Cuba e Angola à procura dos seus heróis

May 23, 2017 | Autor: Raquel Ribeiro | Categoria: Testimony, Cuban Studies, Post-Conflict Reconstruction in Angola, Angola
Share Embed


Descrição do Produto

Cuba Angola H

por isso sirva de epígrafe ao mais recente romance da cubana Karla Suárez, Um lugar chamado Angola (Porto Editora).

e

à procura dos seus heróis

Mais de 400 mil de cubanos estiveram em Angola de 1975 a 1991. Apesar das histórias oficiais, Cuba e Angola parecem não ter hoje a mesma visão desses anos. O Ípsilon falou com cubanos e angolanos que andam à procura dos seus heróis.

Raquel Ribeiro

Na sua série de fotografia e performance Camuflagem, Adónis Flores parte de uma foto sua no Huambo para apresentar temas como a fragilidade, a violência, o poder, a irracionalidade e a morte. Questiona assim também a heroicidade, o anonimato, os peões da história com caixa baixa

avana, Julho de 2011. Um amigo convida-me para um concerto de Frank Delgado, compositor da Nueva Trova cubana. Voz e violão, letras comprometidas e chistes subversivos, Frank estava todas as quartas no Sótano, no Vedado. “Tens de vir”, disse-me o amigo: “E verás o que os cubanos sentem sobre Angola.” Eu andava atrás das memórias dos cubanos sobre a guerra de Angola, mas tinha chegado a um impasse: o que se publicava em Cuba nessa época eram sobretudo testemunhos de militares que tinham estado em Angola. Independentemente da sua idade, classe, raça ou patente militar, contavam, de forma mecânica e talvez demasiado “eficiente”, a experiência da guerra: ideologicamente comprometida com o discurso da revolução, mas sem as tripas de fora. Na rua, contudo, bastava mencionar que era portuguesa para começarem a falar-me de Angola. E esses encontros ocasionais não tinham o mesmo tom dos livros, de orgulho pátrio: eram amargos, duros, tristes. Havia uma espécie de ressentimento. Mas quando se faziam mais perguntas, respondiam: “De Angola não se fala.” Foi assim que se me entranhou a ideia de que talvez Cuba sofresse de alguma espécie de “síndrome de Angola”: um discurso oficial em que se vangloriavam os heróis dessa presença de mais de 400 mil cubanos ao longo de 16 anos (1975-1991); e um discurso colectivo, implícito, com expressões de trauma latente. Estes dois discursos não se excluíam, nem eram contraditórios. Coexistiam numa mesma experiência: um veterano repetiria que fora a Angola para “ser como o Che [Guevara]”, cumprir o dever internacionalista de Cuba, líder da solidariedade com o Terceiro Mundo, ajudar um país irmão a lutar contra o imperialismo e proteger o MPLA do avanço da UNITA e das tropas sul-africanas. E o mesmo veterano contaria depois

Está em curso uma guerra de narrativas oficiais: os peões da história ficam em silêncio e só a literatura, o cinema ou as artes plásticas parecem conseguir ouvi-los, resgatar as suas vozes do esquecimento que, apesar do orgulho que sentia na sua missão, talvez Angola lhe tenha destruído a vida, a família, a relação com o álcool, as noites de sono, começando até a questionar o porquê desse esforço militar e humano. Também Frank Delgado foi em missão internacionalista a Angola nos anos 80. Nos concertos do Sótano, interpretava os clássicos, sobretudo os do período especial — pós-91, pós-URSS. A audiência acompanhava os velhos temas sobre imigração e a invasão turística de Havana, mas quando chegou Veterano a atmosfera mudou. Angola, mi novia procuró calor humano, mi perro, nuevo dueño. Y hasta puede suceder que algún día me llamen veterano. Não é coincidência que esta canção tenha marcado uma geração e

Lisboa, Março de 2017. Karla, 47 anos, ainda guarda as chapas de identificação militar do pai, que fez dois anos de missão em Angola. Há muito tempo que Angola a perseguia: no primeiro romance, Os Rostos do Silêncio (1999), havia um veterano. Em casa, diz, “quando éramos pequenos, Angola estava presente mas ainda era uma coisa quase secreta. Depois, nos anos 80 começámos a falar de forma normal. Quando estava na Universidade, um dos meus companheiros tinha estado na batalha do Cuito Cuanavale, fez lá o serviço militar. Angola tornou-se conversa de todos os dias.” A geração de Karla viveu tudo sobre a presença cubana em África. Mas naquela altura, ao contrário de outros escritores da sua geração, não lhe interessava falar de Angola: “Cuba é um país em que se vive com a história na cabeça. Tudo, desde que nos levantamos até nos deitarmos, é política. Qualquer momento, gesto, opinião se converte em política. É pesado. Mas sabia que um dia tocaria no tema.” A semente ficou. Continuou a guardar informação. Quando se mudou para Lisboa, em 2010, encontrou uma continuidade nos “testemunhos dos últimos anos da descolonização” que estavam a sair em Portugal, ouvia “gente que me contava a sua experiência em Angola”, portugueses que tinham feito serviço militar, angolanos a viver em Portugal e de diferentes quadrantes políticos. “Para entendermos as coisas temos de ter distância. Quando estamos a viver, não se entende. Foi muito tempo depois, e com muito mais informação, que pude juntar os pontos.” Levou quase quatro anos a escrever: tinha clara a ideia de que queria contar a história de Ernesto, que aos 12 anos perde o pai na guerra. Luanda, Setembro 1979. O escritor e crítico de arte angolano Adriano Mixingue tinha 11 anos quando aterrou na Ilha da Juventude, a sul da ilha-mãe, e onde Cuba tinha construído escolas secundárias para cubanos e para jovens de países do campo socialista. A sua irmã recebera uma bolsa para estudar em Cuba. Mixingue acompanhou-a à sede da Organização de Pioneiros Angolanos, onde ambos militavam: “Perguntaram-me se eu também queria ir.” Nessa mesma noite, pediu autorização aos pais. Viviam no bairro Nelito Soares que “naquela altura fazia a fronteira entre asfalto e musseque, e onde estava um destacamento de cubanos a construir uns prédios que estão na Avenida Brasil [actual Hoji Ya Henda]”. Apesar disso, Mixingue não tinha contacto directo com os cubanos: “Admirava-os. O acampamento que eles tinham feito por trás da Igreja de São Domingos era um lugar muito limpo e iluminado, havia semípsilon | Sexta-feira 10 Março 2017 | 23

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.