CULTURA AUDIOVISUAL: DAS ORIGENS À SUA EMERGÊNCIA EM CABO VERDE

July 22, 2017 | Autor: Mário V. Almeida | Categoria: Digital Media
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A CULTURA AUDIOVISUAL: DAS ORIGENS À SUA EMERGÊNCIA EM CABO VERDE Mário Vaz Almeida* *Docente/Investigador na Uni-Piaget Cabo Verde

O nascimento do vídeo: a «oitava musa»1. Neste ensaio debruçamo-nos, assim, especificamente, sobre a cultura que emergiu como advento do vídeo enquanto aparato electrónico e tecnológico utilizado para uma dada comunicação estética, ideológica ou documental. Na sua nomenclatura o termo vídeo vem do latim vide que significa “eu vejo”. Tecnicamente, trata-se de um método de registo e reprodução de imagem e de som, sendo o seu princípio básico distinto da cinematografia, por se apoiar, não em processos fotoquímicos, mas nos fundamentos da imagem electrónica. A nossa história começa, por isso, no ano de 1956: o ano em que a empresa norte americana Ampex apresentou a patente vídeo aos investidores. Nascia oficialmente, na noite de 30 de Novembro de 1956, na convenção anual de radiodifusão na cidade de Chicago, aquilo que viria a ser a «oitava musa» de todas as artes: o vídeo. Num capítulo da obra colectiva “Documental y Vanguardia”, dedicado ao surgimento do vídeo nos EUA, Palacio (2005) apresenta-nos um panorama vistoso das convulsões ocorridas nesse país nas décadas 50/60. A indústria televisiva estado-unidense estava a braços com os problemas de transmissão que resultavam dos fusos horários distintos entre as duas costas do seu território. Necessitava, afinal, de um suporte audiovisual que resolvesse de uma maneira mais cómoda tais dificuldades e a solução surgiu com o novo aparato tecnológico revolucionário - uma patente da Ampex - que registava imagem e som de uma emissão televisiva numa cinta magnética de 5 cm de diâmetro. Era um equipamento de grandes dimensões e se compunha de um sistema propulsor que transportava a fita de uma bobina para outra, num tambor de quatro cabeças que efectuava o registo ou a reprodução da imagem e sons a 250 r.p.s. (rotações por minutos), apoiando-se numa fita disposta num sector vazio da máquina. Produzia, já nessa altura, 25 imagens por segundo, o que equivalia gravar programas de cerca de uma hora, com 1500 metros de fita. O vídeo permitia, a partir daí, que uma determinada notícia pudesse ser emitida nos informativos da costa Leste e três horas depois, sem muita dificuldade, (depois de registadas), ser emitida novamente nos informativos da Costa Oeste. O magnetoscópio, ora inventado, ficaria ao 1

Expressão usada por Barilli (1994) na sua obra «Curso de Estética» editada pela Editorial 70.

serviço das necessidades de armazenagem e arquivo de programas e durante mais de uma década o suporte electromagnético de registo de imagens e sons era monopólio das cadeias televisivas.

2. A emergência da cultura audiovisual Nos EUA, a 31 de Dezembro de 1963, na retransmissão de uma partida de futebol americano utilizava-se, pela primeira vez, o instant replay (a repetição da jogada) numa emissão televisiva. Segundo Palacio (2005), em meados dos anos sessenta (1965-1968) a empresa japonesa Sony comercializava nos EUA o primeiro vídeo dirigido a um mercado de consumidores fora do circuito televisivo. Eram vídeos portáteis que gravavam em branco e negro, baptizados de portapack, nessa era pioneira. O magnetoscópio portátil que antes devia ser transportado num carrito se pode agora transportar ao ombro numa pequena caixa. Ninguém, então, previa que o novo suporte de imagens pudesse vir a ter algum tipo de conteúdo próprio ou ser motivo para novas formas de expressão dotadas de uma certa autonomia estética, como a que Nam June Paik (1932-2006), um dos pioneiros na arte do vídeo instalação, viria a protagonizar ao realizar, em 1966, a primeira instalação com monitores de TV. Anos antes (1963/1964) quando vivia no Japão, fizera experiencias com manipulações electromagnéticas das cores da televisão. Essa experiencia de possibilidades artísticas com a electrónica levou-o a desenvolver, mais tarde, um sintetizador vídeo em colaboração com S. Abe, decorria o ano 1969/70. Segundo o mesmo autor, as mudanças drásticas e perturbadoras do vídeo surgiriam, porém, quando a Sony introduziu, em 1969, o sistema de registo helicoidal que permitiu gravar em fitas de menor diâmetro. Aparece, assim, no mercado, o Videocorder AV-3400 Sony e todos os equipamentos foram reduzindo, drasticamente, as suas dimensões, tornando-se no principal mote de desenvolvimento de uma vanguarda artística, nos anos seguintes. De salientar que o aparato vídeo popularizado pela SONY (simpaticamente baptizado de portapack), se apresentou no espaço público como a primeira grande alternativa para conseguir o completo controlo sobre o processo informativo até então dominado pelas emissoras televisivas. Suas características de manejabilidade, de ligeireza e leitura imediata o convertiam na ferramenta ideal de intervenção social. “A televisão não estava lá”: esta poderia ser a frase lapidar para os acontecimentos de Dealey Plaza, a 22 de Novembro de 1963, isto é, o assassinato de JFK ficou para a história do vídeo com as captações fortuitas de câmaras amadoras como a Bell & Hell/Kodachrome de A. Zapruder, o duplo 8 mm de Orville Nix, a Van Zoom de Tina Tower a Keystone 8 mm de Marie Muchmore. Em

