CRÓNICAS JUGOSLAVAS DE ÁLVARO GUERRA A ESCRITA COMO RESGATE DA MEMÓRIA
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CRÓNICAS JUGOSLAVAS DE ÁLVARO GUERRA A ESCRITA COMO RESGATE DA MEMÓRIA Ana Teresa Peixinho – FLUC / CEIS20 Nenhuma idade conhece o sossego dos poetas cujo coração insaciável tem exigências que não poupam o mais comum dos mortais, a começar por nós próprios. Sem memória nem consciência não produziríamos sequer a intenção das nossas 1 palavras .
Considerações Prévias ________________________________________________________________ O tema deste colóquio -‐ «Crise e criatividade através da imprensa» -‐ é suficientemente amplo e aberto para permitir uma confortável margem de trabalho a quem nele participa. Além de que é um tema sugestivo, que permite cruzar saberes distintos, áreas diversas e perspectivas divergentes. Quando recebi a informação sobre este colóquio, imediatamente me lembrei de partilhar convosco uma obra da Literatura Portuguesa que pode ser lida, na minha opinião, como um símbolo de como crise e criatividade se sintonizam na perfeição, tal como sucede nos caracteres chineses para crise. Trata-‐se de um pequeno conjunto de treze crónicas de Álvaro Guerra, reunidas sob o título de Crónicas Jugoslavas. Apesar de estes textos nunca terem passado na imprensa, pois foram de imediato publicados em livro, eles configuram um tipo de escrita muito próximo da imprensa – a crónica – com ela partilhando algumas características e especificidades que tentaremos sublinhar ao longo da nossa apresentação. Álvaro Guerra, pseudónimo literário de Manuel Soares, é inquestionavelmente uma personalidade literária que marcou o final do século XX. Autor de diversos romances, demonstrou ser no seu tempo e para o futuro uma personalidade multifacetada2, experimentando géneros diversos, em criações vívidas, marcadas por um estilo muito pessoal, em permanente diálogo com o tempo e com a história: Autor de romances e narrativas romanceadas, em que se surpreende uma nova fase do neo-‐realismo, trabalha o texto de um modo muito mais simbólico 1
Guerra, Álvaro, (1991), Memória, Lisboa, Círculo de Leitores, p.5. Álvaro Guerra, licenciado em Direito, foi desde sempre colaborador em jornais e revistas. Foi nomeado Director de Programas da RTP, após o 25 de Abril de 1974; em 1975, fundou o jornal A Luta (A.A, (1994), Escritores Portugueses em Itália, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro. Divisão de Difusão do Autor e do Livro).
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CRÓNICAS JUGOSLAVAS DE ÁLVARO GUERRA A ESCRITA COMO RESGATE DA MEMÓRIA Ana Teresa Peixinho – FLUC / CEIS20 que directo, numa simbiose de narrativa, comentário e lírica. (…) Utiliza a História para falar de problemas actuais, conseguindo colocar, através de referências do passado, as específicas realidades do presente3.
