Crônicas marciais flutuantes: do bunburyō ao berimbau

Share Embed


Descrição do Produto

1 Crônicas marciais flutuantes: do bunburyō ao berimbau1

Imagem 1. Entre Budas no centro de Tokyo.

(Prof. Dr. Fabio José Cardias Gomes – – docente dos cursos de graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) – nos brinda com um texto interessantíssimo no qual cruza sua biografia e a busca por um “caminho marcial”. Por meio de experiências como seus “cinco longos anos…” passados no Japão e sua raiz “mandingueira” de capoeirista, o Prof. Cardias ou simplesmente “Mamute san” como prefere ser chamado, encontrou nas curvas da mestiçagem a sua estrada marcial. É agora um “nipomandingueiro”! Boa leitura a todos(as)!2)

1

Este pequeno texto foi originalmente escrito à moda de convite do Professor Rodrigo Cribari Prado, Mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e docente da UNIBRASIL/PR, para ser publicado no site do Grupo de Estudos Sócio-Históricos em Esportes de Combate, Lutas e Artes Marciais, do Departamento de Educação Física da UFPR, em 12 de Abril de 2016. Ver também https://gesheclamufpr.wordpress.com/2016/04/12/cronicas-marciais-flutuantes-do-bunburyo-ao-berimbau/. 2 Apresentação elaborada pelo Professor Rodrigo Cribari Prado.

2 “Ouçam! Uma vez, Ma Tsu estava em seu caminho para um lugar qualquer, na companhia de Pai Chang, quando de repente viram um pato selvagem voando sobre suas cabeças. Ma perguntou: O que é isso? Pai respondeu: Um pato selvagem. Ma: Para onde ele está voando? Pai: Já voou! De repente o mestre apertou o nariz de Pai Chang e o torceu violentamente. Pai gritou de dor: Ai! O mestre logo lhe replicou: Como você pode dizer que o pato selvagem já voou?” (IZUTSU, 1986, p.47).

“Na roda de capoeira; a cabeçada e a rasteira; o camarada vai ao chão; se o jogo é mandingueiro; preste muita atenção; deixe ele amarrado; com a força da oração; mas, se ele é traiçoeiro; segura e bate com a mão; ou se ele tá armado; fazendo cara de mau; saia da roda meu amigo; em respeito ao berimbau; não tenha medo do perigo; de corpo aberto ele não vem; se o seu corpo é fechado, camarado! Não tenha medo de ninguém.” (CRUZ, 2006, p. 238)

Acima, a estória entre dois grandes mestres é reconhecida como um dos kōan mais famosos da era de ouro do Zen Budismo: mestre Ma Tsu Tao (709788 a.C.) e discípulo Pai Chang Huai Hai (720-814), trazida por Toshihiko Izutsu (1982), o filósofo e islamista japonês de mesma filiação que Henry Corbin (1976). Em seguida, os ensinamentos sobre como se defender em um jogo mandingado, as recomendações do mestre ao aprendiz reverberam na musicalidade dos ensinamentos da capoeira antiga, como nos recorda mestre Bola Sete (CRUZ, 2006).

3

Imagem 2 - Pagoda Balinesa

O kōan aponta minha paixão orientalista, a sabedoria mandingueira a minha negritude mestiça. O meu interesse pelo longe oriente se iniciou na infância com o cinema marcial: Gafanhoto (David Carradine), Besouro Verde (Bruce Lee) e cinema chinês. Minha alma capoeira, angoleira, se formou ao

4 longo do tempo, nascida em um treinamento que emergiu como encantamento com o chamado berimbauístico, com uma canção (gītā) sublime (bhagavad), que se estendeu na direção de outro Besouro: Preto… Mangangá! Na busca oriental, cheguei até a grande arena do sumō, o Kōkugikan, na trilha afrobrasileira até o Forte da Capoeira, ou à Budai (International Budō University) e à Casa de Samba de Roda do Recôncavo, em convívio com mestre Gato Góes, seu Sinésio de Souza Góes, filho do renomado Gato Preto. Fui ao Japão, onde estive por longos cinco anos e onde vivenciei aikidō, judō, iaidō e kyudō em diversas universidades e dōjōs importantes em todo o país, e mesmo em outros países asiáticos.

Bem, desesperadamente tentando entender o Budō, conversei com vários mestres velhos. Minha atenção flutuante, como no conceito psicanalítico, tentava sobrepor tudo que treinava, sentia, lia, ouvia e via.

Anos mais tarde me convenci de que um caminho só bastaria para me levar à síntese de Musashi: que o caminho está ou é tudo que se fizer e ao se fazer a gente se torna o próprio caminho. O que inevitavelmente nos levará a um “Conhece-te a ti mesmo” grego ou chinês. Daí Bunburyō, ambos o domínio da espada e da pena são importantes.

