Cruzando o Rubicão.

September 18, 2017 | Autor: Sidney Shine | Categoria: Psicanálise, Alienação parental
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1. Título “Cruzando o Rubicão: o manejo em um caso de Síndrome de Alienação Parental”. Trabalho apresentando no 1º Congresso de Psicologia e Adolescência realizado em São Paulo de 13 a 16 de outubro de 2010.

2. Resumo Trata-se do atendimento psicológico a duas adolescentes de 13 e 15 anos por determinação judicial. A família passou por uma avaliação pericial psicológica em processo de Vara de Família. A perita psicóloga conclui que havia uma Síndrome de Alienação Parental (GARDNER, 2006) indicando uma intervenção psicológica para ajudar na reaproximação do pai (genitor alienado) em relação às suas duas filhas. O atendimento psicológico foi conduzido tendo o aval e o acompanhamento do Judiciário. Após as entrevistas com o pai, solicitante da intervenção, e sua companheira atual, aceitamos o caso. A condição de ser também um profissional perito em casos similares facilitou o entendimento da demanda por atendimento psicológico com o envolvimento do aparato judiciário. Apresentamos em linhas gerais o que se entende por Síndrome da Alienação Parental (SAP) e como ela se manifestava no presente caso. Descrevemos o movimento geral do atendimento psicológico com sessões em conjunta das irmãs e das filhas com o pai, bem como sessões individuais com cada uma das adolescente e com o pai. Houve um breve contato com a mãe também. As adolescentes evoluíram de uma situação de total resistência ao pai e seu núcleo familiar reconstituído a uma aceitação relativa dos contatos e da psicoterapia. As filhas apresentavam uma aliança com a mãe no sentido de evitarem, ao máximo, um contato com o pai, sua companheira, seus enteados e os avós paternos. Os horários de visitação eram cumpridos, sob pena de uma intervenção judiciária, mas vários subterfúgios eram utilizados como forma de se evadir de um contato mais próximo no ambiente paterno. Exemplos são dados. De um estado inicial de fechamento e de cumplicidade entre as irmãs, foram se manifestando as diferenças a medida que o atendimento progredia. A irmã mais velha tinha uma postura de oposição mais verbalizada: criticava, reclamava e, ao mesmo tempo, fazia demandas concretas ao pai (viagem como presente de aniversário). A mais nova

buscava copiar e seguir esta mesma conduta, no entanto trazia para as sessões bem como no contato com o pai, outras vivências e experiências que apresentavam um menor grau de rejeição e críticas. Com o tempo começaram a aparecer as divergências entre as irmãs e a competição entre elas. Abordar tais diferenças foi crucial para se abordar as diferenças entre o pai, na visão que haviam construído com a mãe, frente à própria percepção nas interações durante os períodos de visitação. Foi-se abrindo uma experiência de dissonância que aumentou a angústia e a mobilização para a própria terapia. Às vezes, tais sentimentos eram atuados de forma impulsiva e disruptiva, colocando o terapeuta no lugar do juiz que deveria trazer a situação para o “normal”. O manejo das sessões levou em conta o nível de identificação que as irmãs apresentavam e a capacidade deste pai de manter viva a lembrança da proximidade que havia entre eles. A manifestação do terapeuta no sentido de relatar as mudanças durante o período de controle do judiciário, bem como se posicionar frente aos riscos às filhas culminou com a sentença judiciária a favor do pleito do pai. Uma vez dada a sentença, recomendamos que a psicoterapia pudesse continuar de forma particular a cada uma delas e fora do controle do Judiciário.

3. Palavras-chave Alienação parental – perícia psicológica – psicanálise –adolescentes e família

4. Construção do trabalho -

INTRODUÇÃO Inicialmente, gostaríamos de agradecer o convite da comissão Organizadora e Científica do 1º Congresso Brasileiro de Psicologia e Adolescência para participar como palestrante nesta Mesa por indicação da Professora Dra. Sonia Parente. Escolhemos como objeto desta exposição um trabalho que teve como foco inicial adolescentes (duas irmãs de 15 e 13 anos), mas cujo trabalho envolveu a dinâmica familiar, mais especificamente a relação do pai com estas meninas.

