Cultura escrita, imaginação literária e sentimentos na história: o \"cultivo do ódio\" em Drácula (1897) e The Lair of the White Worm (1911), de Bram Stoker

June 28, 2017 | Autor: Evander Ruthieri | Categoria: History and literature, Bram Stoker
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CULTURA ESCRITA, IMAGINAÇÃO LITERÁRIA E SENTIMENTOS NA HISTÓRIA: O “CULTIVO DO ÓDIO” EM DRÁCULA (1897) E THE LAIR OF THE WHITE WORM (1911), DE BRAM STOKER

Evander Ruthieri S. da Silva (Universidade Federal do Paraná)

Resumo: Este estudo intenciona analisar as circunstâncias do sentimento de ódio na produção literária do romancista anglo-irlandês Bram Stoker (1847-1912), com ênfase em seus romances Drácula (1897) e The Lair of the White Worm (1911). Ao avaliar a experiência histórica das classes médias ao longo do século XIX, o historiador Peter Gay caracteriza o período como um tempo em que prevalece o “cultivo do ódio”, que se desdobra em intenso debate acerca das propriedades redentoras da violência e do conflito. Os pressupostos metodológicos deste estudo voltam-se à literatura de Bram Stoker a partir do desafio de localizar sua produção em meio a esta rede de interlocução do ódio, sobretudo as apropriações de noções amplamente difundidas pela ciência oitocentista e que forneciam álibis para a agressividade. A análise das fontes é tributária a três abordagens teóricas: os estudos das emoções e dos sentimentos na história; a contribuição teórica do conceito de imaginário social, ao pressupor a capacidade de textos oriundos do campo da ficção em pautar condutas e mobilizar ações; a noção de cultura escrita, pois enfatiza os usos e as interpretações de textos, neste caso, inseridos em um panorama cultural abalizado pela apoteose do conflito. A literatura de Stoker evidencia um conjunto de hostilidades delineadas por elementos sociais e políticos, na medida em que o “cultivo do ódio” está pautado no combate à ameaça estrangeira, estratagema típico de artefatos culturais promovidos sob a égide dos projetos imperialistas no século XIX. Estes elementos demonstram que a produção literária de Stoker ressignifica tensões e ansiedades que permeavam a sociedade finissecular, marcada pelo entusiasmo frente às políticas colonialistas amparadas em noções raciais e à forte presença de interesses das classes médias nos campos político e cultural. Palavras-chave: História e Literatura; Bram Stoker; imaginação literária; cultura escrita; sentimentos na história. Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/CAPES.

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Introdução

Nas últimas décadas do século XIX e no início do século XX, as potências ocidentais lançam-se à corrida imperialista com o afã de conquistar ou subjugar colônias ultramarinas por intermédio de estratégias políticas, econômicas ou militares. Este entusiasmo intensifica-se a partir de 1870, sobretudo entre os ingleses, que passam a deter influência sobre vastos territórios na Ásia, na África e na Oceania. A expansão do império britânico encontra amparo em expressivos setores da intelectualidade oitocentista, os quais visam reforçar a suposta superioridade do homem branco e naturalizar as distinções entre europeus e não-europeus, estes associados à selvageria e ao barbarismo, e, destarte, passíveis de serem colonizados e conduzidos ao que se considerava como um ideal de civilização. Parte significativa da literatura gestada nesta conjuntura histórica associa-se a uma rede de interlocução textual abalizada pela presença dos projetos coloniais e das ações imperiais enquanto elementos latentes ou interesses centrais de literatos e romancistas, responsáveis por elaborar figurações imaginárias que elogiam e problematizam as conquistas e as proezas nos territórios coloniais. Simultaneamente, estes romances catapultam as ações de indivíduos comuns, oriundos das ansiosas classes médias vitorianas, que se tornam personagens aventureiros ou descobridores, a conquistar territórios ou a combater ferozmente inimigos advindos das regiões almejadas pela expansão imperial oitocentista. As ameaças coloniais tornam-se depositárias dos temores e dos ódios cultivados entre os vitorianos, ao mesmo tempo em que suas representações literárias auxiliam a legitimar as condutas violentas apreciadas por estes europeus inquietos. Estes elementos estão presentes na produção literária do anglo-irlandês Bram Stoker (1847-1912), sobre o qual este estudo se detém, no escopo de analisar as circunstâncias históricas e culturais do sentimento de ódio em seus romances Drácula (1897) e The Lair of the White Worm (1911). A escrita literária de Stoker associa-se a um imaginário oitocentista permeado pela ansiedade de esboçar convenientes alteridades, monstros e criminosos, cujas representações fossem capazes de justificar um “cultivo do ódio” (GAY, 1995) pautado no imperialismo e no racismo. Por isso, a atenção especial da análise que ora se apresenta, volta-se às figurações textuais dos 1440