Destacou-‐se pela publicação de inúmeros romances, a maior parte deles
inspirados em momentos-‐chave da nossa História recente, como a Guerra do Ultramar ou o 25 de Abril de 1974. Estreia-‐se em 1967, com Os Mastins, representação alegórica da época salazarista, ao qual se seguiram romances como Disfarce (1969) e A Lebre (1970). Já na década de oitenta, publica a trilogia Café República, Café Central e Café 25 de Abril, que abrange um período histórico-‐político desde a Primeira Guerra Mundial até ao “desencanto pós-‐revolucionário” da Revolução de Abril. Na década de 90, vêem a luz romances, talvez mais conhecidos, como Crimes Imperfeitos (1990), Razões do Coração (1991) ou No Jardim das Paixões Extintas (1996). Para além de escritor, foi também jornalista, assessor de imprensa e embaixador4. É precisamente no âmbito da diplomacia, que passa sete anos – entre 1977 e 1984 – na Jugoslávia, em Belgrado. Aqui pôde vivenciar os últimos anos do país-‐nação que a força da guerra desmantelou. Crónicas Jugoslavas, a obra que agora nos ocupa, ganhou o Prémio da Crónica da Associação Portuguesa de Escritores e foi publicada em 1996 pela D. Quixote. Inspira-‐se precisamente nessa experiência jugoslava do autor e pretende assumir-‐se como uma homenagem póstuma a um país que deixou marcas indeléveis no cronista, cujas feridas são em parte saradas pela escrita. Uma escrita metafórica, empenhada, melancólica mas, acima de tudo catártica. Como nos diz Raul Lourenço: Ainda que de um modo abusivamente simplista e sintético, pode então afirmar-‐se que esta obra consiste numa reflexão ilustrada pelo relato de 3
In: AA, (1994), Escritores Portugueses em Itália, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro. Divisão de Difusão do Autor e do Livro, p. 4. 4 “Como diplomata, foi embaixador na Suécia, na Jugoslávia, Zaire, Índia e Estrasburgo.” (Gastão, Ana Marques, (2002), Diário de Notícias de 19 de Abril)
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CRÓNICAS JUGOSLAVAS DE ÁLVARO GUERRA A ESCRITA COMO RESGATE DA MEMÓRIA Ana Teresa Peixinho – FLUC / CEIS20 acontecimentos,
centrada
na
memória
da
experiência vivida de um país, sobre a guerra que o desmantelou5. A Moldura da obra _________________________________________________________________ Trata-‐se de um conjunto de treze crónicas, constituído por um texto introdutório – a que Álvaro Guerra deu o nome de «Declaração Prévia» – e por uma espécie de conclusão sintomaticamente denominada de «Post-‐Scriptum». Estes dois textos constituem uma moldura da obra e permitem conferir unidade e coerência ao conjunto de crónicas, porque sublinham a ideia central que perpassa pelas restantes e que é o sentimento de choque, de melancolia e revolta, experimentado pelo cronista, perante a destruição brutal provocada pelo ódio fratricida alimentado pela guerra civil. Este sentimento é desde logo anunciado na «Declaração Prévia», quando o cronista diz: A minha Jugoslávia não mudou de nome. Ao ver ao longe o corpo ensanguentado e esquartejado desse país, não me atrevo a alterar-‐lhe o título na galeria das minhas vivências. (p.11)6 Quer dizer, as recordações pessoais e o papel subjectivo da memória serão elementos cruciais para a evocação de um país que, aqui, aparece personificado como “um corpo ensanguentado e esquartejado”. Há, portanto, como que uma recusa por parte do cronista em aceitar e resignar-‐se com a nova realidade de um país que ele prefere guardar na “galeria das [suas] vivências.”
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In: Lourenço, Raul, (2000), «Recensão Crítica a Crónicas Jugoslavas de Álvaro Guerra», Colóquio / Letras, nº155-‐156, Janeiro, p. 428. 6 Todas as citações da obra são de: Guerra, Álvaro, (1996), Crónicas Jugoslavas, Lisboa, D. Quixote.
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CRÓNICAS JUGOSLAVAS DE ÁLVARO GUERRA A ESCRITA COMO RESGATE DA MEMÓRIA Ana Teresa Peixinho – FLUC / CEIS20 Se continuarmos a ler o texto, percebe-‐se que esta recusa é uma espécie de forma de respeitar a ex-‐Jugoslávia e de a resguardar das incertezas de um presente marcado pela dúvida. O cronista insiste, utilizando o deíctico agora em anáfora – Agora, que as tribos voltam a marcar os seus territórios
(perigosa
reacção
ao
perigoso
mundialismo mercantil), agora, no difícil exercício de exorcizar os mais sinistros fantasmas, agora, na hora da morte da Jugoslávia, mesmo que os seus herdeiros e os seus coveiros não saibam muito bem o que fazer com esse cadáver, respeitemos ao menos a sua memória. (p.12)7 -‐ que, no presente a Jugoslávia é metaforicamente um cadáver cujos coveiros desconhecem que destino lhe dar. Esta metáfora é muito expressiva: após a guerra civil, o país aparece como um corpo morto, amaldiçoado, que nem a honra de um funeral digno se pode permitir ter. O cronista é, portanto, um nostálgico que não esconde uma boa dose de revolta perante o destino da História: “Talvez tivesse sido possível chegar à liberdade por outros caminhos” (p.13), afirma. Mas, num tom axiomático e amargo, conclui que o destino da História foi marcado pela imutável condição humana, constatação que transparece de forma muito expressiva através da referência intertextual final a Sísifo – “Sísifo é um servocroata sobrevivente.” (p.13). Este apontamento intertextual mostra a posição do cronista face à guerra civil: fruto da ambição e hipocrisia de alguns, levou um povo à eterna condenação de construir e assistir à destruição do que foi construído, e permanência, numa espécie de espiral. No «Post-‐Scriptum», regressa a presença dos sentimentos de revolta e nostalgia: revolta perante o elevado número de mortes civis – o cronista reitera a expressão “Duzentos mil mortos depois (…)” (p.114) – e a nostalgia de um país que
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Negritos da nossa responsabilidade.