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Este trabalho se dá por uma demanda que parte de uma instituição judiciária, mas tem sua ação e seu escopo dentro do enquadre clínico. Um dos objetivos do trabalho é abordar um tipo de caso que implica numa comunicação com a autoridade judiciária (juiz), levando em conta a necessidade de se conhecer algo do processo judicial que dá origem a este tipo de caso. Oportuno também pelo momento histórico em que vivemos no Brasil. Em 26 de agosto último foi promulgada a Lei Nº 12.318 que trata sobre a alienação parental. A lei define como tal em seu artigo 2º (BRASIL, 2010): Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.

Iremos abordar um caso que recebeu um diagnóstico de “Síndrome de Alienação Parental” ou SAP por meio de uma prova pericial psicológica nos procedimentos próprios em que correm tais casos em Vara de Família. O objetivo do presente trabalho não é abordar a atividade pericial psicológica. Para tal, remetemos o leitor a outra obra (SHINE, 2003). Trataremos do manejo psicoterapêutico da família, mas especificamente de duas filhas e seu pai enquanto encaminhamento coercitivo pelo Judiciário como resultante da perícia psicológica. Nosso objetivo é ilustrar as dificuldades e as especificidades de uma situação que coloca os responsáveis adultos em situação de conflito, duas adolescentes no meio deste litígio e a atuação conjunta da autoridade judiciária e do psicoterapeuta. Para tal, abordaremos um histórico processual sucinto do caso. A avaliação psicológica pericial diagnosticando a Síndrome da Alienação Parental. Uma descrição breve do que vem a ser o entendimento de tal Síndrome segundo seu idealizador (GARDNER, 2006). A partir daí, abordaremos algumas questões que apareceram no atendimento, levando-o ao seu desfecho.

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HISTÓRICO FAMILIAR INSTITUCIONAL Trata-se de uma família desfeita de quatro membros. O pai, a mãe, a filha mais velha e a caçula. O casal conjugal se formou em 1991, ele com 28 a. e ela com 30 a. As filhas nasceram em 1992 e 1994. A separação do casal ocorreu consensualmente em 2003. A guarda foi estipulada de forma “compartilhada”, com o pai tendo um grande período de contato com as filhas. Há um pedido por aumento de pensão alimentícia pela mãe que foi negado. Há reflexos na VISITA que vão se tornando difíceis e o pedido formal da mãe para alterar a cláusula de VISITAS. A perícia psicológica é realizada neste momento (segundo semestre de 2006). A psicóloga perita judiciária conclui em seu laudo que a situação da família era “demasiado delicada e grave”. Aponta um vínculo das mães com a menina “intenso” e de “controle total”, denotando uma “anulação recíproca de desejos e peculiaridades”. A perita enquadra a situação das meninas no “estágio grave da Síndrome de Alienação Parental”.

A SÍNDROME DE ALIENAÇÃO PARENTAL (SAP) A SAP foi um termo cunhado por um psiquiatra norte-americano acostumado a atuar como perito judicial em casos de disputa de guarda (GARDNER et al., 2006). Este autor agrupa uma série de fenômenos ou sinais que levaria a uma caracterização de um quadro psicopatológico envolvendo, pelo menos três pessoas: o genitor alienante, o genitor alienado e a criança alienada. Na SAP, os sinais que permitiriam interpretar tal quadro seriam: - uma resistência da criança em visitar o genitor descontínuo (utilizamos tal nomenclatura em oposição ao genitor guardião); - do mesmo modo não quer passar férias com ele (utilizaremos o pronome pessoal masculino para identificar o genitor descontínuo, uma vez que é o pai que ocupa este lugar na maioria dos casos); - tal resistência se estende aos demais membros da família paterna;

