Críton e a relatividade da Justiça.pdf

May 31, 2017 | Autor: Thales Issa Halah | Categoria: Philosophy Of Law
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THALES ISSA HALAH

TÍTULO: CRÍTON E A RELATIVIDADE DA JUSTIÇA

SÃO PAULO JULHO DE 2016

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1. Apresentação O presente artigo tem o escopo de discutir, com base no diálogo Críton1, a noção de justiça trazida ao final da discussão entre Sócrates e Críton, e abordar a questão da relatividade desta concepção, uma vez que, ao final da leitura do texto platônico, parece que Sócrates, por meio do discurso das leis invocado, subordina a questão da justiça à ideia das leis de um Estado. Com isso, do ponto de vista do cidadão, a noção de justiça seria relativa, embora seja possível falar o contrário de uma perspectiva do Estado. Após analisarmos a relatividade da justiça e a sua subordinação à ideia de leis, será hora de realizarmos uma crítica à concepção de justo presente no texto objeto deste trabalho, tendo como ponto de partida o perigo da relativização de um conceito que deveria servir como um padrão de correção às imperfeições das leis em relação aos seus destinatários. Do modo como está exposto no Críton, a justiça serve, antes de tudo, para proteger a existência das leis e não a existência do homem em sua individualidade.

2. Críton e a obediência às leis O diálogo entre Sócrates e Críton passa-se em momento posterior à condenação de Sócrates à morte. Críton tenta convencer Sócrates a evitar a sua pena, expondo diversas razões para escapar da prisão antes de tomar cicuta, mas Sócrates mantém-se firme, afirmando que, mesmo em um caso de flagrante injustiça, não poderia ele cometer outra, fugindo. Críton concorda com Sócrates que não se pode revidar uma injustiça com outra e nem rebater o mal com outro, apesar de ser esta a opinião da maioria. Diante desta concordância, Sócrates pergunta a Críton se deve um homem seguir um acordo estabelecido, quando justo, ou se ele tem permissão para violá-lo. Críton manifesta que se deve seguir aquilo que foi estabelecido.2 Diante desta concordância entre Sócrates e seu interlocutor, o primeiro pergunta ao segundo se uma fuga sem o consentimento do Estado não causaria danos a pessoas sem qualquer relação com a condenação e que, portanto, não deveriam sofrer qualquer tipo de prejuízo. Ademais, pergunta se estariam os dois sendo fiéis ou não ao que

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PLATÃO. Críton. In Platão. Diálogos III (socráticos). Trad. Edson Bini. 1ª Ed. Bauru: EDIPRO, 2008, pp. 169-185 (43a-54e). 2 Cf. PLATÃO. Críton, pp. 177-179 (49a-49e).

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concordaram previamente ser justo. Críton julga-se incapacitado, neste momento, de responder à pergunta de Sócrates, pois diz não ter compreendido a questão.3 Aqui, então, Sócrates invoca o discurso das leis para tentar elucidar Críton e fazêlo compreender a questão posta anteriormente. Assim, pede que se suponha que Sócrates estivesse prestes a fugir e que as leis e a comunidade a ele se dirigissem, realizando o seguinte questionamento: primeiro, as leis perguntariam se, por meio da fuga, não estaria Sócrates pretendendo destruir as leis e o próprio Estado, naquilo que diz respeito a ele. Em seguida, as leis perguntariam se é possível um Estado existir quando as decisões proferidas pelo tribunal carecem de força e são contrariadas por indivíduos privados.4 Com isso, Sócrates indaga Críton sobre quais seriam as respostas a tais perguntas, questionando se deveriam dizer que uma injustiça fora cometida pelo Estado contra Sócrates e não houve um julgamento correto do caso, ou se deveriam dizer coisa diversa. Críton responde que se deve dizer que houve uma injustiça.5 Diante desta resposta, Sócrates invoca novamente o discurso das leis, que questionariam Sócrates se o acordo entre eles permitiria corrigir uma injustiça com outra, ou se ele havia concordado em aceitar a sentença dada pelo Estado. Em seguida, as leis continuariam o questionamento, perguntando a Sócrates que falha enxerga ele nas leis que o levam a tentar destruí-las. Perguntariam também se elas não seriam as responsáveis pelo nascimento de Sócrates, já que foram as leis de Atenas que permitiram o casamento entre seu pai e sua mãe.6 Sócrates diz que responderia que nada tem a criticar nas leis, e estas continuariam interrogando-o acerca da retidão das leis atenienses, ao que Sócrates responderia que nada de errado havia nelas, que permitiram o seu desenvolvimento e o desenvolvimento de seus pais. Com isso, as leis perguntariam se uma vez nascido, alimentado e educado, poderia Sócrates afirmar que não era filho e servidor de Atenas. Questionariam também se Sócrates achava justo que houvesse entre ele e as leis uma relação igualitária, de modo que estaria Sócrates no direito de fazer o mesmo que as leis fizessem com ele. Argumentariam as leis que nunca houve uma relação de igualdade entre Sócrates e seu