paralelo com o trágico assassinato ocorria, também, esse outro acontecimento que simboliza toda a história do vídeo e da cultura que ela provocou nos anos posteriores: o carácter alternativo e documental da prática videográfica que ainda persiste nos dias que correm, pautando-se como os primeiros ramos de uma longa genealogia de acontecimentos retratados, criados e recriados em vídeo. Segundo Palacio (2005), em 1972, as câmaras de vídeo portáteis acabariam, finalmente, por se consolidarem como instrumentos de intervenção social, cultural e artística, sobretudo com a chegada do formato U Matic. No ano seguinte, o número de cineastas independentes já tinha passado de dezenas para mil e foi nessa altura que se produziu a primeira grande legitimação social do suporte vídeo: quando se incluiu as práticas videográficas na Bienal de Arte Americana do Whitney Museum. Cinco anos depois Nam June Paik participava em conjunto com Les Levine (1935 - ) na Documenta 6 em Kassel, na Alemanha. As últimas mudanças se efectuariam a partir daí num ritmo crescente. Nos meados da década de 70 chega ao mercado o magnetoscópio estacionário de meia polegada, tipo Betamax ou VHS, capacitados para gravar programas televisivos. O camascópio, fundamentado na nova captadora de imagem - o chip - foi o passo seguinte, e decisivo, por ter suplantado a unidade de registo de tubos. Durante esses anos, a tecnologia vídeo (câmaras e softwares de edição) se converteu numa parte do currículo académico em muitas universidades e escolas de arte. A partir desta data todo o ensino audiovisual passou a ser realizado em suporte electromagnético e nos anos que se seguiriam todo o cineasta ou realizador de documentários que tenha emergido no espaço público a partir da década de 80 viria a formar-se, obrigatoriamente, nos processos de produção vídeo. De acordo com Palacio (2005) as peculiaridades da prática videográfica sempre se fizeram sentir, tendo-se registado desde logo as primeiras manifestações de uma certa transgressão diegética. Em 1984, Michael Klier realiza Der Riese, um marco na recente e pequena história do vídeo: uma “reciclagem” das imagens captadas pelas câmaras de vigilância de aeroportos autopistas e aparcamentos. Eram imagens roubadas e unicamente acompanhados de uma música extra-diegética envolvente que surpreenderam pela novidade e singularidade. O vídeo vanguardista e os filmes ensaios viriam a aparecer num conjunto mais vasto de propostas estéticas, entendidas como processos de transgressão relativamente ao bom gosto e à aura artística estabelecida. Como defende Català (2005), no seu artigo “Film Ensayo y Vanguardia”, cineastas independentes, que filmavam em 16 mm, tinham a consciência dessa aura artística que imperava na