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CRÓNICAS JUGOSLAVAS DE ÁLVARO GUERRA A ESCRITA COMO RESGATE DA MEMÓRIA Ana Teresa Peixinho – FLUC / CEIS20 poderia ter tido outro rumo, não fosse a desmedida ambição daqueles que metaforicamente apelida de ogres: Era um jovem país que poderia ter sobrevivido, se um punhado de ogres não tivesse posto ao serviço das suas ambições a ressurreição dos mais sinistros espectros do passado. (p.114) De forma muito clara, através de um discurso avaliativo, aquilo que o cronista aponta, nestas palavras finais, são as causas essenciais do desmoronamento de uma pátria: O que regressou, neste final de século, na eclosão de conflitos violentos foi a presença nítida e constante de factores étnicos e confessionais – uma reposição das práticas das Cruzadas e da Reconquista da Península Ibérica, por exemplo, mas a uma escala nunca antes alcançada. (p.113) Quer isto dizer, regresso à barbárie, aos conflitos étnicos, à violência desmedida da Idade Média. E esta comparação é reiterada mais vezes ao longo das crónicas, por exemplo, no final de «Aparição», comenta: Assim sucumbia a Jugoslávia. Não numa qualquer guerra civil, mas transformada num território de cruzadas, cujo estilo se identificava recuando até às calendas sangrentas e crudelíssimas das eras medievais. (p.87) O saldo desta guerra é, por tudo isso, muito negativo para o cronista que faz questão de recorrer ao testemunho de um ex-‐jugoslavo – como que para credibilizar e fundamentar a sua opinião – para justificar a perda da identidade e a total perda da pátria a que conduziu o desmembramento da Jugoslávia. Estratégia, aliás, claramente dependente da matriz jornalística da crónica, bem como da sua dimensão pessoal, de produto de experiência vivida:
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CRÓNICAS JUGOSLAVAS DE ÁLVARO GUERRA A ESCRITA COMO RESGATE DA MEMÓRIA Ana Teresa Peixinho – FLUC / CEIS20 Dantes a minha pátria estendia-‐se por toda a Jugoslávia. Agora, sinto-‐me curdo. Não sei de que país sou cidadão, mesmo se digo que a Croácia é o meu país porque é aí que vivo. (p.114) Estes sentimentos de melancolia e revolta, expressos no paratexto que emoldura as crónicas, perpassam por todos os restantes textos, onde o cronista, fazendo apelo à memória afectiva, revive os sete anos passados na Jugoslávia antes do colapso. Como nos diz em «Saudades que matam»: Não tenho a veleidade de arrancar o espinho do meu prolongado silêncio sobre a tragédia jugoslava, ao ceder às tentações da memória, passando à escrita uns farrapos de recordações dos quase sete anos vividos entre os jugoslavos. (p.17) Palavras como tragédia, ruína, caos, crime, são frequentemente usadas para descrever e referir o desmantelamento do país “trucidado pelas rodas da História dirigidas por incontáveis equívocos e indizíveis perversidades.” (p.20) Mais uma vez a voz do cronista acusa a História mal feita e mal construída, tal como havia afirmado na «Declaração Prévia», quando cita Marx: “Os homens fazem a história, mas não sabem a história que fazem.” (p.12) Esta História que os homens fazem mas não controlam é mesmo epitetada de crime, no final da crónica «As Pontes Cortadas»; um crime perpetrado pela “faca da história”, como comenta no final de «A Mona Lisa de Hlebine» (p.49); um crime manchado de sangue. Por isso, nesta crónica, «A Mona Lisa de Hlebine», depois de recordar saudosamente a batida aos javalis, com os camponeses de Miros, regressa ao presente da escrita e interroga-‐se sobre os destinos desses camponeses: Quantos torturadores e torturados, quantos mutilados e mutiladores, quantos massacradores e massacrados, terão marchado comigo pela vastidão daqueles gelos? (p.45). 6