personagens estrangeiros nos romances referenciados, por intermédio do esforço de investigar os fios e os rastros que posicionam a literatura de Stoker em um panorama cultural marcado por ansiedades advindas da aventura imperial.

Entre a cultura escrita e o imaginário: a escrita literária de Bram Stoker e o imperialismo A produção literária do romancista Bram Stoker1 encontra-se alinhavada a um momento histórico marcado pelo entusiasmo partilhado por setores da intelectualidade europeia, diante dos avanços do imperialismo oitocentista. Muitos dos romances gestados neste processo projetam homens comuns convertidos em personagens aventureiros que promovem fortunas e impérios, mas também suscitam uma imagem sombria e multifacetada que se delineia na literatura de horror, sobre a qual se vislumbram temores e ansiedades relacionados às ameaças advindas das regiões almejadas pelo neocolonialismo. Estes personagens são representados como estrangeiros e periculosos, depositários do ódio e do medo cultivado entre os vitorianos, metáforas para as imagens de selvageria e barbárie associadas às áreas coloniais pela propaganda imperialista. Em consequência, a literatura atua na elaboração de referenciais para um imaginário do imperialismo, de modo a promover figurações identitárias e efígies da alteridade comumente manifestas em personagens monstruosas, a exemplo do sanguinolento conde Drácula, oriundo do leste europeu no homônimo romance de Stoker, ou mesmo o temível negro africano Oolanga, em The Lair of the White Worm. A composição destas personagens, em contraposição a bravos heróis e virtuosas heroínas vitorianas, alimenta as paixões e os sentimentos calcados em narrativas dos fatos e das aventuras imperiais.

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Bram Stoker nasceu em Dublin e faleceu em Londres (1847-1912). Na década de 1870, após graduarse em Matemática no Trinity College, em Dublin, iniciou sua trajetória intelectual como literato, publicando textos em folhetins em paralelo às suas atividades profissionais de amanuense. Em 1878, após ser contratado pelo ator inglês Sir Henry Irving, Stoker muda-se para Londres, cidade na qual exerceu cargo administrativo no Lyceum Theatre, companhia teatral sediada em West End. A partir da década de 1890, publicou romances sentimentais e novelas de horror, a exemplo de Drácula (1897), The Jewel of the Seven Stars (1903) e The Lair of the White Worm (1911). Exerceu atividades na imprensa londrina, sobretudo nos periódicos The Daily Telegraph e The Nineteenth Century. Sobre a biografia de Stoker, ver LUDLAM, 1962; BELFORD, 1996.