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Cf. PLATÃO. Críton, p. 179 (50a). Cf. PLATÃO. Críton, p. 179 (50a-50b). 5 Cf. PLATÃO. Críton, pp. 179-180 (50b-50c). 6 Cf. PLATÃO. Críton, p. 180 (50c-50d). 4

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pai, assim como não haveria qualquer relação de igualdade entre Sócrates e seu senhor, caso tivesse um.7 Dessa maneira, qualquer que fosse o tratamento que recebesse de seu pai ou de um senhor, não poderia Sócrates revidar. Destarte, questionariam as leis se Sócrates julgava possuir o direito de revidar contra a própria pátria e as leis, quando estas consideram justa a sua morte. Questionariam se Sócrates pensava ter o direito de destruir as leis e a própria pátria sob a alegação de estar agindo segundo a justiça. Perguntariam então se ele não percebia que a pátria é mais valiosa, devendo ser reverenciada mais do que todos os ancestrais de Sócrates, cabendo a este venerá-la, obedecê-la e submeter-se a ela. Afirmariam as leis que é dever do cidadão fazer o que é ordenado pelo Estado e pela pátria, ou a ela mostrar, usando da persuasão, o que é realmente justo. Contudo, concluiriam elas que, assim como é ímpio recorrer à violência contra os pais, é ímpio recorrer à violência contra a pátria.8 Sócrates então pergunta se Críton pensa que o discurso proferido pelas leis expressa a verdade, ao que ele manifesta concordância. Em seguida, o discurso das leis é retomado, dizendo a Sócrates que, se o que expressam é verdadeiro, tentar fugir, confrontando-as, não seria justo. Isso porque foram elas que proveram todo o desenvolvimento de Sócrates, permitindo seu nascimento, alimentando-o, educando-o, concedendo uma parte das boas coisas que estavam ao seu alcance a Sócrates e aos cidadãos. Ademais, prosseguem dizendo que dão a todos os atenienses adultos que delas discordam (mas que as respeitam) a possibilidade de procurar outro lugar para viver, sem que o Estado nada faça para impedir esta vontade. Contudo, aquele que resolve viver em Atenas, que sabe como a justiça é administrada e o Estado é governado, terá entrado em acordo com as leis, o que significa que deve fazer o que elas ordenarem.9 Com efeito, dirão as leis, aqueles que descumprirem as suas ordens incorrerão triplamente em falta. Em primeiro lugar, pois desobedecem aquelas que são as autoras de suas vidas; em segundo lugar, porque desobedecem aquelas que os alimentam; por fim, porque, embora tenham acordado, nem as obedecem e nem as convencem de que estão erradas. Dessa maneira, as leis continuarão o discurso afirmando que Sócrates, no caso de fugir, será, mais do qualquer outro cidadão, condenável, pois celebrou o acordo com 7

