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June 1, 2017 | Autor: Norma Côrtes | Categoria: Cultural History, Historia, História e Humor, História social da cultura
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Cultura e ludicidade em José Ortega y Gasset e Johan Huizinga Culture and the play-element in José Ortega y Gasset and Johan Huizinga

Norma Côrtes Historiadora | Professora de Teoria e Metodologia da História da UFRJ [email protected]

RESUMO: A partir das ideias que Ortega y Gasset formulou em El origen deportiva del Estado (1924), este ensaio explora a principal obra de Johan Huizinga, Homo Ludens. O jogo como elemento da cultura (1938), e inscreve os argumentos desses pensadores no interior dos debates teóricos acerca da origem da sociedade e da vida civilizada. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia da História; origem da cultura e da civilização; jogo e ludicidade.

SUMMARY: Starting from the ideas developed by Ortega y Gasset in El origen deportivo del Estado (1924), this essay explores the major work of Johan Huizinga, Homo Ludens; a study of the play-element of culture (1938), and inserts the arguments of these two authors into the theoretical debates on the origins of society and civilized life. KEYWORDS: Philosophy of History; origin of culture and civilization; play-element.

Comunicação apresentada à Comissão de Estudos e Pesquisas Históricas (CEPHAS) do IHGB, em 14 de dezembro de 2011. Publicada em Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Ano 173, no. 456, jul/set 2012, pp. 253 -266. (ISNN 0101-4266).

Cultura e ludicidade em José Ortega y Gasset e Johan Huizinga

Norma Côrtes

Da autoria José Ortega y Gasset, o ensaio El origen deportivo del Estado foi publicado duas vezes. Primeiro, em 1924, no El espectador (sétimo volume) e, depois, no ano seguinte, quando saiu no La Nación, em Buenos Aires. Ambos os escritos eram peças de divulgação filosófica que, numa linguagem coloquial e quase (mas não exatamente) alegórica, retornavam a uma antiga polêmica teórica, datada dos séculos XVII e XVIII. Tal querela havia consumido fartas doses de energia intelectual entre aristotélicos, jusnaturalistas, contratualistas, iluministas (continentais ou escoceses)... E encontrou uma das suas melhores formulações na obra de Jean-Jacques Rousseau1, particularmente em Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755) e no Contrato Social (1762). Naquele então, o pomo da discórdia, girava em torno das seguintes questões: Qual a origem do Estado? Qual o princípio da ordem no mundo dos homens? Qual o fundamento da vida gregária? A sociedade é o status naturalis ou uma criatura do artifício? É importante assinalar, contudo, que em princípios da década de 1920, quando Ortega publicou seus dois ensaios homônimos, essa polêmica já estava totalmente caduca. À bem da verdade, desde meados do século XIX, com as polêmicas metódicas e a crescente institucionalização disciplinar dos estudos sociais, tais problemas filosóficos de cariz genético já nem sequer eram levados a sério. Afinal, as questões acerca das causas primeiras dos fenômenos humanos haviam sido relegadas em favor de novas chaves interpretativas, claramente científicas, que consideravam a vida gregária como um dado indiscutível. E desde a entronização das ciências sociais, o foco das nossas preocupações teóricas acerca do mundo dos homens se transferiu dos por quês para o como da interação humana. Entretanto, quando Ortega retornou a esses temas, revisitando as questões consagradas pelos clássicos do debate contratualista, ele não o fez por simples

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Sobre Rousseau há caudalosa literatura. Dentre outros, cf. particularmente Ernest CASSIRER. A questão Jean-Jacques Rousseau. Tradução Erlon José Paschoal. São Paulo: Editora UNESP, 1999.

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antiquarismo. Em desacordo com o cientificismo que grassara no oitocentos, a sua investida intelectual possuía um tônus diruptivo, modernista, e era expressão filosófica da crise e da crítica à modernidade. Numa atitude marcadamente corrosiva — eis um traço comum aos filósofos que, desde Sócrates, fustigam espanto lançando suspeitas acerca das crenças habituais de seus interlocutores —, o pensador espanhol dirigia uma provocação ao público leigo. E, ironicamente, antagonizava o otimismo implícito na visão de mundo do racionalismo mobilizando farta munição filosófica contra a ingenuidade científica para exibir os acanhados limites da razão (pura) e, portanto, minar as bases da certeza do regime de crenças do homem-massa2.