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- a criança critica, desmerece, deprecia ou ignora o genitor descontínuo em suas tentativas de buscar contato. Ou seja, pode-se concluir que a criança se empenha em uma campanha discriminatória contra o genitor descontínuo. É importante que tal fenômeno ocorra no contexto de disputa em relação à guarda de crianças. Envolve, portanto, pelo menos três pessoas, como dissemos anteriormente. Esta triangulação pode ser desempenhada por outras figuras familiares ocupando um do seus vértices, como avós, por exemplo. É comum que haja o que STAHL (1999) chama de uma “guerra tribal”, um lado da família cerrando fileiras contra a outra. A causa para tal comportamento seria uma combinação da influência da guardiã alienante (o que comumentemente se diria “fazer a cabeça”) e uma motivação da própria criança em denegrir o genitor descontínuo. É importante como um diagnóstico diferencial que realmente não haja um abuso e/ou negligência real perpetrado pelo genitor descontínuo que justifique o comportamento da criança. Portanto, a possibilidade de se afirmar a existência de uma SAP, de outra forma inexplicável, está na dependência de se descartar a hipótese alternativa do abuso ou negligência por parte do genitor descontínuo. Ora, como a ação do guardião é no sentido de se respaldar o comportamento evitativo da criança, não raras vezes isto se acompanha de críticas severas quanto à conduta do ex-cônjuge. Neste sentido, concluir pela SAP quase sempre significa concluir pela existência de falsas acusações contra o genitor descontínuo. A SAP não é uma síndrome clínica, em seu sentido estrito, uma vez que a causa dos sinais ou sintomas é, parcialmente, um fator externo à pessoa que os apresenta (influência da guardiã alienante). O fator externo é inferido, sendo difícil a sua comprovação (a influência ou programação de alienação). Este fator externo baseia-se em elementos não materiais, não físicos (portanto é passível de questionamento em relação a quem os percebe). Até o momento, não está incluída no DSM-IV. Passaremos na próxima seção a descrever a metodologia pelo qual abordamos o caso, adentrando aos aspectos clínicos e ao manejo das sessões.

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A METODOLOGIA DE ATENDIMENTO A teoria e a técnica utilizadas apóiam-se na Psicanálise. Neste sentido, o trabalho utilizou referencial clínico dentro do escopo da Terapia de Família (RAMOS, M., 1994; BOX, S. et al., 1994). Os encontros ocorreram às terças-feiras das 17 às 19 h. a partir do dia 29/05 estendendo-se até 28/08/07. Os agendamentos alternaram encontros individuais com a filha mais velha, a mais nova e o pai bem como momentos em conjunto: o subgrupo das irmãs e do pai com as filhas. A família foi assídua e pontual nos atendimentos. Houve apenas duas faltas da filha mais nova justificadas. A assiduidade era garantida pela determinação judicial, cujo desrespeito seria passível de sanção por parte da autoridade judiciária. Houve um contato com os avós paternos em conjunto, bem como dois encontros com a mãe das adolescentes, nos dias em que o pai e as filhas estavam em viagem de férias (julho de 2007). Houve um contato com a companheira do pai. Houve um contato com a psicanalista do pai.

O PROCESSO O processo psicoterapêutico é algo que se constrói em conjunto psicanalista-pacientes. A demanda pelo trabalho é essencial. Por demanda entendemos o desejo de se submeter a tal processo. Neste caso, a demanda é assumida de forma desigual e de acordo com o ponto de vista e do estágio de desenvolvimento dos envolvidos. O Meritíssimo Juiz de Direito determinou o Atendimento das adolescentes, entendendo que o que foi apurado na Perícia Psicológica poderia ser revertido por um processo psicoterapêutico. A posição das meninas esteve representada pela fala da mais velha, que retomando a conversa com o Juiz, entendeu que se não se submetesse à psicoterapia a sua mãe poderia sofrer as consequências. Portanto, o trabalho começou sob a égide de uma ameaça de uma autoridade que se sobrepunha à autoridade parental. Acrescentamos que tal atuação do Juiz de Família foi importante porque as meninas não precisavam “querer” ir à casa do pai e nem “gostar” de fazê-lo, mas porque “eram obrigadas” – isto fornecia uma defesa contra a necessidade de estarem alinhadas à mãe. 6

O começo do trabalho partiu da desconstrução desta premissa em relação à psicoterapia. Pois, se elas eram “obrigadas a vir”, elas não eram obrigadas a se manifestar sobre nada que não quisessem. O trabalho do psicanalista é desvendar sentidos que não estão claros para aqueles mesmos que pensam poder controlá-los. Esta filha mais velha comparece, logo no início, com um grosso livro embaixo do braço. Havia saído diretamente da aula de inglês, o título: Crossing the Rubicon1. Interpretamos que parecia que ela estava em um caminho sem volta. Ao mesmo tempo que trazia a conotação belicosa bem próxima ao embate que poderia haver entre o analista e uma adolescente contrariada. Vendo em retrospectiva o caminho percorrido, escolhemos este título para nomear este trabalho. Em outra ocasião, sua camiseta estampava outra palavra em inglês: 2