Cf. PLATÃO. Críton, p.180 (50d-50e). Cf. PLATÃO. Críton, pp.180-181 (51a-51c). 9 Cf. PLATÃO. Críton, p. 181 (51c-51e). 8

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as leis de forma mais profunda, já que nunca se ausentou de Atenas (a não ser para cumprir o serviço militar), nem viajou ou expressou o desejo de conhecer outro Estado e outras leis. Além disso, teve filhos em Atenas, julgando ser esta cidade adequada para eles. Por fim, quando de seu julgamento, poderia Sócrates ter escolhido o exílio como pena, tendo a permissão do Estado para aquilo que Críton sugere agora. Aliás, dizem as leis, foi o próprio Sócrates que disse que preferiria a morte ao exílio. Com isso, no caso de fugir, Sócrates estará rompendo com todo o acordo estabelecido entre ele e as leis, de que viveria de acordo com elas.10 Diante disso, pedem as leis que Sócrates responda se elas dizem a verdade ou não, quando afirmam que, através de seus atos, ele concordou em viver de acordo com elas. E então Sócrates pergunta a Críton se não deveriam concordar com o que dizem as leis. E Críton responde afirmativamente.11 O discurso das leis encaminha-se para o fim, e elas dizem que, caso fuja, Sócrates estará violando seus compromissos e acordos que foram realizados sem qualquer coação ou engano, e que também não foram firmados em pouco tempo. Teve, em verdade, a vida inteira para decidir entre permanecer em Atenas ou partir, caso entendesse que o acordo fosse injusto. Entretanto, a sua permanência revela que concordou e estava satisfeito com a cidade e suas leis. Desse modo, as leis dizem que se ele não seguir seus conselhos, fugindo, será condenado ao ridículo.12 Por conseguinte, perguntam as leis que bem produzirá Sócrates para si mesmo e para seus amigos com a sua fuga. Isso porque seus amigos poderão sofrer inúmeras consequências. Além disso, os cidadãos da cidade que Sócrates escolher para viver em exílio o olharão como alguém que desrespeita as leis, destruindo-as. Ademais, a fuga de Sócrates será um reforço à opinião dos juízes que o condenaram, pois aquele que destrói as leis também pode ser considerado um destruidor de jovens. Em seguida, perguntam as leis se Sócrates evitará as cidades bem governadas e os homens mais civilizados, ou relacionar-se-á com eles sem sentir vergonha e embaraço. Questionam também se Sócrates conversará com os homens de outras cidades sobre os mesmos assuntos que conversava em Atenas, ou seja, a virtude e a justiça. Apontam, ainda, para a possibilidade de Sócrates ser visto como alguém que, já velho e com pouco tempo de vida, agarrou-se 10

Cf. PLATÃO. Críton, pp. 181-182 (51e-52d). Cf. PLATÃO. Críton, pp. 182-183 (52d). 12 Cf. PLATÃO. Críton, p. 183 (52e-53a). 11