época mas com muito à vontade elaboraram projectos que não iam ao gosto do público e, consequentemente, das cadeias televisivas da época, tendo alguns deles migrado para a prática videográfica, tout court. Para ter a percepção correcta dos materiais audiovisuais produzidos por esses cineastas independentes atentemo-nos, ainda, em Millet (2000) que, depois de um inquérito à maior parte dos conservadores e responsáveis de museus, concluiria que o nascimento da arte contemporânea vogaria algures entre 1960 e 1969, que coincide precisamente com o período de crescimento do vídeo. Na sua obra “A Arte Contemporânea”2, esta autora defende, ainda, que as transformações estéticas na arte (no seu todo), nos EUA, prenderam-se menos ao seu passado histórico, pouco antigo, do que a uma dívida antiga para com a Europa. Daí que, apesar da estranheza e da anti-estética que emana de alguma arte made in USA (como a que vemos no «Dog Star Man» de Stan Brakhage), deveríamos, antes, segundo esta autora, ver nesse tipo de obras um compromisso ético e estético com as propostas expressionistas da pintura europeia do século passado. Esta segunda tendência é a que caracteriza a geração que emerge da prática videográfica nos anos 60-70 nos EUA. O nascimento do vídeo coincide com este período só que em relação ao vídeo a técnica estava lá antes dos problemas artísticos que acabaram por ser solucionados por meio desta técnica. Barilli (1994), que entende que o vídeo desenvolveu-se, completamente, antes que alguém soubesse o que fazer com ela, realça esta particularidade dessa nova forma artística: “O vídeo recording oferece todavia algumas vantagens relativamente à filmagem cinematográfica (…) o artista pode seguir num monitor o depositar-se da imagem de tudo o que está a experimentar: evitam-se longos tempos de revelação e da impressão (…)”(Barilli, 1994: 117)

Em 1969 a famosa “TV as a Creative Medium” (Nova York, Howard Art Gallery, 1969) aparecia como a primeira exposição integralmente consagrada aos trabalhos realizados em vídeo. E é com esse título que é dada às bancas a primeira publicação que Gene Youngblood dedica a este tema na revista “Expanded Cinema”, em 1970. Em outras paragens fazia-se sentir os ventos da mudança que o advento vídeo operava. Em 1971 a Associação Videographie de Montreal foi fundada e chegou a agrupar-se em torno de vinte grupos de videastas com concepções diversas de intervenção

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Chancela da Biblioteca Básica de Ciência e Cultura; originalmente publicado em 1997 pela editora Flammarion – Colletion DOMINOS.

videográfica que iam desde a contra-informação ao vídeo-teatro; e da animação social à formação sindical. Em 1971, no mesmo ano, Douglas Davis publicava “Manifesto para uma Nova Televisão”. De 1970 a 1974 nascia e progredia a Raindance, um movimento estético e politico-social, integrado por Frank Gillete (o impulsionador), Michael Schamberg, Louis Jaffe, e Marco Vassi: um grupo de promotores que planeiam dar resposta informativa e contra-informativa no mesmo território em que funciona a sociedade de massas contemporânea, num período que veio a constituir-se como epifenómeno de toda a cultura audiovisual universal. Puseram “ em órbita” a célebre publicação em revista - o Radical Software3 na qual se incluía: conselhos técnicos, proclamações contra-culturais, valorizações estéticas sobre proto-videoarte e reivindicação dos usos do vídeo na escola ou na comunidade; exaltação da ecologia dos meios e opiniões sobre as mudanças no modelo televisivo; catálogos de direcções de grupos ou indivíduos e referências ao mercado de equipamentos e materiais vídeo. Segundo Palacio (2005), as raízes documentais das primeiras práticas videográficas até a contemporaneidade, incluem-se em duas grandes divisões: por um lado, o vídeo – comunitário, levado a cabo por aqueles que utilizaram o suporte electromagnético para elaborar com seus trabalhos peças audiovisuais de agitação política e social na comunidade local; e por outro lado, trabalhos concebidos param algum tipo de emissão televisiva (basicamente as cadeias de cabo) e que, em certo sentido, constituem a origem do que é, hoje, a proclamada produção independente. Na descrição que Palacio (2005) faz desse fenómeno, os street tapes vídeos que assim se chamavam por serem filmadas nas ruas de New York, criaram, praticamente, um movimento estético-político que integrava Les Levine, Paul Ryan e Frank Gillette co-fundadores do grupo Raindance. Na primavera de 1968, Ryan e Gillette conceberam a sua primeira manifestação do cine verité4: gravaram imagens da praça St. Mark de Nova York, epicentro da vida contracultural e hippie estado unidense, e entrevistaram os citadinos que livremente comentavam o que lhes apetecia, sem que suas opiniões fossem cortadas na fase da montagem. Era hábito nessa altura difundir a gravação em distintos lugares públicos para activar com as imagens a discussão com os espectadores. Segundo Palacio (2005) “(…) muchos de los protagonistas de los centenares de horas de «cintas de calle» fueran grupos underground de la Nueva Izquierda estadounidense e de los diversos movimentos de liberación sexual o racial (...) que resultaba inédita para los televidentes de la television convencional” (Palacio, 2005: 172-173). Nascia, assim, o que viria a chamar-se “o rap do videotape”.

