Cultura do Estupro: o silêncio por trás das estatísticas. Entrevista de Liana Cirne Lins à Revista Consulex

June 1, 2017 | Autor: Liana Cirne Lins | Categoria: Violencia De Género, Estupro
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CU LT UR A

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SI L LÊ IA NC N IO A PO CI R T RN RÁ E S D L IN AS S ES TA TÍ ST IC AS

ANO XX - Nº 464 15 DE maio DE 2016

EXEMPLAR DE

ASSINANTE VENDA PROIBIDA

EDITORA CONSULEX

MARCO LEGAL DA PRIMEIRA INFÂNCIA

PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE A LEI Nº 13.257/2016 IN VOGA

TENDÊNCIAS

ENFOQUE

ALLAN TITONELLI

VICENTE BAGNOLI

emerson garcia

o combate à sonegação entra na agenda internacional

cooperação no processo concorrencial

DA DEMOCRACIA À PARTITOCRACIA: REFLEXOS NO CRESCIMENTO DA CORRUPÇÃO

A Editora Consulex muito mais perto de você ANO XVIII Nº 205 – JULHO DE 2015

lex e você

PRÁTICO Toshio Mukai REVISTA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E POLÍTICA

15

205

EDITORA CONSULEX

OS DESAFIOS DO SISTEMA ELEITORAL BRASILEIRO FALIDO Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira

VE N DA P ROI B I DA

ASSINANTE

RÁPIDO

ISSN 1519-8049

EXEMPLAR DE

PRÁTICO

RÁPIDO

ANOTAÇÕES À PORTARIA Nº 910, DE 7 DE ABRIL DE 2015

REPOSITÓRIO AUTORIZADO DE JURISPRUDÊNCIA DO TST (REGISTRO Nº 13/97)

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EXEMPLAR DE

ASSINANTE VE N DA PROI B I DA

ANO XXI – Nº 6 – JUNHO DE 2015 ISSN 1519-8057

DE CRENÇA E DIREITO AO TRABALHO

NOTAÇÕES A RESPEITO DE DECISÃO DO CNJ

DE

ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE IMPROPRIEDADES VERIFICADAS RECENTEMENTE EM AÇÕES DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA ESPECIAL

O ORÇAMENTO IMPOSITIVO DA EMENDA Nº 86

BAIXE

NOSSO APLICATIVO

VE N DA P ROI B I DA

Bruno Sá Freire Martins

EXE M PLAR

Georgenor de Sousa Franco Filho

O DIREITO À ISONOMIA DOS PROVENTOS DE PENSÃO POR MORTE E A EC Nº 70/12

ASS I NANTE

EDITORA CONSULEX

FÉRIAS (DE ADVOGADO) E RECESSO FORENSE

REPOSITÓRIO AUTORIZADO DE JURISPRUDÊNCIA DO TST (REGISTRO Nº 13/97)

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AS NOVAS ALTERAÇÕES ÀS SÚMULAS E ORIENTAÇÕES JURISPRUDENCIAIS DO TST Ricardo Souza Calcini

A MEDIAÇÃO COMO MÉTODO CONSENSUAL DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS Eliana Tavares Lima

DISCRIMINAÇÃO GENÉTICA E IMPLICAÇÕES NO TRABALHO

As lastimáveis estatísticas revelando que, em média, é cometido um estupro a cada onze minutos no Brasil, constituindo a banalização da violência sexual contra a mulher, é discutida pela advogada e professora da Faculdade de Direito do Recife e do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade Federal de Pernambuco Liana Cirne Lins. Com uma abordagem capaz de desmistificar o pensamento que faz com que uma parcela da população brasileira transforme a vítima do crime de estupro na pessoa responsável pela violência que ela mesma sofreu, a professora esclarece os níveis sutis e complexos da chamada “cultura do estupro”.

20 marco legal da primeira infância: primeiras impressões sobre a lei nº 13.257/2016 A Lei nº 13.257/2016, que dispõe sobre a formulação e a implementação de políticas públicas voltadas para as crianças que estão na “primeira infância”, altera o ECA, a CLT, a Lei nº 11.770/2008 e o CPP. Nesta edição, especialistas comentam as principais aplicações a partir das modificações que a nova lei traz ao ordenamento jurídico brasileiro para o pleno atendimento aos direitos da criança na primeira infância, que deverá constituir objetivo comum de todos os entes da Federação.

IN VOGA O combate à sonegação entra na agenda internacional 36  Allan Titonelli Nunes

conjuntura O Brasil está insolvente? 54  Fábio Klein e Alessandra Ribeiro

tendências Cooperação no processo concorrencial 38  Vicente Bagnoli

enfoque Da democracia à partitocracia: reflexos no crescimento da corrupção 56  Emerson Garcia

GESTÃO EMPRESARIAL A era do conceito omnichannel coloca o cliente no centro do negócio ou quem ficará de fora será você 40  Fabrizzio Topper

contexto A Receita Federal do Brasil e o pretenso fim do sigilo bancário 58  Marcelo Godke Veiga e Ana Paula Rodrigues

observatório jurídico Estelionato contra idoso 42  Sergio Ricardo do Amaral Gurgel

direito empresarial A destinação do lucro nas sociedades anônimas 60  Natália Villas Bôas Zanelatto

VISÃO JURÍDICA Aspectos criminais da Lei de Regularização nº 13.254/2016 44  Fernando José da Costa PORTAL JURÍDICO Moro e o “encontro fortuito de provas” Nixon, Dilma e as escutas telefônicas da agência de segurança nacional dos EUA 51  Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira

DOUTRINA A fraude contra credores conceituada pelo Código Civil Brasileiro e pelos Códigos de Processo Civil de 1973 e de 2015 62  Fernanda Santos PONTO DE VISTA Desaposentação: uma solução justa 66  Artur Ricardo Ratc

SEÇÕES 5

Com a palavra...

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Indicadores Econômicos

10 Painel do Leitor 11 Painel Econômico 12 Direito e Bioética 16 Ciência Jurídica em Foco 18 Propostas e Projetos 19 Destaque

SUMÁRIO

arquivo pessoal DIVULGAÇÃO

ENTREVISTA CAPA ARTIGOS

6 CULTURA DO ESTUPRO: O SILÊNCIO POR TRÁS DAS ESTATÍSTICAS DO ESTUPRO

ASSINE FUNDADOR

Luiz Fernando Zakarewicz (1946-2008)

consulex REVISTA JURÍDICA

À frente dos grandes temas jurídicos

Diretora e Editora: Adriana Zakarewicz Conselho Editorial: Almir Pazzianotto Pinto, Antônio Souza Pru-

UD IC IA LIZ AD AS DA

HIS TÓ RIA

dente, Celso Bubeneck, Esdras Dantas de Souza, Habib Tamer Badião, José Augusto Delgado, José Janguiê Bezerra Diniz, Kiyoshi Harada, Luiz Flávio Borges D’Urso, Luiz Otavio de O. Amaral, Otavio Brito Lopes, Palhares Moreira Reis, Sérgio Habib, Wálteno Marques da Silva

MÁ R SE LO R N

AS M AIS

RE IS J

ANO XX - Nº 463 1º DE MAIO DE 2016

DE 20 16

DE VE M

Diretora de Jornalismo: Adriana Zakarewicz Colaboradores: Alexandre de Moraes, Alice Monteiro de Barros, Álvaro Lazzarini,

GE RA IS

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AS EL EIÇ ÕE S

Diretores para Assuntos Internacionais: Edmundo Oliveira e

Johannes Gerrit Cornelis van Aggelen

EXEMPLAR DE

EDITORA CONSULEX

ASSINANTE

Antônio Carlos de Oliveira, Antônio José de Barros Levenhagen, Aramis Nassif, Arion Sayão Romita, Armand F. Pereira, Arnoldo Wald, Benedito Calheiros Bonfim,

VENDA PROIBIDA

Benjamim Zymler, Cândido Furtado Maia Neto, Carlos Alberto Silveira Lenzi, Carlos EDIÇÃO ESPECIAL

Fernando Mathias de Souza, Carlos Pinto C. Motta, Damásio E. de Jesus, Décio de Oliveira Santos Júnior, Edson de Arruda Camara, Eliana Calmon, Fátima Nancy Andrighi, Fernando Tourinho Filho, Fernando da Costa Tourinho Neto, Francisco Fausto Paula de Medeiros, Georgenor de Souza Franco Filho, Geraldo Guedes, Gilmar Ferreira Mendes, Gustavo Filipe B. Garcia, Humberto Gomes de Barros, Humberto Theodoro Jr., Igor Tenório, Inocêncio Mártires Coelho, Ives Gandra da Silva Martins, Ivo Dantas, J. E. Carreira Alvim, João Batista Brito Pereira, João Oreste Dalazen, Joaquim de Campos Martins, Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, José Alberto Couto Maciel, José Carlos Arouca, José Carlos Barbosa Moreira, José Luciano de Castilho Pereira, José Manuel de Arruda Alvim Neto, Lincoln Magalhães da Rocha, Luiz Flávio Gomes, Marco Aurélio Mello, Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Mário Antonio Lobato de Paiva, Marli Aparecida da Silva Siqueira, Nélson Nery Jr., Reis Friede, René Ariel Dotti, Ricardo Luiz Alves, Roberto Davis, Tereza Alvim, Tereza Rodrigues Vieira, Toshio Mukai, Vantuil Abdala, Vicente de Paulo Saraiva, William Douglas, Youssef S. Cahali.

REFLEXÕES SOBRE A MINIRREFORMA ELEITORAL

Arte e Diagramação: Charles Augusto Revisão: Murilo Oliveira de Castro Coelho Marketing: Ramirez Diogo Sanches Comercial: Geraldo Aguimar da Silva Central de Atendimento ao Cliente Tel. (61) 3365-3385 [email protected] Redação e Correspondência [email protected]

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arquivo pessoal

com a palavra

Isaac Roitman

Responsabilidades com o futuro

O

futuro é uma conjetura que pode ser especulada, mas nunca com exatidão. Pensar o futuro significa arriscar, explorar territórios desconhecidos. Segundo Mahtma Gandhi “o futuro dependerá daquilo que fazemos no presente”. Algumas decisões que se possa tomar podem trazer consequências menores, por exemplo, comprar um carro financiado sem o devido planejamento, atitude que pode redundar em devolver o veículo para a financeira. Outras decisões podem trazer consequências desastrosas, como a decisão dos responsáveis pela eclosão da Segunda Guerra Mundial que condenou à morte mais de 60 milhões de seres humanos. A irresponsabilidade de devastar o nosso meio ambiente, de contaminar a nossa atmosfera e de poluir os nossos recursos hídricos são exemplos de erros graves que certamente comprometerão a qualidade de vida das futuras gerações. É evidente que a humanidade passa por uma profunda crise em diferentes dimensões, desde a ética, do individualismo, da desigualdade social, do fanatismo, da violência, da solidariedade, da ambiental, da corrupção, entre outras. No Brasil, também somos atingidos por esses tipos de crise que são planetárias. Atualmente, as desigualdades e a falta de oportunidades, principalmente na educação, condenam antecipadamente à pobreza as nossas crianças e jovens vulneráveis. A humanidade se encontra em uma encruzilhada. Ou damos um salto civilizatório ou vamos agravar as estatísticas atuais vergonhosas que mostram sete milhões de crianças morrendo por ano, vítimas de doenças relacionadas à pobreza. Para o filósofo australiano Peter Singer a humanidade tem grandes desafios, entre eles a pobreza global, as mudanças climáticas, além da diminuição do risco de extinção de nossa espécie. Para Frei Betto, existem oito desafios: 1. redução imediata da fome, da pobreza e da desigualdade social; 2. respeito à soberania e à autodeterminação dos povos; 3. fortalecimento da cidadania e da democracia; 4. proteção do meio ambiente; 5. respeito ao pluralismos religioso, à diversidade de modelos políticos, e fim das discriminações sexuais e étnicas; 6. solidariedade entre as nações; 7. superar a economia da carência, que afeta hoje 2/3 da humanidade

e 8. fortalecer a cultura que identifica a natureza sagrada, sua dignidade irredutível e seu direito inalienável a uma vida feliz. No Brasil, o primeiro passo para o enfrentamento desses desafios seria proporcionar a todas as crianças brasileiras, independente do local onde moram ou da classe social a que pertençam, a oportunidade de cursar o ensino básico contemporâneo e de qualidade, baseado no estímulo da curiosidade, no encanto pela cultura, no desenvolvimento do raciocínio e na crítica argumentada e na promoção de valores e virtudes. A prioridade seria a formação e a valorização de um exército de professores, que seriam estimuladores e promotores de atividades para a utilização do conhecimento na solução de problemas. Os egressos de um ensino básico de excelência usariam de forma mais apropriada o seu direito ao voto, seriam cidadãos críticos e a matéria-prima para termos uma universidade de qualidade, que formaria profissionais competentes e com responsabilidade social. Essas instituições também formariam técnicos e cientistas para que possamos ter um sistema robusto de ciência, tecnologia e inovação, requisitos fundamentais do mundo moderno, no qual o conhecimento científico é o principal capital. A comunidade científica desempenharia a missão de contribuir para resolver os desafios da sociedade e antecipar as demandas do futuro, exercendo plenamente a sua missão como um verdadeiro agente de transformação social. Porém, de nada adiantará uma revolução na educação se não cuidarmos da nossa casa, o nosso planeta. O futuro da humanidade depende de todos nós. Ou conquistamos um convívio virtuoso ou poderemos caminhar para a nossa extinção. Nick Bostron, diretor do Instituto do Futuro, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, afirma que o risco existencial enfrentado pela humanidade não está no radar de todo mundo, mas que virá, estejamos ou não preparados. Ele também afirma que existe um gargalo na história da humanidade. A condição humana irá mudar. Pode ser que terminemos em uma catástrofe ou que sejamos transformados ao assumir mais controle sobre a nossa biologia. Não é ficção científica, doutrina religiosa ou conversa de bar. Vamos refletir e agir.

Isaac Roitman é professor emérito e coordenador do Núcleo de Estudos do Futuro da Universidade de Brasília, pesquisador emérito do CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências.

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DIVULGAÇÃO

entrevista

Liana Cirne Lins

Advogada. Professora da Faculdade de Direito do Recife e do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade Federal de Pernambuco. Doutora em Direito Público. Mestra em Instituições Jurídico-Políticas.

CULTURA DO ESTUPRO:

o silêncio por trás das estatísticas do estupro Revista Jurídica CONSULEX – O que é “cultura do estupro”? É possível afirmar que existe cultura do estupro no Brasil? LIANA CIRNE LINS – Vamos começar definindo o que não é cultura do estupro. Cultura do estupro não é um enaltecimento explícito à prática do estupro. Não é o aplauso literal ao estupro, como na clássica cena do filme “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick. Não é a apologia direta ao crime. A cultura do estupro opera em níveis muito mais sutis e complexos. Cunhada na década de 1970, a expressão “cultura do estupro” se refere à culpabilização das vítimas pela violência que sofreram e à naturalização da violência e do abuso sexual. Quando pensamos na reação violenta do brasileiro médio contra a figura do estuprador – que sequer é tolerado dentre os círculos dos presidiários – pode parecer absurdo que em nosso país exista uma cultura do estupro. Aliás, a forma cruel como um estuprador é recepcionado pelos detentos em uma prisão brasileira ou como bandidos torturam um estuprador são exemplos muito citados para afirmar que no Brasil não há cultura do estupro. O problema está no fato de o conceito partir de uma premissa errada. Como disse antes, cultura do estupro não é enaltecer a figura do estuprador, elogiar ou incentivar de modo direto ou explícito o estupro, mas criar e reproduzir um conjunto de ideias e noções que levarão a sociedade a perguntar se o estupro não foi culpa da vítima. Se ela não provocou. Se ela não pediu. Se ela não mereceu. Se no fundo a vítima não queria.

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Não é difícil imaginar exemplos da cultura do estupro. Uma mulher de 22 anos é estuprada por um homem no interior do veículo do agressor. Eles haviam se conhecido numa boate. Eles haviam dançado e se beijado. Ela vestia roupas provocantes. O homem a convidou para dar uma volta de carro e fumar maconha. Ela aceitou. Entraram no carro, passearam pela cidade e fizeram uso da droga. O homem estaciona o carro e começa a despir a vítima. Ela diz que não quer. O agressor constrange a vítima, mediante violência, a ter conjunção carnal. O tipo previsto pelo art. 213 do Código Penal está configurado: crime de estupro. E, no entanto, não serão poucas as pessoas que afirmarão que a culpa foi da vítima. Afinal, ela estava numa boate. Se estivesse em casa dormindo, o estupro não teria ocorrido. Ela dançou e beijou o rapaz. Ela provocou. Ademais, ela vestia roupas provocativas. Logo, ela mereceu. Se ela aceitou entrar no carro do agressor, na verdade, ela queria. Estou certa de que todos os leitores serão capazes de reconhecer estes argumentos. Mas o que fez com que transformássemos a vítima do crime de estupro, com quem o agressor forçou conjunção carnal mediante violência, nos termos estabelecidos no art. 213 do CP, na pessoa responsável pela violência que ela mesma sofreu? Acultura do estupro. De modo sutil, nos afastamos da figura prevista pelo tipo penal e nos aproximamos de outro dever-ser: o da norma social que impõe modelos de comportamento para as mulheres. É por isto que dizemos que a cultura do estupro diz respeito

a um conjunto de crenças que indiretamente encorajam a agressão sexual e apoiam a violência contra a mulher, tirando dela a titularidade e o controle sobre o próprio corpo e sobre a própria sexualidade. CONSULEX – Muitas pessoas associam o termo “cultura” a algo positivo e acreditam que a expressão “cultura do estupro” teria a consequência de incitar a prática do estupro. Você concorda? LIANA CIRNE LINS – Se olharmos no dicionário, veremos que o vocábulo “cultura” tem mais de quinze significados. Para nos referirmos à cultura do estupro, não utilizamos a acepção de “aplicação do espírito a uma coisa” ou “elevado estágio civilizatório” ou ainda “desenvolvimento intelectual” e outros semelhantes, mas utilizamos a acepção com a qual o termo “cultura” implica um sistema de ideias, conhecimentos e de padrões de comportamento. A palavra “cultura” associada à expressão “cultura do estupro”, portanto, está relacionada ao uso sociológico do termo e diz respeito a padrões de comportamento e atitudes que caracterizam uma determinada sociedade. Logo, muito ao contrário da expressão cultura do estupro significar um enaltecimento do crime de estupro, que seria tratado como um produto cultural elevado, significa que nossa sociedade produz e reproduz padrões de comportamento que “objetificam” o corpo da mulher, atenuam e até mesmo “glamourizam” o terrorismo físico e emocional contra as mulheres. Um bom exemplo de como o estupro pode ser “glamourizado” está no uso de fotos publicitárias de famosas grifes internacionais, em que mulheres são dominadas por homens, em situações de abuso sexual. A imagem do estupro não invoca violência, mas elegância, beleza e sensualidade. Outro exemplo, também da publicidade, vem da indústria da cerveja, que há muito tempo usa o corpo da mulher (objetificação ou coisificação do corpo da mulher) para vender bebida. O apelo publicitário vai desde misturar medidas do recipiente com as do implante de silicone da modelo, informando quantos mililitros havia em cada um até a usar imagem que insinue uma mulher fazendo sexo com mais de um homem, enquanto uma cerveja passa por diferentes mãos, seguida do slogan: “divida com os amigos”. A mulher é tratada como coisa, destituída de liberdade e de dignidade, de que o homem pode dispor a seu gosto, inclusive para dividir com os demais, em uma típica demonstração de como a cultura do estupro opera. Os exemplos são intermináveis: piadas, filmes, séries de TV, novelas, livros, músicas, publicidade e tantas outras manifestações culturais de nossa sociedade fazem a violência contra as mulheres e a objetificação de seus corpos parecerem tão normais e naturais, a ponto de não enxergarmos todo o estímulo ao estupro e outras formas de agressão à mulher que estão por trás dessas mensagens. CONSULEX – A frase “a culpa nunca é da vítima” não possui exceções? Pessoas podem pensar haver casos em que a vítima contribuiu para a situação de violência? LIANA CIRNE LINS – A culpa nunca é da vítima. O único e exclusivo responsável pelo estupro é o estuprador. Se a

vítima usava roupas curtas, se a vítima mantinha relações sexuais com ele no passado, se a vítima dançou na boate de modo provocativo, se a vítima aceitou ir até as preliminares do sexo, se a vítima conta piadas desbocadas no ambiente de trabalho ou de estudo, se a vítima gosta de baile funk, se a vítima disse não: é não. Inexistindo consenso, é o momento de parar ou de não iniciar. Devemos parar de ensinar a nossas filhas que elas devem se dar ao respeito e não usar tais roupas ou tais maquiagens e começar a ensinar aos nossos filhos que todas as meninas e mulheres devem ser respeitadas, não importando a roupa que usam. Devemos ensinar a nossos filhos que eles não têm o direito de apalpar nenhuma mulher, dizer “gracejos” [ofensas, na verdade] ou avançar o sinal vermelho quando não houver consenso e desejo mútuos. CONSULEX – É comum ouvirmos que não conhecemos os verdadeiros dados sobre o crime de estupro no Brasil. O que sabemos sobre o estupro em nosso país? LIANA CIRNE LINS – Devido ao baixo índice de notificação do crime de estupro, estimado em apenas 10% de casos reportados à polícia, de acordo com a Nota Técnica nº 11 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), intitulado “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde”, de 2014, não dispomos senão de estimativas. O baixo índice de notificação faz com que o estupro receba o título de o mais acobertado dos crimes. O mesmo estudo do Ipea estima que, a cada ano, 0,26% da população brasileira sofra violência sexual, estimativa que representa anualmente 527 mil tentativas ou casos de estupros consumados no país. Estes dados são condizentes com os do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) de 2013, que apontaram 50.617 casos de estupro notificados no Brasil em 2012 e também com os dados do 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que considera os casos registrados em boletins de ocorrência, e revela ter havido 47,6 mil vítimas de estupro no Brasil em 2014. Isto significa dizer que a cada 11 minutos há uma vítima de estupro e que há meio milhão de estupros consumados ou tentados anualmente em nosso país. Não seria, portanto, exagerada a conclusão de que há uma epidemia do estupro no Brasil. Além disto, os dados de que dispomos contrariam frontalmente o senso comum acerca dos perfis do crime, da vítima e do agressor. Nosso conjunto de crenças acerca do estupro não possui amparo na realidade, pois não se alimenta de informações, mas de preconceitos e estigmas equivocados. Relembrando nosso exemplo, ficticiamente foi alegado que se a vítima estivesse em casa dormindo, ao invés de ter saído para dançar em uma boate, não teria sofrido o estupro. Este senso comum, porém, é contrariado pelas estatísticas. De acordo com o estudo do Ipea, 24,1% dos agressores das crianças são os próprios pais ou padrastos e 32,2% são amigos ou conhecidos da vítima. O indivíduo desconhecido passa a configurar paulatinamente como principal autor do estupro à medida que a idade da vítima aumenta. Na fase adulta, este responde por 60,5% dos casos. No

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entrevista geral, 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima, o que indica que o principal inimigo está dentro de casa e que a violência nasce dentro dos lares. Enquanto na idade adulta 97,5% dos estupros ocorrem contra mulheres, os estupros contra crianças ocorrem em 80% dos casos contra meninas e em 20% dos casos contra meninos. Uma estatística ainda mais alarmante é a de que 70% dos estupros vitimizaram crianças e adolescentes. Para agravar o quadro, o Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS) sobre tolerância social à violência contra as mulheres confirma que, para a maioria da população, a culpa pelo estupro é da vítima, pois para 58,5% dos entrevistados “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros” e para 26% dos entrevistados “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Os dados de que dispomos não deixam dúvidas de que é necessário enfrentar o problema com urgência e tratá-lo como uma prioridade na política pública em diversos setores. CONSULEX – No Brasil, o estupro é crime. Enfatizar o aspecto punitivo do tratamento do crime do estupro não é mais eficaz ao seu combate do que debater a cultura do estupro? LIANA CIRNE LINS – A Lei nº 12.015/2009 alterou profundamente o tratamento da matéria. Antes de ser reformado pela mencionada lei, o Código Penal tratava o tema sob o título de “crimes contra os costumes”. Hoje os trata sob o título “dos crimes contra a dignidade sexual”. A mudança no tratamento do tema atendeu a antigos anseios da sociedade civil que queria ver reconhecidas a dignidade e a liberdade da mulher sobre seu corpo e sexualidade. Além de o art. 213 do CP conceituar o estupro como qualquer forma não consensual de prática sexual, imposta por violência ou ameaça de qualquer natureza, não exigindo da vítima que esgote toda sua capacidade de resistência, a ponto de colocar em risco a própria vida ou integridade física, a lei ainda define e disciplina no art. 217-A do CP o estupro de vulnerável, aí não apenas prevista a conjunção carnal ou a prática de outro ato libidinoso com menor de 14 anos, como também com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tenha o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência. A parte final do § 1º do art. 217-A do CP abarca as hipóteses de estupro da vítima desacordada, inclusive por uso de álcool ou mesmo drogas, que não possua capacidade de oferecer resistência. Em minha opinião, a matéria está adequadamente tratada do ponto de vista legal. O crime de estupro recebeu o devido rechaço pelo legislador brasileiro. Entretanto, os dados sobre estupro permanecem alarmantes, mesmo após a reforma do Código Penal. O que está errado? O que faz a lei ser letra morta, enquanto mulheres e crianças sofrem diariamente, a cada onze minutos, com o crime de estupro? De nada adianta um aparato legal suficiente se o estupro continua sendo o mais acobertado dos crimes. Vamos nos lembrar do exemplo de antes? A vítima saiu da boate

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para passear no carro do agressor, onde usaram drogas e ela foi estuprada. Você acha que ela vai denunciar o crime? Sabemos que a resposta mais provável é não. Exatamente porque a culpa do estupro vai recair sobre ela, por mais que a hipótese abstrata da norma jurídica tenha incidido sobre o caso concreto, caracterizando o crime de estupro e definindo os sujeitos ativo e passivo do delito.Do ponto de vista legal, ela é a vítima e o agressor o criminoso. Porém, do ponto de vista social, ela vai ser apontada como a culpada pelo estupro de que foi vítima. O estuprador também sabe disto, o que reforça a certeza da sua impunidade (e não a ausência de um regramento jurídico!). Esta é a cultura do estupro, uma norma social com muito maior efetividade do que todo o aparato legislativo de que dispomos. Para erradicarmos a epidemia de estupro em nosso país é necessário conjugarmos um aparato legal e judiciário eficaz, de um lado, e o combate à cultura do estupro de outro. Tratar como contraditórios e inconciliáveis a punição ao crime de estupro e a extinção da cultura do estupro é um equívoco. São duas abordagens complementares e necessárias do mesmo fenômeno. CONSULEX – Como o Judiciário e as instituições judiciais tratam a vítima de estupro? A cultura do estupro interfere nas práticas processuais? LIANA CIRNE LINS – O Conselho Nacional de Justiça não dispõe de dados que nos permitam visualizar o panorama geral do julgamento dos crimes de estupro no Brasil. Porém, sabemos que aliadas à cultura de culpabilização da vítima, agravam o quadro geral, reduzindo ainda mais as chances de denúncia, a estrutura estatal que, ao contrário de acolher e amparar a vítima, a submete a novos estágios de sofrimento e violência. O calvário a ser enfrentado pela vítima inclui dirigir-se a uma delegacia de polícia, correndo o risco de sua versão dos fatos ser recebida com descrédito; ser encaminhada ao IML para exame da vagina, ânus e períneo em busca de sinais de laceração, feridas ou esperma, sem qualquer acompanhamento psicológico; havendo denúncia e seguindo-se o julgamento, ter de enfrentar o questionamento acerca da própria conduta, cuja ênfase será possivelmente maior do que a dada à indagação da vida pregressa do acusado, de sua conduta social e de sua personalidade. Ao final, a resposta a ser dada pelo Judiciário poderá não diferir muito daquela dada pela cultura do estupro de que “a culpa foi da vítima”. Este cenário desanimador não pretende ser mais um desestímulo às vítimas, mas um alerta: nem o Estado e nem a sociedade estão se empenhando o suficiente para erradicarmos o estupro da nossa realidade. Enquanto o Estado se omitir no enfrentamento do estupro como prioridade governamental, seja através de políticas educacionais, seja através de políticas de assistência às vítimas, seja através de políticas judiciárias para acompanhamento dos crimes desde as delegacias de polícia, enquanto continuarmos culpando as vítimas e alimentando preconceitos equivocados, nossas crianças e mulheres continuarão sendo vitimadas pelo estupro. A cada 11 minutos.

1. Tabela de salários-de-contribuição dos segurados empregado, empregado doméstico e trabalhador avulso, para pagamento a partir de 1º de janeiro de 2016.

AGENDA PARA MAIO/2016 OBRIGAÇÃO – FATOS GERADORES OCORRIDOS EM ABRIL/2016

PAGAMENTO APÓS O VENCIMENTO

DATA DE VENCIMENTO PARA O PAGAMENTO

Cofins (Contribuição Social para Financiamento da Seguridade Social) Pis/Pasep INSS sobre salários

DIA 20 DE maio, SEXTA-FEIRA

FGTS Salários

DIA 6 DE MAIO, SEXTA-FEIRA DIA 6 DE MAIO, SEXTA-FEIRA

OBRIGAÇÃO/PERÍODO DO FATO GERADOR

DATA-LIMITE PARA O PAGAMENTO

DIA 25 DE MAIO, quarta-FEIRA DIA 25 DE MAIO, quarta-FEIRA

IRRF (TRABALHO ASSALARIADO)

Para pagamento após o vencimento de obrigação não incluída em notificação fiscal de lançamento. 1. MULTA DE MORA a) 0,33% por dia de atraso, limitado a 20% b) 20% a partir do segundo mês seguinte ao do vencimento da obrigação

DIA 20 DE MAIO, SEXTA-FEIRA

ALTERAÇÃO DADA PELA LEI Nº 11.196/05 ARTIGO 70, INCISO i, ALÍNEA D

Salários-de-contribuição (R$)

Alíquota para fins de recolhimento ao INSS (%)

até 1.556,94

8,00%

de 1.556,95 até 2.594,92

9,00%

de 2.594,93 até 5.189,92

11,00%

2. Os contribuintes individuais contribuem, respectivamente, com base na remuneração auferida durante o mês, em uma ou mais empresas ou pelo exercício

IRPF (CARNÊ-LEÃO) RECOLHIMENTO MENSAL

limites mínimo e máximo do salário-de-contribuição mensal. A partir de 1º de janeiro de 2016, o limite máximo do salário-de-benefício será de R$ 5.189,82. 3. O valor da cota do salário-família, a partir de 1º de janeiro de 2016, será de R$ 41,37 sendo devida ao segurado com remuneração mensal não superior a R$ 806,80, e de R$ 29,16 para o segurado que recebe entre R$ 806,80 e R$ 1.212,64. 4. O responsável por infração a qualquer dispositivo do Regulamento da Previdência Social – RPS, para a qual

ÚLTIMO DIA ÚTIL DO MÊS SUBSEQUENTE AO DA OCORRÊNCIA DO FATO GERADOR

NOTA: A data de recolhimento de alguns tributos foi alterada pela Medida Provisória nº 449, de 3 de dezembro de 2008.

IMPOSTO DE RENDA NA FONTE

Base de Cálculo Mensal em R$

de 1.903,99 de 2.826,66 de 3.751,06 acima

Alíquota %

Parcela a deduzir do Imposto em R$

– 7,5 15,0 22,5 27,5

– 142,80 354,80 636,13 869,36

até 1.903,98 até 2.826,65 até 3.751,05 até 4.664,68 de 4.664,68

DEDUÇÕES: R$ 189,59 por dependente – R$ 1.903,98 – aposentadoria e pensão. Dispositivo legal: Lei nº 12.469, de 26.08.11, DOU 29.08.11, IN nº 1.142, de 31.03.11 e Lei nº 13.149, de 21.07.15.