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à vida de qualquer maneira, transgredindo as leis mais importantes. Assim, Sócrates teria que viver de forma servil e subalterna para não ter que ouvir este tipo de comentário.13 Ademais, se fugisse, Sócrates também não conseguiria cuidar de seus filhos. Se os levasse consigo para criá-los e educá-los, seriam transformados em exilados para fruir da companhia de seu pai. Se os filhos de Sócrates permanecessem em Atenas, estariam sob os cuidados dos amigos de seu pai, não importando que Sócrates tenha se exilado ou estivesse morto. Dessa maneira, pedem as leis que Sócrates seja por elas persuadido, não se importando com os seus filhos, ou com a sua vida, ou com qualquer outra coisa que não seja o direito, pois só assim poderá chegar ao Hades e usar tudo o que lhe ocorreu em vida na sua defesa. Se fugir, não será melhor para Sócrates, mais justo ou mais devoto, e nem será melhor para os amigos de Sócrates ou para a morada após a vida.14 Caso morra injustiçado, dizem as leis, a injustiça não se terá dado por causa delas, mas por causa dos homens. Entretanto, se fugir, retribuindo uma injustiça com outra, rasgando os seus acordos e compromissos, causando prejuízos a todos, as leis ficarão iradas com Sócrates e este não encontrará tranquilidade nem no Hades, haja vista que as leis de lá também se sentirão ameaçadas com a presença de alguém que tentou destruir as leis de uma cidade.15 Após o discurso das leis, Sócrates diz que o som das palavras repercute dentro dele, impossibilitando-o de ouvir qualquer outra coisa. Além disso, afirma a Críton que qualquer argumentação contra estas palavras será em vão. Porém, caso se sinta capacitado a realizar alguma outra coisa para convencê-lo, pede a Críton que o faça, mas este não se opõe e o diálogo acaba.16 Feita esta incursão pelo diálogo Críton, buscando ressaltar principalmente o discurso persuasivo que as leis, através de Sócrates, procuram fazer, demonstrando a injustiça de uma eventual fuga de Sócrates, é interessante agora organizarmos as ideias trazidas pelo discurso e tentar fazer uma crítica ao conceito de justiça implícito neste diálogo e, notadamente, no discurso das leis.

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Cf. PLATÃO. Críton, pp. 183-184 (53a-53e). Cf. PLATÃO. Críton, pp. 184-185 (54a-54b). 15 Cf. PLATÃO. Críton, p. 185 (54c). 16 Cf. PLATÃO. Críton, p. 185 (54d-54e). 14

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3. A noção de justiça em Críton Inicialmente, deve-se dizer que, no Críton, a noção de justiça estaria vinculada e subordinada a uma noção de acordo prévio. Isso porque seria injusto contrariar uma decisão, mesmo que flagrantemente injusta, se aquele que contraria a decisão previamente aceitou o acordo estabelecido entre ele e o Estado. Dessa maneira, se o cidadão escolheu viver em Atenas, é porque ele teria conhecimento de como a justiça é administrada por esta Polis. Além disso, pode o cidadão não concordar com o acordo e buscar um Estado diferente para viver. É importante notar, contudo, que este acordo não se dá entre iguais, visto que a discordância quanto aos termos do acordo não ocasiona a discussão de um novo acordo, mas leva o cidadão a procurar uma nova cidade para viver. Outro aspecto que denota o grande papel do acordo para a justiça no diálogo é o fato de que Sócrates teve a possibilidade, no momento de seu julgamento, de ter escolhido o exílio como pena, mas julgou esta alternativa como pior do que a morte e aceitou esta como a sua punição. Com isso, a fuga posteriormente a ter rejeitado o exílio como pena e ter preferido morrer é uma contradição com a sua própria vontade expressa no julgamento. Além da noção inicial de um acordo entre cidadão e as leis do Estado, o diálogo Críton também introduz a noção de que são as leis que permitem o pleno desenvolvimento do cidadão, permitindo-lhe o nascimento, a alimentação e a educação. Desse modo, as leis encontrar-se-iam em uma posição hierarquicamente superior aos cidadãos. Assim, esta noção de hierarquia é introduzida com as analogias entre o pai e o filho e o senhor e o escravo. Destarte, por haver uma hierarquia, não pode o cidadão tratar o Estado e as leis na mesma medida em que estas tratam o cidadão. Há, entre as leis e os cidadãos, uma relação de mando e obediência hierárquica, e não uma relação de respeito mútuo, com direitos e deveres iguais, claramente igualitária. Por outro lado, apesar de haver esta hierarquia, é facultada ao cidadão a possibilidade, no caso de entender que uma lei não seja justa, de tentar persuadi-la acerca de seu erro e injustiça. No entanto, caso a persuasão seja em vão e as leis não se convençam de seu erro, deve o cidadão acatar o que elas dizem em claro sinal de respeito à hierarquia. Dessa maneira, Sócrates teve a oportunidade de persuadir as leis acerca da injustiça de seu julgamento, o que foi feito sem nenhum sucesso. Com isso, deve respeitar a sentença dada ao seu caso. 7