CRÓNICAS JUGOSLAVAS DE ÁLVARO GUERRA A ESCRITA COMO RESGATE DA MEMÓRIA Ana Teresa Peixinho – FLUC / CEIS20 Sempre o confronto passado / presente, sempre a mesma nota de angústia perante o inexorável rumo da história, sempre as imagens de horror, de ódio e de destruição. Cenários que o cronista / escritor vivenciou e experienciou, pois o valor cronotópico destas crónicas reside precisamente na forma como a escrita de Álvaro Guerra transforma, transfigura e metaforiza cenários vívidos: Partindo da vivência efectiva de quase sete anos na Jugoslávia (…), raro é o momento em que o autor não estabelece uma relação entre situações, visões e até alucinações (…) experimentadas durante esse período e a guerra8. As evocações dos episódios passados na ex-‐Jugoslávia vão sendo permanentemente cortados por gritos de revolta contra o destino sangrento do país, numa espécie de movimento pendular entre o passado intacto na memória e o presente de inconformismo e revolta. No final de «O Regresso do Passado», onde nos descreve o restaurante de Mestre Ivo, paraíso de intelectuais e escritores, diz ironicamente: Nos domínios de mestre Ivo, no lendário Clube dos Escritores, os fregueses simulavam o paraíso. Nas profundezas do inferno, Hitler e Estaline contorciam-‐se de riso. (p.80) Quer dizer, todos os momentos de felicidade e harmonia recordados são espreitados pelo horror do futuro próximo. Apesar de as evocações irem sendo feitas com o recurso a uma memória afectiva e sentimental, há uma profunda lucidez e sentido crítico que permitem ao cronista analisar politicamente a morte do país. Prova dessa lucidez analítica é a crónica «A Sentinela Cega». Aqui, neste antepenúltimo texto, o cronista recorre a testemunhos do património literário jugoslavo, para analisar a história geopolítica dos Balcãs, 8
In: Lourenço, Raul, (2000), «Recensão Crítica a Crónicas Jugoslavas de Álvaro Guerra», Colóquio / Letras, nº155-‐156, p.428.
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CRÓNICAS JUGOSLAVAS DE ÁLVARO GUERRA A ESCRITA COMO RESGATE DA MEMÓRIA Ana Teresa Peixinho – FLUC / CEIS20 metaforicamente entendida como “madrasta para os povos que habitam aquelas terras.” (p.100). De facto, uma análise, mesmo que superficial, à História da unificação Jugoslava, iniciada na I Guerra Mundial, deixa bem visíveis os eternos problemas que, desde cedo, assolaram a união: “definição e defesa das fronteiras; países vizinhos inimigos; instabilidade interior; aparecimento do separatismo; revoltas armadas (…); dificuldades económicas, em particular, na parte sérvia do Estado devastada pelas destruições da guerra e a ocupação austro-‐húngara e búlgara; enormes perdas humanas (…); mas, também, o aparecimento bem visível das grandes diferenças políticas acerca da organização do Estado.”9 As lutas étnicas e os problemas da fixação de fronteiras são vistos por Álvaro Guerra como um cancro que se alastra a todo o território: Tudo parece sugerir que o passado não tem remédio e que nenhuma lobotomia colectiva será capaz de extirpar o mal da memória, cujas metástases alastraram ao mais recôndito das aldeias e ao mais íntimo dos clãs. (p.103) Apesar de tudo, o autor insiste em criar uma personagem – qual sentinela cega: a esperança; sentinela que o cronista coloca à porta das ruínas à espera de um reinício. A visão crítica do cronista, que não se inibe em descrever o cenário de horror de uma guerra civil, estende-‐se também a um tema de grande actualidade: o olhar dos media, nomeadamente o papel da televisão na cobertura da guerra, sobretudo na guerra em directo. Na crónica «Catodoluminescência», o cronista inicia o texto com uma oposição: a imutabilidade e a mutabilidade da guerra. Este aparente paradoxo é explicado logo de seguida: a guerra, como realidade cruel e sangrenta, com a sempre constante presença da dor e da morte, alia-‐se, agora, a um novo instrumento tecnológico – a Televisão – que vem conferir ao cenário bélico uma nova tonalidade.