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Dentre todas as formas literárias, o romance propiciou importante via de consolidação das experiências sociais ao final do século XVIII e ao longo do século vitoriano, de modo a enfatizar “a sociedade humana em seu movimento e de empreender o esforço de dar sentido e unidade a um mundo que começava a se desenhar como caótico e fragmentado, que apartava o privado e público” (VASCONCELOS, 2007, p.58). A expressividade do romance oitocentista na constituição de formas de sentir e interpretar a tessitura social também se deve a uma relativa democratização do acesso à leitura e à consolidação de uma indústria cultural, sobretudo após a substituição do romance em formato de três volumes por um único tomo de preço mais acessível, acompanhado pela existência de um mercado editorial pautado em bibliotecas circulantes (JAMESON, 1992, p.23;213-216). Ao público leitor, do fin-de-siècle ofertam-se romances aventurescos ou sentimentais, novelas de crime e de sensação, os quais somam-se a obras literárias associadas ao “gótico imperial” (BRANTLINGER, 1988): narrativas que combinam um entusiasmo pelos avanços científicos permeado por elementos do oculto ou sobrenaturais, bem como uma frequente reafirmação dos ideais darwinistas concernentes ao imperialismo em reação à sombra persistente de um possível declínio imperial. Em meio à consolidação de narrativas culturais e visões literárias do imperialismo, o romance oitocentista atua enquanto referência social e forma estética por excelência, capaz de promover e elogiar as virtudes e as energias ou promulgar as possibilidades de ação e negociação de heróis e heroínas pertencentes às classes médias empreendedoras. A esfera cultural (a exemplo, mas não exclusivamente, de obras literárias e artísticas) projeta a potencialidade do poder imperial britânico nas colônias, pois “o império funciona para boa parte do século XIX europeu como uma presença codificada na literatura, ainda que apenas marginalmente visível” (SAID, 2011, p.119). Estas conquistas coloniais encontram suporte em um conjunto de ideias fomentadas pela intelectualidade europeia e das interpenetrações entre o campo científico e o literário, que ao longo do século XIX estabelecem noções raciais amparadas em níveis de “superioridade” e “civilização”, por meio das quais as distinções culturais de povos não-europeus eram consideradas como evidências de “selvageria” e “imoralidade” (REYES, 2011, p.311).

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A apreciação do lugar ocupado pela literatura na constituição das figurações imaginárias do império e do imperialismo demonstra que tais representações “não são simples imagens, verídicas ou enganosas, do mundo social. Elas têm uma energia própria que persuade seus leitores ou seus espectadores que o real corresponde efetivamente ao que elas dizem ou mostram” (CHARTIER, 2011, p.27). Ademais, a atenção especial concedida à força da cultura escrita em promover representações literárias e imaginários sociais atenta-se aos usos e às interpretações dos textos e dos livros, permeados por sentidos e significados históricos, competências e convenções. A eficácia das significações atribuídas aos textos evidencia os corolários que norteiam as vias pelas quais os indivíduos e os grupos sociais “vivem e pensam sua relação com o mundo” (CHARTIER, 1994, p.9) ao inscrever sentimentos e razões nas tramas da ficção. Por isso, o desafio metodológico de analisar a formulação das narrativas de ódio na literatura de Bram Stoker, enquanto sentimento fortemente vinculado ao imperialismo, remete a uma articulação entre o escrutínio de substratos da cultura escrita e os indícios textuais dos imaginários sociais. Os imaginários formulados pela escrita literária neste momento histórico de ampla difusão de textos e imagens por vias impressas entre romances, periódicos e folhetins, associam-se aos componentes simbólicos que atuam “na estruturação do vínculo social e das identidades que este põe em jogo” (RICOEUR, 2007, p.198). Até porque, a referência teórica ao conceito de imaginário ou imaginação social proposta por Bronislaw Baczko atenta-se às imagens e textos por meio dos quais uma “coletividade designa a sua identidade; elabora uma certa representação de si; estabelece a distribuição dos papéis e das posições sociais; exprime e impõe crenças comuns” (BACZKO, 1985, p. 309). Os sistemas simbólicos sobre os quais se assentam os imaginários sociais constroem-se a partir das experiências dos atores sociais, de seus sonhos, expectativas e anseios, explorados de modo ávido pelos literatos oitocentistas, responsáveis por tornar “seu tempo na era do romance da sociedade” (GAY, 2000, p.120). Dentre as figurações promovidas pela ficção oitocentista, o imaginário do império retratado nos romances góticos ao fin-de-siècle enfatiza três principais temáticas: a constante ameaça de regressão ou degenerescência do indivíduo e da nação; a invasão de forças bárbaras no âmago da civilização; e a diminuição das possibilidades 1443