Por fim, o discurso das leis introduz o argumento de que o desrespeito às decisões levaria à destruição das leis e da própria pátria, pois a existência do próprio Estado estaria em risco na hipótese de as decisões proferidas por um tribunal não terem força vinculante e efetividade e os cidadãos simplesmente as contrariassem. É neste sentido que as leis perguntaram a Sócrates sobre como os cidadãos de outras cidades olhariam para ele, que, estando já velho e ao final da vida, preferiu fugir a respeitar as leis de sua pátria. Feita a exposição de forma ordenada das características da noção de justiça presente em Críton, o que aqui se poderia falar? Primeiramente, deve-se dizer que, embora o diálogo sugira que seja possível cometer uma injustiça, uma injustiça maior seria desrespeitar aquilo que foi acordado e decidido. Dessa maneira, o diálogo subordina o conceito de justiça à questão da legalidade. Ou seja, pode até haver um sentido de justiça externo às leis e que guie a conduta humana, mas este sentido não pode servir como argumento para transgredir uma decisão proferida pelo Tribunal, ainda mais quando este facultou ao condenado o exílio (que se assemelharia à fuga proposta por Críton) e este rejeitou, pois tal transgressão levaria, em última análise, à destruição das leis e do Estado. O diálogo introduz, assim, uma forte noção de que a justiça está subordinada à ideia de Estado, ou seja, a manutenção da legalidade, mesmo no caso de flagrante injustiça contra o cidadão, é preferível, pois sem esta manutenção a própria ideia de Estado não seria possível. Ademais, esta noção de legalidade é extensível a outras cidades gregas, pois as leis dizem que Sócrates não seria bem visto em outras cidades se ele fugisse, uma vez que um transgressor das leis poderia colocar em risco a existência da cidade que escolheu para se exilar. Colocar em risco a existência da cidade levaria, na visão do discurso das leis, a causar dano a várias pessoas. Ora, esse argumento anda de mãos dadas com o argumento trazido pelas leis de que é o Estado que permite o desenvolvimento pleno dos cidadãos e, portanto, proteger o Estado é proteger a coletividade. Pode-se afirmar, assim, que a noção de justiça presente em Críton expressa uma preferência pelo bem-estar de uma coletividade em detrimento do indivíduo considerado isoladamente, pois a destruição das leis significaria destruir aquilo que permite o pleno desenvolvimento dos cidadãos. A noção de cidade para os gregos tinha um significado especial e uma importância destacada, que talvez não seja de fácil compreensão para o homem moderno. Como nos conta Hannah Arendt em seu magistral livro A Condição Humana, a importância da 8