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Disponível em www.radicalsoftware.org. Termo empregado pela primeira vez por Jean Rouch, em 1961, ao referir-se ao seu filme Chronique d’un été

Surge uma forma de planear a importância do processo de criação da obra em detrimento do produto acabado. Desaparece a experiencia do eu único como fundamento do processo de criação (tal como ocorre no modernismo) e transladou-se para processos de criação mais fragmentados e múltiplos. Filmava-se e montava-se em tempo real, sem a preocupação com finalizar o produto na edição, aproximando-se das abordagens da psicologia empírica. Acabava por ser, tão só, a criação de um espaço comum inter-relacional que compartilham o cineasta e o espectador, o que aponta para uma nova maneira de conceber os processos audiovisuais contemporâneos. Num dos números da revista Radical Software, intitulado “Video City lia-se por exemplo: “In response to the usual psycho-cybernetic revolutionary VIDEO FREE AMERICA, (…) will attempt in the pages that follow to describe to you, the reader, some of our current projects and to indicate how you might join us in some reality oriented behavior”(Arthur Ginsberg, et al., 1972: 16)5

É face a este conjunto de manifestações ou ocorrências no dealbar do vídeo que afirmamos a existência de uma cultura audiovisual, isto é, algo que não se esgota na mera prática videográfica mas se estende a um conjunto de outras práticas culturais modernizantes como a criação de revistas de crítica e estética, as intervenções políticas radicadas na linguagem audiovisual, as experiencias psicocibernéticas, os actos emancipatórios, entre outros.

3. O início da prática videográfica e de uma cultura audiovisual em Cabo Verde Em Cabo Verde, a 15 de Março 1960, a Associação de Cinema e de Cultura levava a efeito, no Cine Teatro Municipal, a sua primeira reunião no qual Anastácio Filinto Correia e Silva, cinéfilo, homem da cultura cabo-verdiana, e um dos organizadores do grupo focou os objectivos em vista, tendo sido apresentados, nesse dia, poemas do poeta Fernando Pessoa, declamados em gravações por João Villaret e comentados por Arnaldo Carlos Vasconcelos França. Formava-se, nessa época, as primeiras manifestações de uma actividade cultural nova que punha nas críticas aos filmes de época o seu élan. Um ano depois, em 1961, o referido activista Anastácio F. Correia e Silva, contemporâneo de Arnaldo França e Guilherme Dantas, era preso por subversão ao regime com base nas suas críticas cinematográficas. Entravam, nesse ano, na Rádio Clube de Cabo Verde, novos dirigentes que tomariam posse a 2 de Janeiro. Nesse mesmo rodava-se o documentário cinematográfico “O Homem e o Trabalho”, produzida por dois profissionais vindos da Metrópole: o realizador Miguel 5

http://www.radicalsoftware.org/e/volume2nr3_pics.html. (pp.16)