VIGÊNCIA

VALOR

01.02.09 01.01.10 01.03.11 01.01.12 01.01.13 01.01.14 01.01.15 01.01.16

R$ 465,00 R$ 510,00 R$ 545,00 R$ 622,00 R$ 678,00 R$ 724,00 R$ 788,00 R$ 880,00

FUNDAMENTO LEGAL Lei nº 12.255/10 (DOU 16.06.10) Lei nº 12.382/11 (DOU 28.02.11) Lei nº 12.382/11 e Dec. nº 7.655 (DOU 26.12.11) Lei nº 12.382/11 e Dec. nº 7.872 (DOU 26.12.12 Ed. Extra) Lei nº 12.382/11 e Dec. nº 8.166 (DOU 24.12.13) Lei nº 12.382/11 e Dec. nº 8.381 (DOU 30.12.14) Lei nº 12.382/11 e Dec. nº 8.618 (DOU 30.12.15)

DÓLAR COMERCIAL

COMPRA VENDA DIA COMPRA VENDA

15.04.16 18.04.06 19.04.06 20.04.16 22.04.16 25.04.16 26.04.16 27.04.16 28.04.16 29.04.16

3,5270 3,5898 3,5532 3,5497 3,5823 3,5466 3,5294 3,5289 3,4986 3,4502

3,5276 3,5904 3,5538 3,5503 3,5829 3,5472 3,5301 3,5295 3,4992 3,4508

02.05.16 03.05.16 04.05.16 05.05.16 06.05.16 09.05.16 10.05.16 11.05.16 12.05.16 13.05.16

3,4985 3,5544 3,5391 3,5290 3,5356 3,5380 3,4766 3,4639 3,4871 3,5035

VALORES DE DEPÓSITOS RECURSAIS RECURSO

R$

Recurso ordinário

infração, à multa variável de R$ 2.143,04 a

Recurso de revista, embargos, recurso extraordinário e recurso em ação rescisória

– CND da empresa na alienação ou one-

3,4991 3,5550 3,5397 3,5296 3,5362 3,5387 3,4772 3,4645 3,4877 3,5041

Fonte – Banco Central

janeiro de 2016, conforme a gravidade da

é exigida Certidão Negativa de Débito

TAXA REFERENCIAL (TR) DIA TAXA(%) DIA TAXA(%) DIA TAXA(%)

Cotação média em r$ – Variação de 15.04.16 a 13.05.16 DIA

% 1,11 1,11 1,11 1,06 1,16 1,06 1,00 1,16 1,06

Agosto/15 Setembro/15 Outubro/15 Novembro/15 Dezembro/15 Janeiro/16 Fevereiro/16 Março/16 Abril/16 Fonte – Secretaria da Receita Federal do Brasil

SALÁRIO-MÍNIMO – 2008/2016

cominada, está sujeito, a partir de 1º de

5. A partir de 1º de janeiro de 2016,

MÊS

Fonte – Secretaria da Receita Federal do Brasil

não haja penalidade expressamente

R$ 214.301,53.

TAXA SELIC

A partir do mês de abril ano-calendário 2015

de sua atividade por conta própria, e no valor por ele declarado, observados os

2. JUROS DE MORA a) taxa Selic

8.183,06 16.366,10

30.03.16 31.03.16 01.04.16 02.04.16 03.04.16 04.04.16 05.04.16 06.04.16 07.04.16 08.04.16 09.04.16 10.04.16 11.04.16 12.04.16 13.04.16 14.04.16

0,1929 0,1871 0,1304 0,0992 0,1287 0,1667 0,1860 0,1689 0,1921 0,1294 0,0969 0,1262 0,1622 0,1765 0,1751 0,1867

15.04.16 16.04.16 17.04.16 18.04.16 19.04.16 20.04.16 21.04.16 22.04.16 23.04.16 24.04.16 25.04.16 26.04.16 27.04.16 28.04.16 29.04.16 30.04.16

TAXA BÁSICA FINANCEIRA (TBF) 05.04.16 06.04.16 07.04.16 08.04.16 09.04.16 10.04.16 11.04.16 12.04.16 13.04.16 14.04.16 15.04.16 16.04.16 17.04.16 18.04.16

1,0676 1,0404 1,0137 0,9905 0,9377 0,9873 1,0336 0,9979 1,0566 1,0082 0,9951 0,9431 0,9930 1,0408

19.04.16 20.04.16 21.04.16 22.04.16 23.04.16 24.04.16 25.04.16 26.04.16 27.04.16 28.04.16 29.04.16 30.04.16 01.05.16 01.05.16

2015

2016

1,0722 1,0943 1,0998 1,0371 0,9938 0,9858 1,0354 1,0762 1,0593 1,0669 1,0471 09911 0,9785 1,0277

ACUMULADO

JUN

JUL

AGO

SET

OUT

NOV

DEZ

JAN

FEV

MAR

de valor superior a R$ 53.574,85, incorpo-

ICV-SP-DIEESE

0,55

0,57

0,81

0,95

0,06

0,48

0,78

1,02

0,77

1,80

0,71

INPC/IBGE

0,71

0,99

0,77

0,58

0,25

0,51

0,77

1,11

0,90

1,51

0,95

IPCA/IBGE

0,71

0,74

0,79

0,62

0,22

0,54

0,82

1,01

0,96

1,27

IGP/M/FGV

1,17

0,41

0,67

0,69

0,28

0,95

1,89

1,52

0,49

1,14

Fonte – Portaria Interministerial MTPS/MS nº 1, de 08.01.16 – DOU 11.01.16.

02.05.16 03.05.16 04.05.16 05.05.16 06.05.16 07.05.16 08.05.16 09.05.16 10.05.16 11.05.16 12.05.16 13.05.16 14.05.16 15.05.16

ÍNDICES DE INFLAÇÃO – VARIAÇÕES PERCENTUAIS MENSAIS ANO mai

valor inferior a R$ 880,00.

1,0225 1,0222 1,0268 1,0314 0,9765 1,0255 1,0685 1,1024 1,0263 1,0317 0,9769 0,9266 0,9756 1,0246

Fonte – Banco Central

Fonte – TST, Ato nº 397/15, publicado no DJe de 10.07.15.

ABR

os benefícios previdenciários não terão

0,1245 0,1533 0,2303 0,2025 0,1980 0,1657 0,1327 0,1347 0,1640 0,1846 0,2175 0,2250 0,1656 0,1300 0,1274 0,1563

DIA TAXA(%) DIA TAXA(%) DIA TAXA(%)

MESES

6. A partir de 1º de janeiro de 2016,

01.05.16 01.05.16 02.05.16 03.05.16 04.05.16 05.05.16 06.05.16 07.05.16 08.05.16 09.05.16 10.05.16 11.05.16 12.05.16 13.05.16 14.05.16 15.05.16

Fonte – Banco Central

ração, a qualquer título, de bem móvel rado ao seu ativo permanente.

0,1339 1,1022 0,1319 0,1693 0,1909 0,1906 0,1554 0,1600 0,1254 0,1542 0,2266 0,2006 0,1550 0,1603 0,1258 0,0958

últimos 12 meses

ABR

no ano

0,44

-

2,97

9,1

0,44

0,64

3,58

9,83

0,90

0,43

0,61

3,25

9,28

1,29

0,51

0,33

3,30

10,63

IGP-DI/FGV

0,92

0,40

0,68

0,58

0,40

1,42

1,76

1,19

0,44

1,53

0,79

0,43

0,36

3,15

10,46

INCC-DI/FGV

0,46

0,95

1,84

0,55

0,59

0,22

0,36

0,34

0,10

0,39

0,54

0,64

0,55

2,13

7,28

IPC-DI/FGV

0,61

0,72

0,82

0,53

0,22

0,42

0,76

1,00

0,88

1,78

0,76

0,50

0,49

3,57

9,24

IPC-SP/FIPE

1,10

0,62

0,47

0,85

0,56

0,66

0,88

1,06

0,82

1,37

0,89

0,97

3,74

10,03

10,03

IPCA-E/IBGE

1,07

0,60

0,99

0,59

0,43

0,39

0,66

0,85

1,18

0,92

1,42

0,43

2,79

9,95

9,95

IPA-AGRO/FGV

0,03

-1,15

0,15

1,02

0,58

3,40

0,66

2.49

1,51

2,58

2,02

1,28

7,20

19,18

19,18

Fontes – FGV, IBGE, DIEESE, Fipe.

indicadores econômicos

SEGURIDADE SOCIAL NOVOS VALORES

“Se a história nos relega alguma lição sobre democracia é que os homens a definiram em seu tempo segundo seus interesses, demostrando que estes controlam os conceitos, mas os interesses controlam os homens.” „„ por

LEYLA YURTSEVER

U

m debate bastante atual é sobre democracia. Por todas as regiões do Brasil se multiplicam as opiniões, nem sempre convergentes, sobre o que consiste verdadeiramente a democracia, quais seus fundamentos, seus limites e suas exceções. Ainda que se recorra ao ideal grego de democracia para fundamentar as opiniões defendidas, em quase nada ajuda a esclarecer o que seja efetivamente a democracia. Pode-se afirmar que democracia é um processo histórico, inacabado e aperfeiçoado sempre. O ineditismo democrático grego não foi um modelo de governo experienciado nacionalmente, restringindo-se apenas a cidade-Estado de Atenas, devendo-se, por isso, nominar de democracia ateniense e não grega. Ademais, as regras de aceitação àqueles que podiam ser considerados cidadãos plenos excluíam quase 90% da população e alguns eram reconhecidos como cidadãos devido ao nome familiar. Ou seja, as regras existiam não para incluir alguém, mas para excluir uma grande maioria. Dito de forma mais atual era o Estado que concedia cidadania, não era um direito nato, mas um benefício concedido através de regras e leis. Hoje, muitos discursos revivem esta forma restrita de democracia quando afirmam que o comparecimento nas urnas é o auge da democracia e a sociedade não deveria ter participação em qualquer outro fórum. Em geral, a complexidade dos fóruns de participação popular não somente tem afastado parte da sociedade, mas atraído indivíduos com interesses divergentes aos desta sociedade que, em última instância, se nega a prestar contas de seus atos. Não obstante, essa complexidade tem sido o pano de fundo com que muitos, ainda que promovendo algum interesse público, cometem desvios e admitem que apenas o fizeram devido à estrutura de poder viciada e, por isso, não podem ser condenados. Tal axioma foi defendido por Rousseau, para quem o homem é bom, mas a sociedade o corrompe, neste caso a estrutura de poder. Esconde-se, assim, uma exclusão de responsabilidade e de autodeterminação como se não houvesse escolha em cometer ou não o erro. Outros constrangem ainda mais a sociedade quando alegam que uma comunidade adquire cidadania pela exe-

cução de obras públicas, em um desvio ainda mais brutal deste conceito. Como se antes os moradores fossem subcidadãos, quando na verdade eram indivíduos expatriados de seus direitos em sua própria terra natal. Um rascunho desvirtuado da democracia ateniense que revela pequenos tiranos e sua arrogância. Frise-se ainda que serviços públicos com qualidade nas áreas de saúde, educação e habitação são possíveis em regimes ditatoriais, nos quais os valores democráticos são ignorados abertamente. Benefícios e obras públicas não refletem uma democracia, apenas mostram o respeito, a dignidade e a confiança que os governantes receberam de seus cidadãos. Se assim não for, tornar-se-ia mais confuso o fato de alguns países exporem em seus nomes nacionais o termo democrático, caso da República Popular Democrática da Coreia (do Norte), sendo, contudo, imitações ou aspirações do que realmente seja democracia. Outro aspecto a ser considerado é quando se reduz a democracia apenas ao ato de votar. É indiscutível que votar faz parte da democracia, mas não abrange sua totalidade. Uma participação de 10 minutos exercida a cada quatro anos não pode significar democracia. Enquanto se mantiver este quadro de exclusão de responsabilidade pelos governantes e ausência de cultura participativa pela sociedade a democracia será sempre uma experiência incompleta e vivida pela metade. Essa participação da sociedade, já defendida por Karl Marx, confere ao cidadão uma consciência de ser social, e quando não ocorrer ele estará alienado de sua realidade. Assim, democracia prescinde de dois conceitos: povo e participação. O primeiro orienta o que seja povo, cidadão e sociedade. Não se pode admitir conceito de sociedade que exclua a cidadania plena, que o associe à benefícios concedidos pelo Estado ou que se materialize apenas a uma minoria politicamente ativa. O segundo é que, tampouco é aceitável que esta democracia se reduza a participação prédeterminada temporalmente. Se a história nos relega alguma lição sobre democracia é que os homens a definiram em seu tempo segundo seus interesses, demostrando que estes controlam os conceitos, mas os interesses controlam os homens.

REFERÊNCIAS BEÇAK, Rubens. Democracia – hegemonia e aperfeiçoamento. São Paulo: Saraiva, 2014. DOBSON, William J. Escola de ditadores: dentro da luta global pela democracia. trad. Gilberto D. Nascimento. São Paulo: Via Leitura, 2014. PINSKY, Jaime. PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). História da cidadania. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2015. TILLY, Charles. Democracia. Trad. Raquel Weiss. Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes, 2013. WEFFORT, Francisco C. Os clássicos da política 1. v. 1. 10. ed. São Paulo: Ática, 2000. arquivo pessoal

painel do leitor

ONDE ESTÁ A DEMOCRACIA?

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Leyla Yurtsever é doutora em Direito pela Universidade Católica de Santa Fé - Argentina. Mestre em Direito Ambiental pela Universidade de Leon na Espanha, especialista em direito do trabalho pelo Ciesa. Articulista da Revista CONSULEX e palestrante da Escola Judiciária do Amazonas e professora de prática jurídica da Universidade Federal do Amazonas. Foi coordenadora da Especialização em Direito Eleitoral da UEA. Advogada militante há mais de 15 anos na cidade de Manaus​​e ​​​ sócia fundadora​​Leyla Yurtsever Advogados Associados.

revista JURÍDICA consulex - ano xX - nº 464 - 15 DE MAIO/2016

„„ por

C

DAVID KUPFER

arquivo pessoal

omeçando pelo soneto. Já em 2011 e mais ainda em 2012, as condições de contorno mundiais e locais já indicavam a entrada da economia brasileira em uma fase de descenso cíclico. Primeiro, o consumo doméstico encontrava-se prestes a mergulhar como consequência da perda de renda real advinda da correção cambial e de pressões inflacionárias. Como agravante, famílias e empresas estavam altamente endividadas, limitando a capacidade de atuação via crédito. Segundo, o consumo externo (exportações) igualmente enfrentava um quadro de dificuldades provocado pela anemia da demanda internacional e, mais ainda, pela forte piora dos termos de troca das commodities comercializadas pelo Brasil. Por fim, a formação de capital fixo teria necessariamente que sofrer com as contrações das demandas interna e externa e com a piora da expectativa de retorno dos investimentos. Neste contexto, saltam aos olhos os erros, primeiro na opção por políticas contracionistas tomadas em 2011 e, segundo, com a rápida reversão do composto macroeconômico como tentativa de pegar um atalho para uma rota de crescimento mais acelerada, empreendida a partir de 2012. Eis que, então, chegou 2015, marcando o início de um novo ciclo político e, com ele, quatro ordens de emendas foram introduzidas no soneto. A primeira foi o realinhamento dos preços administrados, atitude correta e necessária, mas que não poderia ter sido introduzida na forma de um choque, como se a escalada inflacionária decorrente pudesse ser rapidamente absorvida em uma economia com tantas rigidezes como a brasileira. A segunda, um aperto monetário, que era correto e necessário, mas que foi feito por meio de um choque de juros que, ao se abater sobre famílias e empresas endividadas, com capacidade de pagamento já fortemente comprimida, provocou uma contração brutal do consumo. Terceira, uma desvalorização cambial, que era correta e necessária, mas que foi feita na forma de um choque que virtualmente inviabilizou a produção industrial semilocal – aquela que é pesadamente apoiada em importações de insumos intermediários, partes e peças – hoje muito representativa na matriz produtiva nacional. Quarta, um conjunto de medidas visando reequilibrar o orçamento fiscal, o que era correto e necessário, mas não na forma de um choque de despesas discricionárias que, como era inescapável, deprimiu o investimento público e, indiretamente, os investimentos privados que seriam por ele encadeados. A título de ilustração, segundo dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2015 o investimento

público consolidado, que inclui as três esferas de governo e as empresas estatais, foi 29% menor em valor constante do que o do ano anterior. Não é o caso de simplificar o problema a ponto de atribuir ao chamado “austerícídio fiscal” a causa da atual mega recessão. Esse é um diagnóstico claramente incorreto, pois, olhando friamente para os números entre 2012 e 2014, nenhum economista sensato poderia concluir que a economia estivesse em uma rota consistente. Tampouco é acertado confundir um ajuste fiscal discricionário de curto prazo, no qual se mexeu no rabo para ver se ele abanaria melhor o cachorro, com uma verdadeira reforma fiscal estrutural de médio e longo prazos. Nesta, trata-se de definir limites para o crescimento das despesas não discricionárias, de preferência de forma socialmente legitimada; de buscar aumentar as receitas por meio de novos impostos ou da revisão da estrutura tributária existente, idem, e ainda adotar medidas de aumento da eficiência e de saneamento dos gastos que, como mostrados pelos inumeráveis episódios de desperdício ou malversação que vão sendo desvelados, constituem, sim, um objetivo estratégico a ser perseguido. O “xis” da questão é que uma reforma fiscal dessa natureza requer algo que hoje parece utópico: um sistema político representativo da sociedade e disposto a negociar diretrizes de construção do futuro. Ao contrário da economia na qual os ciclos têm uma temporalidade imprevisível, os ciclos políticos na democracia têm, ou deveriam ter, duração definida. O que está acontecendo de inusitado, para dizer o mínimo, no Brasil de hoje é que a duração do ciclo político também se tornou imprevisível. A combinação explosiva de uma recessão de natureza cíclica com um colapso político dessa ordem de grandeza “estruturalizou” uma crise que na sua essência econômica talvez permanecesse confinada ao plano conjuntural. Algum dia os economistas vão compreender que a política macroeconômica não é um hormônio do crescimento que, se administrado em doses corretas e com a devida regularidade, sempre irá cumprir seus objetivos. Ela pode regularizar o ciclo, especialmente evitando que as fases de baixa sejam muito profundas ou duradouras ou que as fases de alta sejam muito curtas ou superficiais. Porém, o que promove o crescimento econômico sustentável são as políticas industriais, tecnológicas, educacionais, regionais, sociais, de relações internacionais, etc. E essas são mais “políticas” do que “econômicas”. Quando essa compreensão chegar, os economistas escreverão sonetos melhores.

David Kupfer é diretor do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Grupo de Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ). Escreve mensalmente às segundas-feiras.

revista JURÍDICA consulex - www.consulex.com.br

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painel econômico

Sonetos e Emendas

direito e bioética

DOPING GENÉTICO E JUSTIÇA NO ESPORTE: autonomia x igualdade “A partir do momento em que o doping genético comprovar ser um método seguro, mesmo que ainda não esteja à disposição de todos, as competições esportivas poderiam ser tratadas de forma diferenciada, uma voltada para os atletas transgênicos e outra voltada para os atletas não transgênicos, da mesma maneira que ocorre nos jogos mundiais, tais como os Jogos Olímpicos para os atletas não deficientes e os Jogos Paraolímpicos, para os atletas deficientes. Com esses critérios de justiça, autonomia e igualdade os campeonatos poderiam coexistir.”

„„ por

TIAGO VIEIRA BOMTEMPO

U

m dos principais motivos de impedimento do uso do doping é a violação da igualdade entre os atletas em razão de o esporte ser concebido como o palco da vitória a partir do próprio esforço, com dedicação de horas de treinamento, dieta rígida, comprometimento e honestidade. O esporte é a “vitrine da sociedade”. Por isso, a importância da igualdade entre os competidores é essencial, de forma que o desempenho natural junto e o talento sejam a consecução do resultado, sem qualquer interferência que proporcione mais vantagem, respeitando o jogo limpo ou fair play. Isso remete à ideia do olimpismo que, de acordo com o Comitê Olímpico Brasileiro (COB, 2016) tem o seguinte significado: A educação, a integração cultural e a busca pela excelência através do esporte são ideais a serem alcançados. O Olimpismo tem como princípios a amizade, a compreensão mútua, a igualdade, a solidariedade e o “fair play” (jogo limpo). Mais que uma filosofia esportiva, o Olimpismo é uma filosofia de vida. A ideia é que a prática destes valores ultrapasse as fronteiras das arenas esportivas e influencie a vida de todos.

Nesse sentido, a igualdade no esporte remete também ao critério de justiça, que desde a Grécia antiga já era pregada nos Jogos Olímpicos, o qual consiste em dar a cada um o que lhe é devido, conforme o seu mérito. Segundo Aristóteles (1984, p.125), “as distribuições devem ser feitas “de acordo com o mérito”, pois todos admitem que a distribuição justa deve concordar com o mérito num sen-

12

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tido qualquer”. Entendia Aristóteles (1985) que o fato de alguns homens serem mais velozes do que outros não era justificativa para que ocupassem cargos no governo político, mas em competições esportivas esse fator influenciava no seu mérito e as honrarias deveriam ser dadas aos mais velozes. Mesmo hoje, na contemporaneidade, essa concepção de igualdade ainda é admitida, pois, conforme Carvalho (2011, p.697): pondera-se ainda que a ideia de igualdade se relaciona com a da própria justiça, quando se trata de exigir de cada um aquilo que sua capacidade e possibilidade permitirem, e conceder algo a cada um, de acordo com seus méritos (justiça distributiva).

Dessa forma, qualquer intervenção não natural no atleta configura uma violação ao critério de igualdade, principalmente se não estiver ao alcance de todos os competidores. Nesse contexto, o doping genético poderia trazer uma violação à igualdade esportiva, no sentido de “melhorar” a performance com a adição de “genes atléticos”, conferindo um resultado que não tenha sido proveniente do esforço natural, do próprio mérito, como se propõe discutir a seguir. Proibir ou não o doping genético? Há quem defenda, como Ramirez e Ribeiro (2005), que o recurso ao doping genético não fere o princípio

DIVULGAÇÃO

da igualdade, pois os avanços da engenharia genética devem promover o aperfeiçoamento humano e, se tais métodos estiverem à disposição de todos, não há porque haver proibição. Continuam Ramirez e Ribeiro (2005) afirmando que o tratamento dado à Agência Mundial Antidopagem (AMA) para a dopagem genética não deve se perpetuar, por ser inadequado, pois na medida em que as tecnologias biomoleculares forem colocadas à disposição de todos implicarão a economia de milhões de dólares com gastos em exames e testes antidoping. Porém, ainda que estivesse à disposição de todos os atletas, a igualdade estaria sendo atendida somente do ponto de vista formal, pois, sob o aspecto material (isonomia) o princípio da igualdade estaria sendo violado. Nem todos poderiam ter condições econômicas para adquirir tal técnica, principalmente de forma segura, sobretudo em países subdesenvolvidos (GARCIA; LEMOS, 2005). Contestam Oliveira e outros (2011), ao afirmarem que poderiam ser criados kits de baixo custo para que todos os atletas pudessem fazer uso do doping genético no futuro, desde que a terapia gênica – a transferência de material genético com o propósito de prevenir ou curar uma enfermidade qualquer – se revelasse uma técnica com alto grau de segurança. Parece um tanto utópica tal sugestão, pois ainda é distante o acesso à terapia gênica, a qual se encontra em fase experimental. Se nem mesmo é possível assegurar a saúde em âmbito global, com a ocorrência diária da mistanásia1 em países subdesenvolvidos, kits de melhoramento genético para atletas mais carentes soa um tanto estranho. Questiona-se se de fato a igualdade será infringida, já que o gene sozinho não consegue ser ativado no organismo em função de depender da interação com o ambiente e outros fatores, tais como condicionamento físico e alimentação, conforme alerta Mark Frankel, colaborador da WADA, em entrevista à Revista Diversa (RODRIGUES, 2012). Em contrapartida, afirma Dias na mesma reportagem que, em determinados esportes haverá situações nas quais não será necessário esforço físico ou treinamento do atleta para ativar o gene “dopante”. Somente o gene expresso no ambiente poderá alcançar o resultado pretendido, como os responsáveis por funções cognitivas, ajudando o atleta a pensar mais rápido e a tomar decisões num curto intervalo de tempo, como futebol, handebol e basquete (RODRIGUES, 2012). Diante dessas afirmações pode-se entender que o doping genético é uma afronta ao princípio da igualdade nos esportes, além de instrumentalizar o próprio atleta, que muitas vezes busca a dopagem para atingir interesses alheios a sua própria vontade (VASCONCELOS, 2012). Ademais, a instrumentalização do atleta com o uso do doping não só viola a igualdade como também a dignidade própria e dos outros competidores. Pondera Coelho que: Devemos considerar diversas fontes de nossa inquietação sobre os diferentes agentes técnicos e biotecnologias revista JURÍDICA consulex - www.consulex.com.br

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direito e bioética

que podem aumentar ou alterar o desempenho esportivo: a injustiça e a desigualdade, coação e constrangimento, e os efeitos adversos sobre a saúde e o equilíbrio da vida humana. Cada um indica algo importante, contudo os problemas não são simplesmente a desigualdade e a injustiça, mas a própria dignidade da humanidade, que é ofendida. Há a violação da própria dignidade, por conta da desonestidade, do desempenho inautêntico, da vantagem injusta e da dignidade do outro, que é desrespeitado e enganado. (COELHO, 2012, p. 177).

Contudo, a vontade do atleta de buscar o melhoramento genético também não estaria violando a sua autonomia? Concepção de justiça no esporte: doping genético entre autonomia e a igualdade? Atletas que fizeram uso de algum tratamento que trouxe melhoramento no seu desempenho esportivo, como o jogador de futebol Lionel Messi e o golfista Tiger Woods deveriam ser suspensos de suas atividades? Ou Messi teria que tomar hormônio para diminuir sua estatura e Woods usar lentes que piorassem sua visão? Ou deixar que cada atleta faça uso do que esteja ao seu alcance para melhorar o seu desempenho, ainda que de forma não natural, sobretudo o doping genético, pondo fim à loteria genética? Se adotarmos a concepção de justiça de Aristóteles para a primeira pergunta, a resposta seria que os dois atletas deveriam ser suspensos, o que implica que a resposta para a segunda pergunta deveria ser positiva, já que para voltarem a jogar, Messi deveria tomar hormônio para diminuir de tamanho e Tiger Woods usar lentes que distorcessem a sua visão. Dessa forma, a resposta da terceira pergunta seria negativa. Segundo o filósofo grego: Para pessoas iguais o honroso e justo consiste em ter a parte que lhes cabe, pois nisto consistem a igualdade e a identificação entre pessoas; dar, porém, o desigual a iguais, e o que não é idêntico a pessoas identificadas entre si, é contra a natureza, e nada contrário à natureza é bom. [...] (ARISTÓTELES, 1985, p. 1325).

Por outro lado, aplicando-se, por exemplo, o entendimento de justiça de Moraes (2013), o qual se pactua, os dois atletas poderiam competir normalmente, pois não há desigualdade na medida em que uma justificativa razoável é apresentada e atendeu-se à finalidade, pois Messi tomou hormônio de crescimento com fins terapêuticos na infância e jamais poderia se pensar que se tornaria um jogador de futebol. Tiger Woods, também por questão terapêutica, realizou a cirurgia nos olhos para corrigir a visão. Segundo Moraes: A desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acor-

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do com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos. (MORAES, 2013, p. 35). Para quem é adepto da resposta positiva da última pergunta, sendo inválidas a primeira e segunda perguntas, toma-se como referência o posicionamento de Nara Carvalho, em entrevista à Revista Diversa: Os pesquisadores do Grupo Persona consideram que a política antidoping vigente privilegia uma loteria genética. “Se um nadador utilizar eritropoietina recombinante para alcançar os mesmos níveis produzidos pelo organismo do Michael Phelps, ele será punido. Ou seja, para as regras atuais, as condições biológicas desiguais são justas”, analisa Nara Carvalho, outra integrante do grupo. Ela questiona ainda a flutuação das normas e recorre aos casos do argentino Lionel Messi, que utilizou hormônio do crescimento para ter um desenvolvimento físico considerado normal, e do jogador de golfe Tiger Woods, que melhorou seu desempenho após cirurgia para correção da visão. “É uma contradição muito grande. A intervenção médica para se igualar aos demais competidores é aceita em uma situação e proibida em outras”, diz. (RODRIGUES, 2012)

Tal posicionamento vai ao encontro da afirmação de Kildare Carvalho (2011, p. 697) que “o princípio da igualdade não é absoluto, como nenhum direito o é”. Ainda que a “igualdade certamente acarretará situações jurídicas absurdas e insuportáveis, decorrente da planificação do agir humano” (FIÚZA; MARTINS, 2013, p. 30), em contrapartida a autonomia também não pode ser irrestrita, pois a democracia implica respeitar os espaços de liberdade do outro. Sendo assim, como não permitir que o doping genético viole o princípio da igualdade ao mesmo tempo em que efetive a livre escolha do atleta? Antes de tentar responder à proposição recorre-se ao posicionamento de Canotilho para elucidação: Saber quando há um tratamento justo de igualdade ou desigualdade não é tarefa fácil. Como ponto de apoio metódico sugere-se o seguinte esquema: 1) quais as situações de facto que são objecto de comparação, pois, se o princípio da igualdade é, por definição, um princípio relacional, e a norma jurídica comporta sempre um âmbito ou sector “real” ou “fáctico” [...] então importa sempre determinar quais os “candidatos” (objectos, pessoas, situações) que se consideram iguais ou desiguais. 2) quais os critérios ou medidas materiais com base nos quais avaliamos se determinados “pressupostos de facto” devem ser tratados de forma “essencialmente igual” ou “essencialmente desigual?” (CANOTILHO, 1993, p. 570).

Com base nessa premissa, para que o doping genético não viole a escolha de cada atleta revolve-se o ponto no qual se entende que a autonomia no contexto democrático deve permitir a coexistência de iguais liberdades fundamentais. No que tange ao doping genético, a priori, seria possível, desde que fossem divididos dois tipos de campeonatos esportivos, um para atletas transgênicos e outro para não transgênicos, como também sugere Miah (2008). Considerações finais Conclui-se que, a partir do momento em que o doping genético comprovar ser um método seguro, mesmo que ainda não esteja à disposição de todos, as competições

esportivas poderiam ser tratadas de forma diferenciada, uma voltada para os atletas transgênicos e outra voltada para os atletas não transgênicos, da mesma maneira que ocorre nos jogos mundiais, tais como os Jogos Olímpicos para os atletas não deficientes e os Jogos Paraolímpicos, para os atletas deficientes. Com esses critérios de justiça, autonomia e igualdade os campeonatos poderiam coexistir. Como Frankel (RODRIGUES, 2012), também se entende que logo esse tipo de competição de atletas geneticamente modificados poderia tornar-se enfadonho, pois, repita-se, o esporte significa a conquista do resultado por mérito próprio, representando a essência do espírito esportivo.