cidade e do Estado é realçada para os gregos, pois é no domínio público que a liberdade humana era possível. A esfera privada era marcada pelo império do reino das necessidades e carências vitais. Apenas aqueles que conseguissem superar essas carências e necessidades é que poderiam se aventurar na esfera pública, no domínio da Polis, lugar onde a liberdade humana era possível e que era entendida como liberdade política. É somente na Polis que o homem pode se relacionar com os seus pares, homens igualmente livres das necessidades vitais.17 Como o homem moderno enxerga a liberdade como não interferência do Estado na vida privada, esta defesa e reverência às leis e à cidade causa estranhamento. Além da questão da subordinação da justiça à legalidade, e da preferência da coletividade em detrimento do indivíduo, a relatividade deste conceito aparece quando as leis dizem que os cidadãos podem, caso não concordem com o modo como se dá a administração da justiça em Atenas, procurar outra cidade com cuja administração concordem. Todavia, em qualquer lugar que seja escolhido deve haver o respeito às suas leis, pois nenhum Estado seria capaz de existir sem o respeito às leis. Ora, a possibilidade de escolher um lugar no qual se considera que as leis sejam mais justas do ponto de vista do cidadão demonstra, de forma cabal, a relativização quanto ao conteúdo da justiça, mas não quanto à forma dela, que é expressa na legalidade estrita.18 Com efeito, a concepção de justiça expressa no diálogo Críton é condizente com a posição que o homem ocupa na hierarquia existente entre ele e as leis. Tal hierarquia seria, de fato, inconcebível se o valor mais alto a guiar a retidão das leis fosse a preservação do homem em sua individualidade. Como as leis e a obediência do homem a estas servem para a manutenção da existência do Estado, a injustiça suprema só pode ser cometida contra o Estado, e não contra o homem. Aliás, a noção de preservação do Estado é tão forte, que as leis, em seu discurso, afirmam que se Sócrates foi injustiçado, a 17

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad.: Roberto Raposo. 12ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, pp. 34-46. 18 Ora, essa noção de justiça atrelada à estrita legalidade ganhará força e corpo com a passagem do chamado Direito Natural para o Direito Positivo. Naquele, o critério de justiça advém de uma ordem hierárquica superior de caráter imutável. Já no Direito Positivo, a fonte primordial deste passa a ser a lei, que é estatuída por meio de decisões, ressaltando-se a característica da contingência e deixando de se remeter a uma instância superior e externa às leis para aferir o critério de justiça. Esta impossibilidade de aferição do justo com base em algo externo às leis leva ao reconhecimento de uma justiça em termos de legalidade, e nesta perspectiva, o justo identificar-se-ia com o legal. Cf. VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Da ilusão à fórmula de contingência: a justiça em Hans Kelsen e Niklas Luhmann. In: Maria Constança Peres Pissarra e Ricardo Nascimento Fabbrini. (Org.). Direito e filosofia: a noção de justiça na história da filosofia. 1 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2007, v. 1, pp. 129-150.

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injustiça foi praticada pelos homens, e não pelas leis. Dessa maneira, não poderia o condenado cometer uma injustiça contra o Estado, pois este nada fez de injusto, e mesmo que o Estado tivesse cometido uma injustiça, não se deve retribui-la com outra. A própria comparação da relação entre Estado e cidadão com a relação entre senhor e escravo é demonstrativa do valor dado ao homem, visto que não cabe ao escravo desobedecer o seu senhor. Com isso, deve-se destacar a proeminência das leis ante os cidadãos e a impossibilidade de se cometer uma injustiça contra elas, pois o valor que informa o conceito de justiça neste diálogo socrático é o valor da manutenção da existência da pátria, haja vista a importância dada pelos gregos à cidade por ser ela a condição para a liberdade humana. Por fim, seria possível afirmar que a noção do justo em Críton é formal e relativa do ponto de vista do cidadão, já que o conteúdo das leis é variável de Estado para Estado, possibilitando ao cidadão escolher um lugar cujas leis lhe pareçam mais justas em sua visão. Todavia, da perspectiva do Estado, é possível afirmar que a noção de justo não é relativa, sendo a obediência às leis o dever supremo em qualquer Cidade na qual se queira viver, já que a desobediência levaria à destruição do Estado, pela impossibilidade de este subsistir no caso de não haver qualquer observância às leis. Passada a questão referente ao conteúdo da justiça, é interessante notar também a questão referente ao efeito que a desobediência pode acarretar para os demais cidadãos, que poderiam não se sentir obrigados a seguir a legislação vigente quando entenderem estar sendo injustiçados. A desobediência aponta para o fato de que a existência de uma hierarquia só é possível enquanto não há qualquer contestação da legitimidade desta estrutura. Talvez seja por essa razão que as leis permitam ao cidadão escolher para viver uma cidade com cuja administração da justiça ele concorde, vez que é melhor que aqueles que não concordem vivam em outra cidade do que permanecerem e contestarem a justeza das leis. Uma vez mais, é o valor da manutenção da existência do Estado que se sobressai, deixando o cidadão em segundo plano. É de se observar também que o fato de se poder tentar persuadir as leis de sua injustiça não vai de encontro à tese da manutenção do Estado como valor último. A persuasão é compatível com a obediência, pois, caso não se consiga persuadir, a obediência ainda é devida.