Spiguel e o operador de câmara Aquilino Mendes que tinham por missão filmar, em Cabo Verde, três documentários que deveriam abranger os aspectos social, económico, turístico e de fomento no arquipélago6. Na mesma altura inaugurava-se o Palácio da Justiça no Plateau, e nos meses que se seguiram (Maio - Junho) houve sessões de cinema educativo promovidos pelos serviços de Instrução de vários pontos destas ilhas. O documentário cinematográfico “Parque Mira Mar”, que se debruçava sobre o arquipélago, produzido pela Agência Geral do Ultramar, aparecia como mais um desses “objectos de civilização7 (colonial portuguesa) ”, na acepção de Francastel (1963). [parêntesis nosso]. Para entendermos melhor a forma como emergiu uma consciência e um pensamento radicado no cinema e a sua repercussão na época, trazemos aqui o caso paradigmático, registado numa entrevista, do referido Anastácio Correia e Silva, que sofreu na pele as agruras de quem se atrevia a ler nos filmes de Charles Chaplin um tratado político social que “dizia tudo sobre a condição do homem na vida”; o homem que detinha a consciência firme de que “a pobreza não é uma fatalidade mas sim, uma construção”. A sua prisão deu-se em circunstâncias tragicómicas. Tendo começado por fazer crítica radiofónica de filmes, nos anos 60, num programa de cinema que ia para o ar todas as semanas, acabaria por se ver arredado das lides culturais pelo regime repressivo da época. Num dos programas que comentou teria dito qualquer coisa “deselegante” como: “a parte da geral, atrás do pano , tinha a mesma reacção que a parte frontal da plateia”, uma vez que todos riam e batiam palmas das mesmas coisas nos filmes de cowboy, películas de Tarzan ou de Flash Gordon. Uma declaração “atrevida” para a consciência da época, tendo em conta os condicionalismos sociais do então regime, em que a cultura tida como dominante não oferecia demasiadas concessões a “veleidades” do género «somos iguais, temos um mesmo entendimento». Para quem tinha um conhecimento livresco e se iniciava nos rudimentos da crítica cinematográfica não se equacionava uma relação sadia com a PIDE política de António Oliveira Salazar. Numa declaração recente Anastácio Silva apregoava amargamente: “eu tentava que as pessoas vissem a mensagem que estava nos filmes (…)”8. Algo que lhe valeu cerca de 1 ano de prisão. Saiu do cativeiro em princípio de 1962 numa altura em que, (em Fevereiro), abria-se a distribuição da Energia Eléctrica á cidade da Praia, com a central fornecedora sediado no actual Bairro Craveiro Lopes. Nesse mesmo ano falavase, pela primeira vez, na independência nacional e na autodeterminação enquanto Jorge Barbosa 6 7 8

Boletim de Propaganda e Informação, pp.22 (Director: Bento Levy) n.º 136 Ano XII. O uso deste conceito é explicado mais adiante nesta obra na «Nota de Abertura» da «3.ª Parte - O Cinema».. Entrevista cedida ao autor no verão de 2009

escrevia, como se o fizesse em imagens cinematográficas, silhuetas e partitura sonora: “Aquele bote / vai levar / um bêbado holandês … // De vez em quando vem / do silêncio da baia / um assobio distante / alguma voz prolongada /// Rentes passam o casarão da Alfândega / as silhuetas breves / de duas raparigas …// que vieram espreitar / do parapeito da esplanada.” 9 Nos anos 70, em Cabo Verde, o facto mais marcante no cenário da “contracultura” e da emancipação de uma cultura popular e autóctone face ao poder simbólico do império colonial português, poderá ter sido a criação do Cine Clube da Praia ao qual se outorgava a 7 de Maio de 1975 o respectivo Estatuto10. Na brochura publicada para os associados e público, em geral, lia-se, entre outras coisas, os seus objectivos: “ (...) 2. A criação de brigadas itinerantes para levar o Cinema e a TV até aos núcleos populacionais mais desfavorecidos, através de promoção de sessões em diversos locais, sempre que possível com carácter periódico, tendo como finalidade: a) Mostrar á nossa população as realidades nacionais através de documentários locais, do mesmo passo que se revelariam os acontecimentos exteriores por meio de filmes e cassetes importados ou obtidos por intercâmbio (…) 3. A formação de um cinema experimental como etapa necessária para a criação de um cinema nacional.” (BOLETIM OFICIAL, 1975, N.º 19)

Anastácio Filinto Correia e Silva, enquanto cidadão, ia falando com as pessoas e “arranjando coisas sem atrevimento de querer mandar mensagens”. Isso nas palavras do referido activista que fora provavelmente um dos poucos com pretensões claras relativamente á uma contracultura e emancipação de novos valores, mais radicados no indivíduo. Antes de cair a independência, conheceu o operador de câmara – o Betinho Melo - e convidou-o a fazer uma “coisa” histórica que era filmar o começo da independência: “porque para que Portugal pudesse assinar a declaração, Cabo Verde teria de fazer uma manifestação de força” confessou-nos o ex-radialista. “Fizemos, então, um pacto: se a população fosse votar (mesmo que seja um partido único, um voto dava para a vitória) filmava-se o acto. Mais ainda, trabalhou-se no duro para que houvesse uma votação que se visse. Toda a gente que tinha uma câmara de filmar se predispunha a ajudar. A Casa Comercial Serbam ofereceu as películas”. Num acto sem precedentes ocorria, pela primeira vez, a primeira Boletim de Propaganda e Informação Cabo Verde (Director: Bento Levy) Ano XIII N.º 148. [Pág. 22 Boletim de Propaganda e Informação (Director: Bento Levy) n.º 127 Abril 1960]. 9