Mas ao lado dos

efeitos provocados por esse (in)discreto sarcasmo, os ensaios de 1924 também veiculavam postulados substantivos, e absolutamente extravagantes, uma vez que afirmavam que a origem da vida gregária e da civilização repousava em princípios lúdicos, desportivos, gratuitos e irracionais. Vejamos isso. A citação é longa, mas justificada. “La verdad científica se caracteriza por su exactitud y el rigor de sus previsiones. Pero estas admirables calidades son conquistadas por la ciencia experimental a cambio de mantenerse en un plano de problemas secundarios, dejando intactas las ultimas, las decisivas cuestiones. […] ¿De dónde viene el mundo, a dónde va? ¿Cuál es la potencia definitiva del cosmos? ¿Cuál el sentido esencial de la vida? No podemos alentar confinados en una zona de temas intermedios, secundarios. Necesitamos una perspectiva integra, con primero y último plano, no un paisaje mutilado, no un horizonte al que sea amputado la palpitación incitadora de las postreras lontananzas […] Quiero decir con esto que no nos es dado renunciar a la adopción de posiciones ante los temas últimos: queramos o no, de uno u otro rostro, se incorporan en nosotros. La ‘verdad científica’ es una verdad exacta, pero incompleta y penúltima, que se integra forzosamente en otra especie de verdad, ultima y completa, aunque inexacta, a la cual habría inconveniente en llamar ‘mito’. La verdad científica flota, pues, en mitología, y la ciencia misma como totalidad, es un mito, el admirable mito europeo.”3

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José ORTEGA Y GASSET. La rebelión de las masas. Obras Completas (OC), tomo IV (1926/1931). Madrid, España: Fundación Ortega y Gasset, Editorial Taurus, 2008. 3

José ORTEGA Y GASSET. El origen deportivo del Estado I. OC, tomo II (1916), p. 705 -706.

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“Pues bien, a la opinión tradicional sobre los orígenes del Estado y su relación con la familia hay que oponer estas tres formulas: 1ª. El Estado no nace de la utilidad ni de la justicia, sino estrictamente del deporte; 2ª. Lejos de proceder el Estado de la familia como una amplificación de ésta, es el Estado anterior a la familia. Esta se forma en contra de aquél; 3ª. Estado y familia son dos principios sociales de raíz antagónica, por tanto son hostiles. El predominio del espíritu familiar debilita el Estado y viceversa.” 4 “[…] la primera casa que el hombre edifica no es la casa de la familia aun inexistente, sino el casino de los jóvenes. En ella preparan sus expediciones, cumplen sus ritos; en ella se dedican al canto, a la bebida y al frenético banquete común. Es decir, que el ‘club’ es, quiérase o no, más antiguo que el hogar domestico, como el casino que la casa. […] Vemos, pues, que la primera sociedad humana, propiamente tal, es todo lo contrario que una reacción a necesidades impuestas. La primera sociedad es esta asociación de jóvenes para robar mujeres extrañas al grupo consanguíneo y dar cima a toda suerte de bárbaras hazañas. Más que un Parlamento o Gobierno de severos magistrados, se parece a un Atlétic Club.” Tenemos, pues, que el ‘club’ de los jóvenes inicia en la Historia las cosas siguientes: La exogamia; la guerra; la organización autoritaria; la disciplina de entrenamiento o ascética; la ley; la asociación cultural; el festival de danzas enmascaradas o Carnaval; la sociedad secreta. Y todo ello, junto e indiferenciado, la génesis histórica e irracional del Estado. Una vez más encontramos que en todo origen se halla instalada la gracia y no la utilidad. […] el origen del Estado [é] un ejemplo de la fecundidad creadora residente en la potencia deportiva. No ha sido el obrero, ni el intelectual, ni el sacerdote, propiamente dicho, ni el comerciante quien inicia al gran proceso político; ha sido la juventud, preocupada de feminidad y resuelta al combate; ha sido el amador, el guerrero y el deportista.” 5 Como se pode observar, essas palavras encerram uma infinidade de questões. Para os meus propósitos de agora cabe assinalar apenas três e lidar bem rapidamente com a última delas. A primeira questão refere-se ao problema dos limites da razão e ao 4

José ORTEGA Y GASSET. El origen deportivo del Estado II. OC, tomo III (1917/1925), p. 780.