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In: Ristovitch, Milan, (2009), «Breve Resumo da História da Experiência Jugoslava (1918-‐1991)», Conferência proferida no Arquivo da Universidade de Coimbra a 8 de Junho de 2009, no âmbito do CEIS20.
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CRÓNICAS JUGOSLAVAS DE ÁLVARO GUERRA A ESCRITA COMO RESGATE DA MEMÓRIA Ana Teresa Peixinho – FLUC / CEIS20 A Televisão é vista aqui como filtro parcial e parcelar, medium simplista e simplificador que ajuda a pintar a preto e branco cenários bem mais complexos, à semelhança do que sucede na ficção cinematográfica: “a identificação dos good boys e dos bad boys depende muito do lado onde se filma” (p.108). A televisão é também encarada como um analgésico dos espectadores: adormece-‐os, habitua-‐os ao horror, torna banais situações trágicas e, sobretudo, pode assumir-‐se como um meio justiceiro, seleccionando criteriosamente o que mostrar e o que ocultar: Mas a bestialidade destes carrascos não pode fazer-‐ nos esquecer a bestialidade dos outros carrascos «mais competentes», daqueles que souberam poupar os nossos olhos a idênticos massacres. Todo o crime terá o seu castigo – o crime que se exibe e o crime que se oculta. A televisão não é um tribunal. Mas parece. (pp.108-‐109) A Jugoslávia do Passado ________________________________________________________________ Vejamos, agora, que memórias são seleccionadas pelo olhar nostálgico do cronista que nos fazem reviver os seus anos passados entre os jugoslavos e que permitem, a jeito de mosaico, reconstruir de novo a pátria desmembrada. Que episódios nos conta? Que cenários evoca? Que personagens celebra? Partindo da morte de um cineasta seu amigo – Ratko Ilic – o cronista faz uma incursão por um dos aspectos da antiga Jugoslávia que mais o tocou – a fraternidade e o companheirismo. Como ele próprio afirma, a sua morte aparenta ser um “fim cheio de simbolismo” (p.20): símbolo do ocaso de um passado de harmonia, companheirismo e partilha. Estas características da Jugoslávia do passado são constantes na descrição de alguns episódios evocados pela memória do cronista: o festival de poesia de Struga, descrito em «Babilónia Poética», que simboliza a união de povos, línguas e costumes; a cidade de Sarajevo, evocada em «As Pontes Cortadas», em termos de cidade-‐ 9
CRÓNICAS JUGOSLAVAS DE ÁLVARO GUERRA A ESCRITA COMO RESGATE DA MEMÓRIA Ana Teresa Peixinho – FLUC / CEIS20 paradigma de convivência; a tão minuciosamente descrita caçada ao javali, com os camponeses de Miros, em «A Mona Lisa de Hlebine»; a excursão anual à reserva de caça de Karadzorzevo, feita no comboio azul; o elogio à figura do marechal Tito como o responsável pela unificação dos Balcãs; o ambiente de salutar liberdade e camaradagem vivido no Clube dos Escritores em «O Regresso do Passado»; a improvisada festa pagã em Zemum à beira do Danúbio, ao som da música de ciganos em «Aparições». Todas estas evocações têm em comum o elogio do ambiente de fraternidade, união e alegria que era vivido na Jugoslávia do passado, antes do ódio da guerra ter novamente cumprido o devir da História, desunido os povos com preconceitos nacionalistas e religiosos. Aliás, esta desunião é explicada historicamente na crónica «O Regresso do Passado» onde, logo de início o autor aponta o dedo à religião como responsável pela divisão de servos e croatas, apesar de tudo unidos por uma língua comum. Por isso, o «Clube dos Escritores» é o último reduto de uma liberdade e de uma autonomia religiosa, reclamadas