuro de uma ilusão” (1927/1987a), Freud interpreta o fenômeno religioso e sua gênese. No texto, ele defende a concepção de que as pessoas acreditam na religião não em decorrência de argumentos racionais, mas pelo simples fato de terem sido ensinadas – e incentivadas – a acreditar: [...] é especialmente apropriado dizer que a civilização fornece ao indivíduo essas ideias [as religiosas], porque ele já as encontra lá; são-lhe presenteadas já prontas, e ele não seria capaz de descobri-las por si mesmo. Aquilo em que ele está ingressando constitui a herança de muitas gerações, e ele a assume tal como faz com a tabuada de multiplicar, a geometria, e outras coisas semelhantes (Freud, 1927/1987a, p.34-35).

Nesse sentido, Freud (1927/1987a) salienta que as ideias religiosas podem ser concebidas como ilusões3, tendo suas origens nas vivências de situações de desamparo:

2 Alguns artigos e ensaios de Russell sobre temas como religião, política e moralidade foram republicados, em 1957, em volume intitulado “Why I am not a christian: and other essays on religion and related subjects” – obra para a qual o próprio Russell escreve um prefácio. Nesta obra consultamos os textos de Russell, aqui citados. Para utilização de trechos em referências direitas, utilizamos versão traduzida para língua portuguesa, cuja referência completa também se encontra na bibliografia. 3 Deve-se salientar, entretanto, que uma ilusão não deve ser concebida como um erro (uma hipótese não corroborada por evidências racionais e/ou empíricas) mas, sim, como uma crença que se fundamenta, inadvertidamente, em desejos propriamente humanos: “Podemos, portanto, chamar uma crença de ilusão quando uma realização de desejo constitui fator proeminente em sua motivação e, assim procedendo, desprezamos suas relações com a realidade, tal como a própria ilusão não dá valor à verificação” (FREUD, 1927/1987a, p.50).

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As idéias religiosas surgiram da mesma necessidade de que se originaram todas as outras realizações da civilização, ou seja, da necessidade de defesa contra a força esmagadoramente superior da natureza. A isso acrescentou-se um segundo motivo: o impulso a retificar as deficiências da civilização, que se faziam sentir penosamente (p.34).

Segundo Freud (1927/1987a), as proibições e privações impostas pela civilização contribuem para que a autoestima do homem se encontre constantemente ameaçada, exigindo consolação. Desse modo, tanto as forças e fenômenos naturais, quanto o destino (nesse caso, o incerto destino), são transformados em deuses, no intuito de que uma proteção possa ser obtida. Freud defende que esse processo parece ser análogo a algo que acontece na infância. A criança, ainda em tenra idade, sente-se também desamparada em relação aos pais, tendo razão para temê-los. Entretanto, de forma ambivalente, a criança também acredita na proteção dos pais contra os perigos externos. Nas palavras de Freud (1927/1987a): Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai; cria para si próprio os deuses a quem teme, a quem procura propiciar e a quem, não obstante, confia sua própria proteção (p.39).

De acordo com Freud (1927/1987a), as respostas disponibilizadas pela religião são insuficientes para propiciar soluções adequadas às questões existenciais, para produzir a redução do sofrimento humano e, ainda, para nos educar em direção a uma vida legitimamente moral: Afirmo que a civilização corre um risco muito maior se mantivermos nossa atual atitude para com a religião do que se a abandonarmos (FREUD, 1927/1987, p.56). É duvidoso que os homens tenham sido em geral mais felizes na época em que as doutrinas religiosas dispunham de uma influência irrestrita; mais morais certamente não foram (FREUD, 1927/1987a, p.60).

Após apresentar tais críticas, Freud (1927/1987a) defende a ideia de “educação para a realidade” (p.69) – uma educação não religiosa – e afirma que o conhecimento científico, quanto mais difundido, mais permitirá ao homem a melhor condução de sua vida, reduzindolhe os anseios. Freud parece pensar tal “educação para a realidade” como algo inevitável ao http://www.cogitationes.org

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desenvolvimento humano: [...] a longo prazo, nada pode resistir à razão e à experiência, e a contradição que a religião oferece a ambas é palpável demais. Mesmo as idéias religiosas purificadas não podem escapar a esse destino, enquanto tentarem preservar algo da consolação da religião (FREUD, 1927/1987a, p.84)4.

