Crônicas da vida dupla

July 19, 2017 | Autor: Claudia Antunes | Categoria: Wikileaks, US Foreign Policy, Diplomacia
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Crônicas da vida dupla: WikiLeaks evocam clássicos da espionagem
CLAUDIA ANTUNES
DO RIO

Diplomata travestido em cronista, William Burns, embaixador dos Estados
Unidos em Moscou, descreve o extravagante casamento do filho de um manda-
chuva do Daguestão, república russa à beira do mar Cáspio e vizinha da
Tchetchênia.


É o mesmo Cáucaso retratado pelo mestre do romance de espionagem John Le
Carré em "Nosso Jogo" (Record) _terra de clãs, petróleo, maioria muçulmana
e revoltas nacionalistas, combinação explosiva enquadrada desde o 11 de
Setembro na guerra ao terror americana.


O anfitrião da festa, Gadzhi Makhachev, comanda a estatal petrolífera local
e é deputado na Duma, o Parlamento russo. Estabeleceu "cooperação próxima
com as empresas americanas". Coleciona carros de luxo e mansões em Moscou,
Paris e San Diego, na Califórnia.


"O consumo de álcool antes, durante e depois desse casamento muçulmano foi
estupendo. Gadzhi trouxe dos Urais milhares de garrafas de vodca Beluga
tipo exportação ('melhor consumida com caviar')", relata Burns a seus
superiores, em agosto de 2006.


O convidado de honra é o presidente tchetcheno Ramzan Kadyrov, ex-rebelde e
hoje aliado do governo russo. Ele presenteia os noivos com um torrão de
cinco quilos de ouro e joga notas de cem dólares sobre uma trupe de
dançarinos mirins, antes de sair apressado.


Burns, hoje subsecretário de Estado americano para Assuntos Políticos,
pergunta por que o tchetcheno não passará a noite ali. "Ramzan nunca passa
a noite em lugar nenhum", diz Gadzhi.


A crônica mundana, que destaca o exotismo de aliados de ocasião, é uma das
facetas dos telegramas da diplomacia americana que vêm sendo divulgados
desde o final de novembro pela organização WikiLeaks.


Pitorescos, os relatos também são sintoma de que pouco mudou desde "O
Americano Tranquilo" de Graham Greene (Globo), retrato da vida dupla de
enviados ocidentais tentando parar a revolta nacionalista na Indochina dos
anos 1950, ainda sob o colonialismo francês.


Colaboradores que não frequentam tanto o Salão Oval da Casa Branca, onde
dignatários estrangeiros costumam ser fotografados com o presidente, são
ironizados em segredo pelos diplomatas. É como se quisessem deixar
registrado: "eu sei, mas o que fazer?".


É assim nos países à leste do Cáucaso, na Ásia Central, estratégica pelas
reservas de gás e a proximidade com o Afeganistão e a China.


Na página do Departamento de Estado na internet, o Uzbequistão é descrito
como um "apoiador dos esforços dos EUA contra o terrorismo internacional e
o narcotráfico". Por lá passam suprimentos para os soldados da Otan, a
aliança militar ocidental, em solo afegão. Uma base aérea uzbeque é usada
pelos alemães.


Nos telegramas, enviados de 2004 a 2006 pelo embaixador Jon Purnell, a
descrição lembra a do ex-diplomata britânico Craig Murray em "A Diplomacia
Suja" (Companhia das Letras). Fala-se em "corrupção galopante", trabalho
forçado, tortura. A filha do ditador Islam Karimov, Gulnara, é chamada de
"mafiosa" e de "pessoa mais odiada do país".


O tom usado para déspotas árabes é semelhante, com o agravante de serem
relações mais consolidadas: a permanência no poder de alguns deles se deve
ou depende do apoio americano e europeu.


Derrubado por uma revolta popular depois de 23 anos no poder, o ditador da
Tunísia Zine el Abidine Ben Ali é apontado como chefe de um regime
"esclerosado" e um "Estado policial" em mensagem de julho de 2009.

O embaixador fala de "desemprego alto", estopim da rebelião de agora. Mas
aponta a colaboração de Ben Ali no combate à Al Qaeda no Magreb, versão
norte-africana da rede terrorista.
Seu memorando sugere medidas para promover os direitos humanos na ex-
colônia francesa, mas a Casa Branca, sempre pronta a condenar violações
desses direitos em países rivais, calou-se quando jovens foram mortos no
início dos protestos.

Só se pronunciou quando a queda de Ben Ali, que atribuiu o movimento
opositor a extremistas islâmicos, havia sido selada.


Antes de prosseguir, com informações dos telegramas sobre o Oriente Médio,
é necessário um parêntese.


O WikiLeaks obteve mais de 250 mil despachos, a maioria enviada entre 2004
e 2009. Apenas cerca de 4.000 foram divulgados até agora no site da
organização, depois de publicados pelos sete jornais que têm acesso
exclusivo ao material, incluindo a Folha.