de aventura no cerne do mundo moderno (BRANTLINGER, 1988, p.230). Este último aspecto desloca o espaço de ação dos personagens para regiões interpretadas como desconhecidas, exóticas ou selvagens: seja a Transilvânia em Drácula, habitada por séquitos de ciganos supersticiosos, ou o interior rural da Inglaterra em The Lair of the White Worm, onde se esconde a bestial serpente, sua mestra, a cruel Lady Arabella March e o aristocrata monomaníaco, Edgar Caswall. Fragmentos destes imaginários podem ser localizados em um vasto conjunto de fontes, circunscritas neste estudo aos romances de Bram Stoker, em cujas narrativas projeta-se o ódio ansioso pelo estrangeiro, representado como bárbaro ou monstruoso, e partilha-se as paixões ternas pelo combate e pelo conflito. Esta ficção volta-se à formação de leitores masculinos, pois atua como um “anseio de fuga de uma sociedade sufocante, de estruturas rígidas em termos de raça, classe e sexo, para um lugar mitificado (...), onde os homens possam se libertar das restrições do moralismo vitoriano” (SHOWALTER, 1993, p.115). O escopo narrativo destes romances aventurescos recai sobre a ação de arrivistas sociais que galgam a forte hierarquia presente nos setores conservadores da sociedade europeia, ou, incapacitados e ressentidos, conquistam fortunas e propriedades em terras estrangeiras, de modo a tornarem-se indivíduos economicamente independentes, o que ocorre com os respectivos protagonistas de Drácula e The Lair of the White Worm: respectivamente, o advogado Jonathan Harker e o aventureiro Adam Salton. Tais elementos posicionam parte da produção literária de Bram Stoker em um campo de interlocução abalizado por temores e hostilidades sociais, na medida em que os personagens monstruosos ou criminosos tornam-se metáforas das ansiedades que cercam as “estruturas de sentimento” (expressão de Raymond Williams) associadas ao “cultivo do ódio”. Afinal de contas, “o princípio que leva o homem a agir é o „coração‟” (BACZKO, 1985, p.301), repleto de paixões e desejos que, no interior da cultura vitoriana, exasperam a agressão como um elemento humano essencial, uma reação às provocações e aos constrangimentos cotidianos (GAY, 1995, p.12). Seja na indústria, no campo de batalha, nas competições esportivas ou mesmo no humor mordaz da imprensa periódica, os vitorianos cultivam o ódio e buscam ofertar legitimidade à violência, compondo um imaginário da agressividade expresso em inúmeros textos e

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imagens, dos quais Drácula e The Lair of the White Worm permitem vislumbrar as instâncias destes sentimentos em um panorama imperial. Alteridades convenientes: O ódio imperial em Drácula e The Lair of the White Worm Dentre as classes médias oitocentistas, os rumores de guerra, as rivalidades entre grupos sociais, raciais ou étnicos, os ódios gestados pelos nacionalismos e pelo imperialismo, bem como os embates na esfera privada, fornecem convicções de que o confronto e a agressividade eram parte inerente da experiência humana (GAY, 1995, p.11-15). Por isso, “ao promover suas disputas sinceras” os vitorianos desenvolveram “álibis para a agressão: crenças princípios, platitudes retóricas que legitimavam a militância verbal ou física em terrenos religiosos, políticos, ou, melhor que tudo, científicos” (GAY, 1995, p.14). A imaginação literária e a cultura escrita atuam na projeção destas estruturas de sentimento, pois se apropriam de enunciados (sobretudo, de caráter científico) que justificam a agressividade em vias de canalizar o ódio e legitimar as proezas da aventura imperialista. Sintomático, portanto, de uma “uma qualidade particular da experiência social e das relações sociais, historicamente diferente de outras qualidades particulares” capazes de fornecer “o senso de uma geração ou de um período” (WILLIAMS, 1979, p.134). Na segunda metade do século XIX, os expoentes intelectuais do ódio cultivado na cultura vitoriana esforçam-se em elaborar justificativas para a agressão, sustentadas no que apresentavam como provas científicas. Desta forma, “os defensores vitorianos do conflito tinham um ponderável testemunho acadêmico de seu lado, sobretudo depois de 1859, quando Charles Darwin publicou seu Origins of species” (GAY, 1995, p.46), pois tornou amplamente sugestiva a percepção de que a história era um frequente embate do qual apenas os mais fortes e mais aptos prevaleceriam, proposição localizada também no evolucionismo social de Herbert Spencer e em sua obra Social Statistics (1850). Seus leitores vitorianos buscam justificar as vantagens da agressão e da concorrência nos campos econômico, social e militar, o que incluía estratagemas imperiais imbuídos de noções raciais que almejam representar povos não-europeus como incivilizados. A literatura, de modo semelhante, permeia-se de narrativas das emoções, a exemplo da inveja e do ódio, os quais sugerem uma 1445