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Publicado no «Boletim Oficial.» n. 19, de 10 de Maio de 1975.

manifestação de uma contracultura radicada no vídeo e na liberdade de expressão sob um acontecimento único na história de Cabo Verde. Segundo afirmações do ex-activista teve que se explicar o processo aos que entravam pela primeira vez nesse jogo de representações, de como se devia filmar, os movimentos que a pessoa devia fazer, e fundamentalmente a ideia de que se devia emprestar o próprio corpo para um filme. Toda essa história da emancipação cabo-verdiana, pelo cinema e depois, pelo vídeo, foi-nos confiada, entrecortada nas palavras deste homem da cultura:“ … não filmar de muito longe… arranjar a forma de filmar mais correcta … a luz, respeitar a luz … (…) Fizemos esse filme que, mais tarde o Presidente da Republica andou a mostrar … as forças armadas tiveram o filme durante algum tempo...mas passados alguns anos desapareceu.” Para a história documentalista ficava, porém, contra a corrente, o registo de 32 minutos sobre a Independência Nacional, editado actualmente em DVD, realizado por Lennart Malmer e Ingela Romare em 1975, e posta em circulação juntamente com uma emissão radiofónica de 45 minutos do programa nocturno de 04 de Julho de 1995, conduzido por Carlos Gonçalves, intitulado “Retrospectivas das Festas de 5 de Julho de 1975”11. Para a história fica também a primeira demonstração da hegemonia da técnica electrónica que foi levada a cabo por Hilário Brito, um patrão da electrónica e tecnologia vídeo que marcou a vida social e cultural cabo-verdiana ao criar, praticamente sozinho, a “primeira emissora nacional”12. Este senhor esteve á frente do seu tempo e consumou as aspirações dos videastas e experimentalistas da electrónica dos anos 60-70 como Nam June Paik, que deixou esta clamorosa afirmação: “Quanto tempo falta para que o videasta tenha o seu próprio canal televisivo?”. Pode-se seguramente afirmar que em Cabo Verde um homem o conseguiu sem ter motivações de poder e sem haver nenhuma confluência. Fê-lo, sim, movido por uma única paixão: a electrónica. Vale a pena aqui ressalvar a experiencia «paralela» ocorrida em S. Vicente nos finais dos anos 60 e que se prolongou até aos anos 80: “uma história que começou com o senhor Chiberto Faria, na altura gerente do banco, ainda no tempo dos portugueses (…) De burro ele carregava baterias e televisores para Monte Verde – ainda não havia estrada – e lá começou a captar emissões de Dakar e Canárias”, conta o conhecido mindelense Djibla (Daniel Pinto Mascarenhas) na revista “Ponto &Virgula”13, e que vale a pena ler. Chegou-se mesmo a formar uma TV Galeano ou TV Supirinha 11

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Publicado no «Boletim Oficial.» n. 19, de 10 de Maio de 1975.

Ver desenvolvimento deste caso na obra “Políticas de Comunicação” de Silvino Évora: em “1.1. As Aventuras de Hilário Brito” (Évora, 2012: 213) no Cap.V. Políticas para a Televisão. Das emissões experimentais á liberalização do espectro.” 13 Revista “Ponto & Vírgula” n.º 8 Março | Abril 1984

