Cultura: algumas definições e conceitos

June 4, 2017 | Autor: A. Monteiro | Categoria: Cultura, Campo Cultural
Share Embed


Descrição do Produto

Cultura Algumas definições e conceitos António Jorge Monteiro *

Abordar a questão das definições e conceitos de “Cultura” implica, desde logo, aceitar um desafio de grande complexidade, atendendo a que este conceito tem múltiplos significados e significâncias, e tem, também, variadas designações, conforme os campos dos seus utilizadores. Como é referido por Livio Missir di Lusignano, em “Communauté et Culture”, só a nível europeu, existem várias asserções e aquilo a que “alguns chamam simplesmente “cultura”, (como por exemplo a França, a Espanha e Portugal), outros chamam “artes” (como no caso do Reino Unido), outros “Bens culturais” (como em Itália), outros “Kultus” (em lugar de “kultur”, como a Alemanha) e outros, ainda, “civilização” (“Politismós” como na Grécia) (1). A nível Mundial, o último texto da “Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural” da UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, assinada por praticamente todos os países, mais de 190, considera a “cultura”, no seu sentido mais lato, como não poderia deixar de ser, referindo que “a cultura deve ser considerada como o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além (do campo) das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças” (2). A União Europeia, para efeitos estatísticos, começa por seguir a definição de “Cultura”, no seu sentido mais estrito, adoptada pelo Leadership Group on Cultural Statistics - LEG-Culture, do Eurostat, em 2000, que tem uma abordagem delimitadora do campo cultural em 8 domínios (Património artístico e monumental, Arquivos, Bibliotecas, Livros e imprensa, Artes visuais e Arquitectura, Artes performativas, Áudio e audiovisual media/multimédia) e 6 funções destinadas a situar as actividades económicas culturais (Preservação, Criação, Produção, Divulgação, Comércio e vendas e Educação) (3). Mais recentemente, em 2012, o European Statistical System Network on Culture - ESSnet-Culture, do Eurostat, da Comissão Europeia, no seu relatório final, passa a considerar 10 domínios (Património artístico e monumental, Arquivos, Bibliotecas, Livros e imprensa, Artes visuais, Artes Cênicas, Audiovisual e Multimédia, Arquitetura, Publicidade e Artes Ofícios) e reformula as 6 funções Criação, Produção / Publicação, Divulgação / Comércio, Conservação, Educação e Gestão / Regulação (4). Em Portugal, o OAC - Observatório das Actividades Culturais (entretanto extinto, inesperadamente) na sua publicação ”As Políticas Culturais em Portugal”, de 1998, considera a Cultura como as actividades relativas às: Artes Plásticas; Música; Dança; Teatro; Cinema, Televisão e Rádio; Livro, (5) publicações e bibliotecas; Património, museus e arquivos; Actividades sócio-culturais . No âmbito das Pós-graduações em Gestão Cultural foi adoptada uma outra abordagem, também, em sentido restrito, não muito distante da utilizada pelo OAC, que considera como parte integrante do Sector Cultural: o Património Cultural (bens materiais e imateriais simbólicos eruditos, do passado); as Actividades Artísticas - Artes do Espectáculo, Artes Visuais, Artes Electrónicas e Humanidades (bens e serviços simbólicos eruditos, não facilmente reprodutíveis, do presente); Indústrias Culturais (reprodução e difusão em massa de bens e serviços simbólicos eruditos, do presente) e, ainda, a Arquitectura, simbólica erudita (de autor), do presente. A expressão “Industrias Culturais”, reapareceu, na década de 80 do século XX, na área metropolitana de Londres e espalhou-se rapidamente em Portugal - num contexto social em que a “moda” ditava a reverência pelo pensamento tecnocrático e pelo “pós-modernismo” superficial e folclórico dos seus seguidores - passando a ser usada, quer pelo Sector Cultural quer pela Comunicação Social, indiscriminadamente, relativamente a todas as actividades culturais e numa lógica mercantil, mas já