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José ORTEGA Y GASSET. El origen deportivo del Estado I. OC, tomo II (1916), p. 713 - 715.

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estatuto mítico (se preferirmos, ideológico) que Ortega atribuiu ao conhecimento científico. A segunda refere-se ao uso retórico dos “mitos históricos” — os raptos de mulheres6 — e a conversão desses relatos fabulosos em fonte para a verdade filosófica. Quer dizer, Ortega lançou mão de um argumento alegórico para borrar as fronteiras entre o real e o imaginário ou o verdadeiro e o falso. E, finalmente, a principal e terceira questão que consiste no postulado acerca do caráter caprichoso, casual, gratuito e aleatório dos princípios causais. Reunidos, todos esses aspectos (formais ou substantivos) revelam uma profunda rejeição à lógica da razão utilitária e funcional. Ortega possuía verdadeira antipatia diante das explicações teleológicas ou funcionalistas, que sempre reduzem a compreensão das coisas do mundo àquilo que nos fenômenos (naturais ou humanos) é mera serventia. Ele desprezava solenemente essa perspectiva e afirmava que... “[...] el repertorio de hábitos útiles que cada especie posee se ha formado mediante selección y aprovechamiento de innumerables actos inútiles que por exuberancia vital ha ido ejecutando el ser viviente. Así, pues, podemos distribuir los fenómenos orgánicos — animales y humanos — en dos grandes formas de actividad: una actividad originaria, creadora, vital por excelencia — que es espontánea y desinteresada —; otra actividad en que se aprovecha y mecaniza aquélla y que es de carácter utilitario. La utilidad no crea, no inventa, simplemente aprovecha y estabiliza lo que sin ella fue creado.”7

Com efeito, ele não apenas se afastava das clássicas soluções para o problema da gênese da vida gregária — quer dizer, negava naturalidade à sociabilidade humana (recusando os princípios aristotélicos) —, como também, e a um só tempo, eliminava as 6

O uso positivo da sabedoria poética é marca da presença de Giambattista Vico na obra de Ortega. A propósito, cf. José M. SEVILLA. Prolegómenos para una crítica de la razón problemática. México: Universidad Autónoma Metropolitana, 2011. 7

José ORTEGA Y GASSET. El origen deportivo del Estado I. OC, tomo II (1916), p. 707. Não era a primeira vez que ele desdenhava a mediocridade do raciocínio utilitário — cf. particularmente El sentido deportivo de la vitalidad (1920). A propósito desse ponto, deve-se salientar que as ideias orteguianas repousam sobre um fundo de verdade reiteradamente comprovado pela observação da descoberta científica e das invenções tecnológicas. Ortega tem razão ao afirmar que a liberalidade ociosa da imaginação lúdica ou ficcional precede ao & prepara o raciocínio instrumental e científico. Na história da ciência, são fartos os exemplos desse fenômeno: de Júlio Verne e toda a literatura de ficção cientifica, que tal como balões de ensaio intuíram novíssimas possibilidades para a existência ordinária e prenunciaram os reais esforços envolvidos nas descobertas científicas; afora casos mais prosaicos e atuais em que a tecnologia pioneira dos videogames vem sendo empregada pelos médicos nas mesas de cirurgia.

