Cultura e Tecnocracia

June 3, 2017 | Autor: A. Monteiro | Categoria: Cultura, Tecnocracia, Políticas Culturais
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Cultura e Tecnocracia António Jorge Monteiro *

Todo o processo de construção-integração e aprofundamento da União Europeia, nas suas dimensões política, económica e social, desde sempre tem sido desenvolvido e implementado de braço dado com o assumido “défice democrático” que potencia e protege uma continuada orientação tecnocrática, que sempre acaba adquirindo legitimidade formal no Parlamento Europeu. (1)

O estudo “La production de l’idéologie dominante” , coordenado por Pierre Bourdieu e Luc Boltanski, publicado em 1976, demonstra como uma ideia generalizada, proveniente de um “discurso dominante”, de origem não identificável, se transformou numa “ideologia dominante”, legitimadora da tecnocracia como instrumento político que procura estabelecer e consagrar que determinadas áreas do conhecimento, nomeadamente, no domínio da economia, só devem ser tratadas por determinados “peritos”, na medida em que só estes serão capazes de dominar as suas complexas leis. Posteriormente em 2013, Alessandro Pinzani in “Democracia Versus Tecnocracia: Apatia e (2) Participação em Sociedades Complexas” , com base neste trabalho coordenado por Bourdieu e Boltanski, volta a esta questão referindo que como ideologia, neste caso, se entende o sistema de “valores e de finalidades” sociais considerados inquestionáveis e que para poderem ser, facilmente, socialmente aceitáveis, devem demonstrar ser “neutros” e baseados em pressupostos “científicos”. Esta “ideologia dominante” é produzida em lugares que se apresentam como neutros - universidades, institutos de pesquisa e comunicação social - procurando dar dela um aspecto científico e imparcial e tem como seus principais protagonistas os “peritos na matéria” ou tecnocratas. Os tecnocratas, por definição, confiam na eficiência e na eficácia do funcionamento dos “saberes” institucionais, independentemente dos contextos, não questionando nunca a validade do seu próprio conhecimento, nem e inevitabilidade dos “efeitos colaterais”, atendendo a considerarem o “conhecimento” baseado em leis naturais, imutáveis, fatalistas e inevitáveis. Pelo facto de a tecnologia ser neutra ficou mais fácil passar a ideia, à população em geral, que a tecnocracia também o é o que não passa de mais uma falácia. Supõe-se que é por se considerar esta “neutralidade” como meritória, que leva pessoas que ocupam lugares de gestão no Sector Cultural (3), há mais de vinte anos, a afirmarem publicamente com indisfarçável presunção, que são “tecnocratas na cultura” como aconteceu no caso da Directora-geral (**) da Fundação de Serralves, Dra. Odete Patrício, no âmbito duma conferência pública, em 2013 . Estas questões continuam a ser permanentemente actuais, nomeadamente em relação às políticas culturais e ao Campo Cultural e se, pelo que ficou dito, as abordagens tecnocráticas em quaisquer dos domínios sociais são perniciosas e dispensáveis, no domínio da Cultura são totalmente incompreensíveis e indesejáveis. Se é comum afirmar-se que uma sociedade sem Estado é uma selva e que quando o Estado desaparece surge a barbárie, nomeadamente protagonizada pelos fundamentalista ou pelos mafiosos, no que concerne ao Sector Cultural pensa-se que o mesmo poderá acontecer pela substituição, pura e simples, do Serviço Público do Estado de Direito Democrático pelo Mercado e seus tecnocratas. As posições tecnocráticas não são neutras, como tudo relativo às ciências políticas e sociais, tendo sempre um determinado fundo ideológico, mesmo que disfarçadas e a coberto do tão conhecido e já referido “défice democrático”.