“dig ”. O pedido não é explícito, mas, pareceu-nos colocado desde o início. Fomos dividindo estas observações com a nossa interlocutora, questionando os sentidos para além daquilo que ela colocava explicitamente. O pai sempre se apresentou seguro de seu vínculo afetivo em relação às filhas e, reiteradamente, enfatizava isto a todo momento. Esta certeza foi ficando estabelecida à medida que os encontros progrediam. O pai se mostrava ansioso e preocupado com a passagem do tempo, as visitas aconteciam entre as sessões, mas não se remontavam à sensação de familiaridade da qual se lembrava. Contudo, enquanto espectador-participante, o movimento que percebíamos era outro. A distância afetiva entre este pai e suas filhas foi rapidamente encurtada, muito embora houvesse um certo isolamento que as irmãs realizavam na casa do pai (elas se retiravam para o quarto e não interagiam com as outras pessoas da casa, companheira do pai e seus dois filhos).

AS QUEIXAS INICIAIS Os primeiros encontros com as meninas tinham um ritual parecido. Começavam com o relato de queixas inespecíficas. Parecia que não importava muito o quê o pai fizesse, ele sempre estaria fazendo errado! Isto mais do que depor contra, somente confirmaram as suspeitas levantadas pelos laudos em relação a um estado de resistência e de 1

Originalmente, a frase “cruzar o Rio Rubicão” ficou famosa por uma passagem histórica em que J. César atravessa tal rio para a conquista de Roma. Ela é tomada como metáfora de uma “decisão importante”, “um passo fundamental”. 2 Em inglês “dig” quer dizer “cavar”, mas pode ser utilizado como gíria para “entender, compreender”. 7

queixa generalizada que era o motivo pelo qual “elas não queriam sair com o pai”. Este foi um pai particularmente persistente e paciente para insistir apesar do pouco retorno afetivo atual. CARTWRIGHT (2006) relata a impressão de que o filho, após um período longo sem encontros, passa a impressão de ter uma dupla personalidade, juntando a imagem do filho lembrado com aquele que é estranho e diferente do momento. Esta ideia ilustra bem a sensação de falta de familiaridade pela qual este pai passava, pois ele não conseguia “juntar” a imagem das filhas de hoje, com aquelas meninas que saíam com ele de uma forma menos defendida e natural do passado. Ao longo dos encontros outros sinais foram sendo mostrados como a vontade de ir a lugares aos quais pai e filhas estiveram juntos. Este movimento recupera algo de uma vivência escamoteada, mas como dizia o pai “ainda viva”. Este movimento também é apontado por CARTWRIGHT (2006) como sendo um dos passos encontrados em casos de alienação parental em que o vínculo foi restituído. Em todo este processo inicial, a filha mais velha esteve mais em evidência. A caçula tinha uma forma mais esquiva de se posicionar, menos confrontativa, mas também menos definida para si mesma qual era sua posição. Por ser mais nova, talvez, sofresse uma certa influência da posição da irmã. É como se as duas tivessem que se mirar uma na outra para não “ultrapassarem barreiras” consideradas perigosas. Neste sentido, as sessões também vão assumindo contornos distintos com cada uma delas. Esta filha mais nova fala com desenvoltura da classe do Colégio (ela estuda em uma escola particular em um bairro de classe média). Fala com certo ar de orgulho de que “a sua turma é considerada a mais terrível”. Perguntamos se ela também é terrível, ao qual ela responde que não. Ela não é, mas é como se pertencer a esta turma lhe proporcionasse, por contiguidade, uma certa satisfação. Por que seria? Há nesta filha uma certa reticência e uma certa dificuldade em ser mais abertamente confrontativa. Alguns de nossos encontros girou em torno do tema de um programa de desenho japonês (“mangá”) da qual era aficcionada. Consideramos interessante explorar este ponto, uma vez que a maior dificuldade desta “caçulinha” (o pai tinha uma forma carinhosa de tratá-la abreviando o seu nome), seja a de assumir suas próprias coisas. Este programa de televisão poderia, mais uma vez, remeter a desdobramentos de sentidos em função da relação transferencial que se criava. Este desenho chamado “Naruto”, criado por Masashi Kishimoto, retrata um menino chamado por este nome cuja particularidade é ser alguém diferente dos outros e, por isto, tem que fazer um grande esforço para ser reconhecido 8

e aceito. Este reconhecimento se dá por meio de várias provas de enfrentamento, físico e emocional, pelo qual o espectador, identificado com o herói, participa das disputas e se vincula a ele. Este herói tem uma importância pontual neste momento em que a filha mais nova procura descobrir suas coisas e também aprender a confrontar e enfrentar as diferenças de visão a respeito do que pensa e sente. Esta contraposição ficava mais evidente quando polarizava com sua irmã em relação a gostos e desejos. A caçula buscava se individualizar e se tornar independente e sua irmã mais velha era o melhor modelo para se contrapor para, ao mesmo tempo, se reconhecer nela e conseguir conquistar um lugar diferente do dela. Uma das formas pelo qual ela se expressava é por meio dos desenhos destes personagens que ela conseguia reproduzir com muita habilidade.