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dicotomias contratualistas cujo raciocínio binário havia estabelecido antagonismo entre estado de natureza e estado social; entre o império da natureza e o império da lei (isto é, entre Oriente e Ocidente na pena de Montesquieu); entre natureza e determinação versus razão e liberdade ou autonomia (refiro-me agora a Kant, mas também a Hegel). E além de tudo isso, finalmente, quando postulou o caráter caótico e aleatório da ordem (ou da desordem) causal — e é realmente importante levar a sério essa mistura entre jogo, brincadeira e aleatoriedade — também conseguiu encontrar melhor acabamento e maior precisão para as teorias historicizantes do iluminismo escocês 8. Porque apesar de o status naturalis nunca ter feito parte do repertório conceitual de Hume ou de Ferguson, ambos permaneceram prisioneiros do paradigma dual, ainda que sustentassem uma combativa tese a propósito da igualdade entre a natureza e o costume (entenda-se entre a natureza “versus” história ou tradição). O que Ortega conseguiu resolver teoricamente ao publicar El origen deportivo del Estado foi o dualismo entre natureza versus história que opunha, noutros termos, determinação à liberdade. Quer dizer, ele, primeiro, rejeitava a possibilidade de a vida gregária ter sido o resultado intencional de um cálculo da razão (eis a ideia do contrato). Mas, por outro lado e, depois, também anulava o modelo explicativo concorrente, uma vez que o fundamento causal da vida em sociedade nem consistia num dado espontâneo expressivo da natureza (tal como se fossemos abelhas) nem era um fenômeno impremeditado, provocado simples e displicentemente pelas forças inerciais do tempo, da história ou da tradição (eis o costume). Ortega, portanto, esboçava uma terceira via explicativa que situava a polêmica sobre a origem da civilização fora da esfera da consciência moral (onde residem os dilemas do livre arbítrio ou da culpa, ou melhor, residem as questões sobre a intencionalidade, a impremeditação ou os “efeitos perversos” alcançados pela ação humana) e conferia à vida social um fundamento prosaico, casual e absolutamente extravagante.

Porém, deve-se observar que, a despeito dessa “curiosidade”, tal

fundamento mantinha-se escrupulosamente vinculado às performances dos agentes históricos, isto é, mantinha-se em estreito acordo com a ação e as realizações de 8

Para o iluminismo escocês, a ideia do status naturalis é uma ficção. Segundo, Ferguson, opinião partilhada também por Hume, “a sociedade é o estado natural do homem” [...] “se buscarmos um estado natural, o encontraremos onde estamos, à nossa volta, nas ilhas Britânicas ou no cabo da Boa Esperança”. Apud. BOTTOMORE, T. & NISBET, R. (org.) História da Análise Sociológica. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.

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protagonismo humano (escapando, portanto, dos problemas envolvidos na racionalidade dos juízos morais sobre as boas ou más intenções). O jogo, o comportamento agonístico, os ímpetos inconsequentes, a guerra, os gracejos joviais, os esportes, a brincadeira, os festivais competitivos, o carnaval... Em uma palavra: para Ortega, os acasos dos caprichos prazerosos foram os elementos primordiais da vida em sociedade. Longe de consistir em hedonismo, a teoria de Ortega conferiu nova espessura ôntica à realidade social e à lógica que preside a dinâmica e a história da interação humana. E encontrava no fenômeno esporte (complexo que reúne ação/desempenho + sentimentos agonísticos + acaso = jogo) o fundamento da cultura e da condição humana. É importante lembrar que o filósofo espanhol não era voz isolada. A centralidade causal dos aspectos lúdicos, não utilitários e pré-racionais também se encontrava em Werner Sombart, que em 1913 publicou Luxo e capitalismo9, polemizando contra Max Weber sobre qual era o ethos constituinte da ordem burguesa. Sombart não aceitava a tese weberiana de as virtudes da ascese protestante terem oferecido experiência e lastro cultural ao homo economicus e, em contrapartida, argumentava que o fundamento da riqueza residia nos vícios, ou melhor, na ostentação dos gastos perdulários, na esbórnia dos excessos consumistas, na orgia dos confortos luxuosos e dos requintes supérfluos10. (Pensando bem, tendo em vista a experiência civilizacional brasileira, creio que Sombart tinha alguma razão. E, ademais, a presença das teses sombartianas na obra de Gilberto Freyre ainda precisa ser mais estudada...). Mas a fecundidade da intuição de Ortega y Gasset conheceu a sua melhor formulação na pena de Johan Huizinga. Em Homo ludens. O jogo como elemento da cultura (1938), o historiador holandês formulou uma antropologia que verdadeiramente desafiou o imaginário racionalista, uma vez que estabeleceu novas propriedades ônticas constitutivas da condição humana. As primeiras palavras do parágrafo de abertura do Prefácio do livro de Huizinga são estas que se seguem: 9