com a ajuda de um engenheiro da Philips. E fez-se, em certa medida, uma pequena produção com câmaras e magnetoscópios pessoais, com a consequente corrida às antenas de captação por parte de populares. Uma história que se reporta mais à experiencia dos primeiros inventores e saltimbancos na muito particular (e um pouco anárquica) historia do cinema que começou por ser uma actividade de circo e de exibições populares. Em Cabo Verde essas ramificações nas experiencias de vídeo e TV vão desembocar, em 1984, na criação da TEVEC (Televisão Experimental de Cabo Verde) para abrir uma nova era na história do audiovisual cabo-verdiano. E, tal como em outras paragens, o campo das artes audiovisuais, em Cabo Verde, não tardaria a receber, definitivamente, parafraseando Barilli (1994), a sua oitava musa: o vídeo. Não tendo que lidar com os complexos processos fotoquímicos da película, o novo criador audiovisual passa a carregar consigo uma nova atitude, mais experimentalista, demarcando-se da pesada máquina industrial do cinema e da televisão. Esse novo criador é agora o mais liberal, autónomo e individualista alimentando, desde já, o mito da expressão individualizada na arte, que já vinha desde os primórdios da pintura. É com naturalidade que se constata, na actualidade, uma maior falange de artistas plásticos a vingarem neste difícil meio, do que propriamente os que saem das escolas de comunicação e de audiovisual. Os planos de imagem passaram a receber um outro tratamento, mais próximo de uma plasticidade e de uma lógica de distorção fazendo emergir daí novos valores “estéticos”. A narrativa em vídeo configurou-se em novos moldes, desde puros relatos autobiográficos até aos filmes ensaios com propostas arrojadas a nível da percepção cinemática. As possibilidades técnicas que o computador oferece, actualmente, ao artista visual são incontáveis, levando-o a mover-se por territórios de experimentação de novas linguagens e pela expressão em domínios de abstracção e de construção cromática mais arrojados. Um processo equivalente ao de um carpinteiro que, de repente, passou a fazer marcenaria. A criação de formas requintadas tornou-se uma constante conferindo-se aos produtos a força expressiva de que necessitam para o mercado das artes, cada vez mais competitivo. Actualmente, em Cabo Verde já não passa despercebido esta nova configuração do espaço das artes visuais com o recente eclodir de experiências videográficas e documentais de carácter experimental.

4. A busca de novas percepções

Temos que retroceder aos finais dos anos 50, e início dos anos 60, para encontrar, no seio dos cineastas que filmam em película, uma «divisão»: uma nova tendência documentalista que veio trazer uma mudança radical no modo de representar a realidade. Tratava-se de uma nova forma de produzir e realizar documentários, influenciados pela criatividade de novos cineastas que buscavam novos formatos. A película de 16 mm era preferida cada vez mais, em detrimento da de 35 mm e diminuía-se a equipa de rodagem. Paralelamente aparecem, neste capítulo, novos modelos de câmara mais ligeiras e silenciosas como a norte-americana Bach Auricon, a francesa Eclair NPR e a alemã Arriflexs R. (Palacio 2005). É com essa inovação tecnológica que emerge uma nova linguagem, fortemente ancorada no mito do individualismo e de espírito liberal, cujas características são a multiplicação de recursos formais como o som ambiente, as conversações, a música folk ou contemporânea, as narrações off aliadas à uma combinação de registos de imagem e som de carácter reflexo, poético. Este trabalho de verdadeiros cineastas, em busca de novos modelos de expressão, é que esteve na génese de uma vanguarda vídeo que viria a formar-se com os filmes-ensaios, as práticas de vídeo-arte e, mais tarde, com o deflagrar das video-instalações apoiadas em inovações no campo da electrónica e das novas tecnologias vídeo. Palácio (2005) nos apresenta um quadro sucinto desta tendência criativa, desenvolvida nos anos 60-70: “No parece disparatado, pues, afirmar que el fácil maridage entre las tecnologias y la digitalización de los processos há permitido

la

aparición

de

nuevos

sistemas

de

intertextualidad que modificam radicalmente la forma de crear, manipular y almacenar las imágenes.” (Palacio, 2005: 162)

Este autor destaca, ainda, um caso único na vanguarda dos anos 70 - o do lituano-americano Jonas Mekas. Numa mistura de experimentalismo e home video, este cineasta filmou de modo sistemático, nos anos 70, desde assuntos políticos até meta-narrativas como em Lost, Lost, Lost (1976). No seu livro “The Diary of Film”, o referido realizador colocaria, a propósito do seu filme “Reminiscence of a Journey in Lithuanie”, a seguinte questão: “como reaccionar com a câmara enquanto as coisas ocorrem? Como reaccionar de tal modo que a curta-metragem reflicta o que sinto nesse preciso instante”. Uma questão que espelha muito bem o seu estilo inquieto, muito pessoal, que o leva a utilizar a câmara como uma extensão da subjectividade. Gombrich (1997) referencia esta inquietação a propósito da pintura expressionista europeia, ao dizer que são precisamente as imprecisões na arte