crescente preocupação sobre as perdas e os ressentimentos, frequentemente cerceando suas fontes na essência das ansiedades individuais (KERN, 2004, p.190). Alinhavada a estas questões, a produção literária de Bram Stoker celebra o ódio e o conflito enquanto força redentora das proezas vitorianas, expressas no combate ao elemento advindo do estrangeiro. Esta celebração do conflito fica evidente em Drácula, quando o núcleo de personagens vitorianos, liderado pelo aristocrata Arthur Holmwood e pelo advogado Jonathan Harker, parte em direção à Transilvânia, com o objetivo de destruir o conde vampiro e eliminar a ameaça por ele representada. Entretanto, o conde é protegido por um séquito de ciganos romenos, representados na narrativa como supersticiosos, combativos e desordenados. O culto da honra, valorizada entre os vitorianos por intermédio de duelos institucionalizados, contrasta com a violência desenfreada dos ciganos, que atacam “de modo desigual, e aos empurrões, ansiosos” (STOKER, 1994, p.446). Por outro lado, “no ardor da batalha”, como descreve Mina Harker ao presenciar o combate, “a impetuosidade de Jonathan, e a manifestação singular de sua vontade, parecia inspirar temor em todos à sua volta” (STOKER, 1994, p.446), assertiva sugestiva do conflito no território da alteridade, na Transilvânia de Stoker, e da apologia às proezas físicas destes indivíduos das classes médias. O campo de batalha, na perspectiva da personagem Mina, evidencia a reafirmação do ímpeto e do senso de honra entre os cavalheiros vitorianos, bem como a ódio cultivado ao estrangeiro como elemento norteador dos atos violentos: “nada parecia impedi-los ou atrasá-los. Nem mesmo as armas ou as lâminas dos ciganos que os confrontavam, ou o uivar dos lobos às suas costas” (STOKER, 1994, p.446). Até mesmo o advogado Jonathan Harker aspira às glórias no confronto, pois “com energias desesperadoras” (STOKER, 1994, p.447), lança-se em meio aos ciganos com o intento de alcançar a carruagem que contém o esquife do vampiro Drácula, uma ameaça que corrompe e degenera suas vítimas. Estes elementos demonstram um entusiasmo, por parte de Stoker e seus personagens, frente às vitórias em território estrangeiro, até porque, no romance oitocentista, as conquistas imperiais comumente associam-se “à possessão sistemática, a espaços vastos e por vezes desconhecidos, a seres humanos excêntricos ou inaceitáveis, a atividades aventurosas ou fantasiadas, como a emigração, o enriquecimento e a aventura sexual” (SAID, 2011, p. 120).