Werner SOMBART. Lujo y capitalismo. Tradução de Luis Isabal. Madrid: Editorial Revista de Occidente, 1965. Vale assinalar que a editora Revista de Occidente, sob a coordenação de Ortega, publicou em 1928 a primeira edição e tradução espanhola dessa importante obra de Sombart. 10

Uma sintética comparação entre Sombart e Weber encontra-se em Glaucia VILLAS BÔAS. Ascese e prazer: Weber vs. Sombart. Lua Nova, São Paulo, n. 52, 2001.

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“Em épocas mais otimistas que a atual, nossa espécie recebeu a designação de homo sapiens. Com o passar do tempo, acabamos por compreender que afinal de contas não somos tão racionais quanto a ingenuidade e o culto da razão do século XVIII nos fizeram supor, e passou a ser moda designar nossa espécie como homo faber. Embora faber não seja uma definição do ser humano tão inadequada como sapiens, ela é, contudo, ainda menos apropriada do que esta, [...] Mas existe uma terceira função, que se verifica tanto na vida humana como na animal, e é tão importante como o raciocínio e o fabrico de objetos: o jogo. Creio que, depois de Homo faber, e talvez ao mesmo nível de Homo sapiens, a expressão Homo ludens merece um lugar em nossa nomenclatura.”11 Estou convencida que nenhuma palavra dessa composição argumentativa pode ser desperdiçada. Em verdade, nessa abertura de livro se oculta um mapa, uma espécie de guia cifrado, que tanto nos oferece a possibilidade de decifrar e compreender os aspectos propositivos da teoria de Huizinga (aquilo que substantivamente ele defendeu) quanto nos permite situá-lo no interior do mesmo debate em que estava Ortega y Gasset. Os vínculos entre esses dois pensadores são bem conhecidos e embora não haja um caudaloso epistolário entre eles, ambos mantiveram excelentes relações intelectuais e de amizade durante toda a vida12. Numa nota de pé de página, a nota de número dez do terceiro capítulo de Homo Ludens, Huizinga de fato reconheceu a sua dívida para com as teorias orteguianas. Todavia, penso que esse gesto foi acanhado, pois embora tenha sido honesto também foi menor do que realmente seria o devido (E vale lembrar que tal desacerto é mais gritante ainda diante da insistência com que Ortega, um vaidoso inveterado, sempre reclamava por reconhecimento e precedência intelectual. As querelas entre Ortega e Heidegger estão marcadas por essas queixas13.) Mas voltemos ao mapa cifrado. Todos os elementos que compõem a filosofia orteguiana estão lá: 1o. A crítica ao Iluminismo e à sua ingenuidade cientificista; 11

Johan HUIZINGA. Homo ludens. O jogo como elemento da cultura. Tradução João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 1980, 2a edição, s/p (Prefácio). 12

Para uma comparação entre Ortega e Huizinga, veja Karl J. WEINTRAUB. Visions of culture. Chicago: University of Chicago Press. 1966. 13

Sobre a proximidade com Heidegger, cf. particularmente Francisco Gil VILLEGAS. Los profetas y el mesías. Lukács y Ortega como precursores de Heidegger en el zeitgeist de la modernidad (1900-1929). México: Fundo de Cultura Económico, 1996.