MOMENTOS ESPECIAIS Um dos momentos em que os três estavam juntos e no qual aspectos da vida própria foram colocados se deu quando se discutiu um exercício de escola em que se falava de orçamento doméstico. Trazendo o tema para a vida dos três, começou-se a falar no orçamento doméstico que a pensão paterna garantia e as atividades que as meninas fazem atreladas a tal pensão. Foi um momento pelo qual um assunto que não era tratado com as meninas pôde ser abordado de forma mais aberta e franca. Poder-se-ia pensar que “não se deva tratar sobre tais assuntos com crianças”. Contudo, no contexto em que ela apareceu respondia a um interesse e desejo de saber das filhas, tornando-se um tema importante da família. A conta pelo qual as próprias adolescentes foram elencando seus gastos demonstraram uma pensão de considerável valor. Um outro tema bastante mobilizador foi a questão da casa em que a mãe e a família morava e que fora vendida. Na partilha, tal casa ficou com a mãe e a venda dela foi sentida como uma “perda”, especialmente trazido pela fala da filha mais velha. Talvez, a saída da casa tenha sido a concretização de que a família não era mais a mesma. Em um momento bastante emocionado, a filha mais velha chora copiosamente pela saída desta casa, acusando seu pai de ser o causador de tal perda. O pai, ainda mais emocionado, explica que a casa não era mais sua após a partilha para impedir que ela fosse vendida. O mesmo estranhamento se deu com a casa atual do pai, que já era do conhecimento das meninas quando estas faziam visitas a ele quando recém-separado. Houve um momento em que a filha mais velha dá vazão a certo ressentimento de que ela esteja sendo habitada por outras pessoas (a nova família do pai) e que não seja mais a “sua casa”. Novamente, aqui houve a necessidade de um trabalho de discriminação da vivência interna 9

(sentimento de perda de uma condição – familiaridade) e a atualização, em termos de percepção e sentimentos, ligados ao estado de coisas que existem no momento, seja na vida delas como na do pai. Aqui pôde-se ver uma certa dificuldade de discriminação em que sentimentos antigos se confundiam com percepções atuais e conflitavam com a forma de expressão. Esta filha fez aniversário durante a vigência do nosso trabalho. A discussão sobre a comemoração ou não de tal data também foi um tema em nossas conversas. Havia uma certa relutância dela em comemorar, pois parecia não saber como gostaria de fazêlo. Próximo à data, teve a idéia de pedir uma viagem à Inglaterra para o pai. Este contraargumentou que uma viagem ao exterior é algo que necessitaria certo planejamento. Não era algo que se executava de uma hora para outra. Embora tal explicação estivesse dentro daquilo que pudesse compreender no alto dos seus quinze anos, sua forma de responder à negativa do pai foi de uma forma emocional (choro) e, novamente, ressaltando a sensação de perda (perda de algo que nunca tivera!).

UM MOMENTO BIZARRO O pai traz um evento ocorrido com alarme. O mesmo fato foi abordado com a filha mais velha que foi quem protagonizou tal fato: Em uma das visitas, a fim de “contemplar o belo luar da janela de seu quarto” na casa do pai, ela pegara a tesoura e cortara a rede de proteção. Ela comentou tal ato de forma natural, afinal a rede estava atrapalhando a beleza da cena! Chamamos a atenção do leitor para a diferença de percepção de tal atitude. Para o pai, tal ato, impensado e impulsivo, desconsiderava não só o contexto em que estava como também qualquer consideração seja em relação a ele (dono da casa e, portanto, da rede), seja em relação às outras crianças (a quem se destinava a rede como medida de proteção). E ela não percebera a intensidade da reação do pai. Por que ela não poderia perceber que tal ato seria considerado no mínimo, inadequado, senão totalmente deslocado? Nesta hora, ela faz uma cisão: “Ele não diz que é pra eu me sentir à vontade na casa dele? E depois tem uma reação desta só por causa da rede, eu não entendo”. Aqui caberia perguntar: se tal atitude fosse levada à cabo em casa de sua mãe, ela concordaria com a filha e acharia natural? Seria a vivência em sua casa, com sua mãe que lhe distanciaria tanto de perceber as diferenças em relação a seu pai? 10