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Muito embora o literato anglo-irlandês não tenha se envolvido diretamente com os entraves políticos ligados à administração de colônias ultramarinas, a trajetória literária de Bram Stoker e seus laços de sociabilidade intelectual evidenciam um engajamento, mesmo que tímido, mas ainda assim nítido, às aventuras imperiais. Desta forma, em suas memórias narradas em Personal Reminiscences, Stoker afirma que o explorador britânico Henry Stanley, associado à presença europeia na região africana do Congo e equivalente histórico a diversos personagens aventureiros na literatura oitocentista, solicitou-lhe que indicasse “homens jovens, bravos e fortes, para acompanhá-lo à África, e ofereceu-se a aceitar qualquer um que eu recomendasse” (STOKER, 1906, p.235). Por extensão, dedica um capítulo a Sir Richard Burton, “um homem de aço” e uma “autoridade em tudo relacionado a espadas” (STOKER, 1906, p.225-226), explorador e orientalista responsável pela introdução de textos orientais ao público leitor vitoriano (a exemplo de Arabian Nights, 1885, entre inúmeros relatos de viagens pela África, pela Índia e pela América do Sul), sociabilidades sintomáticas da presença latente de aventureiros do império na trajetória intelectual do romancista. Este engajamento fica visível nas fantasias ficcionais e no imaginário literário promovido por romancistas finisseculares, por meio dos quais o homem vitoriano, ao embrenhar-se nos mundos perdidos almejados pelas conquistas imperiais, se apropria de valores outrora considerados incivilizados para fortalecer-se, pois o “atavismo se torna um sinal de força ao invés de fraqueza ou criminalidade; impulso ou irracionalidade podem ser vistos como autenticidade passional masculina; e a regressão (...) oferece uma fantasia fortalecedora ao invés de uma ansiedade paralisadora” (DEANE, 2008, p.207). Em decorrência deste “cultivo do ódio”, atitudes e condutas violentas são agregadas e legitimadas pela combatividade do europeu orientado por ideais civilizatórios simbolizados em Drácula pelos triunfantes vitorianos que finalmente destroem a ameaça estrangeira ao aniquilarem o conde vampiro. Os desesperados ciganos, “voltaram-se sem dizer uma palavra e fugiram como se desejassem salvar a própria pele” (STOKER, 1994, p.448), resignados em vias de cumprir seu papel de outro simbólico diante do bravo vitoriano. As figurações de estrangeiros periculosos na produção intelectual de Bram Stoker estão em consonância com as proposições de álibis para a agressão entre os vitorianos, dos quais três justificativas são significativamente expressivas: 1447

A primeira, a concorrência, originou-se em uma moderna teoria biológica e chegou a permear a vida econômica, política, literária e até mesmo privada das décadas vitorianas; a segunda, a construção do outro conveniente, era uma composição de “descobertas” pseudo-científicas relativamente recentes e dos habituais e agradáveis preconceitos; a terceira, o culto da masculinidade, era uma adaptação no século XIX do ideal aristocrático de bravura (GAY, 1995, p.43).

Indubitavelmente, esta busca pelo “outro conveniente”, capaz de legitimar a agressividade, valeu-se, ao longo do século XIX, de inúmeras indagações acerca das patologias, dentre as quais o recurso às teorias raciais encontrou terreno fértil graças ao incansável empenho em fornecer “explicações científicas para odiar ou desprezar os estrangeiros” (GAY, 1995, p.77). Nada mais conveniente do que atribuir ao sangue a capacidade de transmitir qualidades raciais, situação que ecoa na urgência, entre os personagens vitorianos de Stoker, em perseguir e destruir o conde vampiro, um estrangeiro por excelência, que se alimenta do sangue de jovens mulheres e as infecta com sua influência maligna. O trinômio baseado no ódio-imperialismo-racismo encontra seu ápice, na escrita ficcional de Bram Stoker, nas representações literárias do personagem Oolanga, o lacaio africano do aristocrata Edgar Caswall, antagonista de The Lair of the White Worm. Sobre Oolanga, recai o peso das teorias raciais ressignificadas pela literatura, pois o personagem torna-se alvo da desconfiança e do ódio nutrido pelo protagonista da última novela de Bram Stoker, Adam Salton. Oolanga é descrito como “um monstro” pertencente “ao mais primitivo e rudimentar nível de barbarismo. Qualquer um que matá-lo quando for necessário, não precisa temer a punição, mas sim esperar louvor” (STOKER, 1999, p.60). Esgueirandose por entre as florestas e mansões, o lacaio é representado como “uma sombra negra entre nós, (...) parecendo tão maligno quanto antes” (STOKER, 1999, p.57). As constantes referências às suas características fisionômicas, a exemplo de seu rosto “em estado puro e intocado, um bruto selvagem, portando em si todas as terríveis possibilidades de uma cria demoníaca da floresta e do pântano - a mais baixa e repugnante de todas as coisas criadas em alguma forma aparentemente humana” (STOKER, 1999, p.30), endossam a apropriação, por parte da literatura, dos postulados raciais considerados científicos ao longo do século vitoriano. Drácula e Oolanga: degenerados e periculosos, a presença destes estrangeiros em solo britânico representa uma ameaça a ser combatida com urgência, um resquício das revoltas e 1448