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Destarte, penso que a questão da justiça presente em Críton foi bem delimitada acima, ressaltando-se a hierarquia das leis sobre o cidadão e a importância da cidade para a noção de liberdade para os gregos, o que leva a uma concepção de justiça voltada, em primeiro plano, para a manutenção da existência do Estado. Aliás, quando falamos em Estado, não estamos nos referindo apenas a Atenas, mas a qualquer Estado, visto que o discurso proferido pelas leis endossa que Sócrates não seria bem visto em qualquer lugar que escolhesse como destino de sua fuga, já que nenhum Estado civilizado veria com bons olhos alguém que não respeite as ordens a ele destinadas. Dito isto, seria interessante agora fazermos um pequeno comentário tangente à relativização da noção de justiça.

4. A submissão do homem ao Estado e a relativização da justiça Como foi exposto no tópico anterior, a noção de justiça defendida pelas leis no diálogo Críton é baseada, antes de tudo, na existência de uma hierarquia entre Estado e cidadão, afirmando-se o protagonismo daquele e o papel coadjuvante deste. Desse modo, essa hierarquia expressa o papel submisso do cidadão, que deve respeitar e obedecer ao Estado acima de tudo. A crítica que deve ser feita a esta concepção de justiça, portanto, deve ser no sentido de ressaltar o perigo advindo da exaltação e do protagonismo da lei em detrimento do próprio cidadão. A afirmação de que a desobediência às leis levaria à destruição do Estado é muito forte e tendemo-nos a concordar com a necessidade de respeitarmos as leis, ainda mais quando se utiliza do argumento de que a destruição das leis afetaria toda a coletividade. Entretanto, antes de defendermos o dever de conservação da cidade, das leis e da coletividade, uma reflexão deve vir à tona. E o primeiro questionamento desta reflexão seria a respeito da valia de um Estado que tivesse condenado todos os seus cidadãos por desrespeito às leis. Desta primeira inquietação surge a pergunta sobre a possibilidade de haver um Estado sem cidadãos. Ora, uma pátria que, para reafirmar o dever de seguir as leis, condena todos os seus cidadãos um a um, ao final, não terá ninguém para seguir e cumprir as suas ordens. Desta feita, por mais que seja o Estado aquele que permite o pleno desenvolvimento dos homens, são estes a condição sem a qual a existência de uma cidade seria impossível. Isso porque seria absurdo afirmar que existe um Estado sem cidadãos, assim como seria absurdo afirmar que existem senhores sem escravos e pais sem filhos. 11