Aqui foi possível perceber, pelo ato, um “ataque” ao pai e também ao enteado do pai (a quem se dirigia a proteção da rede). O problema em tal atitude era se ela encontrasse respaldo em algum outro pólo, o que deixaria as objeções dele como “simples implicações de um pai rabugento e careta”. A representação do pai para a filha mais velha tende a oscilar entre estes dois pólos: de um lado o pai parecia ser o detentor de uma potência que impõe limites e fazia exigências (havia controle do tempo de uso do computador, por exemplo); de outro, aparecia um pai desqualificado a quem era possível tripudiar e enganar. Neste ponto, o reforço da autoridade judiciária recolocava o pai no justo lugar de alguém que era, ao mesmo tempo, responsável e guardião de interesses e objetivos que, para as adolescentes, poderiam parecer simples caprichos pessoais.

A BUSCA DE UM PADRÃO O pai se caracterizava por ser um homem bastante disciplinado, metódico e persistente. Neste sentido, a busca de padrões de saúde para as filhas o fazia se preocupar com os vários hábitos delas. Em primeiro lugar, a instituição de hábitos alimentares. Ele enfatizava a importância da dieta alimentar balanceada e apontava os exageros em relação ao alimentos gordurosos e aos doces. A caçula estava tentando limitar a quantidade de batatinha frita. A maios velha buscava controlar o assalto aos doces. Além da questão alimentar, o pai levou a mais velha ao médico para uma consulta em função do seu estado amenorréico. Houve uma prescrição médica que ele fazia questão de acompanhar seu seguimento. Antes do processo, o pai não tinha acesso a esta condição da filha. A caçula também passou por avaliação médica. O pai insistia na volta de uma atividade física regular. Tal insistência redundou

no

início

de

atividades

de

Academia

esportiva

da

mais

velha.

A caçula ensaiava o início de atividade de dança. Ambas necessitavam de exercícios, junto a uma dieta alimentar balanceada para controlar o peso. Com a retomada das VISITAS junto ao processo de Acompanhamento Psicológico, este pai buscou influenciar positivamente suas filhas, procurando um padrão e uma rotina que tivesse como meta o próprio bem estar delas. É neste sentido também que buscava inculcar atitudes de reconhecimento e civilidade em relação à sua família e aos avós

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paternos. Com o tempo, elas começaram a sair do quarto e permanecer na mesa durante as visitas dos avós paternos. É dentro da busca de tais padrões de conduta e do viver que, de repente, uma tesourada na rede de proteção apareceu como uma atuação impulsiva de oposição e rebeldia ao pai. Pior se tal atitude encontrasse respaldo do outro lado, da mãe. O que parecia que acontecia era exatamente a diminuição da autoridade paterna em função da contraposição pela autoridade materna. É neste sentido que a continuação de uma atitude de oposição da mãe somente levaria a uma anulação dos esforços paternos. Não nos caberia julgar qual seria o padrão ideal de conduta a assumir em relação a filhos. Contudo, neste caso, baseado nas informações acima, não havia como considerar “saudável” um boicote em relação aos itens assinalados acima, a saber, a dieta balanceada, o seguimento médico, a prática regular de exercício físicos. Ou seja, a manutenção destas condutas iria de encontro às necessidades das jovens filhas, independente das diferenças entre os pais. A manutenção por si só de tais padrões justificaria a atribuição da guarda unilateral ao pai? Esta era a intenção legal deste pai.

OS CONTATOS COM A MÃE Houve dois encontros com a mãe que se mostrou interessada em vir conversar. Colocamos como objetivo para tal encontro o de permitir que ela, como mãe, soubesse quem estava responsável pelo Acompanhamento de suas filhas. Ela deixou claro que como um terapeuta escolhido pelo pai e imposto pela Autoridade Judiciária, ela era obrigada a acatar mas não aceitava de bom grado. Sua pretensão era de que as filhas pudessem fazer uso de uma psicoterapia, mas com alguém de sua confiança – alguém que ela tivesse, pessoalmente, conhecido e indicado. Neste sentido, o padrão não se alterara. Há uma cautela em não infringir diretamente uma ordem judicial, pois o risco maior seria ter ameaçada a guarda; o que, até então, parecia-lhe algo pouco provável de acontecer.