rebeliões coloniais, a exemplo da insurgência dos Cipaios, na Índia (1857) e das guerras anglo-afegãs (1839-1842; 1878-1880). Os temores provenientes destes personagens invasores evidenciam um lugar recorrente na literatura inglesa, associado às ansiedades de um iminente declínio nacional, da decadência urbana e das ameaças à pureza racial implicadas pelo contato com imigrantes (ARATA, 1996, p.110). Ademais, a região da Transilvânia (atualmente parte da Romênia), “um redemoinho das raças europeias”, que causa em Jonathan Harker a impressão de estar “deixando o Ocidente e entrando no Oriente” (STOKER, 1994, p.9-41), vincula-se ao que convenciona-se chamar de “questão oriental” ao longo do século vitoriano: a emergência de movimentos nacionalistas no leste europeu e na península balcânica em decorrência do enfraquecimento do império Otomano. A infiltração do conde vampiro nas ruas enevoadas de Londres e no coração do império, portanto, remete ao medo da miscigenação racial e da invasão do colonizado, circunstância igualmente evidente no personagem de Oolanga, em The Lair of the White Worm. Os termos utilizados para qualificar suas condições raciais remontam às classificações e hierarquias reelaboradas por médicos e eugenistas vitorianos, muito oportunas nos esforços de legitimação das “ambições políticas e estratégias internacionais” e no apoio às “ambições econômicas ultramarinas, promessas de investimento e de lucros” (VIDROVITCH, 2004, p.773). As narrativas construídas em torno de Oolanga aludem aos medos da degenerescência das raças em decorrência da miscigenação, preocupação que recebe visibilidade a partir das teses difundidas por Francis Galton ao fin-de-siècle. Para Galton e seus leitores, sob influências intelectuais do evolucionismo e do darwinismo, a única solução para a degeneração era a eugenia, corrente da ciência oitocentista que defendia a possibilidade de aperfeiçoamento da espécie humana. Estas conjecturas acerca das distinções raciais difundem-se em setores da sociedade europeia na metade do século, a exemplo dos influentes escritos do francês Arthur de Gobineau e de seu pessimismo racial, mas as implicações do discurso eugenista finissecular fornecem substratos a todo um imaginário literário em torno da periculosidade proveniente do contato entre raças distintas em um panorama imperial. Entre Oolanga e a ambiciosa Lady Arabella March, Stoker demarca uma série de comparações fisionômicas que referenciam os paradigmas da eugenia: 1449

Eles eram exatamente opostos em todas as características da aparência e, até o que ele [Adam] conseguia julgar, mesmo em traços mentais e morais. A garota era do tipo caucasiano, bela, uma loira saxônica, com uma face de leite e rosas, altamente educada, inteligente, serena por natureza. O outro negróide era do tipo mais baixo; terrivelmente feio, cruel, brutal (STOKER, 1999, p.31).