Por essa razão, a noção de justiça presente em Críton deve ser observada com muitas restrições. Não é possível existir cidadãos sem cidade, pois o conceito de cidadão está ligado a um sentimento de pertencimento a uma localidade. De outra banda, sem homens não seria possível a cidade. Por esta forte dependência existente entre estes dois elementos, a noção de justiça deve ser pensada de forma que os dois possam coexistir, não podendo haver uma obediência cegas às leis, mas também não podendo haver um completo desrespeito às ordens emanadas do Estado. Como o diálogo abordado dá grande destaque à importância da Polis, a sua concepção de justiça esquece a importância da necessidade de haver homens para que possam obedecer às leis. Com efeito, é esta lógica cega do cumprimento de um dever acima de tudo que possibilita a condenação de alguém que sofreu uma injustiça, o qual não pode retribuir a injustiça a ele perpetrada porque a hierarquia existente entre homens e leis não permite tal conduta. É diante deste quadro, que é perfeitamente lógico de uma perspectiva unilateral do Estado e das Leis, que se deve refletir sobre o papel do cidadão diante da cidade, sobre a sua importância e protagonismo. Não se poderia negar a importantíssima consequência advinda do respeito às leis: a chamada segurança jurídica. De fato, seria quase impossível viver em uma situação de anomia, em que, apesar de existirem normas, ninguém se sentisse minimamente obrigado a segui-las, e é por isso que o argumento de que a destruição das leis causaria danos a todos os cidadãos é tão persuasivo. Não obstante, dar mais importância ao valor da segurança jurídica em detrimento da busca pela justiça dos homens pode ser perigoso. A dificuldade de aceitar a concepção de justiça trazida no diálogo provém dessa importância dada pelos gregos à cidade, visto que é nela que o homem pode encontrar a sua liberdade. O homem moderno, ao contrário do antigo, enxerga a liberdade como liberdade privada, como não interferência do Estado, e não como liberdade política. Por essa razão, tendemo-nos a estranhar essa defesa ferrenha da cidade em detrimento do homem. Contudo, percebida esta importância dada à Polis, devemos criticar a noção de justo presente no diálogo, mas compreender que talvez uma concepção de justiça que elevasse o homem a posição de protagonista não fosse concebível para o período histórico da obra. A concepção de justiça trazida no Críton é uma que relega ao homem uma posição secundária, visto que não é a ele, em sua singularidade, a quem deve servir o conceito de 12

justiça. Muito pelo contrário, no diálogo, são os homens que devem servir à justiça, pois são eles que devem respeitar as leis, mas estas não expressam o mesmo respeito para com os homens. O Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Tércio Sampaio Ferraz Jr., em seu livro Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação, compartilhando da visão do Autor deste pequeno texto no que tange à necessidade das leis respeitarem e reconhecerem a importância do homem, aponta para o fato de que o Direito pode ser estabelecido de forma arbitrária e até mesmo servir a uma determinada finalidade que não seja o homem, podendo gozar de império, validade e eficácia. Entretanto, o Direito, que surge de um ato de poder, não tem o seu sentido no próprio poder, sendo este o motivo de os homens ficarem inconformados quando se encontram diante de uma decisão arbitrária e sem sentido.19 No Críton, é esta falta de sentido orientado aos homens que causa o inconformismo da personagem que dá nome ao diálogo com a sentença dada a Sócrates. O Direito e as leis até possuem uma finalidade, a manutenção da existência do Estado e das leis, mas não possuem um sentido que realce a importância do homem em sua individualidade. Críton percebe que uma injustiça foi cometida contra Sócrates. Há, portanto, uma noção do que seria justo aos homens, há a percepção de que deve existir um sentido que os guie, mas este sentido, no diálogo, deve estar em congruência com as leis, não podendo ir de encontro a elas, pois isso significaria tentar destruí-las, e o homem grego não poderia conceber a destruição de sua cidade, condição para a sua liberdade. Era esse o comentário a ser feito sobre a justiça em Críton.

5. Referência Bibliográfica ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad.: Roberto Raposo. 12ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 7ª Ed. São Paulo: Atlas, 2013.

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FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 7ª Ed. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 339-340.

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PLATÃO. Críton. In Platão. Diálogos III (socráticos). Trad. Edson Bini. 1ª Ed. Bauru: EDIPRO, 2008, pp. 169-185 (43a-54e). VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Da ilusão à fórmula de contingência: a justiça em Hans Kelsen e Niklas Luhmann. In: Maria Constança Peres Pissarra e Ricardo Nascimento Fabbrini. (Org.). Direito e filosofia: a noção de justiça na história da filosofia. 1 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2007, v. 1, pp. 129-150.

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