Contagem feita pelo "New York Times" dá conta de que a maioria dos
telegramas não é confidencial. Cerca de 11 mil são "secretos".


O material não traz revelações capazes de mudar a história. Mas o conjunto
compõe um quadro realista de como a superpotência se move num mundo que
considera ameaçador.

OBSESSÕES
Os despachos contam, por exemplo, que a Arábia Saudita, terra natal de
Osama bin Laden e firme aliada dos EUA, foi qualificada há um ano pela
secretária de Estado Hillary Clinton como a "mais significativa fonte de
financiamento de grupos terroristas sunitas [a corrente majoritária no
islã] no mundo", o que inclui o Taleban do Afeganistão.
Mostram também que o ditador do Iêmen, Ali Abdullah Saleh, outro que
enfrenta protestos populares, assumiu como ações de seu governo ataques
americanos com mísseis contra supostas bases terroristas em seu país.
"Continuaremos a dizer que as bombas são nossas, não suas", disse ele ao
general David Petraeus, chefe do Comando Central dos EUA.
Em troca da colaboração, nota o informe diplomático, Saleh gostaria de
ficar "mais satisfeito no futuro" com os equipamentos fornececidos ao seu
Exército.

A avidez dos autocratas árabes por armas forma o pano de fundo da arte
desenvolvida por eles de dizer aos representantes dos EUA o que estes
querem ouvir.


O corrosivo correspondente britânico Robert Fisk, autor de "A Grande Guerra
pela Civilização" (Editora 70), observou que os americanos têm obsessão
pela 2ª Guerra Mundial, pelo Irã, por câncer e por louras "voluptuosas"
_como a enfermeira ucraniana do líbio Muammar Gaddafi citada em um dos
despachos.


Pois um informante contou-lhes que o líder supremo iraniano, Ali Khamenei,
estava morrendo de leucemia, informação não confirmada. E o rei Abdullah,
da Arábia Saudita, incitou-os a "cortar a cabeça da serpente iraniana",
comparando o presidente do país, Mahmoud Ahmadinejad, a Adolf Hitler.


Monarcas de Bahrein e dos Emirados Árabes também pediram, como Israel, um
ataque militar ao Irã.


Ato quase contínuo, em setembro passado anunciou-se a venda de US$ 60
bilhões em aviões e helicópteros militares americanos aos sauditas e
vizinhos _valor equivalente ao de todas as armas vendidas no mundo no ano
anterior.

TORTURA
Mas é na relação com as democracias da Europa, aliadas mais sólidas de
Washington, que as contradições ficam mais evidentes.

Em janeiro, a secretária de Estado Hillary Clinton divulgou uma nota em
apoio ao promotor do tribunal especial da ONU que investiga o assassinato
no Líbano do ex-premiê pró-Ocidente Hafik Hariri, em 2005. O misto de
partido e milícia xiita Hizbollah, aliado do Irã e da Síria, está na mira
do promotor. A nota pede respeito "à independência e à integridade" da
Justiça.


Os despachos do WikiLeaks, entretanto, detalham a ofensiva do governo
Barack Obama, em 2009, para suspender a investigação no Judiciário da
Espanha de seis funcionários do antecessor, George W. Bush (2002-2009).
Eles são acusados de criar a justificativa legal para a tortura de
suspeitos de terrorismo, violando tratados assinados por Washington.


Emissários americanos dizem ao ministro do Exterior espanhol que o processo
"não seria entendido ou aceito nos EUA, e teria enorme impacto na relação
bilateral". O caso não foi formalmente engavetado, mas está parado.


O mesmo argumento é usado na Alemanha para barrar o mandado de prisão e o
pedido de extradição de agentes da CIA acusados do sequestro ilegal de
Khaled el-Masri. Cidadão alemão de origem libanesa, ele foi levado ao
Afeganistão e solto na Albânia depois que seus captores descobriram ter
levado o homem errado.


No início de 2007, o embaixador em Berlim John M. Koenig informa ter
alertado os alemães de que eles deveriam "pesar cuidadosamente, a cada
passo, as implicações [do mandado] para as relações com os EUA". Os espiões
americanos não foram mais incomodados.


Numa nota cômica, aos governantes da Eslovênia, nos Bálcãs, foi oferecido
um encontro com Obama se aceitassem receber libertados da base de
Guantánamo, em Cuba. À Bélgica, é dito que aceitar os ex-presos seria "uma
maneira barata de ganhar proeminência na Europa". O governo brasileiro
recebeu o mesmo pedido, mas não há confirmação de barganha desse tipo.

CONSELHOS
Na América Latina, a maior obsessão dos americanos não poderia ser outra
senão Hugo Chávez, que deixa para trás os irmãos Castro. Eufóricos, os
despachos relatam a fúria do venezuelano ao descobrir que a China revendia
petróleo comprado da Venezuela a preço camarada.