NOTA 1 A mistanásia é também chamada de morte social ou miserável. Segundo Martin (1998, p.172): “Dentro da categoria de mistanásia pode-se focalizar três situações, primeiro, a grande massa de doentes e deficientes que, por motivos políticos, sociais e econômicos não chegam a ser pacientes, pois não conseguem ingressar efetivamente no sistema de atendimento médico; segundo, os doentes que conseguem ser pacientes, para, em seguida, se tornar vítimas de erro médico e, terceiro, os pacientes que acabam sendo vítimas de má-prática por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos”.

arquivo pessoal

REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Metafisica: (livro I e livro II); Ética a Nicômano; Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1984. ARISTÓTELES. Política, Brasília: UnB, 1985.  CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional, 6. ed. rev., Coimbra: Almedina, 1993. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional: teoria do estado e da constituição: direito constitucional positivo, 17. ed. rev., atual. e ampl., Belo Horizonte: Del Rey, 2011. COELHO, Mário Marcelo. Doping genético, o atleta superior e bioética. Revista Bioethikos, São Paulo, v. 6, n. 2, abr/jun 2012. Disponível em: . Acesso em: 03 abr. 2016. COMITÊ OLÍMPICO BRASILEIRO. Olimpismo. Disponível em: . Acesso em: 02 abr. 2013. FIUZA, Cesar Augusto de Castro; MARTINS; Thiago Penido. Igualdade e relações familiares: uma análise crítica da responsabilidade civil por abandono afetivo. In: SÁ, Maria de Fátima Freire de; MOUREIRA, Diogo Luna; ALMEIDA, Renata Barbosa de. (Orgs.). Direito Privado: Revisitações. 1ed. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2013, p. 27-50. GARCIA, Rui Proença; LEMOS, Kátia. Temas (quase éticos) de desporto. Belo Horizonte: Casa da Educação Física, 2005. MARTIN, Leonard M. Eutanásia e Distanásia. In: COSTA, Sérgio Ibiapina Ferreira, OSELKA, Gabriel, GARRAFA, Volnei. Iniciação à Bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998. p. 171-192. MIAH, Andy. Atletas geneticamente modificados: ética biomédica, doping genético e esporte, São Paulo: Phorte, 2008. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 29. ed. rev. e atual. até a EC nº 71/12. São Paulo: Atlas, 2013. OLIVEIRA, R.S. et al . The use of genes for performance enhancement: doping or therapy?.  Brazilian Journal Medical Biology Research, Ribeirão Preto, v. 44, n. 12, Dez. 2011. Disponível em: . Acesso em: 03 abr. 2016. RAMIREZ, Andréa; RIBEIRO, Álvaro Antônio Carneiro Pinto. Doping genético e esporte. Revista Metropolitana de Ciências do Movimento Humano. São Paulo, v. 5, n. 2, jun. 2005. Disponível em: Acesso em: 03 abr. 2016. RODRIGUES, Léo. O atleta transgênico: possibilidade real de uso do doping genético divide pesquisadores: endurecer ou flexibilizar as regras? In: Diversa: Revista da Universidade Federal de Minas Gerais. Ano 10, nº 19, mai. 2012. Disponível em: . Acesso em: 02 abr. 2016. VASCONCELOS, Carla. Os impactos da biotecnologia no esporte. In: JORDÃO, Milton. (Coord.) INSTITUTO DE DIREITO DESPORTIVO DA BAHIA. INSTITUTO MINEIRO DE DIREITO DESPORTIVO. Direito desportivo & esporte: volume 3: temas selecionados. Salvador: Òmnira, 2012. p.29-43.

Tiago Vieira Bomtempo é mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Especialista em Direito Público pelo IEC-PUC Minas. Investigador do Instituto de Investigação Científica Constituição e Processo, cadastrado no CNPQ. Advogado e membro da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/MG. Professor universitário. Autor do livro “Melhoramento humano no esporte: o Doping Genético e suas implicações bioéticas e biojurídicas”.

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DIVULGAÇÃO

ciência jurídica em foco

Pagamento de pensão alimentícia sob a forma de produtos e serviços em favor da criança ou adolescente “O pagamento de pensão por meio de produtos e serviços pode ser um fator inibidor de conduta semelhante a alienação parental, evitando que o guardião administrador da pensão passe informações erradas e/ou falsas aos filhos sobre pagamentos defeituosos ou até mesmo de falta de pagamento. Destaque-se que essa forma de pagamento ainda há de gerar na criança, e principalmente nos adolescentes, a segurança de que seus pais estão conjuntamente empenhados na sua criação e educação.” „„ por

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MARCELA MARIA FURST SIGNORI PRADO e CRISTIAN FETTER MOLD

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essa forma de pagamento ainda há de gerar na criança, e principalmente nos adolescentes, a segurança de que seus pais estão conjuntamente empenhados na sua criação e educação. Não podemos olvidar de que a nova Lei da Guarda Compartilhada traz a possibilidade de ações de prestação de contas de alimentos, caso haja a adoção da modalidade de guarda unilateral (Art. 1583, § 5º do Código Civil criado pela Lei nº 13.058/2014). Não são tecidas maiores considerações acerca da irrepetibilidade da prestação alimentar, algo que será certamente enfrentado pelos Tribunais a partir da nova regra. De qualquer modo, à guisa de comentário, entendemos que, se o instituto da “prestação de contas em alimentos” passar a fazer parte de nosso ordenamento, ele deve valer para todos os casos, ou seja, também na hipótese de guarda compartilhada. Não nos afigura possível que o legislador intente eliminar a possibilidade de fixação de pensão alimentícia nos casos de guarda compartilhada. Lê-se aqui ou ali alguns defenderem que, com a adoção da guarda compartilhada os alimentos não deveriam ser fixados, pois a divisão de tempo seria melhor distribuída ou até mesmo igualitária, já que cada ex-cônjuge/companheiro arcaria integralmente com os custos do período de convívio. Pode ser que – e a experiência prática vai mostrar – com a evolução da guarda compartilhada, assim como das pessoas envolvidas, melhor dizendo, consigamos chegar ao ideal de um verdadeiro “compartilhamento das despesas”, de modo que os acordos de alimentos se avolumem, trazendo as partes, de forma honesta e transparente, os gastos de seus filhos em cotejo com seus reais ganhos para uma distribuição justa dos encargos devidos a cada um para o sustento e criação de seus filhos. Mas a realidade é esta? Evidentemente que não. Assim, independentemente do sistema de guarda ou convívio adotado, entendemos que ainda se afigura necessária, em muitos casos, a fixação de um pagamento mensal a ser feito por um genitor a outro, de modo a auxiliar nas despesas principais do mês. Nesse caso, os alimentos in natura, arbitrados judicialmente (por acordo ou não) sob a forma de produtos e serviços em favor das crianças e adolescentes talvez nos aproximem mais de um conceito de “compartilhamento de despesas”, vindo ao encontro do proposto pela Lei da Guarda Compartilhada, em que a responsabilidade é conjunta e, assim também, o exercício de direitos e deveres com relação ao poder familiar dos filhos comuns, mesmo que o casamento ou a união estável tenha sido dissolvido ou jamais tenha ocorrido. 

Marcela Mª Furst Signori Prado é advogada, membro da Comissão do Jovem Advogado e da Comissão de Direito das Famílias da OAB-DF e membro do IBDFAM.

arquivo pessoal

arquivo pessoal

pagamento de alimentos surge para proporcionar os recursos necessários de quem não pode provê-los por si só, na forma de uma prestação que visa servir às necessidades vitais, garantindo tanto a dignidade como os laços familiares. Ressalte-se que a obrigação de alimentar tem como condição fundamental a prova do binômio “necessidade x possibilidade”, conforme reza o § 1º do artigo 1.694 do Código Civil. É praxe que o pagamento de pensão para filho seja feito em pecúnia, seja em salários mínimos ou por desconto no contracheque. Porém, tem sido observado nos Tribunais o aumento do pagamento sob a forma de produtos e serviços, tais como escola, material escolar, transporte, plano de saúde, atividades extraclasse, entre outros. Os alimentos arbitrados judicialmente sob a forma de serviços são chamados de alimentos in natura. Tal medida, em nosso sentir, traz muitas vantagens para pais e filhos. Considerando-se que ainda, na maioria dos casos, a guarda apresenta-se sob a forma unilateral e é entregue à mãe, ou, em casos de guarda compartilhada, frequentemente o lar de referência é o materno. Uma das vantagens é que se retira a corriqueira impressão de o alimentante pensar que o dinheiro esteja sendo consumido pela mãe ou sendo mal gerido, provocando, muitas vezes, também na guardiã uma sensação de incômodo. A fixação de alimentos in natura também possui um natural fator de correção, uma vez que produtos e serviços aumentam ano após ano, tornando desnecessário, salvo em hipóteses especiais, o ingresso de ações revisionais. Ademais, em caso de inadimplemento o mau pagador pode ser compelido ao pagamento pela execução de alimentos, até com possibilidade de prisão civil, sendo ainda prejudicado se o serviço não for pago. Já que é possível ser negativado junto aos cadastros de proteção ao crédito. Observa-se ainda que, ao pagar diretamente por serviços prestados aos filhos, existe a possibilidade de o devedor da pensão se preocupar mais com a qualidade dos serviços, aumentando sua participação no cotidiano da criança e, assim, gerando no menor uma sensação de estar bem amparado. Além disso, o pagamento de pensão por meio de produtos e serviços pode ser um fator inibidor de conduta semelhante a alienação parental, evitando que o guardião administrador da pensão passe informações erradas e/ou falsas aos filhos sobre pagamentos defeituosos ou até mesmo de falta de pagamento. Destaque-se que

Cristian Fetter Mold é advogado, professor de Direito de Família e Sucessões da EDB-IDP e da ESA (OAB-DF), membro da Comissão de Direito das Famílias da OAB-DF e do IBDFAM.

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propostas e projetos

Transportadores autônomos poderão ganhar novos direitos “Tramita no Congresso Nacional um projeto de lei (PL 1.398/2015) objetivando regulamentar a categoria dos transportadores autônomos de cargas, tendo por finalidade estimular essa categoria, que muitas vezes se apresenta em posição de vulnerabilidade em relação aos agenciadores de cargas.” „„ por

LEANDRO MENDES

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entre as previsões de maior impacto, o projeto prevê a limitação de margem de ganho de transportadores em subcontratação de autônomos. De acordo com o artigo 2ª da proposta legislativa, a diferença entre o valor de frete contratado entre transportador e embarcador não poderá superar a 20% do valor contratado entre a transportadora e o transportador autônomo. Outro ponto de destaque se refere à obrigatoriedade dos embarcadores que possuem demanda de carga mensal superior a 200 toneladas contratarem, pelo menos, 40% de suas cargas por meio de transportadores autônomos de cargas ou por intermédio de cooperativas de transportadores autônomos. O projeto de lei também autoriza a União, por meio de suas instituições financeiras federais, a promover abertu-

ra de crédito especial para os transportadores autônomos de cargas, com limite de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) por CPF, além de conceder prazos de carência de seis meses, com juros subsidiados, e pagamento do principal pelo período de 24 a 48 meses. Essas medidas apresentadas no referido projeto de lei ganharam corpo a partir da paralisação nacional dos caminhoneiros deflagrada no início de 2015. Embora uma boa parcela das reivindicações dos caminhoneiros tenha sido atendida pelo Governo Federal, através da promulgação da Lei dos Motoristas, parte da categoria – transportadores autônomos –, não foi contemplada pela lei federal. Em que pese à necessidade de regulamentação dessa categoria, acredita-se que o PL 1.398/2015 terá dificuldades para ser aprovado pelo Congresso, isso porque algumas medidas apresentadas serão de difícil execução. Quando da apresentação do projeto de lei à Comissão de Viação e Transportes, esta opinou pela sua rejeição, pois considera que as medidas apresentadas vão de encontro aos princípios constitucionais da ordem econômica, da livre iniciativa e da livre concorrência, bem como contraria os princípios que norteiam as contratações com entes públicos, visto que não é dever do Estado interferir nas relações comerciais firmadas entre contratantes. De toda forma, em que pese o parecer negativo apresentado pela Comissão de Viação e Transportes, o projeto ainda poderá ser convertido em lei federal. Contudo, ele terá que superar outras barreiras regimentais – a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), por exemplo – até ser efetivamente posto em votação pelo Congresso e posterior sanção presidencial no, caso de sua aprovação. Atualmente, o projeto aguarda envio para apreciação da Comissão de Finanças e Tributação sobre a adequação financeira ou orçamentária da proposta e posterior Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), que analisará os aspectos legais.

Leandro Mendes é advogado do escritório Augusto Grellert Advogados Associados, atuante em Direito Privado, com ênfase em Direito Civil, Bancário e Comercial.

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destaque

ARQUIVO PESSOAL

Roberto Bocaccio Piscitelli

QUAL É A PIOR DAS CRISES?

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á poucos meses, o Supremo Tribunal Federal, alterando entendimento até então pacífico, decidiu que o indivíduo pode ser preso após sentença condenatória de segunda instância, o que desencadeou uma nova onda de prisões no Brasil, que já tem a quarta maior população carcerária do mundo, nas piores condições de sobrevivência de que se tem notícia. Sabe-se, hoje, que aproximadamente 25% das decisões de segunda instância são reformadas nas instâncias superiores. Poderia ser o caso de indagar: o que é pior? Postergar o início do prazo de cumprimento da pena, mantendo provisoriamente o réu em liberdade, ou manter preso – por período indeterminado – um indivíduo que venha a ser considerado inocente? Qual é o preço da liberdade? Talvez, a própria vida. Mas o que há de atroz nisso? Se a crença é a de que se deveriam suprimir instâncias, recursos e prazos nesse rito, então que se tenha a coragem de mudar a lei. Mas se a questão é encontrar uma solução para a ineficiência do Judiciário, o problema é muito mais sério. É espantoso o fato de 38% dos presos no Brasil não terem sido condenados em sentença final (ou sequer julgados), contribuindo para que a taxa da população encarcerada seja de 98 por 100 mil habitantes, indicadores que colocam o país entre os primeiros do mundo em encarceramento. Triste é ninguém escandalizar-se com isso. É inacreditável que, em um país em que se aceitem tantas denúncias que se convertem em verdadeiro justiçamento, ninguém da alta hierarquia denuncie a prática contumaz de decretar prisões preventivas que não têm prazo para acabar e, muitas vezes, sem que o indiciado tenha sequer a oportunidade de depor, uma vez aceita como regra a prisão para investigá-lo e o seu consequente linchamento automático. É preocupante constatar o retorno do mesmo filme, sempre em novas versões, melancólica lembrança que constitui um dos poucos privilégios dos que já passaram mais anos na vida.

A rigor, o cumprimento de penas em regime fechado só se justificaria em casos em que o criminoso representasse um risco efetivo à vida e à segurança das pessoas, ou quando suas transgressões fossem continuadas ou provocassem danos irreparáveis à sociedade. O desregramento institucional do País, em nossos dias, se traduz nos poderes praticamente ilimitados de algumas instituições e agentes públicos, movidos, em grande parte, pela torrente de denúncias de indivíduos de reputação mais do que duvidosa, que ditam o rumo, o ritmo e a duração das investigações e dos processos judiciais, e, de outra parte, pelo clamor da turba, insuflada e incendiada pelo radicalismo e pela paixão. Quanto mais poderoso, influente ou rico for o acusado ou suspeito, maior é a catarse coletiva, como nos velhos circos ou arenas, nas quais o que importava era ver sangue, numa escalada de ódio e de preconceito sem precedentes. As ações empreendidas por certas autoridades adquiriram o caráter de um grande show midiático – antes, durante e depois –, estrelado por alguns mocinhos, que, diante das indigências histórica e cultural do País, são alçados à condição de heróis redentores, reverenciados como semideuses. Os alvos são cuidadosamente preparados, porque o show não pode parar. Enquanto isso, todos exigem mais autonomia, independência, “autarquizando” cada estrutura da Administração, numa órbita exclusiva, como se fosse seu próprio partido. Tudo vai se esgarçando; está-se perdendo a noção de Estado. Diante de todo esse estado de coisas, não é de estranhar que sobrem manifestações de ministros de tribunais superiores, entre outros, preenchendo o vácuo da política, posicionando-se até como líderes partidários, enquanto os demais são “engolidos” pela chamada opinião pública. A título de reflexão final, torna-se cada vez mais presente nosso Machado de Assis e O Alienista. Faltará cadeia para todos nós se, antes disso, não formos capazes de construir manicômios para internar os que estão nos jogando no precipício do passado. 

Roberto Bocaccio Piscitelli é professor do Departamento de Ciências Contábeis e Atuariais da Universidade de Brasília (UnB).

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MATÉRIA DE CAPA

MARCO LEGAL DA P

PRIMEIRAS IMPRESSÕES SO

DIVULGAÇÃO

“A lei só é efetiva e eficaz quando não é fria, isto é, quando não fica apenas no papel, motivo pelo qual devem os entes federativos se unir em prol das crianças e atender aos mandamentos legais da nova norma que traz diversos meios de priorizar e garantir um bom desenvolvimento às crianças em idade de primeira infância, dando-lhes total prioridade em todos os aspectos, bem como àqueles que lidam diariamente com elas, promovendo as políticas públicas insertas no diploma para trazer concretos benefícios aos menores.”

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PRIMEIRA INFÂNCIA:

OBRE A LEI Nº 13.257/2016 „„ por

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LEONARDO ALVES DE OLIVEIRA

e o cenário pátrio atual não é dos melhores em diversos aspectos, pode-se dizer que o ano de 2016 se iniciou com a aprovação de um projeto de lei que traz esperança de uma melhora gradativa para o Brasil com o passar dos anos. Trata-se da Lei nº 13.257/2016, diploma legal pequeno, mas que dispõe sobre matéria de grande relevância para o futuro do país, reafirmando e fortalecendo o princípio basilar do melhor interesse da criança, já disciplinado desde 1990 pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A Lei, que terá grande importância no cenário nacional, dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância e faz alterações significativas no ordenamento jurídico, tendo reflexos principalmente no ECA, no Direito do Trabalho e no Direito Processual Penal. Sob esse enfoque, o presente trabalho busca fazer alguns apontamentos a respei-

to do novel digesto normativo, no afã de extrair as primeiras impressões sobre o marco legal da idade denominada primeira infância e os resultados que advirão da aplicação da lei em apreço nos âmbitos da família, da sociedade e do Estado. Desenvolvimento e análise do tema: a definição legal da primeira infância O art. 2º da referida lei estabelece que o período denominado primeira infância compreende a data do nascimento da criança até os seis anos completos, ou seja, de zero até 72 meses de vida do menor. Pesquisas demonstram que é nessa faixa etária que ocorrem a maior formação das capacidades cognitivas e o desenvolvimento de ligações entre neurônios, das habilidades motoras e adaptativas, de linguagem e aspectos socioemocionais1-2, motivo pelo qual a lei vem para determinar cuidados mais rigorosos para com os infantes nesse período. Há, nesse ínterim, uma verdadeira janela de oportunidade para melhor atender às necessidades das crianças na primeira infância, haja vista ser nessa parte do desenvolvimento que existe a possibilidade de moldar as pilastras em constante formação e que vão sustentar aquele futuro adulto. Isso posto, o Estado deve estar ciente da utilização de recursos com a primeira infância, com a criança e o adolescente de um modo geral, já que não se trata de um gasto, mas sim de investimento, pois quanto maior o enfoque em políticas públicas, familiares e projetos educacionais, menores serão as chances de o menor se tornar um infrator, um indigente e até mesmo de contrair alguns tipos de doenças, o que reduz sobremaneira o gasto público futuro para cuidar dessas questões. Diretrizes do plano nacional da primeira infância Historicamente, a faixa etária da primeira infância tendeu a ter privilégios residuais, ínfimos, uma vez que o poder público brasileiro não volvia seus olhos para as crianças do país, deixando o cuidado com os menores exclusivamente a cargo dos genitores. Por diversos fatores o Estado tardou para iniciar processos de políticas públicas em favor dos menores com o escopo de prepará-los para a vida adulta. O Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como outros diplomas legais, tutelam os menores e trazem em seus artigos diversos princípios e normas genéricas com o objetivo de nortear políticas públicas em favor dos inrevista JURÍDICA consulex - www.consulex.com.br

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MATÉRIA DE CAPA fantes. A Lei nº 13.257/2016, por seu turno, reafirma o que já era estabelecido e, de certa forma, organiza e direciona as medidas a serem tomadas para privilegiar quem estiver na primeira infância. Com o advento do marco legal da primeira infância foi criada a política nacional integrada para a primeira infância, que deverá ser formulada e implementada mediante abordagem e coordenação intersetorial, a partir de uma visão abrangente de todos os direitos da criança na primeira infância. Franqueia-se, por força da nova lei, a possibilidade de a União, Estados, o Distrito Federal e os municípios instituirem, nos respectivos âmbitos, comitês intersetoriais de políticas públicas para a primeira infância com o fito de assegurar a articulação de medidas voltadas à proteção e à promoção dos direitos da criança, garantida a participação social por meio dos conselhos de direitos. Conforme disposição legal inserta na Lei nº 13.257/2016, a União deverá buscar a adesão dos demais entes federativos às abordagens multi e intersetorial no atendimento dos direitos da criança na primeira infância e oferecerá assistência técnica na elaboração de planos estaduais, distrital e municipais que articulem os diferentes setores. Ademais, as políticas para a primeira infância deverão ser articuladas com as instituições de formação profissional, visando à adequação dos cursos às características e necessidades das crianças, além da formação de profissionais para possibilitar a expansão com qualidade dos diversos serviços. Os profissionais que atuarem nos diversos ambientes de execução das políticas e programas destinados à criança na primeira infância deverão ter acesso garantido e prioritário à qualificação, sob a forma de especialização, capacitação e atualização, em programas que contemplem, entre outros temas, a especificidade da primeira infância, a estratégia da intersetorialidade na promoção do desenvolvimento integral, a prevenção e a proteção contra toda forma de violência contra a criança3. A lei in voga aduz que as políticas públicas com vistas ao atendimento dos direitos da criança na primeira infância serão elaboradas e executadas no sentido de atender ao seu interesse superior e à sua condição de sujeito de direitos e de cidadã, incluindo a participação da criança na definição das ações que lhe digam respeito, em conformidade com suas características etárias e de desenvolvimento, bem como respeitando a individualidade e os ritmos de desenvolvimento das crianças, valorizando a diversidade da infância brasileira, assim como as diferenças entre as crianças em seus contextos sociais e culturais, entre outras medidas. Assevera, também, a aludida norma, que se constituem áreas prioritárias para as políticas públicas para a primeira infância a saúde, a alimentação e a nutrição, a educação infantil, a convivência familiar e comunitária, a assistência social à família da criança, a cultura, o brincar e o lazer, o espaço e o meio ambiente, assim como a proteção contra toda forma de violência e de pressão consumista, a prevenção de acidentes e a adoção de medidas que evitem a exposição precoce à comunicação mercadológica.

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A referida lei deu forma e conteúdo a uma questão sensível no país, a primeira infância. É certo que o futuro de qualquer cidadão depende muito do que ocorre no período da primeira infância, do meio em que vive, das pessoas com quem convive, da atenção recebida da família, da sociedade e do Estado, bem como, de modo geral, de como se desenvolve durante os seis primeiros anos de vida. Portanto, a nova lei especifica de forma mais detalhada as diretrizes e programas a serem adotadas pelo Estado e pela sociedade no sentido de dar maior guarida aos infantes insertos na primeira idade, sempre buscando aprimorar seu desenvolvimento pessoal e intelectual de modo sadio. Principais alterações legais A Lei nº 13.257/2016, por tratar dos menores com idade entre zero e seis anos de idade, promove diversas alterações no ECA, ao todo 19 artigos daquele Estatuto foram afetados, ampliados, ou reforçados/melhorados, sobretudo no que atine às questões de educação e saúde dos menores na primeira infância. Não obstante a maior parcela das modificações serem voltadas ao Estatuto da Criança e do Adolescente, a nova norma aborda (e altera) outros pontos importantíssimos que certamente não constituirão apenas a letra fria da lei, mas sim produzirão efeitos práticos na sociedade. Extensão da licença-paternidade Um tema de grande relevância e que terá reflexos práticos imediatos é a extensão do período de licença-paternidade. Pais, empregados de empresas cadastradas no Programa Empresa Cidadã (Lei nº 11.770/2008), que constituem no Brasil aproximadamente dezesseis mil estabelecimentos4, poderão gozar de uma licença-paternidade por mais 15 dias além dos cinco já previstos constitucionalmente, ou seja, um período de licença remunerada de 20 dias, o que será também aplicado à adoção ou situação de obtenção de guarda de menor para fins de adoção. Claramente acertou o legislador, ao preconizar o aumento do período de licença-paternidade em favor dos genitores, uma vez que os primeiros dias de vida de um recém-nascido são os mais delicados, em função de o infante estar em condição de imensa fragilidade. Muitas vezes a mãe, por falta de prática ou ausência de auxílio, não domina as técnicas de amamentação, higienização e todos os demais inúmeros cuidados de que necessita um neonato, motivo pelo qual a presença paterna por 20 dias é deveras valiosa. Ademais, é importante frisar que a alteração no regime de licença-paternidade constitui um direito do pai, ao mesmo tempo em que tem como pano de fundo uma garantia à própria criança recém-nascida que depende sobremaneira dos cuidados de sua família. Tendo como norte essa linha de intelecção, o aludido diploma legal altera também a Consolidação das Leis do Trabalho, que passa a prever a possibilidade de o empregado se ausentar das funções, sem prejuízo, por até dois dias para acompanhar consultas médicas e exames complementares durante o período de gravidez de sua espo-

sa ou companheira, bem como por um dia por ano para acompanhar filho de até seis anos em consulta médica. Prisão domiciliar ao genitor(a) do menor em primeira infância Por fim, outra relevante mudança implementada pelo marco legal da primeira infância, a qual certamente será alvo de polêmica, é a modificação realizada no Código de Processo Penal, possibilitando ao genitor de menor que cumpra prisão em regime domiciliar. A autoridade policial deverá, logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, dentre outras medidas, colher informações sobre a existência de filhos e fazer constar os dados no auto de prisão em flagrante, tais como as respectivas idades, se têm alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa. O mesmo procedimento deve ser adotado em juízo, quando o acusado comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, durante seu interrogatório. Referidas anotações se fazem mister para que o juízo, doravante, conforme prevê a Lei nº 13.257/2016, possa verificar os requisitos para substituir a prisão preventiva pela domiciliar. É certo que esta alteração legal acarretará uma série de questionamentos, mas que aos poucos, conforme passar a ser aplicada na prática, as respostas conjuntamente virão de forma gradativa. A lei mencionada inova, trazendo a possibilidade de o indiciado, quando for mulher com filho de até 12 anos de idade incompletos ou se tratar de homem que seja o único responsável pelos cuidados do filho com a mesma idade, de poderem gozar de um regime de prisão mais benéfico, qual seja, o domiciliar. Parece-nos óbvio que o legislador ordinário tenha pretendido, com a inclusão desse direito ao indiciado, manter a criança na primeira infância (e até os doze anos) em constante convívio com o genitor ou genitora, haja vista a dificuldade de se manter um contato regular quando a pessoa estiver segregada do convívio social em uma cadeia ou presídio. Não se pode olvidar que, como dito alhures, o legislador caminhou no sentido de privilegiar o menor com até 12 anos que estiver sob os cuidados da mãe ou exclusivos do pai, uma vez que o convívio familiar das crianças é um dos grandes princípios garantidos pelo ECA e pela Lei de Políticas Públicas para primeira infância, ora analisada.

Assim, a intenção da lei é, novamente, pensando no desenvolvimento do menor, garantir que os laços afetivo e de cuidado entre pais e filhos não se perca pelo distanciamento de uma prisão preventiva (que em muitos casos, dada a realidade processual/judiciária do país, pode durar muito tempo, até anos). Nesse sentido, deve o Estado promover os meios necessários a tornar possível esse benefício, quer seja por meio de tornozeleiras de rastreamento, monitoramento pessoal, ou qualquer outra forma que possibilite a um genitor ingressar no regime de prisão domiciliar e conviver com seu filho menor de até 12 anos. Conclusão Em verdade, muito do que o cidadão vai ser ou não no futuro depende do que se passar no período da primeira infância. O legislador, com vistas ao cenário e às gerações futuras, editou o diploma que direciona o país a adotar melhores políticas públicas em favor do menor, privilegiando seu desenvolvimento e sua preparação para a vida adulta. As mudanças legislativas introduzidas no Estatuto da Criança e do Adolescente, a extensão do período de licença-paternidade e a possibilidade de se conceder prisão domiciliar aos genitores daqueles com até 12 anos de idade são medidas interessantes e relevantes ao propósito esposado pelo legislador de garantir ao máximo a atenção especial aos menores, futuro do país. Se o que se busca é uma evolução social, pensando em avanços no Brasil, deve-se investir no desenvolvimento das crianças, sobretudo aquelas em idade compreendida como primeira infância. Uma sociedade melhor é construída com investimento em educação, portanto, deve-se apostar justamente na primeira infância, daí porque o marco legal da primeira infância vem em boa hora. Contudo, a lei só é efetiva e eficaz quando não é fria, isto é, quando não fica apenas no papel, motivo pelo qual devem os entes federativos se unirem em prol das crianças e atender aos mandamentos legais da nova norma que traz diversos meios de priorizar e garantir um bom desenvolvimento às crianças em idade de primeira infância, dando-lhes total prioridade em todos os aspectos, bem como àqueles que lidam diariamente com elas, promovendo as políticas públicas insertas no diploma para trazer concretos benefícios aos menores.

arquivo pessoal

NOTAS 1 Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pusf/v8n1/v8n1a04.pdf. Acesso em: 10 fev. 2016. 2 Disponível em: http://www.institutocamargocorrea.org.br/infancia/Paginas/infancia.aspx. Acesso em: 11 mar. 2016. 3 Arts. 9º e 10, da Lei nº 13.257/2016. 4 Disponível em: http://www.brasil.gov.br/governo/2012/02/menos-de-10-das-empresas-concedem-licenca-maternidade-de-6-meses. Acesso em: 12 mar. 2016.

Leonardo Alves de Oliveira é pós-graduando em Direito Administrativo e em Direito Constitucional. Servidor público do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, assessor de gabinete da 1ª Vara de Família e Sucessões de Rondonópolis/MT.

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DIVULGAÇÃO

MATÉRIA DE CAPA

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Implicações da alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente pela Lei nº 13.257/2016 “É evidente que a alteração legislativa não irá, por si só, evitar que crianças e adolescentes continuem a ser arbitrariamente afastadas do convívio familiar, assim como a supressão da expressa referência à “presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes” como fator prejudicial ao exercício do convívio familiar saudável, não significa que tal comportamento por parte de pais e responsáveis não possa ser considerado quando da análise do cabimento, ou não, de eventual pedido de afastamento. Contudo, se espera que isto sirva, ao menos, para evitar o mencionado “automatismo” de outrora, e que sejam buscadas alternativas que, como seria de rigor, procurem atender à família como um todo, sem preconceito ou discriminação, assegurando a todos os seus integrantes o pleno e regular exercício de seus direitos fundamentais, inclusive – e especialmente – os direitos às ações de saúde e à convivência familiar.”

„„ por

D

EDUARDO DIGIÁCOMO

entre as inúmeras inovações legislativas introduzidas pela Lei nº 13.257/2016, que instituiu o “Marco Legal da Primeira Infância”1, uma que, num primeiro momento, passou despercebida por muitos pode trazer grande implicação de ordem prática: a alteração da redação do art. 19, caput, da Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). O referido dispositivo legal, que abre o capítulo destinado a regulamentar o exercício do “direito à convivência familiar” por parte de crianças e adolescentes, em sua redação original continha, ao final, a expressa menção de que isto deveria se

dar “[...] em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes”. Tal previsão normativa (que não constava da redação original do projeto de lei que deu origem ao Estatuto, tendo sido acrescida a partir de emenda apresentada quando de sua tramitação na Câmara dos Deputados2) por muito tempo foi utilizada para justificar o afastamento sistemático de crianças (não raro recém-nascidas) e adolescentes do convívio de sua família de origem, dando margem a inúmeras distorções na interpretação e na aplicação do dispositivo, em frontal violação ao art. 227 da

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MATÉRIA DE CAPA Constituição Federal e até mesmo aos princípios que norteiam a matéria em normas internacionais, como é o caso da Declaração dos Direitos da Criança, de 1959, e da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, de 1989. Justamente como forma de neutralizar tal argumento, assim como evitar sua utilização de maneira indiscriminada e sem maiores cautelas e critérios, a Lei nº 13.257/2016 houve por bem alterar o art. 19, caput, da Lei nº 8.069/1990, que passou a ter a seguinte redação: É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral.