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Em matérias como as do domínio Cultural, sensíveis pela sua natureza simbólica e imaterial, que exigem uma valoração essencialmente qualitativa, de grande exigência intelectual histórico-filosófica, difícil de formatar em modelos matemáticos ou “científicos”, as abordagens tecnocráticas socorremse, invariavelmente, da velha máxima do “torturam-se os números até eles confessarem” e os resultados acabam sendo uma forma de agradar e, sobretudo, desresponsabilizar e isentar politicamente e socialmente o “cliente-comprador” tradicionalmente governamental, relativamente às suas responsabilidades políticas e socias de patrocinar os indispensáveis apoios ao Sector Cultural de forma oportuna, isenta, transparente e responsabilizante. A isto se junta o impacto produzido e amplificado pela comunicação social sobre os “consumidorespagadores”, maioritariamente afastados destas questões por alheamento ou alienação, com alguns “números” que fazem o deslumbramento de qualquer vulgar cidadão, tais como os referidos no estudo encomendado pela DG Educação e Cultura da Comissão Europeia, “The Economy of Culture (4) in Europe”, KEA European Affairs, 2006 : “O sector cultural e criativo, em 2003, contribuiu para 2,6% do PIB, da UE (superior aos sectores imobiliário e de produtos alimentares e bebidas, indústria têxtil e indústria de produtos químicos) e totalizou um volume de negócios superior a 654 mil milhões de euros (superior ao da indústria automóvel), “O crescimento do sector cultural e criativo na Europa 1999-2003 foi de 12,3% maior do que o crescimento da economia geral.” Com estes números cuja natureza, origem e grandeza ninguém parece querer questionar demonstrase, subliminarmente, que o “sector cultural e criativo” no século XXI, já atingiu ou poderá vir a atingir uma confortável autonomia e sustentabilidade económico-financeira que, consequentemente, o dispensará da necessidade de quaisquer apoios institucionais. Mais recentemente, em 2010, surgiu um trabalho intitulado “O Sector Cultural e Criativo em Portugal, Estudo para o Ministério da Cultura - GPEARI” (5), encomendado pelo Ministério da Cultura de Portugal, dentro de uma orientação claramente tecnocrática, à empresa Augusto Mateus & Associados, Lda. - e não, como seria de esperar, ao OAC Observatório das Actividades Culturais prestigiada e competente instituição do Sector Cultural em Portugal. Esta empresa, com base e em linha com o estudo da KEA e outros, de orientação anglo-saxónica, desenvolveu o referido “estudo” para chegar, naturalmente, a um mesmo tipo de conclusões mas, agora, relativamente a Portugal, permitindo ao país ficar a saber que, de acordo com aquele estudo, o seu “sector cultural e criativo”, em termos tecnocráticos, estava em linha com a mundialização da economia. Quem se queira manter em linha com o objectivo estratégico da “Democratização e Descentralização da Cultura, não poderá acreditar que fugindo à realidade intrínseca do Sector Cultural - com abordagens orientadas cinicamente numa lógica de “ganso para foie gras” - se esteja a contribuir para o seu desenvolvimento sustentável nas suas vertentes, económica, social, tecnológica, organizacional e laboral, sobretudo para a satisfação das necessidades intelectuais, espirituais e emocionais de todos os cidadãos e súbditos que deveriam constituir-se, também, como desígnio de todas as Políticas Culturais. Entretanto, a sensibilidade que rodeia a questão do estabelecimento de uma Política Cultural Europeia, ao nível dos artigos consagrados nos Tratados, decorre do facto de no seu discurso estratégico a União Europeia, como não poderia deixar de ser, tende a considerar sempre “cultura” nas suas acepções mais abrangentes e não cultura no seu sentido mais estrito de Cultura Erudita. Porém, acontece que quando a União Europeia aborda as questões da Cultura numa perspectiva operacional, nomeadamente do ponto de vista Económico (Fiscalidade, Concorrência e Propriedade Intelectual), é no sentido estrito que o faz, acabando por implicitamente definir uma Política Cultural, relativamente a esses assuntos.

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As visões tecnocráticas, contrárias às sistémicas e humanistas, ao tratarem das partes sem olhar o todo com a sua contextualização, podendo satisfazer clientelas ou grupos de interesse circunstanciais, não contribuem para o desenvolvimento sustentável do que se entende por Sector Cultural. Como começou por ser introduzida e discutida no início do ante-projecto da Escola de Gestão das (6), (7) Artes , em1992, que posteriormente veio a dar origem aos programas de PgGC Pós-graduação em Gestão Cultural, a orientação específica para uma Gestão Cultural profissional, numa perspectiva tecnocrática não fará sentido pois, qualquer tecnocrata, com alguma formação Gestão, se continuará a achar capaz de gerir uma organização Cultural em todas as suas múltiplas e idiossincráticas dimensões. _________________________________________________________________________________ * António Jorge Monteiro Professor convidado, Orientador e Investigador na área de Gestão de Projectos Culturais. Coordenador de múltiplos Projectos e Programas de Pós-graduação e Mestrado em Gestão Cultural, em diversas Escolas Superiores e Universidades, nacionais e internacionais. Escreve em Português-padrão consuetudinário. _________________________________________________________________________________

Referências bibliográficas [a]

documento disponível em Gestão Cultural Profissional / gestaoculturalpt.blogspot.com / Documentação

(**)

Candidatura autárquica “O Nosso Partido é o Porto! / Rui Moreira”, “Conversas à Porto: a Cultura”, primeira sessão, Hotel Vila Galé, Porto, 20 Abril 2013. Citação de memória atendendo a não ter sido facultado o acesso ao registo audiovisual da conferência. (1) [a]

Bourdieu, Pierre; Boltanski, Luc - “La production de l'idéologie dominante”, in “Actes de la recherche en sciences sociales, Vol. 2”, nº 2-3, Juin 1976. (2) [a]

Pinzani, Alessandro - “Democracia Versus Tecnocracia: Apatia e Participação em Sociedades Complexas”, Lua Nova, São Paulo, 2013. (3) [a]

Monteiro, Antonio Jorge - “Campo Cultural e Gestão Cultural Profissional / Cultura: algumas definições e conceitos”, edição PDF, Porto, Abril 2015. (4) [a]

KEA European Affairs - “The Economy of Culture in Europe, European Commission”, Directorate-General for Education and Culture, Brussels, October 2006. (5) [a]

Mateus, Augusto (coordenação) - “O Sector Cultural e Criativo em Portugal”, GPEARI - Gabinete de Planeamento, Estratégia, Avaliação e Relações Internacionais do Ministério da Cultura, Lisboa, Janeiro 2010. (6) [a]

Monteiro, António Jorge - “Projecto de criação de uma escola de Gestão das Artes - Algumas considerações estratégicas”, edição PDF, Porto, Abril 1992. (7) [a]

Monteiro, António Jorge - “Gestão das Artes: uma contribuição”, jornal Público, Porto, 10 Abril 1994. _________________________________________________________________________________ Gestão Cultural Profissional / gestaoculturalpt.blogspot.com | Junho 2015 | v1.1

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