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2o. A rejeição à cultura tecnológica e utilitária do século XIX (e do homemmassa...); 3o. A insinuação de uma terceira via alternativa capaz de desmanchar a polarização entre natureza e sociedade (leia-se: natureza versus cultura/história/razão/costume), porque, afinal de contas, o jogo é um fenômeno natural e pré-racional já que os bichos também brincam; 4o. E, finalmente, a superação dos dilemas sociológicos envolvidos nas teorias sobre os efeitos perversos da ação social, uma vez que a regência do jogo (a sorte, a fortuna, o acaso14) desfaz e está aquém do problema da intencionalidade da razão ou da consciência moral dos agentes, mas simultaneamente está além da inércia desordenada e espontânea do tempo — porque jogo que é jogo tem regra. E esse é o ponto! A teoria de Huizinga é superior ao ensaísmo de Ortega porque o historiador holandês realmente alcançou a excelência ao formular uma explicação para a lógica da ação. Sua antropologia é um verdadeiro achado (creio que estamos diante de um dos mais importantes livros do século XX) já que não apenas estabeleceu as propriedades da condição humana — somos seres lúdicos, mas não estamos aqui de brincadeira... — como também formalizou uma teoria do jogo que abrangia farta variedade de manifestações (a guerra; a arte; a linguagem15; o fenômeno religioso, o direito; o conhecimento etc...) alcançando à totalidade das manifestações da cultura, ou se quisermos, abrangendo tudo aquilo que é obra do espírito humano. Para Huizinga, o fenômeno do jogo possui as seguintes quatro características16: 14

“Mas reconhecer o jogo é forçosamente reconhecer o espírito, pois o jogo, seja qual for a sua essência, não é material. Ultrapassa, mesmo no mundo animal, os limites da realidade física. Do ponto de vista da concepção determinista de um mundo regido pela ação de forças cegas, o jogo seria inteiramente supérfluo. Só se torna possível, pensável e compreensível quando a presença do espírito destrói o determinismo absoluto do cosmo. A própria existência do jogo é uma confirmação permanente da natureza supralógica da situação humana. Se os animais são capazes de brincar, é porque são alguma coisa mais do que simples seres mecânicos. Se brincamos e jogamos, e temos consciência disso, é porque somos mais do que simples seres racionais, pois o jogo é irracional” (Homo Ludens. p. 06) 15

“O que a linguagem poética faz é essencialmente jogar com as palavras. Ordena-as de maneira harmoniosa, e injeta mistério em cada uma delas, de modo tal que cada imagem passa a encerrar a solução de um enigma.” (Homo Ludens, p. 149) 16

Após apresentar as quatro características, ele resumiu: “[...] o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras

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Liberdade (gratuidade): “Antes de mais nada, o jogo é uma atividade voluntária. Sujeito a ordens deixa de ser jogo [...] As crianças e os animais jogam porque gostam de brincar, e é precisamente em tal fato que reside sua liberdade. Seja como for, para o indivíduo adulto e responsável o jogo é uma função que facilmente poderia ser dispensada, é algo supérfluo.” (p. 10)

Evasão da realidade (arrebatamento): “Uma segunda característica, intimamente ligada à primeira, é que o jogo não é vida corrente, nem vida real. Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida real para uma esfera temporária de atividade e orientação própria” (p. 11)

Duração / intervalo (ritmo) e domínio espacial: “O jogo distingue-se da vida comum tanto pelo lugar quanto pela duração que ocupa. É esta a terceira de suas características principais: o isolamento, a limitação. É joga até o fim dentro de certos limites de tempo e de espaço. Possui um caminho e um sentido próprios.” (p .12)

Ordem: “Reina dentro do domínio do jogo uma ordem especifica e absoluta. E aqui chegamos a sua outra característica, mais positiva ainda: ele cria ordem e é ordem. Introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta [...].” (p. 13)

O (conceito de) jogo harmoniza os princípios da liberdade e o da ordem, dissolvendo os polos dessa clássica oposição. Porque não obstante seja pura gratuidade, durante o seu exercício, o jogo também instala regras, disciplina, sanções — e mais toda a sorte de preceitos cujo poder de lei é voluntário e docilmente consentido. O jogo, portanto, consiste no fenômeno da ação e convivência humanas que melhor realiza e manifesta a nossa ideia de autonomia17. Trata-se de uma esfera livre, ou seja, sem razões utilitárias, cuja ordem é autodeterminada. Porque apesar de as suas normas e seus livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da ‘vida cotidiana’” (Homo Ludens, p. 33) 17

No Houaiss, a etimologia de autonomia é assim definida: “Do grego autonomía ‘direito de reger-se segundo leis próprias’” Dicionário Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Editora Objetiva, 2011.