Toda a parte final do dispositivo foi alterada, tendo sido suprimidas as referências à “presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes”. Jurisprudência e referências legislativas Não obstante haver a alteração, alguns Tribunais da terrae brasilis3 já vinham interpretando referido dispositivo com certa cautela. Vejamos: ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - ECA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO DE CRIANÇA. DECISÃO ANTECIPATÓRIA DE TUTELA. COLOCAÇÃO DE CRIANÇA EM CASA ABRIGO COM POSSIBILIDADE DE SUA ENTREGA A FAMÍLIA SUBSTITUTA. SUBMISSÃO A RISCOS. MEMBRO DA FAMÍLIA USUÁRIO DE SUBSTÂNCIAS ENTORPECENTES. PREVALÊNCIA DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. Em nome do melhor interesse da criança ou do adolescente, instituto que rege as ações envolvendo interesses de incapazes, antes que seja cogitada a perda ou destituição da guarda dos pais ou responsável, e eventual afastamento da criança ou do adolescente do seu lar, deverá o Poder Público adotar, prioritariamente, outra providência destinada à sua proteção, dentre uma série de medidas previstas em lei. A parte final do artigo art. 19 do ECA, que assegura à criança e ao adolescente o direito de viver em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substancias entorpecentes, não autoriza, por si só, a retirada compulsória da criança ou do adolescente do seio da família onde vive, vez que o próprio ECA estabelece outras formas menos gravosas para a sua proteção. Verificada a existência de maus-tratos, opressão ou abuso sexual à criança ou adolescente, impostos pelos pais, responsável ou qualquer pessoa da família, a autoridade judiciária deverá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum, e jamais o afastamento da criança ou do adolescente, como impõe o art. 130 do ECA, porquanto a retirada do incapaz do seio de sua família, com colocação em abrigo ou em eventual lar substituto, se revele mais prejudicial e mais danoso à sua personalidade do que permanecer com os seus entes queridos. Estando comprovada que a decisão antecipatória de tutela não preen-

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che os requisitos legais, a solução que se impõe é a sua reforma. Agravo de instrumento provido. (TJ/MA - 3ª C. Cível. AI nº 0504782014 MA 000952650.2014.8.10.0000, Rel. Des. Jamil de Miranda Gedeon Neto. J. em 19/03/2015. Publ. em 27/03/2015 - grifei); APELAÇÃO CÍVEL. REPRESENTAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO POR INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA ÀS NORMAS DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ART. 227 DA CRFB. PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. MELHOR INTERESSE DO MENOR. DESCUMPRIMENTO DE DEVER INERENTE AO PODER FAMILIAR. DEPENDÊNCIA DROGAS E ÁLCOOL. EFICÁCIA DAS MEDIDAS PROTETIVAS. MULTA AFASTADA. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Manifesta a situação de risco da menor, que encontra substância nas provas colhidas durante a instrução do processo. Representada, genitora das menores, é usuária de entorpecentes (“crack”) e de álcool, fato este incontroverso. Alegação de que enfrentava momentos difíceis, diante do falecimento do seu ex-companheiro, que não autoriza o descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar. Finalidade da norma que visa à proteção do melhor interesse do menor, que não poderá ser aqui menosprezado. Dependência química traz muitos danos à família, principalmente o abandono familiar. Situação de extrema vulnerabilidade social da genitora. Compete aos pais o exercício do poder familiar, que consiste no sustento, guarda e educação, em aspecto amplo, dos menores, a fim de protegê-los e proporcioná-los o melhor desenvolvimento possível, tanto no campo afetivo, como social e familiar, visto que isso é fundamental elemento no desenvolvimento da personalidade da criança. É esta a ratio extraída do art. 1631, do Código Civil c/c art. 22, do ECA. A Carta Suprema, através de seu art. 227, elevou a criança e o adolescente ao status de sujeitos de direitos, e não mais apenas objetos de proteção, cuja proteção - com prioridade absoluta constituirá dever dos pais, Estado e de toda sociedade, sendo garantia fundamental, com raízes na tutela do princípio da dignidade da pessoa humana. No tocante a multa, é certo que a sua aplicação, na forma do art. 249 do ECA, tem como finalidade primordial a função pedagógica, como instrumento de conscientização dos pais responsáveis aos deveres que lhes cabem em função do exercício do poder familiar, como tentativa última de manutenção da criança e do adolescente em sua família natural, evitando a sua destituição. Apesar da falta da Apelante, existe sim laço da afetividade, tendo havido o descumprimento de seus deveres de forma culposa, decorrente única e exclusivamente de sua dependência quanto ao uso de álcool e entorpecentes, pelo que entendo não ser a multa medida adequadamente aplicada, sendo o interesse das menores mais eficazmente protegido pelo seu devido encaminhamento a programa de tratamento, como já garantido pela sentença. Pessoa humilde, sem vínculo empregatício estável, que aufere renda inferior ao salário mínimo. Comprometimento da renda familiar caso mantida a condenação e, por via reflexa, os interesses das menores, violando, nitidamente, o princípio da dignidade da pessoa humana. Multa afastada. Precedente desta Corte. Parcial provimento ao recurso.

(TJ/RJ - 6º C. Cível. APL nº 00052242720108190045 RJ 0005224-27.2010.8.19.0045, Rel. Des. Teresa de Andrade Castro Neves. J. em 20/03/2013. Publ. em 28/06/2013 – grifos nossos).

Mas não foi só tal alteração que se mostrou relevante, já que a Lei nº 13.257/2016, em diversas passagens, também reafirmou a necessidade de priorizar a manutenção da criança/adolescente em sua família de origem, reafirmando o “princípio da prevalência da família”, expressamente relacionado no art. 100, parágrafo único, X, da Lei nº 8.069/1990, segundo o qual: “na promoção de direitos e na proteção da criança e do adolescente deve ser dada prevalência às medidas que os mantenham ou reintegrem na sua família natural ou extensa ou, se isto não for possível, que promovam a sua integração em família substituta”.  E nem poderia ser diferente, haja vista que um dos direitos fundamentais cujo regular exercício apresenta as maiores e mais relevantes implicações no desenvolvimento de uma criança ou adolescente é, precisamente, o direito à convivência familiar. A família de origem, além de ser a que melhor reúne condições para o desempenho dos cuidados da criança é destinatária, tanto na forma da lei quanto da Constituição Federal, de “proteção especial” por parte do Estado (lato sensu). Nesse sentido, a propósito, é oportuno destacar que o art. 226, caput, da Constituição Federal assevera que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, sendo que essa “proteção”, nos termos do § 8º do mesmo dispositivo Constitucional deve ser efetivada “[...] na pessoa de cada um dos que a integram [...]”, por meio de programas e serviços especializados previstos tanto nos arts. 23, I a IV e 129, I a IV, da Lei nº 8.069/1990 quanto na própria Lei nº 13.257/2016, dentre os quais destacamos a “inclusão em programa oficial ou comunitário de auxilio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos”, assim como o “encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico”, justamente na perspectiva de evitar que, em razão do problema de saúde que acomete os pais (e nunca podemos esquecer que a toxicodependência é uma doença que, como tal, precisa ser adequadamente diagnosticada e tratada) os filhos sejam afastados de seu convívio, mesmo sofrendo todas as mazelas decorrentes de tal medida. Vale dizer que as disposições constitucionais e legais destinadas a assegurar o amparo à família (e não apenas à criança e ao adolescente, como ocorria no passado) têm suas raízes em normas internacionais, a começar pela Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959, cujo “Princípio 6º” assegura a manutenção da criança4 preferencialmente junto a seus pais e, de maneira expressa, prevê que, “[...] salvo circunstâncias excepcionais, a criança da tenra idade não será apartada da mãe”. Do mesmo modo, a já citada Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, de 1989, em seus arts. 9º, 16, 18, 19 e 27 (dentre outros) preconiza a necessidade de o Estado (lato sensu)

desenvolver políticas públicas voltadas ao atendimento, proteção e promoção social de todos os integrantes da família, seja qual for sua composição. Na verdade, não há como se pensar em “proteção” à criança e ao adolescente (sobretudo em toda dimensão do art. 1º da Lei nº 8.069/19905) sem falar em proteção da família que, na forma do art. 227, caput, da Constituição Federal e do art. 4º, caput, da Lei nº 8.069/1990, é a primeira das instituições “convocadas” à defesa dos direitos e interesses de crianças e adolescentes, razão pela qual qualquer intervenção estatal em matéria de infância e juventude não apenas deve ser planejada e executada no seio da família (devendo-se sempre que possível evitar o afastamento do convívio familiar), mas deve ter também a preocupação de fazer com que os pais assumam suas responsabilidades em relação a seus filhos (tal qual preconizado de maneira expressa no art. 100, parágrafo único, IX, da Lei nº 8.069/1990). É evidente que a legislação é válida inclusive nos casos de pais/responsáveis6 que apresentam envolvimento com substâncias psicoativas, que nem por isso podem ser considerados “automaticamente inaptos” para o exercício dos deveres inerentes ao poder familiar ou em função de terem a tutela ou a guarda. Embora o simples fato de os pais ou responsáveis apresentarem algum “grau” de “dependência química” não autorizasse, logicamente, o afastamento da criança ou adolescente do convívio familiar7, a aplicação do disposto na antiga redação do citado art. 19, da Lei nº 8.069/1990 (sobretudo quando isso ocorria de forma isolada e dissociada da compreensão do verdadeiro papel dos órgãos/ agentes estatais que atuam na defesa/promoção social de crianças e adolescentes) fazia com que tal providência (que por ser extrema, deveria ser também excepcional) fosse utilizada de forma sistemática e quase “matemática”, sem que a situação e suas implicações fossem adequadamente diagnosticadas e/ou (muito menos) objeto de qualquer tipo de abordagem ou intervenção de cunho terapêutico por parte dos órgãos estatais competentes. Chegava-se ao extremo de, logo após o parto, estando a mãe ainda internada na maternidade ou hospital, a criança recém-nascida ser pura e simplesmente “arrebatada” de seus braços, em alguns casos por iniciativa do Conselho Tutelar (órgão que, na forma da lei, sequer detém atribuição para promover o afastamento de criança/adolescente do convívio familiar8), sem que tivesse aquela, concretamente, praticado em relação a seu filho qualquer ato que justificasse a tomada de tão drástica providência que, dentre outras, impedia que a criança pudesse exercer até mesmo seu “sagrado” direito à amamentação, não por acaso recomendado pelos profissionais de saúde. Semelhante prática, vale dizer, remonta à época do revogado “Código de Menores”, o qual, diferente do que ocorre com a Lei nº 8.069/1990, não continha qualquer previsão ou dispositivo voltado ao atendimento à família. Além disso, o afastamento do convívio familiar e subsequente “abrigamento” (atualmente denominado aco-

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MATÉRIA DE CAPA lhimento institucional) era visto como uma verdadeira “solução” para o problema do “menor” (como a criança/ adolescente era outrora designada). Se tal sistemática era válida e ainda natural (para não dizer quase que “inevitável”) à luz do “Código de Menores”, com o advento da Lei nº 8.069/1990, sobretudo após as alterações promovidas pela Lei nº 12.010/20099, passou a ser quase que proscrita (ao menos no plano legislativo), muito embora as dificuldades de superação da concepção “menorista” que ainda permeia o cotidiano forense fizesse com que crianças – sobretudo de tenra idade – e adolescentes continuassem a ser afastados do convívio familiar ante a simples constatação da dependência química de seus pais/responsáveis. Foi a partir da constatação de tais abusos, aliás, que antes mesmo do advento da Lei nº 13.257/2016 o Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Atenção à Saúde, expediu a “Nota Técnica Conjunta nº 001/2015 - SAS e SGEP”, que estabeleceu algumas diretrizes e também um fluxograma para atenção integral à saúde das mulheres e das adolescentes em situação de rua e/ou usuárias de crack/outras drogas e seus filhos recém-nascidos. A referida “Nota Técnica” em alguns pontos faz duras críticas à atuação dos órgãos e agentes estatais encarregados da defesa/proteção de crianças e adolescentes, sobretudo o Ministério Público e o Poder Judiciário, diante da postura alegadamente preconceituosa/discriminatória com que as mães usuárias de substâncias psicoativas (em alguns casos, ainda adolescentes) são tratadas, com reflexos negativos em relação a seus filhos que são, por vezes, indevidamente privados do regular exercício do direito à convivência familiar e, em razão disso, também sofrem (literalmente) as consequências deletérias de uma intervenção estatal efetuada de forma precipitada/equivocada. O documento destaca, dentre outras, a necessidade de que gestantes e mães usuárias de substâncias psicoativas não podem, apenas por tal razão, ser privadas do convívio com seus filhos, devendo antes ser destinatárias de ações e cuidados especiais por parte do Poder Público, sobretudo na área da saúde, que não pode lhes negar ou relativizar direitos unicamente em razão de sua condição. Com efeito, sem entrar no mérito da citada “Nota Técnica”, não resta dúvida de que certas posturas “higienistas”, por vezes adotadas pelo Poder Público em relação a usuários de substâncias psicoativas, sobretudo quando moradores de rua, na prática acabam negando o exercício de direitos fundamentais (e mesmo naturais – como é o caso do direito à maternidade/paternidade), em evidente atentado ao próprio “princípio da dignidade da pessoa humana”, dentre outros que, como visto acima, são (ou ao menos deveriam ser) necessariamente considerados e utilizados em matéria de infância e juventude. Por estas e outras razões, aliás, não é admissível que o afastamento de crianças e adolescentes do convívio familiar seja utilizado como forma de “punição” aos pais (assim como para “pressioná-los” a se submeter a eventual

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tratamento para a cura da drogadição), medida que, além de atentatória ao “princípio da condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos” relacionado no art. 100, par. único, inciso I, da Lei nº 8.069/1990 (sem mencionar na própria Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança)10, acaba por violar, na prática, o verdadeiro “princípio” decorrente do art. 5º, inciso XLV, da Constituição Federal11, fazendo com que os efeitos da decisão incidam com tanta ou maior gravidade sobre as crianças/ adolescentes que também sofrerão os efeitos da intervenção estatal. Na verdade, o caminho é aquele que já havia sido apontado pela Lei nº 8.069/1990 e que a Lei nº 13.257/2016 procurou enfatizar: a implementação de políticas públicas de cunho intersetorial que, respeitando as normas e princípios aplicáveis, notadamente em matéria de saúde e de infância e juventude, proporcione um atendimento/ tratamento especializado aos pais ou responsáveis que apresentem envolvimento com substâncias psicoativas, sem que, para tanto, tenham de ser afastados do convívio com seus filhos/pupilos, ressalvada a presença de situação em que, comprovadamente, após criteriosa avaliação técnica, seja recomendada solução diversa, descartando – fundamentadamente – alternativas menos “invasivas”. O “espírito” de outra lei que também regula o atendimento aos usuários de substâncias psicoativas, a Lei nº 10.216/2001, privilegia o cuidado de pessoas com transtorno mental (inclusive decorrente do uso ou abuso de substâncias psicoativas) preferencialmente em regime ambulatorial e com o apoio das famílias. A busca da intervenção estatal menos “invasiva” possível, aliás, é um aspecto comum das normas e princípios aplicáveis às políticas públicas tanto em matéria de saúde quanto em matéria de infância e juventude, sendo, inclusive, inerente ao “princípio da intervenção mínima” preconizado pelo art. 100, par. único, inciso VII, da Lei nº 8.069/1990. Diante de tal contexto normativo (e principiológico) não mais é admissível, sobretudo após o advento da Lei nº 13.257/2016, que se promova o afastamento sistemático de crianças/adolescentes do convívio familiar em razão da singela constatação de que os pais ou responsáveis são usuários de substâncias psicoativas, cabendo ao Poder Público, ao invés de adotar essa postura simplista e equivocada, desenvolver estratégias de abordagem e de intervenções específicas, especializadas – e individualizadas – que respeitem as peculiaridades de cada caso e que consigam enxergar para além do problema, identificando as potencialidades de cada um, a partir das quais será construído o caminho para superação do problema. Em suma, a Lei nº 13.257/2016 trouxe previsões expressas das obrigatoriedades da formulação e da implementação, por parte do Poder Público, de políticas públicas voltadas para as crianças que estão na “primeira infância”, promovendo alterações não apenas no Estatuto da Criança e do Adolescente, mas também na Consolida-

ção das Leis do Trabalho (CLT), na Lei nº 11.770/2008 e até mesmo no Código de Processo Penal (CPP), sempre na perspectiva de privilegiar e fortalecer o exercício do direito à convivência familiar por crianças e adolescentes, independente da condição ou situação de seus pais ou responsáveis12. É evidente que a alteração legislativa não irá, por si só, evitar que crianças e adolescentes continuem a ser arbitrariamente afastadas do convívio familiar, assim como a supressão da expressa referência à “presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes” como fator prejudicial ao exercício do convívio familiar saudável, não significa que tal comportamento por parte de pais e responsáveis não possa ser considerado quando da análise do cabimento, ou não, de eventual pedido de afastamento. Contudo, se espera que isto sirva, ao menos, para evitar o mencionado “automatismo” de outrora, e que sejam buscadas alternativas que, como seria de rigor, procurem atender à família como um todo, sem preconceito ou discriminação, assegurando a todos os seus integrantes o pleno e regular exercício de seus direitos fundamentais, inclusive – e especialmente – os direitos às ações de saúde e à convivência familiar. Em qualquer caso, é preciso lembrar que estamos falando, essencialmente, de normas destinadas a asse-

gurar o regular exercício dos “direitos humanos”, seja por parte de crianças e adolescentes, seja por seus pais ou responsável (até porque o direito à convivência familiar é direito de ambos). Embora os direitos e interesses infanto-juvenis sejam sempre preponderantes (por força, inclusive, do princípio insculpido no art. 100, par. único, inciso IV, da Lei nº 8.069/1990), não é lícito ao Estado (lato sensu) pura e simplesmente “abandonar à própria sorte” os adultos integrantes da família que tiverem a desventura de apresentar algum tipo de transtorno mental, inclusive quando decorrente do uso ou abuso de substâncias psicoativas. Conclusão Por fim, registre-se que, como reconheceu o egrégio Superior Tribunal de Justiça, a “novel legislação consolida, no âmbito dos direitos da criança e do adolescente, a intersetorialidade e corresponsabilidade dos entes federados” em favor de crianças e adolescentes, destacando “a posição central, em nosso ordenamento jurídico, da doutrina da proteção integral e do princípio da prioridade absoluta, previstos no artigo 227 da Constituição Federal, no ECA e, ainda, na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, ratificada pelo Decreto Presidencial nº 99.710/90”13.

NOTAS 1 Assim considerado o período que abrange os primeiros seis anos completos ou 72 meses de vida da criança. 2 CURY, Munir et al. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: Comentários Jurídicos e Sociais. 6. ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 99. 3 Expressão difundida pelo festejado mestre dos mestres, o professor Lênio Streck (in: http://www.conjur.com.br/2012-ago-06/ lenio-streck-mensalao-dominio-fato-algo-tipo-ponderacao) 4 Valendo lembrar que para fins da citada Convenção Internacional (e de outras normas editadas pela ONU) considera-se “criança” toda pessoa com idade inferior a 18 anos. 5 Até porque a “proteção integral” à criança e ao adolescente por este prometida pressupõe, logicamente, o regular exercício também do direito à convivência familiar. 6 Valendo destacar que, na forma da lei, “responsáveis” serão aqueles que detiverem a guarda legal ou tutela de crianças/adolescentes. 7 Até porque, do contrário, o contido no citado art. 129, inciso II, da Lei nº 8.069/1990, assim como as demais normas que preconizam a preferência à manutenção da criança/adolescente junto à sua família de origem – apesar dos problemas que esta porventura apresente (sem o que a própria intervenção estatal seria desnecessária), não teria o menor sentido. 8 Por força do disposto nos arts. 101, § 2º; 136, inciso II c/c 129, incisos I a VII e 136, par. único, da Lei nº 8.069/1990, o afastamento de criança/adolescente do convívio familiar é providência “[...] de competência exclusiva do Juiz [...]”, cabendo ao Conselho Tutelar, quando, após avaliação técnica idônea e criteriosa, entender que o caso comporta tal providência extrema/excepcional, comunicar “[...] incontinenti o fato ao Ministério Público, prestando-lhe informações sobre os motivos de tal entendimento e as providências tomadas para a orientação, o apoio e a promoção social da família”. 9 Que alguns denominam “Lei da Adoção”, embora muito mais voltada ao exercício do direito à convivência familiar – a começar pela própria família de origem. 10 Posto que, na prática, transforma os filhos em meros “instrumentos” de punição de seus pais. 11 Segundo o qual “nenhuma pena passará da pessoa do condenado [...]”. 12 Extraído de: http://www.dizerodireito.com.br/2016/03/comentarios-lei-132572016-estatuto-da.html 13 STJ, HC nº 351.494/SP.

Eduardo Digiácomo é analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo. Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pela Fundação José Arthur Boiteux. Foi professor substituto da UFSC por dois biênios (2007/2009 e 2011/2013), tendo atuado como advogado no Escritório Modelo de Assistência Jurídica (EMAJ) no último biênio.

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MATÉRIA DE CAPA

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Substituição da prisão preventiva pela domiciliar na Lei nº 13.257/2016

“ A Lei que norteia o presente estudo procura inovar no mundo jurídico, trazendo diretrizes sobre políticas púbicas direcionadas à primeira infância, isto é, ao período em que a criança se desenvolve e começa a se inserir nas realidades social e familiar que a circundam.” „„ por

EUDES QUINTINO DE OLIVEIRA JÚNIOR, ANTONELLI ANTONIO MOREIRA SECANHO e GABRIELA BELLENTANI DE OLIVEIRA ANDRADE

C

om a promulgação da Lei nº 13.257, de março de 2016, tem-se a impressão de que foi completado quase que um roteiro do legislador em dimensionar os direitos dos homens, mapeando-os em várias etapas, de acordo com o ciclo normal da vida. Assim é que se tem ainda em fase de hibernação o Estatuto do Nascituro, na sequência do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), que considera criança a pessoa com até 12 anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade. A Lei nº 13.257, por

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sua vez, cria a formulação e a implementação de políticas públicas para a primeira infância, compreendido pelo período que abrange os primeiros seis anos completos ou 72 meses de vida da criança. Já o Estatuto da Juventude (Lei nº 12.852/2013) considera jovens as pessoas entre 15 e 19 anos de idade, conferindo aos adolescentes entre 15 e 18 anos a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nos casos que envolvam pessoas acima de 30 anos há um vácuo proposital, compreendendo o período laboral e a constituição familiar. Como derradeiro, surge o Estatuto

do Idoso, compreendendo as pessoas com idade igual ou superior a 60 anos (Lei nº 10.741/2003). Assim, vivendo protegido de forma escalonada é de se concluir que, ao passar por todos os estágios, o homem vai acumulando direitos que lhe conferem melhores condições para levar sua vida, principalmente na velhice. A Lei que norteia o presente estudo procura inovar no mundo jurídico, trazendo diretrizes sobre políticas púbicas direcionadas à primeira infância, isto é, ao período em que a criança se desenvolve e começa a se inserir nas realidades social e familiar que a circundam. Com efeito, a Constituição Federal elenca um dever do Estado de garantir educação e assistência social às crianças, bem como o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê uma gama de garantias para que se proteja a pessoa humana em especial condição de desenvolvimento, fazendo com que a doutrina da proteção integral seja aplicada justamente pelo peculiar estágio da vida em que se encontram. Em sendo assim, nosso legislador aumentou ainda mais a proteção mencionada, trazendo disposições quanto a um estágio ainda mais delicado e fundamental da vida humana: a primeira infância. Nesse aspecto, é durante o período acima referido que a criança irá absorver, com grande intensidade, tudo que a ela se revela, em meio a sua realidade: o convívio com as pessoas, familiares, colegas de escola, professores, enfim, com toda a comunidade que a cerca. A educação moderna, seguindo os passos de Foucault, exige a convivência dos filhos com os pais. Conviver significa estar junto, compartilhar, participar da construção de uma pessoa, ofertando-lhe condições necessárias para o aprendizado da vida, independentemente da classe social. Por menor que seja o tempo disponível para praticar o ensino da vida, o filho terá a segurança de contar com os pais ao seu lado. Sendo assim, é forçoso reconhecer que as disposições que a nova lei traz ao mundo jurídico são de grande relevância, seja para a notória complementação do Estatuto da Criança e do Adolescente, seja para inovar em outros ramos dos Direito, aspergindo tutelas específicas. Nesse passo, destaca-se o interesse pelo art. 41, da Lei nº 13.257/2016, que altera expressamente o Código de Processo Penal: a) O art. 6º recebe o inciso X, que impõe o dever da autoridade policial de “colher informações sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa”; b) O art. 185 recebe o parágrafo 10, que impõe o mesmo dever no momento em que o réu for interrogado judicialmente; c) O art. 304 recebe o parágrafo 4º, que dispõe que “da lavratura do auto de prisão em flagrante deverá constar a informação sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa”;

d) O art. 318 recebe os incisos IV, V e VI, que aumentam as hipóteses de substituição da prisão preventiva pela domiciliar, quando o agente for “gestante, mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos ou homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos”. Inicialmente, há que se ressaltar a preocupação do legislador em proteger o ser humano, que está na especial condição de pessoa em desenvolvimento, quando seus responsáveis estiverem envolvidos em uma delicada situação: a privação da liberdade em razão da prisão em flagrante delito ou por ordem judicial. Na realidade, como se observa, a tutela é direcionada ao infante menor e ao portador de deficiência, merecedores da atenção protetiva. Em ambos os casos, a autoridade policial deverá tomar a cautela de colher informações acerca da existência de filhos do investigado preso (ou preso em estado flagrancial), justamente para que possam ser tomadas medidas que evitem que a criança, com deficiência ou não, permaneça desacompanhada de um familiar ou, ao menos, de alguma pessoa próxima. Não se olvida que à autoridade judicial cabe o mesmo dever. Neste caso, parece preocupar-se o legislador em garantir, prima facie, que a proteção integral da criança seja já efetivada, sem necessariamente buscar-se uma solução jurisdicional, que demandaria tempo e agilidade, muitas vezes em falta nas famílias brasileiras. Assim, em casos em que ocorra a prisão de um ou de ambos os genitores ou de familiares que são próximos e que cuidam de crianças com idade entre seis anos completos e 12 anos incompletos ou de menor com deficiência, as autoridades policial e judicial poderão, desde logo, adotar medidas, seja em companhia do Conselho Tutelar, seja com a rápida comunicação ao Ministério Público, de maneira a solucionar a situação de instabilidade familiar gerada pelo encarceramento de um ou de todos os membros da família, fator que certamente trará influências negativas sobre a criança na primeira infância. De qualquer modo, acredita-se que a grande inovação está presente nos incisos IV a VI do art. 318, que regulam matéria de relevantes implicações técnica e prática: existem três novas hipóteses em que o magistrado poderá substituir a prisão preventiva que seria decretada pela prisão domiciliar (citadas na letra “d” supra). Em um primeiro momento, não se pode perder de vista que não se trata de um dever legal, mas sim de mera possibilidade de substituição, que exige um exame criterioso e conjunto com a situação fática, com o crime praticado, com as condições pessoais do agente e, claro, as condições em que os filhos – crianças – dependem do agente preso. Ademais, destaca-se que essas novas previsões legais, como não poderiam deixar de ser, estão intimamente conectadas com a condição de primeira infância da criança, que certamente precisa de cuidados especiais e, de preferência, proveniente de seus genitores. Não por outra razão, a gestante poderá ter substituída a sua prisão pre-

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MATÉRIA DE CAPA De início, impõe-se destacar a entrada em vigor, no dia 9/3/2016, da Lei nº 13.257/2016, a qual estabelece conjunto de ações prioritárias que devem ser observadas na primeira infância (0 a 6 anos de idade), mediante “princípios e diretrizes para a formulação e implementação de políticas públicas para a primeira infância em atenção à especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano” (art. 1º), em consonância com o Estatuto da Criança e do Adolescente. A novel legislação, que consolida, no âmbito dos direitos da criança, a intersetorialidade e corresponsabilidade dos entes federados, acaba por resvalar em significativa modificação no Código de Processo Penal, imprimindo nova redação ao inciso IV do art. 318 CPP, além de acrescer-lhe os incisos V e VI, nestes termos: [...] É perceptível que a alteração e acréscimos feitos ao art. 318 do CPP encontram suporte no próprio fundamento que subjaz à Lei n. 13.257/2016, notadamente a garantia do desenvolvimento infantil integral, com o “fortalecimento da família no exercício de sua função de cuidado e educação de seus filhos na primeira infância” (art. 14, § 1º). A despeito da benfazeja legislação, que se harmoniza com diversos tratados e convenções internacionais, vale o registro, com o mesmo raciocínio que imprimi ao relatar o HC nº 291.439/SP (DJe 11/6/2014), de que o uso do verbo “poderá”, no caput do art. 318 do CPP, não deve ser interpretado com a semântica que lhe dão certos setores da doutrina, para os quais seria “dever” do juiz determinar o cumprimento da prisão preventiva em prisão domiciliar ante a verificação das condições objetivas previstas em lei. Reafirmo que semelhante interpretação acabaria por gerar uma vedação legal ao emprego da cautela máxima em casos nos quais se mostre ser ela a única hipótese a tutelar, com eficiência, situação de evidente e imperiosa necessidade da prisão. Outrossim, importaria em assegurar a praticamente toda pessoa com prole na idade indicada no texto legal o direito a permanecer sob a cautela alternativa, mesmo se identificada a incontornável urgência da medida extrema.

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ventiva por prisão domiciliar, para que seu filho possa se desenvolver em um ambiente mais adequado e digno do que os estabelecimentos prisionais. De igual modo, a mulher que tenha filho de até doze anos incompletos (limite para diferenciar uma criança de um adolescente) também poderá ter a substituição autorizada pelo juiz, a fim de que o seu filho possa se desenvolver acompanhado da mãe. A terceira hipótese converge com a doutrina de que a família é a maior instituição para garantir à criança um desenvolvimento harmônico e humano. Vale destacar que o homem, que seja o único responsável pelo filho menor de doze anos também poderá ter sua prisão preventiva substituída pela domiciliar. Como não poderia deixar de ser, reputa-se louvável essa hipótese, sobretudo porque a criança se afastaria de sua principal referência: o responsável direto, aquele que a acompanha e lhe proporciona segurança cotidiana. A criança da faixa etária que se pretende proteger não tem ainda noção da conduta ilícita de seu responsável e para ela o que interessa é sentir a sua presença. É evidente que não será todo e qualquer crime que permitirá a referida medida, uma vez que a prática de grave crime ou a exposição da criança ao risco produz o efeito contrário, como a perda da guarda e até mesmo do poder familiar, justamente como forma de também garantir o desenvolvimento harmônico e integral da criança. Desta feita, não há como deixar de transcrever uma verdadeira lição, transmitida pelo Exmo. Min. Rogério Schietti Cruz, nos autos do HC 351.494/SP, julgado em 10 de março de 2016, que, como uma luva, adere ao assunto em questão. Uma mulher, com 19 anos de idade, primária, mãe de um filho com dois anos de idade e gestante de outro, foi presa em flagrante delito ao tentar ingressar com substância entorpecente em estabelecimento prisional. A custódia flagrancial foi convertida em preventiva e negado habeas corpus pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. O núcleo do aludido decisum ficou assim delineado:

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Feito o registro, entendo que, no caso ora examinado, a substituição da prisão preventiva se justifica, seja pela nova redação imprimida ao art. 318 do CPP – haja vista que a paciente, além de se encontrar gestante, é mãe de uma criança de 2 anos de idade – seja porque o juiz de primeiro grau não indicou as peculiaridades concretas que justifiquem a prisão ad custodiam, como se observa da decisão impugnada, nestes termos (fls. 22-23): [...] Há que se ressaltar a posição central, em nosso ordenamento jurídico, da doutrina da proteção integral e do princípio da prioridade absoluta, previstos no art. 227 da Constituição Federal, no ECA e, ainda, na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, ratificada pelo Decreto Presidencial nº 99.710/90. Sob tais regências normativas, e levando em consideração as peculiaridades do caso, penso ser temerário manter o encarceramento da paciente quando presentes dois dos requisitos legais do art. 318 do Código Penal, com a redação dada pela Lei nº 13.257/2016. Ademais a prisão domiciliar revela-se adequada para evitar a prática de outras infrações penais (art. 282, I, CPP), diante das condições favoráveis que ostenta (primariedade e residência fixa), e de não haver demonstração de sua periculosidade concreta, que pudesse autorizar o recurso à cautela extrema como a única hipótese a tutelar a ordem pública. Ante o exposto, defiro a liminar para substituir a prisão preventiva da paciente por prisão domiciliar até o julgamento do presente writ.