Ainda na academia do sensei Machida em Belém, quando praticava aikidō, com Marcelo Marques, antes de ir ao Japão, nas raras conversas que tive com o pai do campeão Lyoto, persistia essa sensação de que um estilo marcial bastaria para compreender a formação do caráter, o desenvolvimento da pessoa e a liberação do corpo. Precisei dar minhas mil voltas ao mundo (camará!) para entender meia dúzia de palavras do mestre nipoamazônida.

5

Imagem 3. Oficina com o mestre de capoeira Lua Rasta

Nessas

caminhadas

flutuantes,

duas

imagens

me

marcam

profundamente quanto à busca de uma identidade marcial. Uma delas é um grupamento de praticantes de Pencak Silat, na aurora da manhã, em uma das praias de Bali, na Indonésia. Outra é uma turma de iaidō de idosos octogenários, em um crepúsculo do entardecer, dentro do mais belo dōjō okinawano. Em um pensamento – que ainda me persegue – não vi diferença essencial das buscas marciais nas praias balinesas ou no templo nipônico, ou mesmo no karatedô praiano, ainda que diferente do de Tōkyō, muito mais do pré-olímpico.

Nem as lutas de MMA, como o extinto Pride que frequentei no Tōkyō Domo, ou todas as lutas que assisti de UFC, toda essa espetacularização televisionada de sucesso midiático, não me marcam tanto quanto como as imagens narradas acima. E por quê? Porque estão mais em conformidade com meu interesse nas artes marciais como caminho, filosofia, modo de vida, de

6 lutar bonito. Uma estética ou uma arte, para a autorrealização, autoaperfeiçoamento, ou auto-organização do modo de ser na re-existência.

Não que não reconheça a importância contemporânea da luta esportiva profissionalizada, do esporte de combate, das olimpíadas, ainda que menos ritualizados, ou já desmitologizados. Desisti de pensar sobre as críticas possíveis sobre a esportivização das artes marciais em detrimento da sua espiritualização,

no

sentido

de

desenvolvimento

da

corporeidade-

personalidade, do infante ao senil. Essa é a fonte atual do meu interesse pelos rizomas mitológicos das artes marciais. Poderia ir além, pois na minha prática clínica com atletas de alto rendimento: depressões leves e profundas, surtos ansiogênicos e aspectos negativos dariam motivos para levar em frente a crítica acima. Mas não me dedico mais a isso, estando no centro dos meus interesses as mitológicas marciais. E como tem sido interessante notar a relação tectônica (terrestre) com a marcialidade, pois parte-se da agricultura à dimensão guerreira.

Imagem 4 - Iaidô em Okinawa

7 Só lembrar que a classe samurai foi uma convocação de 5% da população japonesa, pequena não é? De pequenos agricultores em defesa de feudos. Que o sumō originou-se como luta ritual em comemoração à boa colheita, oriundo da luta entre dois deuses: o Kōjiki relata a vitória de Takemika-zuchi contra Take-mina-kata.

E a capoeira, que surgiu em meio rural, pela qual nos chega seu corta capim, o que aponta a intimidade de quem sabe manusear um terçado. Só lembrar que na tradição africana, o orixá das armas, metalurgia e guerra, Ogum, o senhor da capoeira, é mais um deus agrário que marcial. A defesa da terra – simbólica da defesa de si, do seu território – é um comportamento tanto de base biológica como mitológica. Ou o karate da era Tang na China, e depois o Okinawano, que fez de instrumentos agrários, extensões potentes das mãos e pés dos agricultores, pescadores, proibidos de pegar em armas contra o exército japonês.

Tudo acima nos remete aos ancestrais Pandavas e Kuravas da tradição Védica de Vyasa, “o Preto”, ou ao sabre retilíneo ancestral que canaliza o Ki criador de Izanagi. Responder se o pato do kōan zen já voou ou não, ou se o corpo fechado da mandinga realmente nos protege, é questão em aberto que ilustra a polissemia das artes marciais como caminho do desenvolvimento da pessoa, do seu caráter e seu corpo saudável, na busca de longevidade. Que a parte abocanhada pelo mercado, profissionalismo e modismos esportivos não extinga essa encantaria marcial, seu mundus imaginalis e o aspecto mais sensível de sua pedagogia, como outros modos de percepção.

REFERÊNCIAS: CHAMBERLAIN, Basil Hall (translator). The Kojiki-records of ancient matters. Tuttle publishing: Tokyo, 1981. CORBIN, Henry. Mundus Imaginalis: or the Imaginary and the Imaginal. 1976. Disponível em , acesso em .

8 CRUZ, José Luiz Oliveira (Mestre Bola Sete). Histórias e estórias da capoeiragem. P555 edições: Bahia, 2006. IZUTSU, Toshihiko. Toward a philosophy of Zen Buddhism. Prajňā Press: Bolder, 1982.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.