Nesse sentido, Freud acredita que a ciência alcançará graus cada vez mais elevados de conhecimento da realidade, permitindo, assim, o aumento do nosso poder de controle e organização da vida psíquica e social. A CRÍTICA DA RELIGIÃO EM RUSSELL Bertrand Russell pode ser apontado como um dos principais críticos dos dogmas e sistemas religiosos, no século XX. Em diversos artigos e ensaios, Russell discute temas relacionados à religião, bem como sobre o impacto das ideias religiosas – sobretudo as cristãs – em campos como a Moral e a Política. Russell adota postura similar à de Freud ao tratar sobre aos fatores que propiciam a crença nos sistemas religiosos e afirma não serem racionais os argumentos responsáveis por tais atos de crença: Com pouquíssimas exceções, a religião que um homem aceita é aquela da comunidade em que vive, o que torna óbvio que a influência do meio foi o que o levou a aceitar a referida religião (RUSSELL, 1972a, p.13) O que realmente leva os indivíduos a acreditar em Deus não é nenhum argumento intelectual. A maioria das pessoas acredita em Deus porque lhes ensinaram, desde tenra infância, a fazê-lo, e essa é a principal razão (RUSSELL, 1927/1972c, p.25).

De forma semelhante à argumentação freudiana, Russell identifica o desamparo – e o consequente desejo de segurança – como o motor de elaboração e aceitação de ideias de 4 Em “O mal-estar na civilização”, obra publicada originalmente em 1930[1929], Freud parece defender ideia contrária. Aparentemente mais pessimista com relação ao futuro da civilização, parece desacreditar de algum movimento da sociedade que a conduza, inevitavelmente, à superação da mentalidade religiosa: “Tudo é tão patentemente infantil, tão estranho à realidade [Freud, aqui, refere-se à crença religiosa], que, para qualquer pessoa que manifeste uma atitude amistosa em relação à humanidade, é penoso pensar que a grande maioria dos mortais nunca será capaz de superar essa visão da vida [a religiosa]. Mais humilhante ainda é descobrir como é vasto o número de pessoas de hoje que não podem deixar de perceber que essa religião é insustentável e, não obstante isso, tentam defendê-la [...]” (FREUD, 1930[1929]/1987b, p.7). http://www.cogitationes.org

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cunho religioso: Penso, ainda, que a seguinte e mais poderosa razão disso é o desejo de segurança, uma espécie de impressão de que há um irmão mais velho a olhar pela gente. Isso desempenha um papel muito profundo, influenciando o desejo das pessoas quanto a uma crença em Deus (RUSSELL, 1927/1972c, p.). [Os homens] aceitam a religião por motivos emocionais (RUSSELL, 1927/1972c, p.30).

Enquanto Freud critica as religiões por elas se revelarem incapazes de minimizar os sofrimentos humanos, bem como de solucionar devidamente os principais enigmas de nossa existência, Russell as critica, também, por serem falsas 5 e, ainda, por se apresentarem como formas de obstrução do progresso: Considero todas as grandes religiões do mundo – budismo, cristianismo, islamismo e comunismo – não só falsas, como prejudiciais. É evidente, como questão de lógica, que, já que elas diferem entre si, apenas uma delas pode ser verdadeira (RUSSELL, 1957/1972a, p.14). [...] Cada pequenino progresso verificado nos sentimentos humanos, cada melhoria no direito penal, cada passo no sentido da diminuição da guerra, cada passo no sentido de um melhor tratamento das raças de cor, e que toda a diminuição da escravidão, todo o progresso moral havido no mundo, foram coisas combatidas sistematicamente pelas Igrejas estabelecidas no mundo (RUSSELL, 1927/1972c, p.31).

Entre os progressos listados por Russell, aos quais as Igrejas, historicamente, têm-se oposto e combatido, encontra-se a própria teoria psicanalítica, como se nota: “a Igreja opôsse a Galileu e a Darwin; em nossos dias, opõe-se a Freud” (RUSSELL, 1930/1972d, p.34). Assim como Freud, podemos dizer que Russell pensa a necessidade de superação da religião a partir do desenvolvimento de uma postura científica em relação à realidade, 5 Russell (1972c) se dedicou a avaliar tradicionais argumentos que se pretendem provas da existência de Deus - como o argumento lógico, o argumento ontológico, o argumento moral, entre outros (cf. Rowe, 2011, pp.39108). Russell afirma serem estas provas todas falaciosas e facilmente refutáveis: “É verdade que os escolásticos inventaram o que declaravam ser argumentos lógicos provando a existência de Deus, e que tais argumentos, ou outros de teor semelhante, foram aceitos por muito filósofos eminentes, mas a lógica a que esses argumentos tradicionais apelavam é um tipo de lógica aristotélica antiquada, hoje rejeitada, praticamente, por todos os lógicos, exceto os que são católicos” (RUSSELL, 1957/1972a, p.13). No entanto, não pretendemos desenvolver os contra-argumentos de Russell. Nosso enfoque continua, prioritariamente, na apresentação dos fatores apontados por Russel como os responsáveis pela gênese e manutenção da crença em fenômenos religiosos.