Ora, observa-se que o Tribunal da Cidadania agiu de acordo com os ditames de justiça e com os anseios de

toda a comunidade, jurídica ou não, que dele se espera: procedeu a análise do fato concreto e a subsunção deste ao ordenamento jurídico como um todo, isto é, ao sistema de normas que rege nossa sociedade e regula as condutas lícitas ou não. Desse modo, há que se destacar a importância da atividade jurisdicional para que essas políticas possuam eficácia social. De uma parte, não basta a aplicação cega, sem qualquer critério e sem respeito aos comandos legais, sob pena de uma indesejável banalização da prisão domiciliar e o consequente enfraquecimento da prisão preventiva. De outro lado, negar direitos subjetivos legalmente atribuídos, que garantem um bem maior para que a dignidade da pessoa humana em desenvolvimento possa ser respeitada não condiz com nossas normas e, principalmente, com os princípios e fundamentos da República. Aliás, como é notório, a dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, é tida como a norma kelseniana hipotética fundamental de nosso ordenamento jurídico, valendo-se de paradigma de confronto e suporte de validade para todas as demais que integram o sistema brasileiro de normas. Não por outra razão, a dignidade da pessoa humana obriga o operador do Direito a se debruçar no caso concreto com as lentes de todo o ordenamento jurídico, para que as injustiças sejam afastadas e os direitos possam ser implementados. Sob esse prisma é que se aguarda a respeito da posição e, principalmente, sobre a atuação jurisdicional de todos os órgãos e pessoas que atuam diariamente dentro do Poder Judiciário, para fazer com que as leis sejam aplicadas de maneira coesa e justa.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutor em Ciências da Saúde. Membro ad hoc da CONEP/CNS/MS, advogado e reitor da Unorp; Antonelli Antonio Moreira Secanho é assistente jurídico no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pósgraduado lato sensu em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP; Gabriela Bellentani de Oliveira Andrade é advogada pós-graduada lato sensu em Direito do Trabalho e mestranda em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino, em Bauru (SP).

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MATÉRIA DE CAPA

A NOVA LEI Nº 13.257/2016 AMPLIOU A POSSIBILIDADE DA PRISÃO DOMICILIAR E DEVE SER APLICADA IMEDIATAMENTE A Lei nº 13.257/2016, publicada no dia 9 de março, alterou o art. 318 do Código de Processo Penal, acrescentando mais duas hipóteses em que será possível a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar, além de deixar de exigir que este direito somente possa ser usufruído pela mulher gestante em risco ou acima do sétimo mês de gravidez. „„ por

RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA

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ssim, com a alteração, deverá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for gestante; mulher com filho de até doze anos de idade incompletos ou homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até doze anos de idade incompletos. A modificação foi extremamente salutar e põe em relevo a importância do princípio da dignidade da pessoa humana (especialmente das mulheres e das crianças), já ressaltado por nós em artigo escrito em parceria com Alexandre Morais da Rosa1, quando advertíamos não fazer sentido a limitação imposta pela lei (na redação anterior) de que a gravidez de alto risco ou a gestação a partir do sétimo mês só fosse considerada digna para a garantia de prisão em regime domiciliar por determinação do Poder Judiciário. Feita a alteração legislativa, impõe-se agora a seguinte indagação: essa nova lei deve ser aplicada retroativamente, ou seja, em relação aos réus ou investigados que supostamente cometeram infrações penais anteriormente à sua vigência? Ou, ao contrário, tão somente em relação aos fatos vindouros, tendo em vista tratar-se de uma lei processual penal? Sabemos que há dois princípios que regem o direito intertemporal em matéria criminal: a lei penal não retroage, salvo para beneficiar o acusado (art. 2°, parágrafo único do Código Penal e art. 5°, XL da Constituição da República) e a lei processual penal aplica-se imediatamente (art. 2°. do Código de Processo Penal: tempus regit actum). O princípio da irretroatividade da lei penal, salvo quando benéfica, insere-se no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição, tendo força vinculante, “no sólo a los poderes públicos, sino también a todos los ciudadanos”, como afirma Perez Luño1, tendo também uma conotação imperativa, “porque dotada de caráter jurídico-positivo”2. Logo, à vista desses dois princípios, haveremos de analisar o disposto no novo art. 318, IV, V e VI do Código de Processo Penal.

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Desde logo, é preciso definir a natureza da norma contida neste dispositivo legal: seria ele de conteúdo processual ou penal? É certo que se trata de uma medida cautelar, impondo a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar em determinados casos. Neste aspecto, ela tem uma conotação claramente processual. Se admitirmos tratar-se de norma processual não há que se falar, obviamente, em retroatividade, fenômeno jurídico típico do direito intertemporal relativo às normas penais. Porém, é preciso atentar para o fato de que essa medida cautelar diz respeito ao direito de liberdade (provisória) do investigado/acusado, matéria obviamente de direito material, prevista no art. 5º, LXVI da Constituição Federal. Trata-se, portanto, de uma norma processual material, ainda que tal diferença, em alguns casos, não seja tão perceptível. Klaus Tiedemann, por exemplo: destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das normas processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e normas processuais substancialmente materiais.3

No Brasil, comentando a respeito de tais normas, Tucci entende que elas: deverão ser aplicadas, em face da conotação prevalecente de direito penal material das respectivas normas, as disposições legais mais favoráveis ao réu, ressalvando-se sempre, como em todos os sucessos ventilados, a possibilidade de temperança pelas regras de direito transitório, – estas excepcionais por natureza.4

No mesmo sentido é a opinião de Grandinetti Castanho de Carvalho, ao afirmar que: Se a norma processual contém dispositivo que, de alguma forma, limita direitos fundamentais do cidadão, mate-

DIVULGAÇÃO

rialmente assegurados, já não se pode defini-la como norma puramente processual, mas como norma processual com conteúdo material ou norma mista. Sendo assim, a ela se aplica a regra de direito intertemporal penal e não processual.[5]

Atente-se “que a natureza processual de uma lei não depende do corpo de disposições em que esteja inserida, mas sim de seu conteúdo próprio”.[6] Assim, sendo uma norma processual penal material, é possível a sua aplicação a partir de uma visão mais benéfica para o suposto autor do fato, seja para fazer incidir a regra (do jogo) anterior (em uma espécie de “ultratividade”), seja proibindo a “retroatividade” da nova regra (do jogo) para casos passados. Saliente-se que por lei mais benéfica não se deve entender apenas aquela que comine pena menor, pois tal como ensina Zaffaroni: en principio, la retroactividad es de la ley penal e debe extenderse a toda disposición penal que desincrimine, que convierta un delito en contravención, que introduzca una nueva causa de justificación, una nueva causa de inculpa-

bilidad o una causa que impida la operatividad de la punibilidad, es dicer, al todo el contenido que hace recaer sobre la conduta.

É necessário que se tenha em conta uma série de outras circunstâncias, o que implica admitir que “la individualización de la ley penal más benigna deba hacerse en cada caso concreto”.[7] Concluindo: a partir de agora, é preciso que os juízes e tribunais revejam todos os casos em que réus (ou indiciados) estejam presos provisoriamente e em uma das situações indicadas nos três últimos incisos do art. 318, ora modificados. Nesse sentido, devem fazê-lo de ofício, independentemente, portanto, de requerimento. Se não o fizerem ou negarem o direito (subjetivo público do preso), cabível será a impetração de habeas corpus, tendo em vista a patente ilegalidade perpetrada.

NOTA 1 Disponível em: http://emporiododireito.com.br/mulher-gravida-e-presa-so-consegue-no-stf-o-reconhecimento-da-dignidade-por-romulo-de-andrade-moreira-e-alexandre-morais-da-rosa/.

arquivo pessoal

REFERÊNCIAS 1 Los Derechos Fundamentales, Madrid: Editora Tecnos, 1993, p. 67. 2 FRANCO, Alberto Silva et al. Código Penal e Sua Interpretação Jurisprudencial, v. 1, 7. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 62. 3 Apud CARVALHO, Américo A. Taipa de. Sucessão de Leis Penais. Coimbra: Coimbra Editora, 1990, p. 220. 4 TUCCI, Rogério Lauria. Direito Intertemporal e a Nova Codificação Processual Penal, São Paulo: José Bushatsky Editor, 1975, p. 124. 5 GRANDINETTI, Luis Gustavo; CARVALHO, Castanho de. Processo penal e (em face da) Constituição: princípios constitucionais do processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 137. 6 COUTURE, Eduardo J. Interpretação das Leis Processuais, 4. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 36. 7 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Tratado de Derecho Penal, Parte General, I, Buenos Aires: Editora Ediar, 1987, págs. 463 e 464.

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Salvador - UNIFACS.

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divulgação

IN VOGA

O combate à sonegação entra na agenda internacional “A retomada do tema no cenário político internacional exige a discussão de medidas efetivas no combate à sonegação, entre as quais a regulamentação da norma geral antielisiva, sob pena de continuarmos perdendo 10,1% do PIB anualmente com a sonegação, o que corresponderia a R$ 518,2 bilhões, levando em conta o PIB de 2014, segundo estudos do Sinprofaz.” „„ por

ALLAN TITONELLI NUNES

O

recente escândalo internacional provocado pela divulgação de lavagem de dinheiro através de offshores constituídas no Panamá, conhecido como “Panamá Papers”, coloca em foco o combate à sonegação. Nesse pormenor, o grupo Tax Justice Network, uma organização internacional destinada a realizar pesquisas sobre impostos, paraísos fiscais e movimentações financeiras já divulgou inúmeros estudos sobre a evasão. Um desses trabalhos teve o objetivo de fazer um comparativo mundial, com base em dados do Banco Mundial de 2011, levando em conta os principais países do globo, entabulando estimativas a partir do PIB e alíquotas tributárias, alcançando uma previsão do que deveria ter sido arrecadado, diminuindo daquilo que realmente ingressou nos cofres públicos, para saber a evasão fiscal em cada país. Como resultado chegou-se à conclusão que Rússia, Brasil (correspondendo a 13,4% do PIB) e Itália foram, nessa ordem, os países com maior evasão1. Tratando ainda do mesmo tema, o grupo Tax Justice Network contratou James Henry, ex-economista-chefe da consultoria McKinsey, para produzir um estudo, nominado The Price of Offshore Revisited, destacando o impacto sobre a economia de 139 países mais desenvolvidos em função da movimentação de dinheiro enviado a paraísos fiscais. O trabalho, que teve como base dados do Banco de Compensações Internacionais, do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e de governos nacionais

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constatou que os ricos brasileiros acumularam, até 2010, aproximadamente US$ 520 bilhões em paraísos fiscais, o que corresponderia a um terço do PIB do Brasil. A mencionada quantia seria a quarta maior do mundo depositada na modalidade de conta bancária em zonas privilegiadas, com isenções fiscais ou impostos reduzidos sobre os rendimentos, evidenciando que a elite brasileira paga proporcionalmente muito menos tributo que todas as outras classes sociais do país2. É de origem histórica a tentativa de não se submeter ao jugo do Estado, sendo uma das primeiras formas de sair do campo de incidência das normas coletivas. Ou seja, a não subsunção às normas de conduta surgiram conjuntamente com a existência do Estado. Essa lógica também passou a acontecer, e com mais frequência após o advento da tributação, tendo em vista a questão econômica envolvida (origem de diversas disputas nos sistemas capitalistas). Concomitante à fuga da exação tributária por parte do cidadão, o Estado demanda alternativas para aperfeiçoá-la. Nesse campo, a doutrina majoritária entende como evasão fiscal a conduta do contribuinte de tentar se eximir da incidência tributária no momento ou depois da ocorrência do fato gerador por meio de condutas ilícitas (fraude, simulação e outras). No planejamento tributário a elisão fiscal constitui a ação lícita tendente a não incidência da norma tributária antes da ocorrência do fato gerador, de modo a se obter a menor carga tributária le-

galmente possível. Sacha Calmon Coêlho discorre sobre essa distinção3: Tanto na evasão comissiva ilícita como na elisão fiscal existe uma ação do contribuinte, intencional, com o objetivo de não pagar ou pagar tributo a menor. As diferencia: (a) a natureza dos meios empregados. Na evasão ilícita os meios são sempre ilícitos (haverá fraude ou simulação de fato, documento ou ato jurídico. Quando mais de um agente participar dar-se-á o conluio). Na elisão os meios são lícitos porque não vedados pelo legislador; (b) também, o momento da utilização desses meios. Na evasão ilícita a distorção da realidade ocorre no momento em que ocorre o fato jurígeno-tributário (fato gerador) ou após sua ocorrência. Na elisão, a utilização dos meios ocorre antes da realização do fato jurígeno-tributário, ou como aventa Sampaio Dória, antes que se exteriorize a hipótese de incidência tributária, pois, opcionalmente, o negócio revestirá a forma jurídica alternativa não descrita na lei como pressuposto de incidência ou pelo menos revestirá forma menos onerosa.

Muito embora a elisão fiscal seja tratada como economia lícita de tributo, o Direito Tributário tem se debruçado sobre conceitos éticos e morais de sua prática. Porquanto, o planejamento tributário com a utilização do abuso como forma de tentar escapar da incidência tributária está se tornando cada vez mais corriqueiro. É importante ressaltar, nessa quadra, a doutrina sobre o dever fundamental de pagar tributo, que tem contribuição pioneira de José Casalta Nabais, defensor de deveres do cidadão perante o Estado, os quais conduzem à existência de uma cidadania fiscal atrelada à concretização da solidariedade4: Noutros termos, o imposto não pode ser encarado, nem como um mero poder para o estado, nem simplesmente como um mero sacrifício para os cidadãos, mas antes como o contributo indispensável a uma vida em comum e próspera de todos os membros da comunidade organizada em estado.

A integração global, a internet como ambiente de negócio, entre outros mecanismos de supressão volátil das

fronteiras tornaram a forma abusiva de planejamento tributário um problema internacional. Para enfrentar a questão, o G-20, grupo de países constituídos para debater sobre a estabilidade econômica global, pautou a matéria para discussão na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que ficou responsável por criar normas internacionais sobre o assunto, evitando uma “guerra fiscal internacional”, face à mitigação virtual das fronteiras. Um dos esforços concentrase na Base Erosion and Profit Shifiting (BEPS - Erosão da Base Tributária e Transferência de Lucros), sendo um dos planos de ação aprovados a adoção de medidas mais transparentes por parte dos contribuintes, delineando não só evitar o planejamento tributário abusivo como definir regras de compliance. O Brasil buscou regulamentar a questão por meio da MP nº 685, de 21 de julho de 2015, convertida na Lei nº 13.202, de 8 de dezembro de 2015, inaugurando o que convencionou-se chamar de declaração antielusiva e a consulta preventiva antielusiva, com o intuito de monitorar e dar segurança jurídica às “operações e atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo”, conforme dispôs o artigo 7º da medida provisória, parte não convertida na Lei nº 13.202/2015, o que evidenciou um retrocesso no combate à sonegação. De todo modo, com base nesses mesmos princípios de combate ao planejamento tributário abusivo, a Lei Complementar nº 104/2001 já havia acrescentado um parágrafo único ao disposto no art. 116 do CTN, que ficou conhecida como norma geral antielisiva. Contudo, a aplicabilidade do respectivo instituto ainda não foi utilizada na íntegra em razão da falta de sua regulamentação, não obstante a defesa por parte de vários doutrinadores de que já seria autoaplicável. A retomada do tema no cenário político internacional exige a discussão de medidas efetivas no combate à sonegação, entre as quais a regulamentação da norma geral antielisiva, sob pena de continuarmos perdendo 10,1% do PIB anualmente com a sonegação, o que corresponderia a R$ 518,2 bilhões, levando em conta o PIB de 2014, segundo estudos do Sinprofaz5.

arquivo pessoal

NOTAS 1 FOLHAPRESS. No mundo, Brasil só perde para Rússia em sonegação fiscal. Valor Econômico, Macroeconomia, São Paulo, 09/11/2013. Disponível em: Acesso em: 03 fev. 2016. 2 PINTO, Rodrigo. Ricos brasileiros têm quarta maior fortuna do mundo em paraísos fiscais. BBC Brasil, Economia, Londres, 22/07/2012. Disponível em: Acesso em: 03 fev. 2016. 3 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria da Evasão e da Elisão em Matéria Tributária. Planejamento Fiscal – Teoria e Prática. São Paulo: Dialética, 1998, p. 174. 4 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p. 185. 5 SINDICATO NACIONAL DOS PROCURADORES DA FAZENDA NACIONAL (SINPROFAZ). Sonegação no Brasil – Uma Estimativa do Desvio da Arrecadação do Exercício de 2014. Disponível em: Acesso em: 08/06/2015.

Allan Titonelli Nunes é procurador da Fazenda Nacional, especialista em Administração Pública pela FGV, especialista em Direito Tributário pela Unisul, ex-presidente do Forvm Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz.

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TENDÊNCIAS

Cooperação no processo concorrencial “Com a entrada em vigor do Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) tem-se que o processo, outrora o regulamento para estabelecer o trâmite da lide, agora se pauta num tom conciliatório para a realização da justiça. Assim, está disposto no art. 6º do CPC que: “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”.” „„ por

VICENTE BAGNOLI

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cooperação entre empresas é um dos temas ao qual se dedica a ciência econômica na análise das estratégias entre concorrentes. Trata-se da atuação no mercado cuja cooperação pode trazer ganhos às empresas com maiores lucros, e aos consumidores com a geração de novas tecnologias, por exemplo. A cooperação, por outro lado, pode restringir a competição e até mesmo culminar em cartéis. Porém, não

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se deve confundir a cooperação estratégica analisada pela Economia com o “princípio da cooperação” no processo concorrencial trazido pelo Código de Processo Civil. Com a entrada em vigor do Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) tem-se que o processo, outrora o regulamento para estabelecer o trâmite da lide, agora se pauta num tom conciliatório para a realização da justiça. Assim, está disposto no art. 6º do CPC que: “Todos

DIVULGAÇÃO arquivo pessoal

os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. Entende-se por sujeitos do processo todos os entes nele envolvidos, tais como as partes, o autor e o réu, o juiz, o representante do Ministério Público, o amicus curiae, o denunciado à lide, enfim, todos com o dever de cooperar mutuamente para a efetivação da justiça. Evidentemente, a realização da justiça também diz respeito ao art. 5º, LV, da CF/1988, segundo o qual “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Depreende-se, portanto, que todos devem ter reconhecido e respeitado o direito de litigar, exercendo o contraditório e a ampla defesa, observando que são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo o quanto disposto no art. 77 do CPC e seus incisos. Afasta-se também do legítimo exercício do contraditório e da ampla defesa a litigância de má- fé, tal qual previsto nos termos do art. 80 do CPC e seus incisos. Assim como previsto no art. 6º do CPC, o “princípio da cooperação” deve ser observado em atenção à Lei Concorrencial (Lei nº 12.529/2011), que em seu art. 115 dispõe que se aplicam subsidiariamente aos processos administrativo e judicial previstos na Lei Concorrencial as disposições do Código de Processo Civil.

Deduz-se, portanto, que os sujeitos do processo no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), tais como os requerentes de ato de concentração, terceiros interessados, representantes, representados, técnicos, conselheiros, advogados, representantes do Ministério Público e procuradores devem pautar suas ações em observância ao “princípio da cooperação”, para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. Algumas situações de incidência do “princípio da cooperação” no âmbito do processo concorrencial podem ser exemplificadas para reflexão sobre o tema. No caso de um ato de concentração, as requerentes têm o dever de cooperar com informações precisas e completas para que a análise pela autoridade concorrencial seja efetiva e eficiente. A autoridade também tem o dever de cooperar e analisar as informações e proferir a sua decisão de forma completa, acurada e eficiente, inclusive no tocante ao lapso temporal. Terceiros interessados também têm legitimidade para ingressarem nos autos e cooperarem, contribuindo de forma efetiva com as análises da autoridade, munindo-a de informações fidedignas. Já informações desencontradas prestadas pelas requerentes, ofícios protelatórios expedidos pela autoridade e terceiros interessados que tão somente tumultuam o trâmite do processo, são nítidas situações de negação ao “princípio da cooperação”. Na hipótese de uma conduta unilateral, o representado, ao ter ciência de um processo em que sua conduta é tida como uma prática abusiva de posição dominante, consubstanciada em fortes indícios apresentados pelo representante, coopera em tempo razoável para a justa e efetiva solução da demanda, por vezes celebrando com o Cade um acordo em que se compromete a cessar a conduta. Mas quando o representante questiona, sem subsídios, uma suposta conduta; quando a autoridade concorrencial sequer faz as devidas análises de mercado relevante para concluir pela existência ou não da posição dominante; quando o representado recusa-se a celebrar o acordo com o intuído apenas de ganhar tempo; e, ainda, quando se recusa a cumprir uma medida preventiva imposta pelo Cade, recorrendo ao Poder Judiciário de forma protelatória, está-se diante da negação ao “princípio da cooperação”. Por fim, vale ressaltar que o “princípio da cooperação” deve conviver com o direito ao contraditório e à ampla defesa, e mais, que os legítimos direitos de contradizer e de defesa, ou também de acusação, não sejam diminuídos à qualidade de mera recusa de cooperação. 

Vicente Bagnoli é sócio de Vicente Bagnoli Advogados e Professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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DIVULGAÇÃO

GESTÃO EMPRESARIAL

A era do conceito omnichannel coloca o cliente no centro do negócio ou quem ficará de fora será você „„ por

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fABRIZZIO TOPPER

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“Relacionar-se sempre foi uma arte, mas hoje essa habilidade está sendo avaliada pela lente de aumento da era omnichannel e nenhum detalhe poderá passar despercebido pelas empresas, se desejarem que essa relação dure e frutifique.”

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arquivo pessoal

uito se tem falado sobre o novo varejo, em que há cada vez mais clientes omnichannel, ou seja, que se utilizam de múltiplos canais simultaneamente para buscar, analisar, adquirir e se relacionar com as empresas. Estudos do IDC Retail Insights apontam que os novos consumidores chegam a consumir 30% a mais que os clientes tradicionais. Realmente, é algo fantástico para as empresas o amadurecimento do consumidor moderno e o quanto ele pode consumir mais e melhor. Contudo, este novo momento do mercado traz uma questão bem mais complexa: se os clientes são cada vez mais omnichannel, então como uma empresa deve fazer para evoluir da atuação multicanal para a omnichannel? Se o cliente estiver evoluindo, isso significa que está, certamente, mais exigente e cada vez mais seletivo. Algumas regras novas estão surgindo, e entre elas destacam-se: 1. Não poderá mais haver distinção entre as politicas comerciais dos canais existentes. Se é uma marca só, por que tanta variação de preço e condições de um canal para o outro? Isso significa que ter preços e condições diferentes de pagamento de uma loja para a outra, sejam lojas físicas, itinerantes ou ecommerces não faz mais sentido para o novo consumidor. A marca o atende de forma única ou então não mais interessará a ele. 2. A marca é única, portanto uma coisa só para o consumidor. Ele deve poder realizar trocas e solucionar seus problemas e dúvidas em qualquer ponto de contato. Os novos consumidores omnichannel não aceitam mais serem arremessados de um lado para o outro para encontrarem quem é o responsável ou quem tenha reais condições de resolver os seus problemas. Eles querem acessar o canal que for mais “fácil e prático” para conseguirem o suporte necessário para trocar, orientar, reclamar e qualquer outra questão que seja importante. Seja por telefone, email, bate papo na loja, post na rede social ou conversa via algum aplicativo de mensagens, o consumidor multicanal vai ser ouvido. Poderá ser fácil ou poderá ser bastante dispendioso para a empresa reverter o estrago se não estiver lá para atendê-lo. 3. Da mesma forma que o cliente enxerga a marca como uma entidade única e indivisível, ele espera ser identificado e atendido de forma integrada e indivisível.

Isso traz para as empresas a necessidade de manter sistemas integrados em que o perfil do cliente possa ser acessado de qualquer ponto de contato, bem como seus históricos de relacionamento. É fundamental que os clientes saibam que cada reclamação, compra e interação são armazenadas e não ignoradas de um canal para o outro. Não dá mais para eles tolerarem ter de começar tudo novamente, cada vez que cai o telefone ou a internet, muda o atendente da loja ou abre um novo ponto de venda. 4. As complicações burocráticas fiscais e de processos logísticos não são problemas do cliente. São obrigatoriedades das empresas se desejarem realmente atender e fidelizar consumidores omnichannel. Ainda há uma imensidão de empresas que acreditam não ser possível viabilizar uma operação omnichannel de fato. É muito difícil lidar com a complexidade fiscal de comprar aqui, devolver ali, de comprar tudo aqui e retirar uma parte aqui e receber outra ali, e assim por diante. Ainda acreditam que seja algo que os consumidores devem compreender e aceitar. A novidade é que os novos consumidores não vão aceitar mais nada disso. Eles são importantes e estão no centro da equação de valor do negócio, sabem disso e desejam ser tratados como tal. 5. Se o cliente sempre teve razão e poder de escolha, agora ele tem algo mais: conhecimento. Que as marcas não se enganem ao acreditar que os novos clientes desconhecem o seu poder ou irão perdoar aquela dificuldade ou malandragem. O cliente omnichannel se informa em tempo real. Está diante do produto na loja, enquanto avalia o preço dele na web via celular, com o qual verifica o produto concorrente no ecommerce da loja ao lado. Compra algo agora, mas já está de olho nos canais de reclamação para saber o que o espera adiante. Ficou difícil enrolar esse novo tipo de cliente, mas por outro lado ele ficou bem mais conectado à marca e está disposto a pagar até um pouco mais para ser tratado e acolhido da forma como entende que merece. Relacionar-se sempre foi uma arte, mas hoje essa habilidade está sendo avaliada pela lente de aumento da era omnichannel e nenhum detalhe poderá passar despercebido pelas empresas, se desejarem que essa relação dure e frutifique. 

Fabrizzio Topper é especialista em planejamento estratégico ebusiness e branding omnichannel, com 19 anos de atuação no mercado de estratégia de marketing, negócios e branding. É fundador da empresa Topper Minds.

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divulgação

OBSERVATÓRIO JURÍDICO

Estelionato Contra Idoso “Enquanto a politicagem se apropriar dos institutos penais para encobrir o fracasso de inúmeros projetos sociais esquizoides, os processos crescerão em progressão geométrica, e mais prédios públicos serão erguidos para amontoar gente e proclamar o ócio.” „„ por

SERGIO Ricardo DO AMARAL GURGEL

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omo de costume, o Código Penal brasileiro sofreu mais uma alteração em sua parte especial, desta vez no que diz respeito aos crimes contra o patrimônio. A Lei nº 13.228/2015, que entrou em vigor no dia 29 de dezembro de 2015, acrescentou o quarto parágrafo ao tipo penal do estelionato, estabelecendo uma causa de aumento quando cometido contra idoso. Como efeito, a escala penal passou a variar de dois a dez anos de reclusão, quando aplicada a majorante. Não é de se espantar a reverência feita ao legislador por diversos setores da população que costumam aplaudir o encrudescimento dos institutos do Direito Penal, como resposta imediata à criminalidade visivelmente fora de controle em nosso país. Todavia, não há como ostentar a bandeira da repressão desmedida sem correr o risco de parecer ridículo, ao menos diante daqueles que possuem um mínimo de percepção nos âmbitos jurídico, político e matemático. É indiscutível o caráter abominável do crime de estelionato em prejuízo dos idosos, principalmente quando se sabe que a maioria vive em situação de miséria em razão do descaso de um governo que, agora, com a sanção da referida lei, procura tergiversar em favor das suas próprias vítimas. Aliás, torna-se difícil especular em quais situações o idoso figurará como vítima de um crime, mesmo

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quando mais favorecido economicamente, sem que isso acarrete automática repulsa da sociedade. Com base nessa constatação, a Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) já reconhecia a maior vulnerabilidade das pessoas com idade igual ou superior a sessenta anos e, assim, foram criados mecanismos penais e processuais para lhes assegurar maior proteção, inclusive no que diz respeito aos crimes contra o patrimônio, afastando as hipóteses de imunidades relativa e absoluta aos seus agentes nos casos em que as vítimas estivessem abrangidas por essa lei. Porém, no tocante ao aumento da pena do crime de estelionato cometido contra pessoa idosa, a inserção legislativa, além de inútil no combate a esse tipo de transgressão, atenta contra a ordem constitucional por ofender o Princípio da Individualização da Pena. Há muitos anos vem sendo difundida a ideia de que o problema do aumento da delinquência está diretamente relacionado a uma suposta brandura das reprimendas cominadas na legislação pátria e que o ímpeto do infrator pode e deve ser cerceado por intermédio de uma resposta mais rigorosa em matéria penal. Esse embuste já está tão enraizado em nossa sociedade que nos faz lembrar das diretrizes da propaganda nazista implementada por Joseph Goebbels, no sentido de que uma mentira mui-

arquivo pessoal

tas vezes repetida se tornaria uma verdade. Histerismo e hitlerismos a parte, o certo é que a insistência no falso transcende ao debate jurídico e repousa no campo da psicanálise. Jamais foi comprovada a fórmula de que a reiteração criminosa seja diretamente proporcional a uma legislação complacente. Tomemos como exemplo a Lei nº 8.072/1990 (Crimes Hediondos), bem como a Lei nº 11.343/2006 (Drogas), entre outras de rigidez comparável, que nenhum efeito trouxeram, exceto o de superlotar os estabelecimentos prisionais, colocando o Brasil em quarto lugar entre os países que possuem a maior população carcerária do planeta, perdendo apenas para os Estados Unidos, Rússia e China. Em termos práticos, o que irá acontecer a partir de agora com aqueles que se aventurarem no cometimento do crime de estelionato em prejuízo de idoso – o que tende a se multiplicar tendo em vista o exemplo dado pelos próprios governantes, aliado ao crescente desemprego – está muito mais ligado às questões processuais. Para o crime de estelionato, em sua modalidade fundamental, a lei prevê pena mínima de um ano. Sendo assim, preenchidos os demais requisitos objetivos e subjetivos, o acusado fará jus ao instituto do “sursis” processual, evitando desta forma o julgamento e uma possível sentença condenatória, em troca do cumprimento de diversas obrigações que deverão ser cumpridas durante o período de prova, inclusive a de reparar o prejuízo causado à vítima (art. 89 da Lei nº 9.099/1995). Em contrapartida, se o mesmo delito for praticado contra idoso, em virtude da incidência da norma contida no parágrafo quarto, a pena mínima passa a ser de dois anos, o que impede a aplicação do citado instituto, e, por conseguinte, a solução do conflito sem necessidade de instrução e julgamento. Assim, caminhamos em sentido contrário ao modelo do front-door em homenagem ao arcaico sistema intramuros. E o que se mostra mais curioso é o fato de a inovação legislativa ter surgido no exato momento em que o ordenamento jurídico brasileiro procura se modernizar no sentido de buscar a solução dos conflitos pela mediação, desafogando o Poder Judiciário que nos dias atuais pode se considerar soterrado pelos mais de cento e cinquenta milhões de processos em trâmite. Tenho certeza de que muitos questionarão por que deveriam se preocupar com a má sorte dos estelionatários, pois é justo que sofram as consequências dos seus atos, pagando o preço das suas vilanias. Ocorre que essa conta é apresentada à sociedade, que, por sua vez, verá o dinheiro público ser destinado à multiplicação das prisões, em detrimento de diversos outros investimentos que, efetivamente, poderiam servir para inibir ações delituosas de todas as espécies. Em vez de creches, escolas, hospitais, museus, teatros, vamos erguer muros acinzentados, decorados à base de cercas eletrificadas. Destaca-se como o ponto mais grave da alteração em análise o claro desprezo pelo Princípio da Individuali-

zação da Pena, que deve ser observado não apenas por ocasião da aplicação e execução da pena, mas também no momento da cominação, quando o legislador leva em conta a sua proporcionalidade, de acordo com o bem jurídico tutelado. Não é tarefa difícil perceber a violação ao preceito constitucional quando se faz um simples exercício mental com base em situações hipotéticas. Tomemos como exemplo o crime de lesão corporal grave previsto no art. 129, § 1º, do Código Penal, cuja pena é de um a cinco anos de reclusão. Quando praticado contra pessoa maior de sessenta anos, em razão da aplicação da causa de aumento prevista em seu parágrafo sétimo, a pena poderá chegar, no máximo, a seis anos e oito meses. O que nos leva a concluir que, segundo a legislação atual, obter vantagem mediante fraude em prejuízo de um idoso, cuja pena varia de dois a dez anos, é mais grave do que arrancar um dos seus olhos. Mais estarrecedor ainda seria a hipótese em que o agente arrancasse não apenas um, mas os dois olhos de um idoso, e ainda perfurasse seus tímpanos, cortasse sua língua, e, por fim, decepasse suas mãos e pés, sem causar-lhe, contudo, a morte. No caso de condenação à pena máxima pela lesão corporal gravíssima, o agente sofreria uma quantidade de pena quase idêntica ao teto do estelionato majorado. A mesma situação ocorreria caso um idoso fosse vítima do crime de tortura tipificado pela Lei nº 9.455/1997. Seria de grande valia se o legislador tivesse consultado os cidadãos de terceira idade a respeito de suas prioridades. É preciso chamar a atenção para disparates como esse entre tantos outros que vêm marcando o ordenamento jurídico brasileiro. Não foram raras as vezes que, em palestras, ouvi de renomados juristas que o nosso legislador figura entre os piores do mundo, e alguns fatos servem para comprovar essa vergonhosa reputação, como acréscimo de parágrafos subsequentes ao parágrafo único, qualificadoras com pena mínima inferior à forma fundamental, fora os tipos penais incriminadores redundantes ou com termos que nem o próprio autor da norma sabe definir. Se nessa análise considerássemos os projetos de lei propostos e muitas vezes aprovados pelas comissões permanentes de constitucionalidade e justiça, tanto no âmbito do Congresso Nacional, quanto nas Casas Legislativas estaduais e municipais, deixaríamos o campo da crítica acadêmica para ingressarmos nos roteiros dos humoristas. Enquanto a politicagem se apropriar dos institutos penais para encobrir o fracasso de inúmeros projetos sociais esquizoides, os processos crescerão em progressão geométrica, e mais prédios públicos serão erguidos para amontoar gente e proclamar o ócio. O estelionato é crime, e como tal deve ser combatido. Dispensável a qualificadora quando praticado contra idoso. A agravante genérica incidente sobre a escala penal atenderia de forma justa e proporcional à violação praticada. Mais uma vez, a inserção mostra-se tão inútil quanto demagógica.