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princípios organizativos serem firmes e imperativos18, não se impõem por uma autoridade coercitiva exógena e sim em virtude da própria dinâmica das performances e dos lances em jogo. Fenômeno híbrido — meio natureza; meio invenção (entenda-se: é cultura) — o jogo é uma espécie de “elo perdido” que oferece solução conceitual para as querelas teóricas sobre a gênese da vida civilizada. Em verdade, ele preenche com espessura histórica o chamado processo civilizador — processo que descreve uma miríade de transformações impremeditadas e ocorridas na longa passagem da selvageria à civilização (ou se preferirem: do estado de natureza ao estado social; da barbárie anárquica à determinação moral e jurídica). E, entretanto, ao contrário de todas as filosofias da história que insistiram em compreender tal processo civilizador como a marcha evolutiva do progresso humano, o jogo, em virtude de suas características intrínsecas (leia-se: o acaso), interdita qualquer percepção teleológica da ordem temporal e da causação histórica. Consequentemente, tanto recusa as concepções de mundo marcadas pelo determinismo do racionalismo voluntarista (quando a ordem é um construto artificial derivado das vontades irmanadas num hipotético contrato social ou num consenso plebiscitário, eleitoral) quanto também rejeita as concepções opostas, que entregam a regência dos negócios humanos à pura espontaneidade natural (quando a “mão invisível” preside a economia e/ou a sociedade). Em outras palavras, com Huizinga, o jogo passa a ser o fenômeno / o conceito que ultrapassa as perplexidades envolvidas no dilema intencionalidade da consciência versus consequências da ação — dilema que, in extremis, remete ao enredamento satânico da tragédia19 — e explica que o protagonismo histórico obedece a uma complexa sequência de performances cuja lógica causal é imanente, indeterminada e imprevisível. Resultado da luta e dos conflitos humanos — eis seu caráter agônico20 —,

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“As regras de todos os jogos são absolutas e não permitem discussão. Uma vez, de passagem, Paul Valery exprimiu uma ideia das mais importantes: ‘No que diz respeito às regras de um jogo, nenhum ceticismo é possível, pois o principio no qual elas assentam é uma verdade apresentada como inabalável.’ E não há duvida de que a desobediência às regras implica a derrocada do mundo do jogo. O jogo acaba: o apito do árbitro quebra o feitiço e a vida ‘real’ recomeça.” (Homo ludens, p. 14) 19

Clément ROSSET. O real e seu duplo. Ensaios sobre a ilusão. Tradução Thomas Brum, Porto Alegre: L&PM, 1988. 20

O conceito de ágon é um importante centro nevrálgico para a exegese de Homo Ludens. Dentre outros aspectos, ele revela a proximidade entre o historiador holandês com Nietzsche e Burckhardt; encerra uma visão de mundo cuja espessura ontológica está marcada pelo conflito dos antagonismos; sua etimologia remete à acepção temporal que alcança densa envergadura na expressão “passatempo”; e também, no que tange ao caráter existencial dessa concepção de existência como passatempo — uma vez que o viver