pela elite intelectual e celebradas pelo cronista: A elite jugoslava iniciava abertamente o seu percurso pela terra de ninguém – banira a iconografia, a do punho fechado e a das mãos postas. (p.77) Esta mesma elite que vivia desenfreadamente o presente para não ter de pensar no futuro, nem no passado, ambos marcados por ódios, massacres e êxodos. Por isso mesmo, celebra e elogia a vida despreconceituada que o seu amigo Ratko Ilic levou, em «Saudades que matam»: Fez bem o meu amigo Ratko Ilic em viver com urgência e sem preconceitos, já que as históricas precariedades balcânicas não pouparam à sua geração mais uma tragédia. (p.20) Outro aspecto interessante e estruturante destas crónicas tem a ver com a dimensão temporal: há uma espécie de movimento pendular constante entre passado 10
CRÓNICAS JUGOSLAVAS DE ÁLVARO GUERRA A ESCRITA COMO RESGATE DA MEMÓRIA Ana Teresa Peixinho – FLUC / CEIS20 e presente, a que já fizemos referência. Um passado feliz mas com receio do futuro; um presente marcado por destruição e morte. Esta dicotomia está bem evidenciada sempre que o cronista está perante fotografias de momentos vividos na Jugoslávia: Ao rever álbuns de fotografias com quinze anos e mais, descubro-‐me como figurante de antes do caos, plantado na neve da Bijelasnica, por cima de Sarajevo, tendo ao fundo um moderno hotel hoje esventrado pelos canhões, ou em pose turística na velha ponte de Mostar agora derrubada pelo ódio fratricida. (p.20) São as fotografias que confrontam o cronista com o que já não existe: o hotel destruído, as pontes caídas. Contudo, como comenta num desses momentos: O que não se vê surge, muito nítido, na memória – a bulha do bazar, o cheiro dos bolos fritos, o sabor amargo do café à turca cortado pelos cubos de pasta doce com travos de menta e canela.” (p.32) Refere-‐se aos cheiros, às cores e sabores da antiga Jugoslávia. Como sublinha Raul Lourenço, um dos aspectos mais marcantes desta obra reside precisamente na forma harmoniosa como as memórias afectivas do cronista se intersectam com a sua capacidade crítica e analítica: A memória do escritor, repleta de afecto em permanente intersecção com capacidades reflexivas também marcantes (…) constitui-‐se realmente como o centro dinamizador da escrita, pois é sobretudo nela que assenta o dito carácter residente da obra, é ele que, simbolicamente, permite reerguer as
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CRÓNICAS JUGOSLAVAS DE ÁLVARO GUERRA A ESCRITA COMO RESGATE DA MEMÓRIA Ana Teresa Peixinho – FLUC / CEIS20 pontes destruídas que a televisão exibe (…) faculta o acesso aos cheiros que a foto não mostra (…)10 Aliás, muitas páginas destas crónicas são extremamente cinestésicas e transmitem bem o fascínio que a gastronomia, o folclore, a pintura naïf e os vinhos exerceram sobre o cronista. Festas, repastos, mercados são inúmeras vezes descritos, em páginas cheias de um colorido local, em que o leitor é transportado para os ambientes descritos, como se de uma grande tela cinematográfica se tratasse. Momentos como estes são a antítese da destruição, do caos e do ódio que marcam os cenários no presente. Um ódio que, como comenta o cronista, “precisava também de assassinar a memória e a inteligência” (pp.32-‐33). Por isso, evoca como símbolo desse passado destruído as pontes e os rios em «As Pontes Cortadas» e o comboio azul cuja última viagem simboliza uma viragem: a morte de Tito. Apesar de tudo, é persistente a presença, nesse passado, de marcas de guerra, destruição e revolta: daí a reminiscência do