CONCLUSÃO O trabalho no contexto de um litígio processual requer do profissional conhecimento não só dos recursos psicoterapêuticos, mas também da própria instituição 12

jurídica. O trabalho necessitou ser feito em consonância com a supervisão judiciária. Em função de nossa vivência institucional, o trato com o Juiz da causa foi facilitado e utilizado a favor dos movimentos necessários para a condução da terapia. Ao término do período determinado judicialmente para a terapia, um relatório com o conteúdo aqui colocado foi produzido ao Juiz da causa. A manifestação do terapeuta no sentido de relatar as mudanças durante o período de controle do judiciário, bem como se posicionar frente aos riscos às filhas culminou com a sentença judiciária a favor do pleito do pai. Uma vez dada a sentença, recomendamos que a psicoterapia pudesse continuar com cada uma delas e fora do controle do Judiciário. Era setembro de 2007.

PÓS-ESCRITO: Em outubro de 2008 saiu a sentença que fez a reversão de guarda e período de VISITA para a mãe. Ambas iriam começar um tratamento psicoterapêutico e a mais velha seria assistida por um psiquiatra porque voltou a apresentar um quadro de tricotilomania que já havia sido diagnosticado em junho de 2004. Ao solicitar permissão do pai para expor o caso, recebemos notícias atualizadas junto com a referida permissão que transcrevemos (julho de 2010): C. (a mais velha) fez 18 anos em maio e voltou a morar com a mãe. Nossa relação hoje é pacífica, porém pouco afetiva. Temos nos visto pouco, porém nas poucas vezes que temos contato, tudo está em paz. Ela prestou vestibular ano passado e não conseguiu entrar. Tentou jornalismo na USP, Casper e PUC. Está fazendo ANGLO para tentar novamente no final do ano. Por outro lado, a J. (a caçula) deu a volta por cima e mudou radicalmente. Não é também uma menina muito afetiva, porém refez sua ligação comigo de forma mais intensa e da mesma forma se vinculou à S. (companheira do pai) e aos meus dois enteados. Está estudando no ------- (colégio em que meus dois enteados estudam). Está fazendo o primeiro ano do ensino médio.

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Depois, conta que a mãe não quis assinar os papéis para que a caçula fosse fazer uma viagem ao exterior com sua turma. Houve ingresso no Judiciário para suplementação de autorização para conseguir tal intento que foi bem sucedido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BRASIL. Casa Civil. Lei Nº 12.318, de 26 de Agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação parental e altera o art. 236 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12318.htm.

Acesso

em

27/08/10. BOX, S. et al. Psicoterapia com famílias. Uma abordagem psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1994. 255p. CARTWRIGHT, G.F. Beyond parental alienation syndrome: reconciling the alienated child and the lost parent. In: GARDNER, R.A.; SAUBER, S.R.; LORANDOS, D. The International Handbook of Parental Alienation Syndrome. Conceptual, Clinical and Legal Considerations. Springfield: Charles C. Thomas Publiser, Ltda., 2006. pp. 286-291. RAMOS, M. (Org.) Casal e família como paciente. São Paulo: Escuta, 1994. 265p. SHINE, S. A espada de Salomão. A Psicologia e a disputa de guarda de filhos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. 302 p. STAHL, P.M. Alienation and alignment of children. In: STAHL, P.M. Complex issues in child custody evaluations. California: Sage Publications, 1999. pp. 01-23.

5. Instituição que Pertence Consultório Particular: Rua Bertioga, 46 (Mirandópolis) Cidade: São Paulo – CEP 04141-100 Estado: São Paulo País: Brasil 14

Endereço eletrônico: [email protected]

6. Síntese Curricular NOME: SIDNEY K. SHINE FORMAÇÃO: Psicólogo pela USP (1983), psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae (1992), ex-Associado Clínico da Tavistock Clinic (Londres). TITULAÇÃO: Mestre e Doutor em Psicologia pela USP. Especialista em Psicologia Clínica e Jurídica pelo CRP-06. E-MAIL: [email protected] Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4778263E2

São Paulo, 13 de outubro de 2010.

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