Cultura da violência ou culto à ordem?

June 16, 2017 | Autor: Waldisio Araujo | Categoria: Filosofía, Cultura E Sociedade
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CULTURA DA VIOLÊNCIA OU CULTO À ORDEM? por Waldísio Araújo

Os ideais burgueses de nossa sociedade costumam expressar o anseio por mecanismos preventivos de controle que permitiriam fundar, regular e restabelecer a ordem social diante de quaisquer irrupções de ameaças, sobretudo as de caráter violento. Daí a parafernália de leis, regulamentações, normatizações, princípios explícitos ou tácitos, juridicos ou folclóricos de ação e contenção que tendem a estabelecer a ordem mediante a imposição paradoxal de um caos de regras. Mais surpreendente, contudo, é rencontrarmos numa certa cultura da violência essa ânsia por um mundo ordenado. No artigo que abre sua obra Mitologias, Roland Barthes desvenda o chamado catch, espetáculo de luta que o público brasileiro conhece sobretudo em sua forma televisiva, o telecatch ou, mais foneticamente, telequete, que teve teu auge nas décadas de 60 e 70 e no ítalo-argentino-brasileiro Ted Boy Marino sua maior estrela. Trata-se de um espetáculo cênico antes que uma luta esportiva, e seu objetivo último não é o de demonstrar pela vitória a superioridade de um lutador sobre outro (como no boxe, no judô ou no vale-tudo) mas o de que desempenhem estes plenamente o papel que o público deles espera. Os aficcionados do catch veem subirem ao ringue lutadores já conhecidos por seus hábitos, De joelhos, o mocinho experimenta a dor e a vestimentas, gestos, frases ou grunhidos que, humilhação. Porém, no catch o Bem acaba coerentemente com seus corpos (atléticos ou triunfando contra um Mal que só disformes, sadios ou macilentos), desempenham os momentaneamente ameaça a ordem universal. papéis recorrentes do "mocinho" ou do "vilão". As Imagem: Wikipedia. regras do pretenso jogo são claras e à primeira vista tão rigorosas quanto as de qualquer luta marcial que proteja a integridade dos participantes ou a proibição de atos baixos ou covardes; contudo, o vilão acaba geralmente por infringi-las arbitrariamente ou à menor distração do juiz. Mas o interessante é que essa "distração" é fingida, embora vista como sincera, e a infração desencadeia uma "justa" reação por parte do mocinho, que castiga o vilão de forma exemplar, violenta e humilhante, sob os apupos de um público insuflado por todo um contexto de sons, gestos, palavras e indumentária, signos perceptíveis de um ritual aparentemente cruel. Contudo não se trata de um público sanguinário e transgressor das normas burguesas do pacifismo e da ordenação cósmica, social ou psicológica. O que se exige tacitamente dos participantes não é

uma justiça materializada na vitória do melhor lutador, nem mesmo que haja um vencedor, mas que se torne visível a Justiça que não se vê no mundo cotidiano mas apenas ali, momentaneamente, um fulgor da Eternidade no breve instante: o castigo infligido ao vilão por infringir as regras não significa uma valorização desportivista das próprias regras do catch (que na verdade parecem existir apenas para serem violadas), mas uma afirmação intensa, ainda que inconsciente, de um regramento universal pelo qual toda transgressão gera mais cedo ou mais tarde, por uma lei de justiça, a devida punição, a compensação que restaura a harmonia do todo. Vimos, em nosso artigo intitulado Voando como Dédalo, que essa noção de uma justiça imanente aparecera por toda parte na civilização greco-romana, a começar por sua mitologia, mas o que Barthes deixa claro é que temos nossa mitologia própria, cujos signos se apresentam no dia-a-dia de nossas mais corriqueiras manifestações culturais – como o futebol, a telenovela, a parada gay, o descarrego de igreja, a exibição sadomasoquista ou o telequete. Para além dessa interpretação bartheana, contudo, nos interessa aqui o fato de que por trás de muito de nossa cultura aparentemente violenta (catch, gangues de rua, videogames, facções neonazistas etc.) há um comportamento muitas vezes conservador e mesmo moralista, ligado ao anseio de manutenção de um mundo tomado no fundo como justo, previsível, razoavelmente estável ou, como diria mais apropriadamente Barthes, inteligível. Sob o aparente caos e balbúrdia de uma sala de catch encontramos talvez o sentido do pensamento nietzscheano de que a sombra de Deus permancerá, após sua morte, enquanto houver gramática, ou seja, enquanto os signos de nossas praticas culturais estiverem submetidos a regras de uma sintaxe mais ou menos implícita, inconsciente, invisível pela qual atribuímos ao mundo e a nós mesmos uma ordem de origem transcendente e (ao menos potencialmente) divina. Contra os que, de forma mui fácil, lamentam uma guinada da cultura contemporânea para uma valorização da violência, perguntamo-nos se o que estamos vivendo na atualidade não seria, pelo contrário, uma escalada surda das forças reativas que ameaçam a civilização ao insinuarem que a desordem que a envolve seria ilusória ou meramente provisória, facilmente conjurável por ritos públicos apenas aparentemente profanos, como o scatch.

Por Waldísio Araújo www.waldisio.com

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