episódio da I Guerra Mundial (em «As Pontes Cortadas»); a descrição das ruínas do sítio arqueológico de Donji Milanovic (em «O Ciclo da Vida nas Portas de Ferro»). Conclusões ________________________________________________________________ Estas crónicas de Álvaro Guerra são exemplares acabados de um género que se vai construindo na fronteira entre discurso literário e discurso jornalístico. A crónica é, desde a sua origem, em oitocentos, um género compósito, oriundo da imprensa e com ela partilhando da sua efemeridade, acolhida por vezes no livro, numa luta contra o desgaste do tempo, como sucede com estas treze crónicas. Situadas na fronteira de dois registos de escrita distintos, embora pertenças indiscutíveis do literário, estas treze crónicas são tributárias de influências da textualidade jornalística, que, como já referimos, também ocupou o autor. Do jornalismo, extraíram: a base real; o saber baseado na experiência vivida in loco; a 10
In: Lourenço, Raul, (2000), «Recensão Crítica a Crónicas Jugoslavas de Álvaro Guerra», Colóquio / Letras, nº155-‐156, p.428.
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CRÓNICAS JUGOSLAVAS DE ÁLVARO GUERRA A ESCRITA COMO RESGATE DA MEMÓRIA Ana Teresa Peixinho – FLUC / CEIS20 atracção pelo detalhe; o realismo de cenas e cenários; o cruzamento de quadros e pessoas numa espécie de grande-‐reportagem subjectiva e crítica. No entanto, se tivermos em conta um conjunto de aspectos incontornáveis, caracterizadores do estilo e da narratividade destas crónicas, perceberemos que pertencem por direito ao cânone da Literatura breve: a linguagem metafórica; a presença de uma espécie de realismo mágico, bem patente na crónica de «A Mona Lisa de Hlebine», que o autor terá absorvido da leitura de romancistas sul-‐americanos, como Gabriel García Márquez; o recurso permanente a elementos simbólicos; a linguagem e estilo extremamente visuais e sensoriais; a subjectividade transmitida através de um discurso emotivo e avaliativo, fruto da memória afectiva com que o cronista reconstrói a sua história, etc. São treze quadros de um vasto mosaico que ilustram as diferentes realidades da antiga Jugoslávia: marcada pela variedade, pelas diferenças, pelas paisagens exuberantes, pelas marcas incontornáveis da História, pela solidariedade e fraternidade. São treze quadros através dos quais o cronista tenta preservar, pelo esforço da memória, o passado intacto e a identidade peculiar desse Estado / Nação que foi a Jugoslávia. Deste modo, as treze crónicas de Álvaro Guerra constituem-‐se como um exercício de escrita que resgata a memória que o escritor não quer ver trucidada pela História. Coimbra, Setembro 2009 Ana Teresa Peixinho FLUC Investigadora CEIS20 BIBLIOGRAFIA A.A, (1994), Escritores Portugueses em Itália, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro. Divisão de Difusão do Autor e do Livro Gastão, Ana Marques, (2002), Diário de Notícias de 19 de Abril 13
CRÓNICAS JUGOSLAVAS DE ÁLVARO GUERRA A ESCRITA COMO RESGATE DA MEMÓRIA Ana Teresa Peixinho – FLUC / CEIS20 Guerra, Álvaro, (1996), Crónicas Jugoslavas, Lisboa, D. Quixote Guerra, Álvaro, (1991), Memória, Lisboa, Círculo de Leitores Lourenço, Raul, (2000), «Recensão Crítica a Crónicas Jugoslavas de Álvaro Guerra», Colóquio / Letras, nº155-‐156, p.428. Ristovitch, Milan, (2009), «Breve Resumo da História da Experiência Jugoslava (1918-‐ 1991)», Conferência proferida no Arquivo da Universidade de Coimbra a 8 de Junho de 2009, no âmbito do CEIS20.
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