1

sem o sentido crítico, pelo modo alienante, que Theodor Adorno e Max Horkheimer (6), em 1947, atribuíam à sua exploração comercial. Neste contexto começou-se a procurar contribuir para consagrar uma outra nova acepção, atribuindolhe ainda um outro sentido, que passou a ter em conta não o fim, a sua exploração comercial, mas o meio, o processo de produção industrial, definindo então as Indústrias Culturais como: “actividades do campo cultural predominantemente assentes em processos de produção industrial”, tais como Cinema (chamado de “autor”), Televisão (como a RTP2, em Portugal), Rádio (como a Antena2, em Portugal) e publicações (edições de livros e música de “referência”). Vasco Graça Moura, no seu recente ensaio, “A Identidade Cultural Europeia”, de leitura recomendável, falando de “Identidade europeia, auto-reflexão e autoquestionamento” refere: “a oposição crescente - que provavelmente não foi partilhada pelas outras áreas do mundo ou, se foi, veio a sê-lo por influência europeia - entre humanismo e ciência que se esboçou a partir do séc. XVIII, com o primado da razão a sobrepor-se à importância das Humanidades, ou, dizendo de outra maneira, com as Humanidades a entrarem em decadência” (7). Esta oposição cruza-se com outras oposições, surgidas no mesmo século, como a que dividiu a antropologia europeia, sobre a questão dos conceitos de “Cultura” e “Civilização”. Cultura, durante o século XVIII, passa a ser utilizada com um complemento: Cultura das Ciências, Cultura das Letras, Cultura das Artes, etc. e começa a ser utilizada no sentido de espírito cultivado erudito - por oposição a um espírito natural - inculto, rústico. No século XIX, as escolas de pensamento antropológico começam a associar ao conceito de Cultura diferentes produções de Conhecimento. A antropologia anglo-saxónica considera “Cultura” como o conjunto da produção de Conhecimento espacial, colectivo e material - político, legal, económico, sociocultural e tecnológico - e individual e imaterial - artístico, literário, filosófico, moral e científico. A antropologia europeia continental, nomeadamente, francesa e germânica, considera como “Civilização” a produção de Conhecimento, mais espacial, colectivo, material e objectivo - político, legal, económico, sociocultural e tecnológico - e como “Cultura” a produção de Conhecimento, mais individual, imaterial e subjectivo - artístico, literário, filosófico, moral e científico o que está em linha (8) com o que é referido, também, por Frédéric Delouche em "História da Europa" . A Europa construiu-se com base na Cultura e Civilização Greco-Romana sendo que, ao distinguir-se Cultura e Civilização, “Cultura”, pela sua natureza sociocultural, poderá encontrar a sua raiz mais na Grécia Antiga e “Civilização”, pela sua natureza socioeconómica e tecnológica, poderá encontrar a sua raiz mais na Roma Antiga. Em linha com a abordagem antropológica europeia continental, considera-se Cultura, em sentido restrito, como produção de Conhecimento mais individual, imaterial e subjectivo - artístico, literário e filosófico - não tendo em consideração o conhecimento moral e científico. Entretanto, esta questão não pode deixar de nos remeter para a Gestão Estratégica das organizações, onde a produção de conhecimento, com base nos factores da envolvente externa macroambientais, foi consagrada pela tradicional “Análise PEST Político-legal, Económica, Sociocultural e Tecnológica”, incorporando a componente cultural em sentido alargado como um dos recursos e elemento diferenciador de natureza contextual, imaterial, conceptuais e simbólica da sociedade contemporânea. Outra oposição, no âmbito da Cultura, que importa ainda referir é entre “alta e baixa” ou “erudita e popular”, sendo que se considera preferível esta última designação, pelo seu carácter mais qualitativo.