Sergio Ricardo do Amaral Gurgel é advogado militante na área criminal desde 1994 e há mais de quinze anos vem ministrando aulas de Direito Penal e Direito Processual Penal para todas as carreiras jurídicas, nos principais cursos preparatórios do país, principalmente no Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo, Minas Gerais, Brasília, Mato Grosso e Pernambuco. Além desta obra, possui outros cinco livros jurídicos publicados.

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visão jurídica

Aspectos criminais da lei de regularização nº 13.254/2016 “A Lei nº 13.254/2016 tem por escopo legalizar perante os órgãos nacionais os recursos, bens ou direitos localizados no exterior ou já repatriados, de agora em diante denominados “bens” de residentes, domiciliados ou com sede no Brasil, em 31 de dezembro de 2014, e que não tenham sido declarados à Receita Federal do Brasil – RFB, ou declarados de forma incorreta.”

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fERNANDO JOSÉ DA COSTA

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DIVULGAÇÃO

„„ por

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pós décadas de espera e apresentação de um projeto enviado pelo governo, em substituição a outro pronto para votação, como corriqueiramente ocorre em nossa Casa Legislativa, houve aprovação relâmpago pelo Congresso Nacional do projeto da Lei de Regularização de Bens. Após sanção presidencial, em vigor, em 14 de janeiro de 2016, data de sua publicação no Diário Oficial, a Lei nº 13.254/2016. Com somente 12 artigos, ao diploma legal dispõe sobre o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT) de recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados incorretamente, remetidos, mantidos no exterior ou repatriados por residentes, domiciliados ou com sede em nosso país até 2014. Equivocadamente, denominam-na “Lei da Repatriação”, já que a terminologia que vem do latim, “repatriare”, significa fazer voltar à pátria, ou seja, esta lei deveria tratar somente de bens retornados ao Brasil. Todavia, conforme previsto no § 4º do art. 4º, os bens a serem regularizados existentes no exterior podem ou não ser transferidos ao Brasil. Isto posto, caso a opção seja pela não internação do bem, teremos a sua regularização, sem a tão falada “repatriação”. Por atuarmos na esfera criminal, analisaremos esta lei apenas em seus aspectos criminais, apesar de já termos notado falhas e pontos passíveis de mais de uma interpretação em todas as áreas do Direito, inclusive quanto a sua própria constitucionalidade, resultando em inúmeras discussões. A Lei nº 13.254/2016 tem por escopo legalizar perante os órgãos nacionais os recursos, bens ou direitos localizados no exterior ou já repatriados, de agora em diante denominados “bens” de residentes, domiciliados ou com sede no Brasil, em 31 de dezembro de 2014, e que não tenham sido declarados à Receita Federal do Brasil – RFB, ou declarados de forma incorreta. O primeiro e, certamente um dos mais importantes temas que enfrentaremos neste artigo, está relacionado às condições imprescindíveis (conditio sine qua non) para o bem ser legalizado. DAS CONDIÇÕES DO RERCT Entre as condições mais relevantes impostas pela lei em análise, para a regularização do bem destacam-se: a) a apresentação voluntária da “declaração única de regularização específica”, denominada Dercat, à Receita Federal do Brasil, com cópia ao Banco Central do Brasil – Bacen (art. 4º); b) tal apresentação deve ser feita dentro de um prazo legal; c) pagamento de Imposto de Renda e multa sobre o valor do bem; d) os recursos ou patrimônio devem ter origem lícita, oriundos de atividades permitidas ou não proibidas pela lei;

e) a não aplicação desta lei aos condenados pelos crimes descritos no § 1º do art. 5º, bem como a detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, seus cônjuges e parentes consanguíneos ou afins até o segundo grau ou por adoção. Da Dercat Sobre a declaração voluntária única de regularização específica e consequente adesão ao RERCT (Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária) a lei é clara ao exigir descrição pormenorizada dos bens, melhor detalhada pela Instrução Normativa da Receita Federal (IN) nº 1.627, de 11 de março de 2016. A referida IN descreve a declaração voluntária como aquela que informe fato que não tenha sido objeto de lançamento. Vale, desde já, pontuar que tal instrução normativa, apesar de esclarecer muitas questões, se omite a tantas outras, repete muitas normas já trazidas na Lei de Regularização, além de trazer dispositivos contrários à própria lei, tornando-a confusa e passível de discussões. Enquanto a lei exigia o envio da Dercat à RFB, com cópia ao Banco Central do Brasil, a IN, facilitando o contribuinte, previu que caberá à própria RFB o envio desta declaração ao Bacen (art. 5º, § 1º, da IN). Do prazo Sobre o prazo para apresentação desta declaração única – Dercat, o projeto de lei aprovado pelo Senado previu um mês, contado da publicação da lei. Tal prazo foi alterado pela Presidência da República para 210 dias, a contar da data da apresentação da regulamentação da lei pela Secretaria da RFB, segundo justificativa de veto, tal prazo seria insuficiente, já que se estimava que esta regulamentação deveria ter sido apresentada em 15 de março de 2016, data posterior ao referido prazo de um mês. Tal questão foi resolvida em definitivo pela IN, que determinou o prazo para adesão ao RERCT, qual seja, iniciou-se em 4 de abril de 2016 (art. 6º da IN) e vai até 31 de outubro de 2016 (art. 33 da IN). Portanto, quem tiver interesse em aderir ao RERCT deverá fazê-lo até 31 de outubro do corrente ano. Tal instrução normativa prevê que a Dercat seja elaborada pela internet, através do serviço “apresentação da Declaração de Regularização Cambial e Tributária”, disponível no sítio da Secretaria da Receita Federal do Brasil, no endereço: rfb.gov.br. Do pagamento do IR e da multa Sobre o pagamento do imposto e da multa, a possibilidade de parcelamento em até 12 vezes para regularização de bens imóveis (§ 3º do art. 5º) foi vetada pela Presidência da República. Desta forma, os mencionados pagamentos deverão ser feitos integralmente e apresentados junto com a declaração de regularização dentro do prazo legal supramencionado.

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visão jurídica

Para apresentação da Dercat a lei prevê o pagamento de 15% do Imposto sobre a Renda (IR), a título de ganho de capital do valor do bem avaliado em 31 de dezembro de 2014. Como ensina Hamilton Dias de Souza1, trata-se de um fortait, dispensando, por praticidade, investigação das circunstâncias individuais dos contribuintes. Insta ainda ao contribuinte pagar uma multa de regularização de 100% sobre o valor do IR, qual seja, mais 15% sobre o valor do bem avaliado em dezembro 2014. Está isento do pagamento da multa o somatório dos valores depositados no exterior no limite de até dez mil reais, respeitada a cotação do dólar para venda, conforme será abaixo explicado. Sobre o valor a ser pago, em apertada síntese, a lei (art. 4º, § 9º) prevê que, se o valor do bem não estiver avaliado em nossa moeda (real), temos as seguintes situações: a) se o bem não estiver ou não for avaliado em dólar americano deverá a este ser convertido, pela cotação do dólar de venda pelo Bacen, em 30 de janeiro de 2014. Isto porque a lei se refere ao último dia útil de dezembro de 2014, a saber, dia 30, já que o dia 31 é feriado de São Silvestre, em homenagem ao Papa Silvestre I. b) estando em dólar, o valor deverá ser convertido para nossa moeda nacional, pela cotação do Bacen do dólar para venda, em 30 de janeiro de 2014, qual seja, R$ 2,65. Já a IN (art. 7º, § 4º), ao tratar da apuração do valor do ativo em moeda Real, estipulou o valor do dólar fixado para venda, pelo Bacen, para 31 de dezembro de 2014, segundo o boletim de fechamento PTAX, a saber R$ 2,66, Todavia, conforme será melhor explicado abaixo, sustentamos que uma IN não tem força de alterar uma lei federal. Desta forma, o valor para conversão deverá ser o do dia 30 de dezembro de 2014, e não o do dia 31, conforme previsto na Lei de Regularização. Para bens existentes no exterior que deverão ser convertidos para a moeda nacional, em razão de a taxa do dólar para venda hoje estar em torno de quatro reais e a de venda em 30.12.14 (base de cálculo) em R$ 2,65, o pagamento de 30% do valor do bem (15% de IR e 15% de multa) representaria um pagamento real em torno de 21%, se convertido ao dólar de hoje. Claro que esta redução de aproximadamente 9% se verifica com a valorização da moeda estrangeira a partir da data prevista para base de cálculo em 2014 com a data de hoje, sendo que, se tal valor sofrer alterações até a data do pagamento do imposto, a diferença será alterada, ou seja, quanto mais o dólar de hoje baixar, mais a diferença diminuirá, e vice-versa. Com o pagamento integral o contribuinte regulariza seu bem até 31 de dezembro de 2014. Todavia, se repatriá-lo, estando o dólar da data da repatriação maior do que o de 2014 terá ainda que pagar o imposto de ganho de capital sobre o valor do dólar de 30 de dezembro de 2014 ao do dia da repatriação. Estas, como tantas outras

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questões, certamente serão passíveis de discussões perante o Poder Judiciário. Da origem lícita Sobre a origem lícita, isto quer dizer que os recursos precisam ter sido adquiridos por meio de uma atividade permitida ou não proibida por lei (art. 2º, I). Esclarecendo, se uma pessoa adquiriu um bem exercendo uma atividade permitida por lei, que dê condições para tal, ela poderá regularizá-lo. Todavia, esta é uma das condições que traz maior insegurança ao contribuinte. Eis a dúvida: como se pode comprovar a licitude de um bem até então classificado como ilícito? A explicação é simples, o bem não declarado configurava, para o direito tributário, administrativo e penal, um ilícito. A lei possibilita àquele que, espontaneamente, declarar o bem irregular, pagando o imposto e a multa e cumprindo todas as demais obrigações nela descritas, ter uma extinção de punibilidade criminal e uma anistia de qualquer penalidade extrapenal, em todos os órgãos públicos, como a Receita Federal, o Banco Central e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), cessando, desta forma, qualquer possibilidade de ser processado ou condenado em qualquer esfera judicial. Não há na lei qualquer exigência para que o declarante apresente documentação para comprovar a origem lícita de um determinado bem, até porque, muito provavelmente, como se trata de um bem não declarado ou declarado incorretamente, tal documentação dificilmente seria por ele guardada. O que poderá, ou melhor, deverá ocorrer é o confronto entre a atividade exercida que deu origem ao bem e o próprio valor do bem não declarado. Caso tal bem não seja compatível com a renda da atividade que deu ensejo à sua aquisição, estará o contribuinte sujeito a ter que explicar ao Fisco como conseguiu adquirir tal bem e, se não conseguir, poderá ser excluído do RERCT. Como a Lei é clara ao exigir que a declaração única de regularização específica contenha a “descrição pormenorizada dos recursos, bens e direitos”, entendemos que esta declaração deva trazer detalhes da atividade que deu origem a tal bem. Caso o bem seja oriundo de uma atividade ilegal, por exemplo, recebimento de propina, não poderá ser regularizado. Para o Direito Penal, em havendo condenação criminal em função de o bem ser produto do crime ou auferido com sua prática será destinado à União, como efeito da condenação criminal (art. 91, II, “b”, do Código Penal). É importante ressaltar aos que optarem pela não regulamentação de seus bens que estarão sujeitos a responder pelos crimes praticados e, em caso de condenação, perder o bem para a União, conforme exposto. No mesmo sentido, quando o bem é transferido a terceiro, por sucessão, doação ou qualquer outra forma, o terceiro que mantiver tal irregularidade sofrerá as mesmas consequências do antigo proprietário do bem.

Este mesmo dispositivo do Código Penal, em seu parágrafo 1º, prevê a perda de bens ou valores equivalentes ao produto ou proveito do crime, quando estes não forem encontrados ou forem localizados no exterior. Todavia, com o advento da Lei nº 13.254/2016, o dispositivo deixará de ser aplicado no caso de regularização do bem. Das Restrições Sobre as restrições à utilização da anistia, a lei comete sua maior falha, já que a Presidência da República vetou o inciso I do § 5º do art. 1º, que determinava “I – com decisão transitada em julgado”. Esse veto, em uma primeira leitura, nos faz crer que foi impedida a aplicação da lei ao sujeito condenado em ação penal pelos crimes listados no § 1º do art. 5º, abaixo descritos, mesmo que tal condenação relacionada a certos bens não declarados não seja definitiva, não importando se for de primeira, segunda ou até de terceira instâncias. Verifica-se que o veto da Presidência à exigibilidade de que a ação criminal tenha transitado em julgado tenha como única interpretação possível a de que basta o acusado ter sido condenado em qualquer instância criminal, mesmo ainda não transitada em julgado, para que ele esteja impedido de regularizar sua declaração de bens. Nossa posição, desde já, é pela inconstitucionalidade do dispositivo com o mencionado veto presidencial. Isto porque ofende de morte um dos mais sagrados princípios constitucionais, o da presunção de inocência. Se ninguém pode ser considerado culpado até haver decisão condenatória transitada em julgado, como pode uma lei vetar a alguém, que ainda não tenha sido condenado definitivamente, uma possibilidade de ter os mesmos direitos de outro cidadão? Uma pessoa não é presumidamente inocente até que contra ela exista uma condenação transitada em julgado? Imaginemos que um condenado em instância inferior, impossibilitado de regularizar seus bens, como previsto no dispositivo, depois de cessado o prazo para regularizar a declaração de seus bens seja absolvido criminalmente no processo que tratasse de tais bens. Com a absolvição ele provavelmente não necessitará da extinção de punibilidade criminal, mas será impedido de receber as demais anistias da lei nas esferas tributária e administrativa. Neste caso, provavelmente para regularizar o bem ele arcará com alíquotas e multas que podem alcançar valores superiores ao próprio valor do bem. Igualmente, não entendemos que poderíamos aplicar a regra recentemente decidida pelo Supremo Tribunal Federal quanto ao início do cumprimento da pena, após condenação de segunda instância. Isto porque, primeiramente entendemos que tal decisão é inconstitucional, conforme já sustentamos em artigo publicado pelo Estadão2 e, segundo, porque no STF se discute cumprimento de pena, enquanto aqui se discute possibilidade de alguém regularizar bem não declarado ou declarado incorretamente.

Ademais, se a lei visa regularizar situações de bens irregulares, extinguindo a punibilidade daqueles que praticaram um crime de origem fiscal, seria um contrassenso não permitir que pessoas condenadas provisoriamente em processos criminais relacionados a tais bens não pudessem se valer do mesmo benefício. Que fique bem claro: se a lei visa regularizar a situação de bens não declarados, anistiando um infrator, que mal há em regularizar também os bens de pessoas que já estão respondendo a um processo criminal? Resposta simples, nenhum!!! Pura falta de coerência do legislador. Vejam os crimes tributários de apropriação indébita previdenciária e sonegação de contribuição previdenciária, por terem origem tributária, mesmo que o contribuinte esteja sendo processado ou tenha sido condenado criminalmente por tal fato, lhe é permitido pagar o tributo devido, até o transito em julgado do processo criminal, e, com isto, ter sua extinção de punibilidade decretada. Pode, inclusive, parcelar o valor e ainda assim terá a garantia da suspensão do processo criminal até o pagamento integral. Portanto, para o crime tributário não importa a existência de um processo criminal, o que importa é a regularização daquela situação perante o Fisco, com o pagamento do tributo. Assim, o problema estará resolvido. Portanto, esta falha na Lei de Regularização precisaria ser sanada imediatamente, sob pena de impossibilitar determinadas pessoas de regularizar seus bens, o que provavelmente até outubro de 2016 não irá ocorrer, obrigando o contribuinte a tomar medidas judiciais para buscar seus direitos. Voltando a não aplicabilidade da Lei de Regularização a condenados em ação penal, prevista pelo art. 1º, § 5º, com o qual a Presidência da República vetou o inciso I, que discorria “com decisão transitada em julgado”, poder-se-ia imaginar que tal restrição valeria para qualquer condenação. Todavia, na própria lei, apesar de o § 1º do art. 5º, ao prever que a extinção de punibilidade dos crimes previstos na lei se dará se cumpridas as condições impostas à adesão ao programa antes de decisão criminal, o inciso II do § 2º do mesmo artigo, ao prever a extinção de punibilidade dos crimes dispostos nos incisos I ao VII do § 1º, estabelece que “somente ocorrerá se o cumprimento das condições se der antes do trânsito em julgado da decisão criminal condenatória”. O que nos espanta, e demonstra por parte dos legisladores grave desconhecimento da matéria, é em uma mesma lei, com tão poucos dispositivos, ter previsão de duas posições antagônicas. Enquanto a primeira estabelece que a lei não se aplica aos sujeitos condenados em ação criminal, mesmo que em primeira instância, conforme acima exposto, (§ 5º do art. 1º), a segunda, ao tratar da extinção de punibilidade (inciso II, do § 2º do art. 5º), exige que não haja condenação criminal transitada em julgado. Portanto, mesmo que subsistam condenações criminais anteriores ao trânsito em julgado aplicar-se-ia a extinção de punibilidade ao agente.

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Assim sendo, confrontando os dispositivos temos uma possível extinção de punibilidade criminal àqueles que não tiverem sido condenados definitivamente antes da regularização do bem. Porém, ao mesmo tempo temos um impeditivo de utilização da lei para qualquer condenado criminalmente pela não regularização de um bem, mesmo em processos não transitados em julgado. Isto, data maxima venia, é um absurdo. Senão vejamos, em uma mesma lei temos um conflito aparente de normas, que, em respeito ao princípio “favor rei” (a favor do réu) temos como inaplicável o § 5º do art. 1º, permitindo a utilização da lei para regularizar bens, mesmo àqueles que tenham uma condenação criminal por tal irregularidade, desde que não tenha sido transitada em julgado. Imaginando que a delicada questão estava superada, vem a Instrução Normativa e, visando regulamentar o que já estava regulamentado, assim prevê: “Não poderá optar pelo RERCT quem tiver sido condenado em ação penal cujo objeto seja um dos crimes listados no § 1º do art. 5º da Lei 13.254, de 2016, ainda que não transitada em julgado” (art. 4º, § 3º da IN). Isto posto, surge novamente a dúvida: estará impedido de se beneficiar da lei e, assim, receber a extinção de punibilidade quem estiver condenado provisoriamente pelos crimes nela anistiados ou quem tiver uma condenação já transitada em julgado? Analisando esta questão é importante esclarecer que o nosso Direito Penal possui normas penais em branco, que como dizia o jurista alemão Karl Binding, “são corpos errantes em busca de alma”. São normas que necessitam de complementação, exemplificando, o crime de tráfico de drogas não prevê as drogas consideradas ilícitas, estas são apresentadas em uma lista da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, por meio da Portaria nº 344, de 1998. Portanto, tal Portaria é uma norma penal em branco. Aqui, a instrução normativa não pode ser considerada uma norma penal em branco quanto à possibilidade de optar pelo RERCT. Isto porque a própria lei, ao dispor sobre a mencionada extinção de punibilidade já previu que só poderá ocorrer tal extinção, desde que cumpridas as demais condições, se não houver uma condenação transitada em julgado. Ora, neste caso temos um confronto aparente de normas. De um lado, uma lei federal possibilitando a extinção de punibilidade antes do trânsito do processo que julga os crimes listados na Lei de Regularização (art. 5º, § 1º) e, de outro, uma instrução normativa vetando a adesão ao RERCT para condenados em ação cujo objeto seja um dos crimes listados na Lei de Regularização, mesmo que não transitada em julgado. Ocorre que temos um princípio de hierarquia de leis, em que a Constituição está acima da lei federal, que está acima da lei estadual e assim por diante. Neste sistema, uma lei federal não pode ser alterada por uma instrução normativa, que pode, quando muito, ser acrescentada,

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regulamentada, mas, conforme dito acima, não é o que se verifica no presente caso. Logo, a previsão trazida pela IN não poderá ser aplicada. Ainda sobre as restrições à Lei nº 13.254/2016, o seu art. 11 impediu seus efeitos aos detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, seus cônjuges e parentes ou afins, até 2º grau ou por adoção. Em respeito a princípios como o da taxatividade, as normas penais devem ser claras, não podem admitir interpretações. Neste contexto, como podem ser definidas as funções públicas “de direção”? Sobre tal restrição, a lei não previu o período em que tais pessoas deveriam estar nestes cargos. Por isso, a IN estabeleceu a data de 13 de janeiro de 2016 (art. 4º, § 4º). Assim, quem exerceu esta atividade pública por décadas, até 12 de janeiro de 2016, pode aderir ao RERCT, quem a exercia no dia 13 de janeiro do mesmo ano, mesmo que por um dia, não pode. Claro está que este dispositivo busca vetar a legalização de bens obtidos ilegalmente, através da atividade pública ou eletiva. Todavia, tal situação já havia sido prevista na própria lei, quando impossibilitou a legalização de qualquer bem oriundo de atividade não permitida ou proibida por lei. A corrupção, exemplificando, seria um destes casos. Queremos crer que o art. 11 não está, de forma absoluta, prevendo que toda atividade pública de direção ou eletiva seja ilícita e que, por tal motivo, vede a regularização dos bens destas pessoas. Imaginamos que ela vise alcançar, repita-se, apenas aqueles que, em razão da função pública tenham praticado condutas ilícitas e através delas tenham adquirido bens não declarados. Feitas estas breves explicações, indagamos: como fica a regularização de bens oriundos da lícita atividade pública ou eletiva desempenhada por estas pessoas? Simplesmente não fica, estas pessoas, se tal norma não for considerada inconstitucional, não poderão regularizar seus bens, ofendendo de morte o princípio constitucional da isonomia, em que todos são iguais perante a lei. O problema não para por aqui. Como fica a situação das pessoas que, além da função pública ou eletiva, também exerciam outra atividade permitida por lei, que tenha dado origem a um bem não declarado? Seria o caso de um empresário que, apesar de em 13 de janeiro de 2016 estar exercendo uma função pública de direção ou eletiva, possuía bens não declarados à Receita, oriundos de sua lícita atividade empresarial. Para essa nova lei, esta pessoa não poderá regularizar seus bens, mesmo oriundos de uma atividade lícita. Igualmente, vemos esta norma como inconstitucional. E o que é pior, o impedimento de adesão à lei serve para os cônjuges e parentes até 2º grau dos ocupantes de cargos, empregos ou funções públicas de direção ou eletivas. Isto quer dizer que um parente até 2º grau, como primo, irmão, filho ou neto que possa não ter qualquer relação profissional com o parente que exerceu referida atividade

pública em 13 de janeiro de 2016 não poderá regularizar um bem. Data venia, isto, além de inconstitucional, foge do princípio da razoabilidade e deve pelo Poder Judiciário, se instado a tanto, ser modificado. DA EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE Tema de suma relevância na esfera criminal é o da extinção de punibilidade. A lei previu (art. 5º, 1º) a extinção de punibilidade dos crimes contra a ordem tributária, previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990; bem como dos crimes de sonegação fiscal, previstos na Lei nº 4.729/1965; do crime de sonegação de contribuição previdenciária, previsto no art. 337-A do Código Penal; dos crimes de efetuar operação de câmbio não autorizada, de evasão de divisas e de manutenção de depósitos não declarados no exterior, previstos no parágrafo único do art. 22 da Lei nº 7.492/1986; e, por fim, do crime de lavagem ou ocultação de bens, previsto no art. 1º da Lei nº 9.613/1998, quando o objeto do crime for bem, direito ou valor proveniente dos crimes previstos nos incisos I ao VI do parágrafo primeiro. A Lei previu ainda a extinção de punibilidade dos crimes de falsificação de documento público e particular, de falsidade ideológica e de uso de documento falso, todos previstos no Código Penal. Todavia, para estes crimes o legislador fez uma ressalva: só haverá extinção de punibilidade se for exaurida sua potencialidade lesiva na prática dos crimes contra a ordem tributária, de sonegação fiscal e de contribuição previdenciária. Apesar de a redação ser um pouco confusa, o legislador quis estabelecer que estes crimes terão sua extinção de punibilidade se não trouxerem lesão a qualquer outro bem jurídico. Concluindo, estes crimes de falsidade documental, descritos no Código Penal, só terão a extinção de punibilidade se o processo se referir também a um dos crimes elencados no inciso I a II do § 1º do art. 5º (crime contra a ordem tributária, crime de sonegação fiscal e crime de sonegação de contribuição previdenciária), bem como se o crime documental tiver cessado sua lesividade. Claro que neste contexto a falsidade documental é o meio para a prática de um dos crimes acima relacionados. Logo, já teríamos, pelo principio da consunção, a absorção do crime meio pelo crime fim, mas a extinção criada na lei ao menos cessa a necessidade de provar se tratar de um crime meio. Todavia, se foi praticado com fim diverso da ocultação de bem ou ainda, se o agente no processo responder por outros crimes daqueles passíveis de extinção, elencados na lei, não terá o benefício da extinção da punibilidade. A Presidência da República vetou na lista dos crimes passiveis de extinção de punibilidade o previsto no caput e parágrafo único do art. 21 da Lei nº 7.492/1986 (Atribuir-se ou atribuir a terceiro, falsa identidade, para realização de operação de câmbio. Parágrafo único: Incorre na mesma pena quem, para o mesmo fim, sonega informação que devia prestar ou presta informação falsa) e o crime de descaminho, previsto no art. 334 do Código Penal.

Foi vetado ainda dispositivo (art. 5º, § 2º, I) que estendia referida extinção de punibilidade a todos aqueles que, agindo em interesse pessoal ou em benefício da pessoa jurídica, teriam participado, concorrido, permitido ou dado causa aos crimes previstos na lei. As razões do veto, com as quais evidentemente não concordamos, consubstanciam uma ampliação das hipóteses de extinção de punibilidade, alargando os efeitos penais da adesão ao Regime, gerando insegurança jurídica ao beneficiar terceiros. Dos bens não declarados posteriormente a 31 de dezembro de 2014 Denota-se que a adesão ao RERCT legaliza a situação daquele bem irregular até 31 de dezembro de 2014. E como fica a situação de bens adquiridos a partir de 2015? Sustentamos que, apesar de a Lei de Regularização não prever esta questão, deverá ser aplicada a estes casos, utilizando-se da analogia in bonam partem, ou seja, quando há hipótese não regulada por uma lei, se aplica uma lei semelhante, desde que benéfica ao agente. DO SIGILO DOS DADOS ENVIADOS À RECEITA FEDERAL O legislador se preocupou com o sigilo das informações dadas pelo contribuinte. Nesse sentido, sobre a divulgação ou publicidade das informações trazidas aos órgãos públicos a lei (§ 1º, do art. 7º) implicará efeito equivalente à quebra de sigilo fiscal, sujeitando o infrator às penas previstas na Lei Complementar nº 105/2001, no art. 325 do Código Penal (violação de sigilo funcional) e, em sendo funcionário público, ainda à pena de demissão. Da mesma forma é vedada à RFB a divulgação ou compartilhamento das informações prestadas pelos declarantes que aderirem ao RERCT a qualquer órgão público interveniente da adesão, como Conselho Monetário Nacional (§ 2º do art. 7º), União, estados e municípios. Pelo exposto, entendemos que não se justifica qualquer receio por parte do contribuinte em ter suas informações divulgadas a terceiros. Da exclusão do RERCT Eis mais dúvidas: e para aqueles casos de contribuintes que apresentaram as declarações únicas de regularização, mas por algum motivo não aderiram ao programa? Darão azo a procedimentos punitivos? Suas informações serão divulgadas a terceiros? Para estes casos a lei foi omissa, não se manifestou. Todavia, para aqueles que forem excluídos do RERCT a lei previu (§ 2º do art. 9º) que serão cobrados os valores equivalentes aos tributos, multas e juros, deduzindo o que já foi pago, sem prejuízo de penalidades cíveis, penais e administrativas. No entanto, previu que a instauração ou continuidade de procedimentos investigatórios quanto à origem dos ativos relacionados à regularização só poderão ocorrer se houver “evidência documental não relacionada à própria declaração prestada pelo contribuinte”.