Para os eugenistas do início do século XX, momento de institucionalização da eugenia enquanto pretenso campo científico, o aprimoramento racial poderia ser garantido pela seleção e reprodução de determinados atributos físicos e mentais. A narrativa de The Lair of the White Worm, por sua vez, lança ao cerne do debate a periculosidade e a aversão diante da possibilidade de miscigenação e contaminação racial, pois o negro Oolanga declara suas paixões por Lady Arabella, imediatamente horrorizada diante dos avanços do lacaio. A reação da aristocrata é o escárnio e a sátira, pois “as circunstâncias eram muito grotescas, o contraste muito violento, até mesmo para moderar o riso. O homem, um servo, de uma feiúra que era simplesmente diabólica; a mulher, de alto grau, bela, resoluta” (STOKER, 1999, p.107). Apesar do antagonismo representado por Lady Arabella na novela, o ódio racial é compartilhado pelo protagonista, o arrivista Adam, que não mede esforços em alertar sobre Oolanga: “é melhor que ele tome cuidado. Não sou usualmente um homem paciente, e a visão daquele horrível demônio é o suficiente para ferver o sangue de um esquimó” (STOKER, 1999, p.58), posicionamento sintomático do ódio cultivado entre os vitorianos em relação ao estrangeiro vindo das colônias, que na imaginação literária de Stoker é descrito como um homem verdadeiramente monstruoso e degenerado. Ao abordar personagens estrangeiros e sua inerente periculosidade a partir de noções pautadas em tipologias provenientes da ciência e da eugenia, a escrita literária de Bram Stoker associa-se a um imaginário do imperialismo baseado em estruturas de sentimento do ódio e do temor às ameaças coloniais. Estas representações literárias fornecem justificativas para os avanços ultramarinos, sobretudo após 1870, momento em que aos ingleses, em vias de proteger suas colônias “e defendê-las contra outras potências rivais, por exemplo, a Rússia, tornou-se necessário que a expansão imperial chegasse à África, ao Oriente Médio e ao Extremo Oriente” (SAID, 2011, p.132). A ficção reforça e reafirma o posicionamento dos vitorianos nestes estratagemas políticos e militares, ao mesmo tempo em que projeta a participação e o engajamento das ansiosas classes médias (seja por parte de suas personagens ou pelo próprio Stoker), 1450

cujas proezas ficam evidentes no campo de batalha contra os estrangeiros retratados na cultura escrita e literária. Por isso, o entusiasmo decorrente das intervenções coloniais inglesas em Hong Kong (1843), no Afeganistão (1878), e no Egito (1882), dentre outras, pode ser interpretado em associação a um imaginário permeado por sensibilidades e razões que visam legitimar a expansão imperial e ressoam na ficção de Bram Stoker. Considerações finais A aproximação entre história e literatura permite visualizar um conjunto de questões sensíveis, de sentimentos e emoções narrados pela cultura escrita de uma determinada conjuntura histórica, que atuam no mundo social de modo a produzir figurações identitárias, alteridades e imaginários sociais. Na segunda metade do século XIX, parte significativa da produção literária de língua inglesa permeia-se por narrativas da aventura imperial. Estes romances descrevem as ações de indivíduos comuns das classes médias, os quais subitamente tornam-se aventureiros e exploradores, capazes de contribuir com a suposta superioridade do homem europeu e do império britânico ao combaterem inimigos oriundos das regiões limítrofes ou periféricas, descritos como selvagens ou bárbaros, personagens degenerados e periculosos. Elementos deste imaginário da conquista colonial vislumbram-se nos romances de Bram Stoker, associados às novelas aventurescas e ao chamado “gótico imperial”. A especificidade de sua produção literária pauta-se na ameaça representada pela infiltração do elemento estrangeiro no coração do império, notadamente o conde Drácula, no homônimo romance vampiresco, e o personagem de Oolanga, em The Lair of the White Worm. Estes personagens ficcionais tornam-se depositários de um cultivo do ódio, pois tratam de alteridades convenientes cuja presença justifica a agressão e a violência como aspectos redentores e constituintes das proezas dos homens bravos e dos cavalheiros vitorianos. Na imaginação literária de Stoker, o africano Oolanga, o aristocrata Drácula e seus servos ciganos associam-se às iminências de um suposto declínio imperial e os perigos da miscigenação racial, fontes das quais emanam ansiedades que urgem ao confronto e legitimam a presença combativa europeia, dentro e fora dos limites imperiais.

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A projeção destes sentimentos de ódio e destas ansiedades em relação aos estrangeiros evidencia o engajamento de Bram Stoker, um homem de classe média, não muito distante de seus personagens ficcionais, com os sonhos, desejos e entusiasmos (e as incertezas) relacionadas às conquistas ultramarinas no final do século XIX. A escrita literária e a cultura escrita esforçam-se em explorar os corações atormentados e as mentes prolíficas de personagens, ao mesmo tempo em que investem na constituição de sensibilidades e visões de mundo, altamente indicativo da força da ficção, enquanto objeto cultural, em fornecer aos historiadores substratos para o destrinchar das paixões, dos medos e dos temores cultivados no tempo pretérito.

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