é que a aproximam da vida. Jonas Mekas, nos seus filmes diários, estruturava as sequências com intertítulos, geralmente descritivos, como uma declaração de princípios, em defesa da vida quotidiana enquanto matéria-prima do cinema. Recorria a intertítulos como “this is a political film”, de carácter extradiegético, ou “nothing happens in this film”, de pendor intradiegetico O realizador munia-se de múltiplos recursos de subjectivação, assentes nos movimentos de câmara improvisados, exposições de luz não realistas, enquadramentos descuidados, e o denominado single-frame-in-camera editing (montagem feita durante a filmagem), que recorre, por norma, a planos muito breves. Enquanto processo criativo, organiza tudo até obter daí uma espécie de collage audiovisual de grande densidade. Segundo Palacio (2005), ao reivindicar a figura de autor romântico que dá sentido a uma obra unitária com uma visão específica, Jonas Mekas demarcou-se das outras vanguardas de perfil político. Por tudo isso, ganha uma posição singular no contexto de cinema de vanguarda estado-unidense. Essa extrema subjectivação dos objectos artísticos, e sua romantização, aparece claramente vincado em Stan Brakhage, que exercitou, à sua maneira, sobre a matéria libidinosa do subconsciente. Este realizador filmou em formato 16 mm, 8mm e Super 8 e tornou-se um caso singular na história do audiovisual e do cinema. O seu estilo, carregado de um apaixonado protagonismo de expressão, levava-o a um certo desinteresse pelo referente figurativo. Chegava a trabalhar sobre a própria película, alterando as propriedades do objecto filmado. Chris Marker (Sans Soleil, 1983) foi outro cineasta independente, contrariamente a Jonas Mekas, que introduziu uma prática audiovisual em que captava imagens para só depois reflectir sobre elas. O seu estilo indirecto, livre e reflexivo, marcou profundamente a cultura audiovisual universalista e abriu-lhe caminho nomeadamente no capítulo do filme-ensaio. Todas estas movimentações estéticas e sociais constituem-se, na sua emergência histórica, como emancipações culturais: por um lado, em relação à indústria do cinema (no que tange ao processo fotoquímico das películas) e, por outro lado, em relação ao poder centralizador das emissoras televisivas, operadas pelos progressos no domínio da electrónica vídeo. Convém dizer que para lá da matéria política e social esses videastas e realizadores se debruçaram sobre a percepção humana efectuando experiências a nível da linguagem cinematográfica. O conceito de “ritmo fílmico”, segundo estudiosos da linguagem cinematográfica, como Martin (2005), explica um pouco o modo como vivemos a nossa realidade. Todas as acções requerem um tempo e um espaço determinado e é nessa órbita que temos que nos situar se queremos contar uma história, que deve fazer-nos ver e viver um tempo que é nosso, num espaço determinado. A percepção activa das imagens que nos são apresentadas deve-se, sobretudo, à nossa disposição mental para um determinado embate ideológico, subjectivo, intelectual ou outro. esta divisão metodológica, ou tão

só, afectiva, também se verifica nas condições da rodagem, optando-se, alguns, pela planificação cerrada e, outros, pela experiência “sensível” da câmara, privilegiando-se o “momento das coisas”, em detrimento da significação do enquadramento. Segundo Martin (2005) apesar das condições espaciais serem mais controláveis que as questões de temporalidade, existem trabalhos em que o tempo se converte, em si mesmo, no próprio factor fílmico, por excelência. Actualmente, existem esses raros documentários, como “El Sol de Membrillo” (Victor Erice), pelos quais o tempo é vivido enquanto personagem abstracta.

Contam-se pelos dedos a quantidade de documentários de criação exibidos em Cabo Verde que abordam essas experiências com o tempo. A maior parte deles integra programas de exibição fílmica do CCP-IC, promotor maior dessa nova contemporaneidade e modo de “filosofar” que constitui a mostra cinematográfica (que, no nosso país, tem tido uma audiência relativamente baixa nas sessões de cinema do CCP-IC). Tanto mais que, é nas associações e implicações que o espectador realiza, durante o visionamento, que reside a razão de ser destas mostras. A memória pessoal acaba por se descobrir, não só como a capacidade de registar informações ou de sintetizálas numa unidade de sentido, mas, fundamentalmente: é a pessoa humana que descobre, nesses visionamentos, a possibilidade de ir reinventando o sentido pessoal da própria vida.

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