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Dessa forma, passamos a sustentar para aquele que apresentou a declaração, mas não conseguiu aderir ao programa, a mesma garantia daquele expulso do RERCT, qual seja, que não tem contra si uma investigação relacionada à documentação por ele mesmo apresentada. Trata-se do princípio da miori ad minus (quem pode mais pode menos). Caso ocorra a exclusão do RERCT ou a simples não adesão fica o receio de o órgão público, impedido de se utilizar da Dercat, mas sabedor das irregularidades praticadas pelo declarante, buscar na fonte tais informações e, com isso, formar a materialidade delitiva. Sobre esta questão entendemos que, pela impossibilidade de divulgação ou publicidade das informações a qualquer órgão público, caso não respeitada esta garantia, teríamos uma prova ilícita, logo inutilizável. Tal preceito deverá igualmente ser aplicado àqueles casos em que o declarante, ao regularizar bens existentes na pessoa física ou na jurídica, diversa daquela que deu origem a aquisição dos bens, vir, posteriormente, a ter a pessoa jurídica responsável pelos recursos da aquisição investigada em razão de tais informações. Surge uma preocupação: e se o Poder Judiciário decidir pela inconstitucionalidade da lei depois de os contribuintes terem apresentado a Dercat? Neste caso, continuamos sustentando que a utilização da prova para dar início ou prosseguimento a qualquer investigação ou processo anularia este feito em razão da utilização de uma prova ilícita. Da continuidade delitiva e da prescrição Urge enfrentar a questão ligada à continuidade delitiva dos crimes relacionados a não declaração de bens. Caso uma pessoa opte por não aderir ao programa, continuando com a prática criminosa, por ser um crime permanente a prescrição da pretensão punitiva entre a data do fato e o recebimento da denúncia não será alcançada. Assim, quando de seu falecimento ou da transferência do bem a terceiro, caso o prazo para tal adesão já tenha se exaurido, no momento em que os herdeiros ou terceiros tomarem a posse do bem terão a obrigação de, no adequado momento, noticiá-los às autoridades públicas, pagando tributos diversos e maiores do que os determinados na lei em análise, além de terem a garantia da extinção de punibilidade apenas do crime tributário. Caso optem por não prestar tal informação, no momento da omissão serão

igualmente sujeitos ativos das mesmas condutas criminosas anteriormente praticadas pelo antigo proprietário do bem, que, em caso de morte alcançou sua extinção de punibilidade criminal. CONCLUSÕES Sustentamos que com o advento da Lei nº 13.254/2016, que possibilita a adesão ao programa de regularização de bens, com um curto prazo de validade, de 4 de abril até 31 de outubro de 2016, nós, advogados, temos a obrigação de orientar nossos clientes e a sociedade sobre seus benefícios e prejuízos. Foi este, aliás, o motivo que nos motivou a redigir este artigo. Com o crescimento e aplicação da informática nessa nova era digital e, consequentemente, com os cruzamentos de dados entre instituições financeiras, que a cada dia elevam seu nível de compliance, muitas vezes utilizando-se de programas de última geração que detectam movimentações suspeitas, somado ao combate a crimes internacionais, como terrorismo, tráfico de drogas, armas e de pessoas, as movimentações financeiras ilegais ou suspeitas serão a cada dia mais fiscalizadas. Já temos notícia de inúmeras instituições financeiras que passaram a interpelar clientes sobre a origem e movimentação de valores nelas depositados, aumentando a possibilidade de tais instituições exigirem que determinados valores sejam delas retirados caso não haja uma explicação quanto a sua origem. Acreditamos que findo o prazo para regularização no Brasil de bens mantidos no exterior, muitas instituições financeiras estrangeiras, pelos motivos acima apresentados, estarão tomando providências contra aqueles que não regularizarem seus bens perante o Fisco brasileiro. Ainda em consonância com essas mudanças estão sendo celebrados acordos internacionais possibilitando o acesso a informações como o Foreign Account Tax Compliance Act, mais conhecido como FATCA, em que Brasil e Estados Unidos trocarão informações de contas bancárias mantidas por brasileiros nos EUA e vice-versa. Trata-se da defesa de um bem jurídico maior, a “segurança pública mundial”, sobre outro bem jurídico de menor importância denominado “intimidade”. Por tudo o que acima foi exposto, opinamos firmemente pela adesão ao plano de regularização, exceto para os casos em que o contribuinte não preencha todas as condições impostas pela lei para tal regularização.

arquivo pessoal

NOTAS 1 DIAS DE SOUSA, Hamilton. Regime de Regularização de capitais tem aspectos polêmicos, Revista Consultor Jurídico. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-mar-21/regime-regularizacao-capitais-aspectos-polemicos. Acesso em: 24 mai. 2016. 2 Disponível em: http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/o-juiz-nao-legisla-ele-julga/. Acesso em: 25 mai. 2016.

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Fernando José da Costa é advogado criminalista, professor, mestre e doutor em direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em direito penal pela Sassari – Itália, autor de vários livros e sócio do escritório Fernando José da Costa Advogados

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PORTAL JURÍDICO

Moro e o “encontro fortuito de provas” Nixon, Dilma e as escutas telefônicas da Agência de Segurança Nacional dos EUA “O juiz Sérgio Moro mostrou, além do talento jurídico e segurança nas suas corajosas decisões, especialmente a mais audaciosa vista no “encontro fortuito de provas”, ser a “reencarnação” de um dos Três Príncipes de Serendip.”

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THALES TÁCITO PONTES LUZ DE PÁDUA CERQUEIRA

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PORTAL JURÍDICO

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o Direito, o “encontro fortuito de provas” ou “aberratio ictus na interceptação telefônica” é também conhecido pelo fenômeno chamado de “serendipidade”, consistente no “desvio de golpe” da escuta legal, ou seja, intercepta-se um telefone de um investigado e as ligações feitas a este ou pelo próprio suspeito apontam envolvimento de outros crimes, por pessoa com ou sem prerrogativa de foro. No último caso, o juiz de primeiro grau deve interromper a interceptação telefônica/telemática e encaminhar ao Tribunal constitucionalmente competente para investigação e julgamento, “caso o encontro fortuito encontre crime por alguém com foro, ou seja, o desvio na escuta não leva automaticamente ao deslocamento da competência mas tão somente quando houver crime de outrem com foro. Caberá ao Tribunal ainda analisar se julgará todos envolvidos no crime face a Súmula 704 do STF ou se apenas a pessoa com foro” (art. 80 do CPP – “por outro motivo relevante o juiz reputar conveniente a separação”). A expressão serendipidade vem da lenda oriental Os três príncipes de Serendip, viajantes que, ao longo do caminho, fazem descobertas sem ligação com seu objetivo original. Os Tribunais brasileiros admitem de forma majoritária, quase pacífica, o “encontro fortuito de provas como sendo prova lícita”, apesar do desvio da finalidade inicial, pois a Lei nº 9.296/1996, ao regulamentar o art. 5°, XII da CF/88, não vedou essa “prova derivada da escuta” (STJ, APn 510 e 690; HC 187.189, HC 189.735, HC 197.044, RHC 28.794, HC 144.137, HC 69.552, HC 189.735, HC 282.096, RHC 45.267 e RHC 41.316). O Supremo Tribunal Federal (STF), em face da convulsão nacional e jurídica, deve criar uma jurisprudência nova, pois a discussão em torno da Lei nº 9.296/9196, ao meu sentir, é estéril, pois é uma lei ordinária que apenas regulamenta o art. 5°, XII da CF/88, não podendo ser esquecido o princípio da proporcionalidade, onde outras normas constitucionais de mesmo valor não têm hierarquia, ou seja, sobre o fundamento da democracia (art. 1° da CF/88) – como “vedação material implícita ao poder constituinte derivado” – versus o direito individual à intimidade (relativizada pela interceptação telefônica legalmente feita pelo juiz natural, ainda que sob “encontro fortuito de provas”), sendo que nesta intimidade “vedação material explícita ao poder constituinte derivado”, deve a Suprema Corte aquilatar em primeiro lugar a harmonização das duas normas constitucionais e, não sendo possível, proporcionalmente optar pelo caminho da supremacia do interesse público, pois nenhum direito individual é absoluto, ou seja, não pode ser invocado como escudo para a prática de crimes ou contra a coletividade.  Enquanto o Brasil vai discutir pela Corte Excelsa se agiu Sérgio Moro dentro da lei (adotamos essa posição) ou de forma paralela, os EUA, em 1974, ou seja, há 42 anos atrás, consagrou no precedente ou report Nixon (US vs Nixon) que ninguém, absolutamente ninguém, em especial o mandatário-mor da República tem privilégio na intimidade de suas conversas telefônicas (e mais modernamente “telemáticas”). Em tempos modernos, num Direito Penal de “alta velocidade” pelo avanço do terrorismo e crimes financeiros

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sofisticados, uma lei de segurança nacional admite a interceptação telefônica intercontinental como forma de proteger os EUA e sua nação de atentados como o “11 de setembro”, ou seja, de Nixon para Dilma os EUA agiram com escutas, no último caso, noticiado pelo ex-consultor da Agência de Segurança Nacional (NSA), Edward Snowden, sendo que tanto em 2012/2013 (EUA/NSA) como em 2016 (Sérgio Moro-Justiça Federal), a presidenta não utilizou do método de segurança do going dark1, o que por si só legitima a interceptação por ausência de restrição e proteção específica para a Presidência da República. Concluímos, assim, que o remédio para o eventual desvio de finalidade de “assumir um Ministério para obstruir a Justiça em sua fase pré-processual” (o que deve ser analisado e provado pelo STF de forma profunda pelas escutas feitas, ou seja, o elemento subjetivo da ação, a teoria da finalidade2 do ato administrativo) é exatamente o desvio de finalidade da interceptação telefônica, qual seja, o encontro fortuito de provas ou a aberratio ictus no grampo legal. Ironia do destino é reclamar justamente daquilo que fortuitamente se encontrou pelo eventual desvio praticado. A polêmica trazida pelo Excelentíssimo juiz federal Moro de divulgar encontro fortuito de provas em investigações de crimes de “alta velocidade” e complexidade se tornam totalmente singelas se o STF solicitar, em cooperação internacional (art. 4º, VI e IX da CF/883) e pela busca da verdade real, o compartilhamento (ou prova emprestada) para a Justiça norte-americana da espionagem de comunicações da presidenta Dilma com seus principais assessores e de seus assessores, entre eles e com terceiros, mediante autorização da NSA, justificado pela convulsão social e análise de eventual crime de organização criminosa mencionada pelo Ministério Público bandeirante em sua denúncia contra o ex-presidente e demais investigados. A discussão neste caso, sim, ao meu sentir, seria verdadeiramente profunda no sentido da prova norte-americana ser ou não ilícita ou derivada da ilícita, ou um gigantesco passo em apurar sem temor eventual corrupção que devastará a classe política em geral. Diferente do que mencionou o ex-presidente da República, o STF tem coragem suficiente para isso, se entender lícita a cooperação dos EUA. De lição de todo este momento histórico e de toda investigação da “Lava Jato”, uma coisa é certa: precisamos acabar com o financiamento privado no Brasil (não adianta impedir empresas de doarem pois poderão doar por fora para “eleitores laranjas”4), assumir a responsabilidade pelo fracasso histórico de um sistema eleitoral que se corrompeu completamente, provocando a ruína de toda a nação, já que notícias de corrupção se alastram a cada dia em proporção geométrica, em várias legendas partidárias. Por outro lado, devemos compreender que a simples reforma de um sistema eleitoral corrompido, ainda que com a vinda da reforma política (financiamento público, lista fechada, fim da reeleição, unificação das eleições etc.) não gera nenhuma sociedade nova, apenas reanima o velho sistema que, cedo ou tarde, acabará sempre nos mesmos vícios.  É, necessário, assim, interpretar com mais rigor a Lei da Ficha Limpa (em vez de flexibilizá-la de forma tal que a torne irreconhecível) e convocar uma assembleia consti-

tuinte para impedir que os parlamentares que participam dela concorram nos próximos 20 anos, visando à perda de mandato por recall feito pelos eleitores, bem como a perda do mandato judicial a qualquer momento do mandato e sem decadência de 15 dias da diplomação, como ocorre na Justiça Eleitoral com a AIME (art. 14, § 10 da CF/88). Do contrário, com tanta corrupção noticiada e comprovada, com tamanha indignação e o Brasil dividido ao “meio”, corremos o risco sério de retrocesso a novo golpe militar ou guerra civil pelo desvio considerável de tesouros da nação. Isso porque o egoísmo ancestral, à semelhança de um câncer, prossegue minando todas as forças do Brasil, ameaçando sofrer uma metástase devastadora, que terminaria na exaustão das suas possibilidades e no retorno a uma dolorosa ditadura ou à submissão a países tão prepotentes quão impiedosos. Enquanto permanecem as resistências ao clima do dever e da ordem, do respeito ao Poder Judiciário por seu culto juiz Sérgio Moro e ao STF, sobreviverão os espoliadores, os ingratos, os maus que armazenam recursos em bancos estrangeiros, que fomentam a hiperinflação, enquanto a dor caminha pelas vielas do sofrimento, levando de roldão as multidões necessitadas. É preciso compreender, neste momento, a desenfreada manobra dos manipuladores da opinião pública e a daqueles que dilapidam os valores do Brasil, transferindo-os para os paraísos fiscais da ignomínia e da insensatez, porque será de duração efêmera esse hediondo crime contra a economia brasileira e os milhões de vidas.  Toda crise prenuncia uma mudança, inclusive moral. As crises significativas são antecessoras de mudanças do mesmo jaez. Essa é a grande contribuição da maior operação de corrupção do Brasil (“Lava Jato”), como ocorreu na Itália com a “Operação Mãos Limpas”. Os maus detentores do poder cairão, mesmo agindo na surdina e nas sombras, prejudicando a supremacia do interesse público, lutarão uns contra os outros. Cada qual com sua parcela de poder utilizarão de métodos para atingir aquele que julga de maior poder ou perigo.  Assistiremos o mal combatendo o mal (do ponto de vista de disputa pelo poder de forma desvirtuada), a

serviço do bem (mudança de paradigma em todas instituições). Uns inimigos dos outros, reconhecendo que o inimigo é aquele que perdeu o próprio rumo e projeta suas aflições, angústias e frustrações no outro, naquele de quem se torna adversário. A inimizade é fruto das paixões primárias. Após críticas ao STF, o decano e jurista reconhecido internacionalmente Celso de Mello retrucou: Esse insulto [...] traduz, no presente contexto da profunda crise moral que envolve os altos escalões da República, reação torpe e indigna, típica de mentes autocráticas e arrogantes que não conseguem esconder, até mesmo em razão do primarismo de seu gesto leviano e irresponsável, o temor pela prevalência do império da lei e o receio pela atuação firme, justa, impessoal e isenta de juízes livres e independentes [...]

Ainda sobre as paixões primárias, vale relembrar Roberto Jefferson dizendo a José Dirceu: “Vossa Excelência provoca em mim os instintos mais primitivos!”. A frase do político foi o embrião ao que hoje estamos presenciando chocados, uma profecia do que se materializaria logo à frente: uma guerra entre os detentores do poder, de todas instituições, lastreada nos instintos primitivos (paixões inferiores, primárias). Mais ainda vislumbraremos a queda dos governantes incapazes e protegidos por negociações partidárias, mencionadas em escutas, expondo-lhes os vícios e improbidades administrativas, em contas milionárias no exterior que não usufruirão.  Assim, os criminosos morrerão deixando o produto do roubo em contas secretas e em aplicações das quais jamais se utilizarão. O Brasil passará a próxima década apurando a corrupção que devastará a classe política em geral. Desta forma, o juiz Sérgio Moro mostrou, além do talento jurídico e segurança nas suas corajosas decisões, especialmente a mais audaciosa vista no “encontro fortuito de provas”, ser a “reencarnação” de um dos Três Príncipes de Serendip.

arquivo pessoal

NOTAS 1 A expressão “going dark”, tradução livre - “ficando no escuro” - é usada geralmente para se referir ao uso de criptografia em comunicações.  2 O desvio de finalidade do ato administrativo o torna nulo, por força do princípio constitucional da moralidade previsto no art. 37 da CF/88 3 Art. 4º da CF/88: A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: VI – defesa da paz; IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. 4 Recentemente, na Promotoria Eleitoral em que atuo, dois eleitores indignados compareceram para informar que nas eleições pretéritas foram usados seus nomes como doadores de campanha, dentro do limite legal de 10% dos seus vencimentos, dentro da isenção do Imposto de Renda, para dificultar o acesso ao dinheiro empregado. Porém, atestaram que não cederam veículo para campanha e tampouco valores em espécie, o que foi encaminhado ao Procurador Regional Eleitoral de MG em face do foro pela prerrogativa dos envolvidos.

Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira é Promotor de Justiça e Eleitoral em Minas Gerais, professor de Processo Penal e Direito Eleitoral, autor de obras de Direito Eleitoral pela Editora Saraiva e foi Vice-Diretor da Escola Judiciária Eleitoral do TSE.

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conjuntura

O Brasil está insolvente? “A análise sugere que um quadro de insolvência da dívida ainda é restrito ao cenário pessimista. Por outro lado, ainda que não haja insolvência clara nos cenários básico e otimista, não se pode descartar a possibilidade de piora na percepção dos investidores quanto ao risco de calote, caso o governo demonstre baixa capacidade e disposição para implementar o urgente ajuste das contas públicas.” „„ por

fábio klein e alessandra ribeiro

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Brasil é um País insolvente? Ou de outra forma: a dívida pública brasileira pode ser considerada insustentável? Ainda que as necessidades de financiamento do governo tenham sido cobertas de forma relativamen-

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te equilibrada e em condições de risco controladas nos últimos 10 anos, o fato é que, desde 2012, há uma queda contínua do resultado primário do governo central, que neste ano deve encerrar com o terceiro déficit primário consecutivo, desde o déficit inédito de 2014. A tendência

de intensificação do déficit primário, com poucas perspectivas de melhora no curto e médio prazos, alimenta os riscos e receios dos investidores quanto à sustentabilidade da dívida. Uma análise baseada na trajetória da dívida em três diferentes cenários para os próximos 10 anos elaborados pela Tendências (básico, otimista e pessimista) permite concluir que não há, a priori, risco de calote nos cenários básico e otimista, mas há risco de insolvência no cenário pessimista. Um dos principais fatores que condicionam o risco de insolvência é a trajetória dos resultados primários futuros para diferentes cenários econômicos. Quanto pior for a perspectiva de desempenho fiscal nos próximos anos, maiores serão os riscos e receios quanto à sustentabilidade da dívida. Formalmente, a dívida pública de um país é considerada sustentável se o valor presente de todos os superávits primários futuros, descontados por taxas variadas de juros, for igual ou maior que o valor atual da dívida pública. Porém, se essa soma for inferior ao estoque presente da dívida, então pode-se dizer que a dívida é insustentável. Neste conceito de sustentabilidade da dívida, pressupõese que o governo honrará completamente suas obrigações financeiras em algum momento futuro. Há pelo menos três considerações importantes para efetivação desse cálculo. Em primeiro lugar, o resultado primário é, em grande medida, uma variável exógena e discricionária, que envolve escolhas do governo quanto a condução da política fiscal. Assim, qualquer inferência acerca dos resultados primários futuros requer a formação de expectativas sobre a capacidade e vontade dos governantes de produzi-los. Em segundo lugar, sendo o futuro incerto, há várias taxas de retorno (desconto) possíveis, refletindo diferentes estados e riscos da economia no futuro. Em terceiro, apesar de o cálculo considerar o fluxo completo de primários futuros, não se pode assumir um tempo infinito. A avaliação sobre a sustentabilidade da dívida deve ser sempre feita sobre um determinado horizonte de longo prazo. Para contornarmos essas limitações, fizemos o cálculo de sustentabilidade da dívida a partir da construção de três cenários distintos para os próximos 10 anos. Além disso, exploramos o comportamento da relação dívida/PIB como indicador de sustentabilidade ao longo do tempo, uma vez que a estabilidade da relação dívida/PIB é uma condição suficiente para garantir a sustentabilidade da dívida pública num determinado horizonte de tempo. No nosso cenário básico, a soma dos valores presentes do resultado primário para os próximos 10 anos cobriria 24% do saldo atual da dívida pública federal (DPF), o que exigirá 41 anos para sua completa amortização. Nesse cenário, ocorre ligeira estabilização da relação dívida bruta /PIB a partir de 2019, e leve queda a partir de 2023, fechando 2025 em 81,4% do PIB (ver Figura). Já no cenário otimista o somatório do valor presente do resultado

primário cobriria 30% do saldo atual da DPF, que levaria 34 anos para ser amortizado por completo. Nesse cenário, ocorre queda da dívida a partir de 2019, fechando 2025 em 70,2% do PIB. Os cenários básico e otimista pressupõem a implementação, em menor ou maior grau, de pontos da agenda de ajuste fiscal a partir do próximo ano. Caso o governo continue a demonstrar dificuldades em implementar o ajuste, há o risco de piora das expectativas dos agentes, com reflexos nos preços (prêmios) dos títulos e no custo da dívida, o que poderia desencadear movimentos adversos no mercado de títulos, dificultando a rolagem dos títulos vincendos. O maior risco estaria provavelmente concentrado no comportamento dos não residentes e de instituições financeiras, que juntos detêm atualmente 40% da dívida pública mobiliária federal interna (DPMFi) e cujas carteiras estão mais da metade concentradas no curto e médio prazos (até 3 anos). Por fim, no cenário pessimista, a soma do valor presente do resultado primário cobriria apenas 15% do saldo atual da DPF, o que levaria 68 anos para sua amortização completa. Nesse cenário, a dívida mantém trajetória ascendente nos próximos 10 anos, fechando 2025 na casa de 95% do PIB, caracterizando uma situação de insolvência. Neste caso, o calote provavelmente se daria de modo implícito, por exemplo, via monetização da dívida, o que produziria redução do valor real da dívida em função do aumento não esperado da inflação. Para isso, basta que a inflação supere o custo médio anual da dívida. Atualmente, o custo da dívida interna (95% do estoque total) gira em torno de 14,4% ao ano. A análise sugere que um quadro de insolvência da dívida ainda é restrito ao cenário pessimista. Por outro lado, ainda que não haja insolvência clara nos cenários básico e otimista, não se pode descartar a possibilidade de piora na percepção dos investidores quanto ao risco de calote, caso o governo demonstre baixa capacidade e disposição para implementar o urgente ajuste das contas públicas. Figura: Dívida Bruta (% PIB)

Fonte: Banco Central (Projeção Tendências)

Fabio Klein é analista de contas públicas da Tendências Consultoria. Alessandra Ribeiro é economista e diretora da Tendências Consultoria.

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ENFOQUE

Da democracia à partitocracia: reflexos no crescimento da corrupção “A intensidade com que a corrupção tem penetrado nos partidos políticos e, por via reflexa, nas estruturas estatais de poder, foi bem retratada no “barômetro global da corrupção”, um dos índices divulgados pela Transparência Internacional, organização não governamental de origem germânica que divulga quadros analíticos a respeito do estágio de desenvolvimento de corrupção nos distintos quadrantes do mundo.” „„ por

EMERSON GARCIA

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democracia, em sua expressão mais simples, faz do povo a origem e o fim do poder estatal. Como o povo “titulariza” o poder, nada mais natural que o exerça diretamente ou por intermédio dos representantes que venha a escolher. O governo assim formado deve direcionar suas ações ao bem comum, que há de ser contextualizado na coletividade que representa, não em outra qualquer. Especificamente em relação ao processo de formação do governo, constata-se que o crescimento populacional em muito dificulta a operacionalização da democracia direta, o que confere uma posição de primazia à democracia representativa. A democracia representativa torna-se operativa com a realização de eleições. Nesse momento, os interessados em exercer o mandato eletivo devem submeter o seu nome àqueles que possuem capacidade eleitoral ativa, os cidadãos. Nesse processo, constatou-se que a ideologia prestigiada assume maior relevância que a individualidade de cada ser humano, bem como que a complexidade da vida contemporânea exige, tanto quanto possível, a concentração de referenciais ideológicos, o que colaborou para o surgimento dos partidos políticos. Os partidos políticos podem ser vistos como verdadeiras organizações interpessoais de natureza ideológica. Aglutinam indivíduos que comungam de valores políticos e possuem uma estrutura essencialmente dialética: o debate justifica a sua existência e direciona a sua atuação. Não se compatibilizam com a imposição ou a mansa resignação, isso sob pena de se tornarem meros instrumentos de legitimação do arbítrio. Como se constata pela etimologia da expressão, cada partido consubstancia uma parte das ideias vigentes no ambiente sociopolítico, o que, ao menos conceitualmente, permite a construção de sua identidade. Os partidos possibilitam a organização do pensamento político e o evolver da própria democracia, em muito contribuindo para a vinculação dos governantes ao alicerce ideológico que tenha propiciado a sua ascensão ao poder. Como afirmou James Bryce,1 “a associação e a organização dos partidos são, para os órgãos governamentais, o

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mesmo que os nervos motores para os músculos, os tendões, os ossos para o corpo humano. Eles transmitem a força motriz, determinam a direção para a qual os órgãos devem se dirigir”. Os programas partidários permitem que consideráveis parcelas da população permaneçam unidas em prol de objetivos comuns, fazendo com que o voto assuma colorido ideológico e não puramente pessoal, direcionado, pura e simplesmente, pela simpatia e persuasão do candidato preferido. A preeminência da vontade da maioria – fórmula que serve de norte a praticamente todos os procedimentos eletivos – é um verdadeiro postulado democrático. Não significa, por outro lado, que possa ser aniquilada ou simplesmente desconsiderada a participação das minorias. Maiorias e minorias, de modo dinâmico e volátil, têm decisiva participação na formação do poder e na preservação do ideal democrático. Mantêm entre si uma relação dialética que assegura o contínuo aperfeiçoamento do sistema, daí a impossibilidade de as maiorias ocasionais adotarem medidas, fáticas ou jurídicas, que inviabilizem a organização de seus opositores e assegurem a sua perpetuação no poder. A democracia se encontra intimamente interligada ao pluralismo, referencial de respeito mútuo, de livre debate de ideias e opiniões. O fato de o povo não se conectar diretamente aos seus representantes tem potencializado a influência dos partidos políticos na formação e na condução do governo. Essa influência, em não poucos aspectos, transmudou-se em dominação. Enquanto a expressão “partido político” indica o conjunto de pessoas, dotadas de semelhanças ideológicas, que se reúnem para conquistar e manter o poder, o designativo “partitocracia” (Parteienstaat para os alemães, Party Government para os ingleses, Stato di Partiti ou Partitocrazia para os italianos) significa, em sentido lato, “o governo dos partidos.” 2 As decisões já não são mais tomadas pelos parlamentares, mas, sim, pelos dirigentes dos seus partidos, cuja influência é diretamente proporcional à sua falta de visibilidade para a opinião pública. As instituições, ademais, deixam de ser o epicentro estrutural do poder, cedendo lugar aos partidos políticos,

que dominam a cena política e absorvem as instituições. A tradicional divisão de poderes entre Executivo e Legislativo, por exemplo, cede lugar à tensão dialética entre “bloco de governo” e “bloco de oposição”, o que importa em um redimensionamento ou, melhor dizendo, arrefecimento dos mecanismos de checks and balances sempre que maiorias ocasionais com idêntica ideologia partidária dominem a cena política. Os partidos, assim, deixam de ser canais eleitorais para tornarem-se titulares do próprio mandato político. Esse estado de coisas, longe de ser exclusivo do sistema parlamentar, em que as coalizões partidárias são necessárias para a estabilidade política,3 tornou-se endêmico nas democracias contemporâneas, isso pela singela razão de os partidos políticos serem o principal caminho de acesso ao poder. Atrelada à crescente influência dos partidos políticos no processo decisório das estruturas estatais de poder, tem-se a suscetibilidade dessas associações à corrupção. A ideologia é degenerada por completo e as cifras passam a direcionar as decisões políticas, o que se torna particularmente grave quando nos lembramos da pouca visibilidade dos dirigentes partidários. A intensidade com que a corrupção tem penetrado nos partidos políticos e, por via reflexa, nas estruturas estatais de poder, foi bem retratada no “barômetro global da corrupção”, um dos índices divulgados pela Transparência Internacional, organização não governamental de origem germânica que divulga quadros analíticos a respeito do estágio de desenvolvimento de corrupção nos distintos quadrantes do mundo. Como mencionamos em obra específica,4 o índice relativo a 2005, o primeiro a ser divulgado, revelou que o impacto da corrupção sobre a vida pessoal e familiar é mais acentuado nos lugares mais pobres. Conquanto possa soar paradoxal, um percentual relativamente pequeno de famílias em países com alta circulação de riquezas admitiu ter pagado subornos nos últimos 12 meses, enquanto uma proporção relativamente alta de fa-

mílias de um grupo composto de países da Europa Oriental, África e América Latina admitiu tê-lo feito. Tomando como parâmetro a renda per capita, o efeito econômico do suborno difere de um país para outro, podendo absorver ou não parte considerável do orçamento familiar. Quanto aos setores mais corruptos, as instituições políticas ocupam o ápice da escala em 45 dos 65 países alcançados pela pesquisa5. O primeiro lugar da lista é ocupado pelos partidos políticos. No barômetro global relativo ao período 2010/2011 foram consideradas, como instituições mais afetadas pela corrupção, nessa ordem, os partidos políticos, a polícia, o Judiciário, o Legislativo, o setor privado, os servidores públicos, o sistema de educação, a mídia e os corpos religiosos. Na República Federativa do Brasil, a primazia foi dos partidos políticos. A permeabilidade dos partidos políticos à corrupção configura um fator de análise que parece passar despercebido à nossa incipiente e, por vezes, insipiente democracia. Ainda não nos demos conta de que o envolvimento da cúpula de um partido político em atos de corrupção configura indicador seguro de que igual prática será adotada pelos governantes que a ele estejam vinculados. Apesar disso, ainda acreditamos, ingenuamente, que os candidatos são impermeáveis. Esse quadro tem trazido muitos dissabores ao povo brasileiro, a começar pela manutenção no poder de partidos políticos cuja cúpula já foi, inclusive, condenada pela prática de atos de corrupção. Apesar dessa constatação, observava Rui Barbosa6 que “[d]eplorar os partidos, que são positivamente um bem e uma necessidade congénita à sociedade humana, tanto importa como ‘reprovar a névoa e o vento”, ou as forças que equilibram o mundo. O que deprava os partidos são as considerações pessoais, e destas a responsabilidade pertence aos que não sabem dirigi-los, senão cultivando-as; porque lhes falece capacidade, ou sinceridade, para dominarem pelas ideias, e ficam reduzidos a restribar-se nos indivíduos que as não têm, governando com a inveja, a mediocridade e a ronha”.

arquivo pessoal

NOTAS 1 La République Américaine, Tome III. Le Système de Parti – L’Opinion Publique, trad. P. Lestang, Paris: M. Giard & É. Brière, 1901, p. 1. 2 DE LA MORA, Gonzalo Fernandez. La Partitocracia, Madrid: Institutos de Estudios Políticos, 1977, p. 149. 3 Cf. SPÄTE, Ludwig. Parlamentarismus und Parteienstaat in Deutschland: Konflict zwichen Parteienstaat und Parlamentarismus. Deutschland: Grin Verlag, 2008, p. 2 e ss.. Sobre o papel dos sindicatos na partitocracia, vide: PELINKA, Anton. Gewerkschaften im Parteienstaat. Berlim: Duncker & Humblot, 1980. 4 Veja a primeira parte da obra “Improbidade Administrativa”, 8. ed. 2. tir. São Paulo: Editora Saraiva, 2015, p. 61 e ss.. 5 Observada uma escala de 1 (pouco corrupto) a 5 (muito corrupto), são os seguintes os setores e instituições mais afetados pela corrupção: a) partidos políticos – 4,0; b) parlamento – 3,7; c) polícia – 3,6; d) sistema legal/Judiciário – 3,5; e) negócios/setor privado – 3,4; f ) tributação – 3,4; g) alfândega – 3,3; h) mídia – 3,2; i) serviços médicos – 3,2; j) concessionárias de serviços públicos – 3,0; k) sistema educacional – 3,0; l) militares – 2,9; m) registro e autorização de atividades – 2,9; n) organizações não governamentais – 2,8; e o) organismos religiosos – 2,6. Realizando-se uma divisão por região, o resultado é o seguinte: a) Ásia – partidos políticos (4,2), parlamentos (3,9) e polícia (3,9); b) África – polícia (4,4), partidos políticos (4,2) e aduana (4,0); c) Europa Ocidental – partidos políticos (3,7), parlamentos (3,3) e iniciativa privada (3,3); d) Europa Central e Oriental – polícia (4,0), partidos políticos (4,0) e parlamentos (3,9); e) América Latina – partidos políticos (4,5), parlamentos (4,4) e polícia (4,3). 6 Teoria Política. Seleção, coordenação e despacho de Homero Pires. São Paulo: W. M. Jackson Inc. Editores, 1964, p. 69.