Chávez é tema constante das conversas com autoridades brasileiras, que
relutam em pressionar o vizinho, mas prometem acalmá-lo. Líderes regionais
mais próximos dos EUA tiram proveito da preocupação.


Em 2008, o presidente colombiano Álvaro Uribe (2002-2010) sugere ao chefe
do Estado-Maior americano mandar tropas à Venezuela para conter o
"expansionismo" chavista e prender narcoguerrilheiros das Farc (Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia). Em seguida, o mexicano Felipe
Calderón diz que a região precisa da "presença visível" dos EUA para conter
a influência de Chávez.


Nos telegramas enviados de Brasília, o que mais chama a atenção são as
disputas internas no governo Lula, sobre temas como a Alca (Área de Livre
Comércio das Américas) e o programa nuclear. Desavenças entre o Itamaraty,
a Fazenda e a Defesa são expostas à embaixada, que as utiliza para promover
suas políticas.


Os despachos mostram que o ex-embaixador Clifford Sobel via o ministro
Nelson Jobim como aliado e o Itamaraty como adversário, com "inclinação
antiamericana". Mas a série de papéis o desmente: eles descrevem sucessivas
visitas à embaixada de diplomatas do alto escalão do Itamaraty e do
assessor internacional do Planalto, Marco Aurélio Garcia, prontos a
explicar as posições brasileiras.


Garcia e o ex-chanceler Celso Amorim dão conselhos aos americanos, sobre
como tratar Irã, Cuba ou os bolivarianos sul-americanos. Em 2008, o
assessor do Planalto recomenda-lhes que demonstrem neutralidade na disputa
entre o presidente Evo Morales e os opositores, que jogou a Bolívia à beira
da secessão.


Talvez venha daí a frase mais reveladora sobre como os EUA veem o país, em
texto de 2009: "O Brasil tem uma necessidade quase neurótica de ser igual
aos EUA e de ser visto assim, e leva muito a sério mensagens dos EUA
considerando o Brasil como o líder regional que procuramos para resolver
problemas na América do Sul".


Indiretamente, também diz respeito ao Brasil a análise feita pelo
embaixador em Honduras, Hugo Llorens, um mês depois do golpe que depôs o
presidente Manuel Zelaya em 2009. Llorens diz que a ação não teve respaldo
constitucional, ao contrário do que diziam os golpistas e defenderam aqui
críticos do apoio brasileiro à volta de Zelaya.


Foi o governo Obama que, depois, relevou a conclusão do seu diplomata,
quando conservadores no Congresso e na imprensa passaram a fazer alarde da
ligação entre o deposto e Chávez.

NEGÓCIOS
Há um maço de despachos sobre o jogo pesado dos negócios, mas por enquanto
alguns graus abaixo da história de "O Jardineiro Fiel", de Le Carré
(Record), na qual um diplomata inglês descobre uma conspiração de
companhias farmacêuticas na África depois do assassinato de sua mulher.

Amigo e ex-sócio do presidente Bush, o embaixador em Paris Craig Stapleton
planeja em 2007 uma guerra comercial contra países europeus que se opõem ao
uso de sementes geneticamente modificadas.


Outros telegramas sugerem que ainda são pagas propinas na feroz
concorrência entre a Boeing americana e a Airbus europeia pela venda de
aviões comerciais. Uma diretora da petrolífera anglo-holandesa Shell diz
aos americanos que a empresa tinha "gente em todos os ministérios
relevantes" da Nigéria.


Primeira a ser destacada na leva de mensagens, a que confirma instruções
para a espionagem de funcionários na ONU ganhou maior significado depois da
reação muda do secretário-geral Ban Ki-moon, cujo número do cartão de
crédito foi encomendado pela CIA.


Outro eleito com apoio dos americanos para um posto internacional chave, o
diretor geral da Agência Internacional de Energia Atômica, Yukiya Amano,
diz-lhes que servirá a "todos os Estados", mas "em acordo" com os EUA.


Talvez o ditador da Síria, Bashir Assad, acerte quando afirma a uma
delegação do Senado americano que Washington tem muita informação, mas
falta-lhe o distanciamento para analisá-la de modo proveitoso.


Daí a perda de tempo com anotações óbvias: o premiê russo Vladimir Putin é
o "Batman" do "Robin" Dmitri Medvedev, seu protegido e presidente do país;
o francês Nicolas Sarkozy tem "pavio curto" e é "autoritário"; o italiano
Silvio Berlusconi gosta de "festas selvagens".


Em defesa da publicação dos telegramas, Javier Moreno, diretor do diário
espanhol "El País", escreveu que "o poder teme a verdade quando ela não
coincide com o discurso". Se as palavras são importantes, essa é a razão do
cerco político ao WikiLeaks, e não a alegação de que abrir o material poria
vidas em risco.
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