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postura essa pautada na investigação e no apreço por provas justificáveis: O hábito de basear as convicções em provas, conferindo-lhes apenas o grau de certeza que a prova justifique, curaria, se se tornasse geral, a maior parte dos males de que sofre o mundo (RUSSELL, 1957/1972a, p.14). Devemos levantar-nos e encarar o mundo de frente, honestamente. [...] Um mundo bom necessita de conhecimento, bondade e coragem; não precisa [...] de encarceramento das inteligências livres (RUSSELL, 1927/1972c, p.33).

Ao compreender as ideias religiosas como originárias de motivações emocionais e, não, de argumentos racionais, Russell (1925/1972a) defende que a verdadeira liberdade apenas será conquistada quando o homem adquirir sobre seus sentimentos o mesmo domínio que já possui em relação ao mundo físico exterior. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do recorte elaborado, percebe-se que as concepções de Freud e Russell no que se refere às questões religiosas são, em muito, convergentes. Ambos entendem a religião como um sistema de crenças que se origina a partir de uma necessidade de segurança frente às intempéries do mundo. Os dois pensadores também concebem o ideário religioso como contrário ao progresso, além de ineficaz, no sentido de propiciar soluções efetivas para os sofrimentos humanos. Ainda em concordância, tanto Freud quanto Russell salientam que a ciência – entendida como a argumentação baseada em evidências – deve ser preferida em contraste a dogmas revelados, de caráter imutável. Faz-se interessante notar que ambos, Freud e Russell, obtêm conclusões semelhantes, mesmo partindo de vertentes de pensamentos tão distantes e possuindo diferentes preocupações como fatores motivadores de investigação: no caso de Freud, os determinantes da vida psíquica, da constituição da subjetividade; no caso de Russell, o imperativo de análise da forma lógica das proposições, tratando da validade argumentos, bem como as reflexões histórico-críticas sobre temas relativos à moral e à política. Entretanto, uma divergência no pensamento destes autores parece patente quanto à ideia do futuro da civilização. Sigmund Freud, em perspectiva quase desenvolvimentista, parece acreditar que a religião será, no futuro, inevitavelmente substituída pela perspectiva http://www.cogitationes.org

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científica. Bertrand Russell, por sua vez, apenas defende que um futuro saudável dependeria de tal substituição, não apostando, no entanto, que ela venha necessariamente a acontecer. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Jayme Salomão, trad.). (Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago, 1987a. (Texto original publicado em 1927). FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Jayme Salomão, trad.). (Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago, 1987b. (Texto original publicado em 1930[1929]). FREUD, Sigmund. Conferências introdutórias sobre psicanálise (Parte III). In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Jayme Salomão, trad.). (Vol. 16). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Texto original publicado em 1917[1916]). ROWE, William L. Introdução à filosofia da religião (Vitor Guerreiro, trad.) Lisboa: Babel. 304p, 2007. RUSSELL, Bertrand. Why I am not a christian: and other essays on religion and related subjects. London: George Allen & Unwin, 1957. 225p. RUSSELL, Bertrand. Porque não sou cristão e outros ensaios sobre religião e assuntos correlatos [Prefácio] (Ana Ban, trad). São Paulo: Exposição do Livro, pp. 13-15, 1972a. (Trabalho original publicado em 1957). RUSSELL, Bertrand. Aquilo em que creio. In B. Russell, Porque não sou cristão e outros ensaios sobre religião e assuntos correlatos. São Paulo: Exposição do Livro, pp. 53-85, 1972b. (Texto original publicado em 1925). RUSSELL, Bertrand. Porque não sou cristão. In B. Russell, Porque não sou cristão e outros ensaios sobre religião e assuntos correlatos. São Paulo: Exposição do Livro, pp. 34-52, 1972c. (Texto original publicado em 1927). RUSSELL, Bertrand. Trouxe a religião contribuições úteis à civilização? In B. Russell, Porque não sou cristão e outros ensaios sobre religião e assuntos correlatos. São Paulo: Exposição do Livro, pp. 17-33, 1972d. (Texto original publicado em 1930). http://www.cogitationes.org

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