Emerson Garcia é Doutor e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Education Law and Policy pela European Association for Education Law and Policy (Antuérpia – Bélgica) e em Ciências Políticas e Internacionais pela Universidade de Lisboa. Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Consultor Jurídico da Procuradoria-Geral de Justiça e Diretor da Revista de Direito. Consultor Jurídico da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP). Membro da American Society of International Law e da International Association of Prosecutors (Haia – Holanda). Membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).

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CONTEXTO

A Receita Federal do Brasil e o pretenso fim do sigilo bancário

“Não se pretende negar, aqui, que o Estado deva ter o direito de obter informações bancárias dos contribuintes. Mas, como a quebra automática é nefasta e não remediável, que leva às devassas da vida privada e da intimidade das pessoas, o que se pretende é simplesmente alertar que tal medida deve ser tomada com muita parcimônia e sempre sob o crivo do Poder Judiciário, mediante pedido justificado, como já exaustivamente decidido pelo STF.”

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MARCELO GODKE VEIGA e ANA PAULA RODRIGUES

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egundo Max Weber, o Estado é o detentor do legítimo monopólio do uso da força. Como corolário desse poder o Estado pode, inclusive, lançar mão da tributação de seus súditos. Hoje, não existe qualquer dúvida sobre a importância de tal poder, que permite o financiamento das atividades estatais. A cobrança de tributos, entretanto, mesmo que com base no monopólio da força exercido pelo Estado, deve seguir procedimentos estritamente previstos em lei, e a lei deve obedecer ao ordenamento constitucional pátrio. Isso assegura ao contribuinte, por exemplo, que seus bens não sejam confiscados e que suas liberdades individuais e sua intimidade sejam devidamente preservados. Em outras palavras, o monopólio do uso da força não representa dizer que o Estado pode fazer aquilo que bem entender, mas tão somente aquilo que a lei permitir. Infelizmente, de tempos em tempos, o Estado se esquece de que existe para servir a seus súditos (e não o contrário) e os trata de maneira abusiva, ilegal e até mesmo inconstitucional. O sigilo bancário é objeto de proteção dada pela lei, pela Constituição Federal e pela jurisprudência emanada, principalmente do Supremo Tribunal Federal (STF). Apesar de a Lei Complementar n° 105, de 10 de janeiro de 2001 (LC n° 105/01), ter dado ao fisco o poder de determinar a quebra do sigilo bancário em casos específicos e devidamente fundamentados, o STF vem reiteradamente decidindo que, com base na proteção dada à intimidade e às informações dos indivíduos (incisos X e XII do artigo 5º da Constituição Federal), cabe somente ao Poder Judiciário determinar tal quebra. Apesar de o entendimento do STF estar consolidado neste sentido, a Receita Federal do Brasil (RFB), de tempos em tempos, determina a quebra do sigilo bancário de seus contribuintes de maneira que claramente se choca com a jurisprudência emanada da Suprema Corte. O sigilo bancário certamente não é absoluto, mas é protegido e somente pode ser quebrado mediante determinação judicial, não de autoridade fiscal (mesmo em processo administrativo fundamentadamente instaurado). Recentemente, no entanto, a RFB foi muito além de determinar a quebra do sigilo bancário de alguns contribuintes, o que já seria ilegal por si só. Com efeito, por meio da Instrução Normativa RFB nº 1.571, de 2 de julho de 2015 (IN n° 1.571/15), determinou, em uma única “canetada”, a quebra do sigilo bancário de todos os contribuintes, independentemente de qualquer processo instaurado ou ordem judicial, sob a justificativa de que deverá viabilizar o cumprimento do “Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América para Melhoria da Ob-

servância Tributária Internacional e Implementação do FATCA”,  conforme previsto no Decreto nº 8.506, de 24 de agosto de 2015 (Decreto n° 8.506/15), que regula a troca de informações bancárias de determinados contribuintes dos dois países. Assim, sob a pretensa necessidade de dar cumprimento ao Decreto n° 8.506/2015, a RFB quer simplesmente revogar todas as normas legais e constitucionais, ignorando a jurisprudência consolidada acerca da proteção do sigilo bancário dos contribuintes e o bom senso. Inclusive, o faz quase sem restrições, já que abarca praticamente todos os tipos de produtos ou serviços financeiros, os quais justamente são protegidos pela LC n° 105/2001, afinal, de acordo com a IN n° 1.571/2015, o conceito de “conta” deve ser entendido de forma ampla (“conta financeira”, “conta de depósito”, “conta de custódia”), não sendo restrito apenas às contas de depósito em instituições bancárias, propriamente ditas. Apesar de o Decreto n° 8.506/2015 supostamente embasar (também com afronta à Constituição Federal) o envio aos Estados Unidos, pelas autoridades brasileiras, de informações bancárias de certos contribuintes, a IN n° 1.571/2015 vai muito além e determina a quebra ilegal do sigilo bancário de todos os contribuintes que, de alguma forma, utilizem o sistema financeiro nacional, independente da nacionalidade ou país de residência. O que se percebe, na verdade, é a nítida tentativa de destruição do Estado de Direito em que deveríamos viver. Deixou de existir qualquer preocupação com as necessidades dos jurisdicionados e da proteção que o próprio Estado deveria dar. O Estado, hoje, é verdadeiro “fim em si mesmo” e não mero instrumento de proteger seus súditos. Liberdades individuais e a privacidade deveriam ser tratadas como direitos de primeira importância, até mesmo por serem inseridos como cláusula pétrea na Constituição Federal, mas infelizmente são diuturnamente vilipendiados. Não se pretende negar, aqui, que o Estado deva ter o direito de obter informações bancárias dos contribuintes. Mas, como a quebra automática é nefasta e não remediável, que leva às devassas da vida privada e da intimidade das pessoas, o que se pretende é simplesmente alertar que tal medida deve ser tomada com muita parcimônia e sempre sob o crivo do Poder Judiciário, mediante pedido justificado, como já exaustivamente decidido pelo STF. As normas contidas na IN n° 1.571/2015 não se coadunam ao Estado de Direito e à Constituição Federal, que justamente visam a impedir que o Estado lance mão de maneira desmedida do monopólio do uso da força descrito por Max Weber. O STF deve se atentar a isso e colocar fim a tal desmando.

Marcelo Godke Veiga e Ana Paula Rodrigues são, respectivamente, sócio e associada de Godke Silva & Rocha Advogados.

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DIREITO EMPRESARIAL

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A destinação do lucro nas sociedades anônimas “A companhia foi constituída pelos acionistas para o exercício de uma atividade econômica, visando especialmente ao lucro. É natural, portanto, que os acionistas sejam os destinatários por excelência dos frutos de seu investimento.”

„„ por

NATÁLIA VILLAS BÔAS ZANELATTO

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DIVULGAÇÃO

tema sob enfoque adquire especial relevância nesta época do ano, em que a maioria das companhias convoca suas assembleias gerais ordinárias para deliberar sobre a destinação do lucro líquido do exercício. Trata-se do momento de decidir se os lucros serão distribuídos a título de dividendos, a fim de satisfazer o interesse principal dos acionistas que investiram na empresa, ou se serão reaplicados na atividade econômica, de forma a permitir a sua continuidade. Vê-se aflorar em algumas companhias, portanto, o conflito de interesses entre os potenciais destinatários do lucro social. Neste cenário, destaca-se a regra de ouro das companhias, literalmente, já que foi criada para estimular o investimento na livre iniciativa: o lucro do exercício deve ser integralmente distribuído aos acionistas. Essa norma comporta exceções, mas é importante tê-la em mente, de modo a evitar desvios de interpretação das disposições legais e estatutárias.

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arquivo pessoal

A companhia foi constituída pelos acionistas para o exercício de uma atividade econômica, visando especialmente ao lucro. É natural, portanto, que os acionistas sejam os destinatários por excelência dos frutos de seu investimento. Além dessa disposição, há outra que atribui aos acionistas o poder de deliberar sobre a destinação do lucro. Estes, destinatários por regra do resultado positivo do exercício, poderão renunciar à parte ou à totalidade deste em favor da companhia. No entanto, as situações que autorizam a não distribuição do lucro aos acionistas são limitadas e reguladas por lei (numerus clausus), de forma a evitar desvirtuamento da companhia. De olho nessas premissas, enumeram-se as exceções à distribuição do lucro: Reserva legal: a despeito da companhia ter por fim a geração de lucro aos acionistas, não é esta a sua única função. A sociedade como um todo se beneficia do exercício da sua atividade econômica e existência – empregados, Fisco, fornecedores, clientes/consumidores, instituições financeiras, entre outros. É nesse contexto que se insere a reserva legal, instituída pela Lei das Sociedades Anônimas para garantir a integridade do capital social, isto é, que ele seja retido na companhia e efetivamente represente medida da solvabilidade desta. Assim, a lei obriga os acionistas a reaplicarem 5% do lucro líquido do exercício na constituição da referida reserva, que não excederá 20% do capital social.        Reserva estatutária: os acionistas podem instituir no Estatuto Social reservas de lucros, desde que sejam indicadas, de modo preciso e completo, a sua finalidade, a parcela dos lucros anuais que serão destinados à sua constituição e o limite máximo da reserva. Reserva para contingências: a distribuição de dividendos não deve ser feita de forma irresponsável, ignorando situações que implicarão perda provável da companhia em exercício social futuro. Assim, a administração poderá propor a constituição de reserva para contingências e indicar a causa de uma perda. Uma vez superadas as razões que tenham justificado a sua constituição, a reserva deverá ser distribuída aos acionistas. Reserva de incentivos fiscais: a lei autoriza que a parcela do lucro líquido decorrente de doações ou subvenções governamentais para investimentos seja destinada à reserva de incentivos fiscais. Portanto, está excluída da base de cálculo do dividendo obrigatório, conforme orientação dos órgãos da administração. Retenção de lucros: os acionistas podem reter parcela do lucro líquido do exercício prevista em orçamento de capital por ela previamente aprovado. O orçamento

apresentado pela administração deve conter a justificativa da retenção de lucros e poderá ter a duração de até cinco anos, exceto se houver projeto de investimento da companhia com maior duração. Reserva de lucros a realizar: trata-se de reserva a ser constituída quando a empresa não possuir situação financeira que suporte o pagamento integral dos dividendos obrigatórios. Ou seja, quando houver lucro contábil, porém não houver previsão de recebimento dos valores em espécie no curto prazo. Tem-se uma reserva cujos lucros, quando realizados, devem ser destinados ao pagamento do dividendo mínimo obrigatório. As reservas e retenções, além das regras acima estabelecidas, deverão atender a outros critérios para constituição. A reserva estatutária e as retenções, por exemplo, não poderão ser criadas em prejuízo da distribuição do dividendo mínimo obrigatório. Além disso, o saldo das reservas de lucros não poderá ultrapassar o valor do capital social, exceto as reservas para contingências, de incentivos fiscais e de lucros a realizar. Caso atingido o limite, os lucros deverão ser integralizados em aumento de capital social ou distribuídos. Apesar de ter autorizado a criação de reservas, observase na lei o equilíbrio entre os interesses dos acionistas no lucro e o da companhia na sua solvência e continuidade. Cabe, ainda, um comentário acerca da proteção conferida ao acionista minoritário no que diz respeito ao pagamento dos seus dividendos, que consiste no dividendo mínimo obrigatório. Os acionistas deliberam sobre a destinação do lucro conforme os quóruns de deliberação dispostos em lei. No entanto, a legislação estabelece que os acionistas minoritários não podem estar sujeitos ao arbítrio da maioria ou dos órgãos da administração. Assim, caso não haja previsão estatutária, os acionistas farão jus ao dividendo mínimo obrigatório de metade do lucro líquido do exercício. Por outro lado, se o estatuto social posicionar-se sobre o tema, não poderá fixar valor inferior a 25% do lucro líquido. Este apenas poderá ser distribuído em montante inferior, caso a totalidade dos acionistas concordar ou se os órgãos da administração informarem ser incompatível com a situação financeira da companhia. No entanto, os lucros que deixarem de ser distribuídos serão registrados como reserva especial e deverão ser pagos como dividendos assim que a situação financeira da companhia o permitir. Trata-se de delicado balanceamento entre os direitos de todas as partes que integram ou são afetadas pela existência da companhia. Apesar de ter sido detalhada neste tema, é necessário interpretar a lei com bom senso e tendo em vista o atendimento aos interesses nela baseados.

Natália Villas Bôas Zanelatto é advogada, graduada em Direito pela UFPR e especializada em Direito Empresarial Internacional pela Universidade Panthéon-Assas (Paris II). 

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DOUTRINA DIVULGAÇÃO

A Fraude Contra Credores conceituada pelo Código Civil Brasileiro e pelos Códigos de Processo Civil de 1973 e de 2015 “Quando é constatada a fraude contra credores ou fraude à execução por parte do devedor, o procedimento para a sua coibição e sanção legal visará proteger o direito do credor de ter o seu crédito adimplido, para que, assim, possam ser restituídas a boa – fé nas relações negociais, o equilíbrio nas relações contratuais e a manutenção da ordem financeira e econômica, estipulados e resguardados constitucionalmente no bojo dos arts. 170 e 192, da CF/88.” „„ por

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FERNANDA SANTOS

revista JURÍDICA consulex - ano xX - nº 464 - 15 DE MAIO/2016

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Código Civil Brasileiro (CCB), instituído pela Lei nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002, colocou no rol dos defeitos do negócio jurídico a fraude contra credores, não como um vício do consentimento, mas como um vício social, uma vez que não conduzirá a um descompasso entre o íntimo querer do agente e a sua declaração. A vontade manifestada corresponde exatamente ao seu desejo, mas é exteriorizada com a intenção de prejudicar terceiros, os credores, e não se pode deixar de ressaltar que, além de a fraude constituir um ato ilícito é um abuso, geradora de diversos impactos nas esferas negociais, sociais, jurídicas, econômicas, financeiras e na boa ordem e paz social implementadas em nossa sociedade. A regulamentação jurídica em relação à fraude contra credores assentou-se no princípio do direito das obrigações, da parte geral do Código Civil Brasileiro, segundo o qual o patrimônio do devedor deverá responder por suas obrigações. Tendo em conta que o patrimônio do devedor responderá por suas dívidas, poderá se concluir que, no caso de o devedor desfalcar o seu patrimônio a ponto de ser suplantado por seu passivo, o devedor se tornará insolvente e, de certo modo, estará dispondo de valores que não mais lhe pertencem, pois tais valores se encontrariam vinculados ao resgate de seus débitos, por parte do credor. Ainda se o devedor insolvente aliená-los para terceiro de boa-fé, ou em conluio fraudulento, o credor poderá invalidar o negócio jurídico ora realizado, tornando-o anulável em todos os seus efeitos jurídicos. Os elementos constitutivos da fraude contra credores são caracterizados como objetivo (eventus damni), ou seja, a própria insolvência, que constitui o ato prejudicial ao credor, ou seja, o prejuízo decorrente da insolvência. O autor (credor) da ação pauliana ou revocatória a ser ajuizada perante o Poder Judiciário tem, assim, o ônus de provar, nas transmissões onerosas, o eventus damni e o consilium fraudis entre o réu (devedor) e o terceiro em conjunto ou em separado, sendo o subjetivo (consilium fraudis) nada mais que a má-fé do devedor, com a plena consciência de prejudicar terceiros. Ao tratar do problema da fraude contra credores o legislador teve de optar entre proteger o interesse dos credores ou o do adquirente ou terceiro de boa-fé. Nesse caso, o legislador preferiu proteger o interesse do credor. Se o terceiro de boa-fé ignorava a insolvência do alienante e nem tinha motivos para conhecê-la, o bem será conservado não se anulando o negócio. Desse modo, o credor somente logrará invalidar a alienação se provar a má-fé do terceiro adquirente, isto é, a ciência deste da situação de insolvência do alienante. Este é o elemento subjetivo da fraude: o consilium fraudis, ou conluio fraudulento. Não se exigirá no caso concreto, no entanto, que o adquirente esteja mancomunado ou conluiado com o alienante para lesar os credores deste. Bastará a prova da ciência da sua situação de insolvência para que seja comprovada a fraude contra credores, conforme previsão dos arts. 158 a 165 do Código Civil. O art. 158 do Código Civil determina que poderão ser anulados: Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou

por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos. § 1º Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente. § 2º Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles.

Já o art. 159 do Código Civil presumiu a má-fé do adquirente na seguinte hipótese: Art. 159. Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante.

O princípio da responsabilidade patrimonial, previsto no art. 957 do novo Código Civil, nesses termos está assentado que: Art. 957. Não havendo título legal à preferência, terão os credores igual direito sobre os bens do devedor comum.

A fraude contra credores ou fraude pauliana, nas palavras de Silvio Salvo Venosa, é considerada também um defeito ou um vício social do negócio jurídico e, neste caso, se tornará um negócio anulável, segundo leciona Carlos Roberto Gonçalves, em sua obra “Direito Civil – Parte Geral” (v. I, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 98): [...] não conduzem a um descompasso entre o íntimo querer do agente e a sua declaração. A vontade manifestada corresponde exatamente ao seu desejo. Mas é exteriorizada com a intenção de prejudicar terceiros ou de fraudar a lei.

Sobre a fraude contra credores assim entende Roberto Senise Lisboa, no livro de sua autoria intitulado “Direito civil de A a Z” (São Paulo: Manole, 2008, p. 120-121), ao ensinar que: Há fraude contra credores na realização de ato ou negócio jurídico que acarreta a redução patrimonial do devedor, tornando-o insolvente, obstando, assim o pagamento dos credores. [...] Em determinadas situações a lei estabelece a presunção de fraude, hipótese na qual bastará o credor interessado provar o fato que entende fraudulento, cabendo o devedor a prova de não ter havido fraude.

O patrimônio do devedor na leitura da doutrina processualista civil brasileira, tanto no Código de Processo Civil de 1973 como também no Novo Código de Processo Civil (NCPC/ 2015) visaram constituir a garantia geral dos credores. Se o devedor desfalca, maliciosa e substancialmente o credor, a ponto de não garantir mais o pagamento de todas as dívidas, tornando-se insolvente, tendo o seu passivo superado o ativo, estará configurada a fraude contra credor, caso não exista ação a ser ajuizada perante o Poder Judiciário. Já se estiver ajuizada a ação em andamento, para que tal fraude seja coibida, se configurará a fraude à execução, segundo os precisos termos legais do caderno processual civil brasileiro.

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DOUTRINA

Esta modalidade nociva só se caracterizará se o devedor já for insolvente ou tornar-se insolvente em razão do desfalque patrimonial promovido, em detrimento do credor ou de seus credores. A fraude contra credores é, portanto, todo ato suscetível de diminuir ou onerar o patrimônio, reduzindo ou eliminando a garantia que este representa para pagamento de dívidas, praticado por devedor insolvente ou por ele reduzido à insolvência, conforme quesitos da doutrina civilista e outros relevantes das doutrinas processuais civiis brasileira e internacional. Antes das reformas implementadas pela Lei nº 11.232/2005, tanto a execução de título judicial quanto a de título extrajudicial necessitavam sempre de um processo autônomo, em conjunto aos autos principais. Com as alterações implementadas pela referida lei apenas a segunda modalidade de execução continuou implicando a constituição de um novo processo (com as ressalvas legais referentes à execução de sentença arbitral, penal condenatória, estrangeira ou condenatória da Fazenda Pública), na leitura do Código de Processo Civil de 1973. O cumprimento de sentença não implicaria naquele instante um processo autônomo, mas implicaria uma fase subsequente. Nem por tais novidades legislativas o procedimento perdeu a sua autonomia, porquanto a fase executiva não se confundia com a fase cognitiva. A autonomia persistiu após a implementação do Novo Código de Processo Civil. Tanto no diploma legal anterior quanto no novo caderno processual civil, em vigor desde 18/03/2015, a execução recairá sobre o patrimônio do devedor e seus bens, e não sobre a sua pessoa. Sobre o assunto, dispôs o art. 591, do Código de Processo Civil de 1973: Art. 591 do CPC/1973: O devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei.

Código de Processo Civil – CPC/1973

É de suma importância ressaltar que a fraude contra credores na leitura do Novo Código de Processo Civil, além de fazer recair a responsabilidade do adimplemento em relação ao credor sobre o patrimônio do devedor, tal ato infame é considerado um atentado contra a dignidade da justiça, conforme ilustrado no texto do art. 774, transcrito a seguir: Art. 774 do NCPC/2015: Considera-se atentatória à dignidade da justiça a conduta comissiva ou omissiva do executado que: I – frauda a execução; II – se opõe maliciosamente à execução, empregando ardis e meios artificiosos; III – dificulta ou embaraça a realização da penhora; IV – resiste injustificadamente às ordens judiciais; V – intimado, não indica ao juiz quais são e onde estão os bens sujeitos à penhora e os respectivos valores, nem exibe prova de sua propriedade e, se for o caso, certidão negativa de ônus. Parágrafo único. Nos casos previstos neste artigo, o juiz fixará multa em montante não superior a vinte por cento do valor atualizado do débito em execução, a qual será revertida em proveito do exequente, exigível nos próprios autos do processo, sem prejuízo de outras sanções de natureza processual ou material.

É essencial ilustrar o quadro comparativo entre a legislação anterior e a atual, em obra prontamente disponibilizada na internet pelo doutrinador processualista José Miguel Garcia Medina (Novo CPC quadro comparativo – CPC/1973 > CPC/2015)1, demonstrando os avanços legislativos no que tange à coibição das fraudes contra credores e contra a execução no Novo Código de Processo Civil – NCPC/ 2015, conforme menção a seguir: Novo Código de Processo Civil – NCPC/ 2015

Art. 591. O devedor responde, para o cumprimento de suas Art. 789. O devedor responde com todos os seus bens preobrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, sal- sentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, vo as restrições estabelecidas em lei. salvo as restrições estabelecidas em lei. Art. 592. Ficam sujeitos à execução os bens: I – do sucessor a título singular, tratando-se de execução fundada em direito real ou obrigação reipersecutória; II – do sócio, nos termos da lei; III – do devedor, quando em poder de terceiros; IV – do cônjuge, nos casos em que os seus bens próprios, reservados ou de sua meação respondem pela dívida; V – alienados ou gravados com ônus real em fraude de execução 

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Art. 790. São sujeitos à execução os bens: I – do sucessor a título singular, tratando-se de execução fundada em direito real ou obrigação reipersecutória; II – do sócio, nos termos da lei; III – do devedor, ainda que em poder de terceiros; IV – do cônjuge ou companheiro, nos casos em que seus bens próprios ou de sua meação respondem pela dívida; V – alienados ou gravados com ônus real em fraude à execução; VI – cuja alienação ou gravação com ônus real tenha sido anulada em razão do reconhecimento, em ação autônoma, de fraude contra credores; VII – do responsável, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica.

Não se pode olvidar a contribuição da doutrina processual civil brasileira sobre o tema “fraude contra credores” e a “fraude à execução”, situações que poderão ocorrer nas relações negociais entre pessoas físicas e pessoas jurídicas em nosso país. Para que os temas fiquem devidamente elucidados serão repassadas as orientações doutrinárias de Antônio Cláudio da Costa Machado, em trecho de sua obra “Código de processo civil interpretado artigo por artigo, paragrafo por parágrafo” (7. ed. Barueri-SP: Manole, 2008, p. 768), a seguir: A norma jurídica contida na presente disposição legal não possui, como comumente se afirma, natureza material. Pelo contrário, trata-se de uma norma tipicamente processual, porque a responsabilidade instituída só subsiste em face do Estado, o único detentor para os fins da execução [...]. Assim a situação de sujeição patrimonial do devedor não é elemento integrante da relação obrigacional (direito material), mas da relação jurisdicional (direito processual).

Elpídio Donizetti, no “Curso didático de direito processual civil” (8. ed. ampl. e atual. até a Lei 11.441/, de 04/01/2007 incluindo processo eletrônico. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2007, p. 607), prelecionou sobre o tema: Assim, pode-se dizer que a diferença essencial encontra-se basicamente no meio de se alegar o vício. Ao passo que a declaração da fraude contra credores requer o ajuizamento de ação própria (pauliana ou revocatória), a fraude a execução pode ser declarada nos próprios autos da execução, mediante requerimento do credor, ou em embargos de terceiro.

Também é o processualista Elpídio Donizetti que nos brinda com a valiosa lição em sua obra “O novo processo de execução” (Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2008, p. 124), ao reportar que: Tanto na fraude à execução quanto na fraude contra credores (fraude pauliana), é indispensável que a alienação ou oneração dos bens seja capaz de reduzir o devedor à insolvência (eventus damni), militando em favor do exequente a presunção juris tantum. Igualmente em ambos os casos, figura como requisito o consilium fraudis, ou seja, o elemento subjetivo,

que se caracteriza pela ciência do adquirente das circunstâncias do negócio.

O decano do Supremo Tribunal Federal (STF) e processualista Teori Albino Zavascki, em sua obra “Processo de Execução: parte geral – Coleção de estudos de processos Enrico Tulio Liebman” (3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 191-210), leciona que: Aparentemente, o legislador ao formular o preceito, fixou-se, não no marco temporal da constituição da obrigação, e sim no estabelecimento pelo início do processo executivo, para dizer: respondem pela dívida os bens constantes do patrimônio do devedor neste momento (em que se pede a tutela do Estado) bem como os que, daqui em diante a ele forem incorporados. [...] O que se caracteriza como defeito, e sofre a repressão da ordem legal, é a diminuição maliciosa do patrimônio, empreendida pelo devedor, com o ânimo de prejudicar os demais credores, ou com a consciência de causar dano. A fraude a execução pode ser considerada uma especialização da fraude contra credores, e se caracteriza pela maior gravidade, já que o ato fraudulento de alienação ou oneração de bens se dá quando já em curso uma demanda judicial contra o proprietário.

O princípio da responsabilidade que recai sobre os bens do devedor, estipulado em lei quando se falará em obrigação deste em relação ao credor, é uma conquista social e legislativa e já vai longe a época em que o inadimplemento das obrigações, nos negócios entre credores e devedores, nas relações negociais, poderiam gerar prisões, capturas ou torturas físicas e demais sevícias contra o devedor ou contra a parentela do devedor, assim como já retratado no clássico da literatura “O Mercador de Veneza”, de Willian Shakespeare. E quando é constatada a fraude contra credores ou fraude à execução por parte do devedor, o procedimento para a sua coibição e sanção legal visará proteger o direito do credor de ter o seu crédito adimplido, para que, assim, possam ser restituídas a boa-fé nas relações negociais, o equilíbrio nas relações contratuais e a manutenção da ordem financeira e econômica, estipulados e resguardados constitucionalmente no bojo dos arts. 170 e 192, da CF/88.

arquivo pessoal

NOTA 1 MEDINA, José Miguel Garcia. NOVO CPC QUADRO COMPARATIVO – CPC/1973 > CPC/2015. Disponível em: Acesso em: 23 mar. 2016.

Fernanda Santos é especialista lato sensu em Direito do Consumidor pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Parecerista em matéria cível. Articulista do jornal digital Perspectiva Lusófona, em Angola, do jornal Diário da Manhã e do site de notícias Rota Jurídica, de Goiânia-GO. Foi membro efetivo da Comissão da Advocacia Jovem da OAB-GO – Gestão 2012/2015.

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ARQUIVO PESSOAL

ponto de vista

Artur Ricardo Ratc

Desaposentação: uma solução justa

É

sempre bom ressaltar que, em uma decisão inédita (ADI 3.105), em 2005, o STF fez com que o próprio aposentado que trabalhou a vida toda para se aposentar e ganhar uma retribuição condizente com o período de contribuição passasse também a ser taxado e ficasse sujeito ao recolhimento da contribuição previdenciária. O “mundo dá voltas” e passamos a tratar de um novo tema daquele mesmo aposentado que passou a contribuir. Após a nova filosofia da Suprema Corte, que trouxe a extensão extrema das premissas de solidariedade e equilíbrio da Previdência Social, surgiu o seguinte questionamento: como ficaria a aposentadoria daquele segurado que continuou trabalhando após a concessão do benefício, cuja base de cálculo passou a ser outra ante o cômputo de contribuições novas após o jubilamento? Então, surge o entendimento na Corte Superior, o STJ, no julgamento do RESp 1.334.488/SC, no qual dizem os ministros que, apesar de existir a constitucionalidade da taxação da própria aposentadoria do aposentado, este não pode ser injustiçado caso queira pleitear uma nova aposentaria ante o período diferenciado de contribuições junto ao Seguro Social. Passemos a um caso prático. Sônia trabalhou 30 anos e se aposentou, mas continuou a trabalhar e a contribuir. Depois de cinco anos entende que deveria ocorrer a desaposentação para que recebesse um valor mais justo de aposentadoria, eis que contribuiu, mesmo aposentada, por cinco anos a mais para a Previdência Social. Lembremos que a base de cálculo da aposentadoria de Sônia deveria ser maior após os cinco anos, pois ela contribuiu mais tempo para o Seguro

Social. Primeira questão: haveria a possibilidade de existir uma nova aposentadoria, mais justa e condizente com os 35 anos de contribuição e não mais 30 anos? A resposta é positiva ante o julgamento do STJ já mencionado. E os valores já recebidos no período que continuou trabalhando a título de aposentadoria? O STJ também entendeu a favor do aposentado referente a não devolução. E o STF? O que pensa sobre a desaposentação? Aí o tema ficou um pouco complicado, pois a mesma Corte que em 2005 entendeu ser constitucional a taxação da aposentadoria e pensão, agora está “rachada” sobre a tese da desaposentação que ajudaria o aposentado, ainda trabalhador, já com outra idade e mais tempo de contribuição a receber uma aposentadoria maior. Dois Ministros votaram a favor (Barroso e Marco Aurélio) e outros dois contra (Dias Toffoli e Teori) no RE 661.256 que está aguardando o voto de mais sete ministros. Nesse caso, por suposto, teríamos uma “justiça” aos aposentados na concessão da desaposentação, pois tiveram o primeiro revés quando continuaram a contribuir para a Previdência mesmo depois de aposentados, e teriam um segundo revés na impossibilidade da desaposentação. Em tempos de crise seria interessante que ao menos a Suprema Corte olhasse para fora do plenário para decidir essa causa, pois do jeito que estão as contas públicas e, contando com uma atuação política do STF, o aposentado-trabalhador teria a segunda injustiça (2005/2016). Pelo visto, fica claro que o Estado, em comparação ao contribuinte, tudo pode, seguindo a máxima do “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Afinal, se assim for, ninguém mais paga imposto neste país.

Artur Ricardo Ratc é advogado Pós-Graduado em Direito Administrativo pela PUC/SP, doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Museu Social Argentino, especialista em Direito Constitucional, Tributário, Direito Processual Civil pela UNISUL e Ciências Processuais pela UNAMA. Membro da Comissão de Contribuintes da OAB/SP. Professor dos cursos de Extensão e Pós-Graduação da LBS – Law & Business School, Faculdade Paulista e da ESA/SP – Escola Superior da Advocacia.

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revista JURÍDICA consulex - ano xX - nº 464 - 15 DE MAIO/2016

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