Cultura e Património ao serviço da Economia.*

July 26, 2017 | Autor: Agostinho Ribeiro | Categoria: Cultural Studies, Patrimonio Cultural, Turismo
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Cultura e Património ao serviço da Economia.*

O título é, porventura, excessivo, mas propositadamente assumido pelas suas
implicações conceptuais, que se poderiam resumir a uma simples questão – a
cultura deve estar ao serviço da economia ou, pelo contrário, deve esta
estar ao serviço daquela?

Já a este propósito, mas reduzindo o âmbito temático da equação, discorri
há uns dias atrás, numa comunicação destinada a jovens formandos da área do
turismo, na pretensão de se perceber se os museus (uma "parcela" importante
da materialidade da nossa cultura) estavam ao serviço do turismo (outra
"parcela" também importante, mas agora da economia nacional) ou se, pelo
contrário, estava o setor crescente do turismo ao serviço da cultura. E, em
qualquer dos casos, tentar saber como poderíamos quantificar tais serviços
prestados, de cada um para cada outro.

Ora o turismo, sendo um setor ou domínio (como preferirem) da ciência
económica, é também um instrumento de natureza social, pelas razões que
todos conhecemos, inserindo-se num contexto mais alargado da economia
enquanto ciência social, utilizando cada vez mais, a seu favor, produtos
culturais de diversa construção identitária, que vulgarmente designamos por
artes. Resulta claro, portanto, que a cultura tem estado ao serviço da
economia, mesmo quando a economia, despida dessa abstração teórica dos
conceitos e formulações metodológicas de caráter científico, a chamada
"economia real", na sua aplicabilidade prática, nos parece querer
demonstrar o contrário. Isto porque, por vezes, somos levados a crer que
vultuosos investimentos em setores específicos da área cultural ou
patrimonial, refletem um espirito meramente altruísta, sem cuidarmos de
perceber o retorno que se espera, e em todo o caso se deseja, desses mesmos
investimentos. Mais ou menos distendido no tempo, esse retorno deveria ser
sempre esperável, sobretudo quando a origem do investimento é oriundo de um
exercício, supostamente pensado, de políticas públicas de investimento na
área da cultura.

Infelizmente, em Portugal, nem sempre o exercício é suficientemente
refletido, nem o retorno, mesmo que seja de natureza supra financeira, é
sequer equacionado. A evidência maior desta lamentável ausência, talvez
seja, nos dias que correm, o estranho fenómeno que levou à construção do
novo Museu Nacional dos Coches que, em todo o caso, é exemplarmente
representativo do deslumbramento serôdio decorrente da falta de pensamento
e de reflexão consistente sobre estes assuntos do património cultural, na
sua articulação com os recursos financeiros disponíveis, sejam eles
intempestivos ou não.

Mas este, e outros casos parecidos com este, não devem ser inscritos nas
lógicas dos investimentos na área da cultura onde o retorno se esperava de
forma antecipadamente assumida. Penso mesmo, dadas as diversas valências
que enformaram todo este processo que, simplesmente, não se esperava nada,
numa indigência tamanha de política cultural, que temo bem que se tenha
inscrito no quadro da irresponsabilidade com que são tomadas as decisões
arbitrárias de alguns governantes. De facto, nada aconselharia o uso de
dinheiros públicos, provenientes de contrapartidas únicas do turismo
(Casino de Lisboa) na construção de um museu com estas caraterísticas –
mais de 35 milhões de euros investidos na sua edificação, a que devemos
associar custos permanentes de funcionamento que irão custar ao erário
público mais de 3 milhões de euros por ano. Tudo isto feito na maior das
tranquilidades, mesmo depois das entidades mais representativas do setor
museológico, como foi o caso exemplar do ICOM-Portugal, terem alertado para
a total inconsistência e falta de razoabilidade da opção seguida. Qualquer
tentativa de estimar receitas próximas destas colossais despesas, para
tentar justificar o injustificável, só pode ser considerada por nós um
duvidoso exercício de sentido de humor, ou então de pura má-fé…

É claro que se Portugal não pode ser considerado um bom exemplo nestas
práticas relacionais, a partir dos mais emblemáticos casos que têm
acontecido por cá, isso não significa que não possamos, ao menos, tecer
considerações gerais sobre o assunto e admitir que a Cultura tem estado
mesmo ao serviço da Economia, sendo desejável que, em contrapartida, os
setores que mais beneficiam dos serviços ditos culturais, invistam melhor,
e mais, na requalificação do existente e na criação de novos equipamentos
ou eventos, como hoje é moda dizer-se. E digo bem, quando priorizo a
qualidade para o existente, em detrimento da quantidade para o novo, porque
me parece que, antes de irmos mais longe em novos investimentos na área da
cultura, precisamos urgentemente de melhorar os critérios e os modelos de
financiamento adequados e ajustados, destinados aos já existentes.
Retomando o caso exemplar acima descrito, temos o pleno direito de
perguntar se fará algum sentido que o Estado invista algumas dezenas de
milhões de euros na construção de raiz de uma infraestrutura desnecessária,
para substituir outra que cumpria bem a sua função, deixando à míngua
dezenas de outras instituições similares que permanentemente se confrontam
com prosaicas necessidades de funcionamento, e cujas resoluções são
sistematicamente adiadas, "por falta de verbas"!? E, de permeio, fazendo
com que uma instituição museológica que até era tendencialmente
autossustentável passe a ser altamente deficitária para as finanças
públicas nacionais.

Em boa verdade, se a economia tem, em si mesma e do ponto de vista da
análise sociológica, associada a ideia da "necessidade", em contraponto e
justaposição à ideia da "liberdade", que carateriza o saber e a prática
culturais, como muito bem a definiram Rita Raposo e João Carlos Graça, em
2004, (Cultura e economia: Um trajecto de afinidades e oposições electivas,
in Actas dos ateliers do V Congresso da Associação Portuguesa de Sociologia
Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção Teorias e Metodologias de
Investigação), então não nos parece que possamos ou devamos colocar a
tónica numa relação de subserviência, por manifesta inexistência de
sentido, antes devendo colocá-la numa lógica de complementaridade, ainda
que reconhecendo que faz mais falta à sociedade atual, conjuntural, uma
cultura (teórica e prática) ao serviço da economia, que o contrário.

Naquela interessante comunicação, os autores refletem sobre o conceito de
cultura que, pela sua "estreita associação à ideia de liberdade", se opunha
diretamente à ideia de necessidade, a que as ciências económicas estavam
hipotecadas (e ainda estão, ironicamente, nos tempos de crise que
atravessamos), conceito este que só a pós-modernidade transformaria na
ideia de uma fusão "economia-cultura", aqui admitindo a vivência de um
"cume de auto consciência societária" que, segundo creio, esbateria a
oposição e sublinharia a integração (dos conceitos), altura em que a
economia e a cultura andariam de tal modo ligados que se confundiriam
totalmente. Talvez por tudo isto, estejamos mais próximos, hoje em dia, de
uma noção ideal de complementaridade. Em todo o caso, esta noção ainda tem
de amadurecer muito até alcançar a plenitude de o ser, no concreto das
políticas públicas definidas para a cultura e no pragmatismo dos agentes
económicos que nela encontram um instrumento válido de afirmação e
excelência que se não esgote, apenas, na vã glória do mediatismo
momentâneo, que faz de qualquer investimento na cultura um ato meramente
publicitário.

Agostinho Ribeiro



* Publicado no Suplemento Viseu Económico, Jornal do Centro, nº 674, de 13
de março de 2015.
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