2

Neste sentido considera-se a Cultura Erudita orientada pelas questões do Pensamento e das Artes, mais do domínio da Filosofia: Epistemologia e da Estética e a Cultura Popular, orientada pelas questões da Utilidade e das Tecnologias, mais do domínio da Antropologia e da Etnografia. O termo “erudito” no sentido etimológico provém de “ex-rude”, no sentido de algo natural que, depois de ter sido cultivado no sentido material/espacial, passou a ser cultivado no sentido imaterial/espiritual, através de um processo de elaboração e de aperfeiçoamento contínuo do conhecimento adquirido. Assim, sempre que se fala em Cultura, entende-se ser no sentido estrito, de Cultura Erudita, entendida como um valor, um bem público, algo que se usufruiu e se assimila, nomeadamente para os povos da Europa Continental, contrariamente ao entendimento norte-americano que a considera como um produto que se comercializa e consome. Entendendo-se como “bens públicos” todos os que produzem benefícios sociais a todos os cidadãos e que o mercado não consegue remunerar e, neste sentido, os bens e valores culturais, imateriais e materiais, têm um valor qualitativo intrínseco sendo factor de enriquecimento da pessoa humana, do seu relacionamento com o “outro” e, consequentemente, determinante para o exercício de uma ética de cidadania. Este entendimento oposto, do valor da Cultura, está na base das questões levantadas no âmbito da Diversidade Cultural, pela França e pelo Canadá, nas negociações comerciais multilaterais do GATT General Agreement on Tarifs and Trade, em 1994 (9), e que ficou reconhecida como a “excepção cultural” europeia, sendo que só é aplicável no âmbito das Indústrias Culturais. No Modelo Social Europeu, o acesso à Cultura é um direito social - não caridade pública - e sendo os direitos sociais obrigações da responsabilidade dos Estados de Direito Democrático exigem, também, às organizações Culturais, grande responsabilidade e total transparência na utilização dos financiamentos públicos - dinheiro dos contribuintes -, para a criação de Valor Social. No âmbito da Gestão Cultural, esta questão ganha especial relevância pois conduz para a necessária reflexão sobre o conceito de "marketing", quando aplicado no campo cultural, que Philip Kotler introduz em 1976 e que passou a constituir-se como uma componente da Gestão tendo por objectivo adequar os “produtos” à "satisfação das necessidades e desejos dos consumidores” (10). A Arte ocupa o lugar central da Cultura, em sentido restrito e Erudito, actividade estruturante do Sector Cultural, uma das vertentes organizacionais dos Estados de Direito Democrático, orientados pelo chamado Modelo Social Europeu, nomeadamente Continental e Mediterrânico. Sobre a Arte refere-se o pensamento de três grandes vultos da Cultura do século XX: - Rainer Maria Rilke, que em “Cartas a um jovem poeta”, Paris, 1903, refere: “Uma obra de arte é boa quando surge de uma necessidade. É no modo como ela se origina que se encontra o seu (11) valor” . - Fernando Pessoa, que em ATHENA 1924, refere: “O fim da arte inferior é agradar, o fim da arte média é elevar, o fim da arte superior é libertar. Mas a arte média, se tem por fim principal o elevar, tem também que agradar tanto quanto possa; e a arte superior, se tem por fim libertar, tem também que agradar e que elevar, tanto quanto possa ser [...]. Elevar e libertar não são a mesma coisa. Elevando-nos, sentimo-nos superiores a nós mesmos, porém por afastamento de nós. Libertando-nos, sentimo-nos superiores em nós mesmos, senhores, e não emigrados, de nós. A libertação é uma elevação para dentro, como se crescêssemos em vez de nos alçarmos (12). - Vasco Graça Moura, que no ensaio já citado refere: “Mas, fosse qual fosse a sua controversa utilidade, a arte sempre acabou por espelhar e também transformar o mundo”.

3

_________________________________________________________________________________ * António Jorge Monteiro Professor convidado, Orientador e Investigador na área de Gestão de Projectos Culturais. Coordenador de múltiplos Projectos e Programas de Pós-graduação e Mestrado em Gestão Cultural, em diversas Escolas Superiores e Universidades, nacionais e internacionais. Escreve em Português-padrão consuetudinário. _________________________________________________________________________________

Referências bibliográficas [a] [b]

documento disponível em Gestão Cultural Profissional / gestaoculturalpt.blogspot.com / Documentação sítio disponível em Gestão Cultural Profissional / gestaoculturalpt.blogspot.c om / Informações

(1) [a]

Lusignano, Livio Missir - “Communauté et Culture”, Revue du Marché commun et de l’Union européenne, nº 376, March 1994. (2) [a]

UNESCO - “Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural”, Paris, 2002.

(3) [b]

Eurostat - Office Statistique de l'Union Européenne, Internet, Janeiro 2015.

(4) [a]

Eurostat - “ESSnet on Culture Statistics - Final report”, European Commission, Luxembourg, March 2012. (5)

Santos, Maria de Lourdes Lima dos (coordenação) - ”As Políticas Culturais em Portugal”, Observatório das Actividades Culturais, Lisboa, Novembro 1998. (6) [a]

Adorno, Theodor W.; Horkheimer, Max - “Dialéctica del Iluminismo”, www.philosophia.cl / Escuela de Filosofía Universidad ARCIS, Amesterdão, 1947. (7)

Moura, Vasco Graça - "A identidade Cultural Europeia", Ensaios da Fundação / Fundação Francisco Manuel dos Santos, Relógio D'Água Editores, Lisboa, Novembro 2013. (8)

Delouche, Frédéric (coordenação) - “História da Europa”, Edições Minerva, Coimbra, 1992.

(9) [a]

Conselho da União Europeia - “Decisão do conselho (94/800/CE) - relativa aos acordos resultantes das negociações multilaterais do Uruguay Round (1986/1994), Jornal Oficial das Comunidades Europeias, Luxemburgo, 22 Dezembro 1994. (10)

Kotler, Philip - “Marketing”, Editora Atlas S.A., São Paulo, 1987.

(11) [a]

Rilke, Rainer Maria - “Cartas a um jovem poeta”, L&PM Editores, Porto Alegre, 2006.

(12) [a]

Pessoa, Fernando - “Páginas de Estética e de Teoria Literária” (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho), Ática, Lisboa, 1966.

_________________________________________________________________________________ Gestão Cultural Profissional / gestaoculturalpt.blogspot.com | Abril 2015 | v1.1

4

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.