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a ordem instaurada pelo jogo repele qualquer explicação metafísica ou sobre-humana. Porque ela nem está sujeita à mera fatalidade, caso em que seria vitima de fúrias transcendentes (tanto as da fortuna quanto as da determinação), nem está aprisionada numa incoesão absurda e aleatória, situação em que escaparia a qualquer pretensão de inteligibilidade. Para além desses extremos, o jogo compreende a complexa tessitura da realidade histórica em que se mesclam os projetos e os improvisos21 da ação humana. É por essa razão que Huizinga afirmou (e vou encerrar com estas citações...): “O jogo é fato mais antigo que a cultura” (p. 03) “Não queremos com isso dizer que o jogo se transforma em cultura, e sim que em suas fases mais primitivas a cultura possui um caráter lúdico, que ela se processa segundo as formas e no ambiente do jogo. Na dupla unidade do jogo e da cultura, é ao jogo que cabe a primazia.” (p. 54) “Portanto, é desde o inicio que se encontram no jogo os elementos antitéticos e agonísticos que constituem os fundamentos da civilização, porque a o jogo é mais antigo e muito mais original do que a civilização. [...] No curso do desenvolvimento de toda e qualquer civilização, a função agonística atinge a sua forma mais bela [...] na fase arcaica. À medida que uma civilização vai-se tornando mais complexa. [...] o velho solo cultural vai sendo gradualmente coberto por uma nova camada de ideias, sistemas de pensamento [...]; normas morais e convenções que perderam já toda e qualquer relação direta com o jogo. Dizemos, nesse momento, que a civilização consiste tão-somente no exercício (i.é, no jogo) de (pré)ocupar a curta duração entre o nascimento e a morte —, revela a presença da filosofia de Ortega e Heidegger na obra de Huizinga. 21

Em uma oposição semelhante, mas a propósito da produção artística, Giulio Carlo Argan afirmou: “No iter clássico do projeto, o artista concebe a obra como idealmente realizada e sucessivamente dispõe o plano das fases executivas, o projeto, que tem uma função puramente instrumental porque a obra já é virtualmente dada. Comporta-se como um viajante que, sabendo ter que andar num dado lugar, traça no mapa o melhor itinerário. Mas aquele que se encontra numa mata ou num deserto, perdido, não tem uma meta, tem apenas um fim: sair dali. Tenta orientar o próprio caminho segundo certo método, levando em conta todos os indícios; seu problema não é chegar a um dado ponto, mas controlar a coerência de seu movimento para não voltar ao ponto de partida ou continuar a girar em círculos. No primeiro caso, em suma, o que importa é o ponto de chegada, no segundo, o percurso: e de percurso realmente se trata, na gestáltica, porque o projeto se constrói passo a passo e o que conta e é ‘programado’ é apenas a coerência ou o método do movimento. No primeiro caso, ainda, há a vontade de chegar a um dado lugar; no segundo, a intenção de sair da mata ou do deserto; no primeiro vemos o fim no projeto, no segundo vemos apenas o projeto.” Giulio Carlo ARGAN. Projeto e destino. Tradução Marco Bagno. São Paulo:Ática, 2001, p 34.

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se tornou mais séria, devido ao fato de atribuir ao jogo apenas um lugar secundário. Terminou o período heroico, e a fase agonística parece, ela também pertencer ao passado.” (p. 85). “O espírito de competição lúdica, enquanto impulso social, é mais antigo que a cultura, e a própria vida está toda penetrada por ele como por um verdadeiro fermento. [...] Daí se conclui necessariamente que em suas fases primitivas a cultura é um jogo. Não que isto dizer que ela nasça do jogo, como um recémnascido se separa do corpo da mãe. Ela surge no jogo, e enquanto jogo, para nunca mais perder esse caráter.” (p. 193) “Chegamos, portanto, através de um caminho tortuoso, à seguinte conclusão; a verdadeira civilização não pode existir sem um certo elemento lúdico, porque a civilização implica a limitação e o domínio de si próprio, a capacidade de não tomas suas próprias tendências pelo fim ultimo da humanidade, compreendendo que se está encerrado dentro de certos limites livremente aceites. De certo modo, a civilização sempre será um jogo governado por certas regras, e a verdadeira civilização sempre exigirá o espírito esportivo, a capacidade de fair play. O fair play é simplesmente a boa fé expressa em termos lúdicos.” (p. 234) “Quando o pensamento humano faz uma revisão de todos os tesouros do espírito e sente todo o esplendor de suas faculdades, mesmo assim sempre encontra, no fundo de todo o julgamento sério, um resto problemático. No fundo de nossa consciência, sabemos que nenhum dos nossos juízos é absolutamente decisivo. E nesse momento em que nosso julgamento começa a vacilar, juntamente com ele vacila também nossa convicção de que o mundo é uma coisa séria. Em vez da milenar tudo é vaidade, impõe-se-nos uma fórmula muito mais positiva, que tudo é jogo.” (p. 235)

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