CULTURA, HISTÓRIA E LITERATURA: UM OLHAR SOBRE A INQUISIÇÃO ESPANHOLA

June 6, 2017 | Autor: Sandro Marengo | Categoria: The Spanish Inquisition, Estudos Culturais, Crítica textual, Filología Hispánica
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Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil

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CULTURA, HISTÓRIA E LITERATURA: UM OLHAR SOBRE A INQUISIÇÃO ESPANHOLA

Sandro Marcio Drumond Alves -UFS /UFMG Valéria Jane Siqueira Loureiro -UGB/FERLAGOS

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Este trabalho tem por objetivo expor as relações entre a Literatura e a História sob um prisma filológico-cultural. Buscando uma melhor compreensão das áreas de atuação dos campos especificados e quais seriam suas possibilidades de articulação em torno a um objeto de estudo comum, centramos o foco deste trabalho em um documento inquisitorial espanhol do século XV e na reconstituição histórica do caso histórico Santo Niño de La Guardia, que foi o primeiro processo inquisitorial contra um judeu não-converso. Além disso, cabe ressaltar que o texto do objeto de nosso estudo foi a base da composição de obras literárias como, por exemplo, El Niño Inocente de Lope de Vega. Partindo dos estudos de Prado Moura (2003) e Drumond Alves (2005) mostraremos a importância cultural dos manuscritos inquisitoriais e como esse farto material serve de documentação remanescente para (re)construir aspectos importantes da cultura espanhola, da História Social, da Historiografia e, ainda, funcionar como gênese de obras literárias espanholas.

2.

A HISTÓRIA DO SANTO NIÑO DE LA GUARDIA E AS FONTES

FILOLÓGICAS

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Não há nenhum documento escrito que ateste o nascimento nem tampouco o território de origem do intitulado Santo Niño de La Guardia. De acordo com Martinez Moreno (2000), os documentos consultados na diocese do bispado de Toledo apenas registram informações sobre seus pais. Dentro do povoado da época eram conhecidos como Alonso Pasamontes e Juana la Guindera e ambos eram de origem toledana. Obras literárias como as peças teatrais “El niño inocente de La Guardia” de Lope de Vega e “La viva imagen de Cristo” de D. José de Cañizares são alguns exemplos de documentação histórica que afirmam que a criança se chamava Juan e que seu nome, posteriormente, teria sido mudado, pelos judeus que o raptaram, para Cristóbal, como uma forma de deboche e escárnio ao nome do salvador dos cristãos, Jesus Cristo. Ainda estes mesmos escritores (o primeiro, no século XVII e o outro, no século XVIII) nos dizem que a criança seqüestrada nasceu em Toledo, assim como seus pais, e que teria sido batizada na igreja paroquial de San Andrés. Em investigação ao nascimento do Santo niño de La Guardia nos afirma Martinez Moreno (2000, p. 09) [...] deseoso yo de averiguar la verdad, pasé a Toledo, por ver si en el archivo de la referida Iglesia se hallaba la partida de su bautismo, y tuve el desconsuelo de saber que los libros eran todos posteriores al tiempo del martirio, pero me certificó el propio cura, que por una especie de tradición continuada hasta estos tiempos sin interrupción, se tiene por cierto que el Santo Niño fue bautizado en dicha su parroquia y nació en una casa distante del pórtico de esta villa por la parte del Norte como veinte pasos.

Outra fonte que também pode ser utilizada em uma possível afirmação de que o Santo niño tenha nascido em Toledo é uma carta escrita pelo Cabido da Primada da cidade de Toledo, no ano de 1613, ao senhor Cardeal Borja, recomendando-lhe a aprovação da oração de louvor ao Santo niño que ele havia apresentado ou que estava ainda para apresentar à Sagrada Congregação. No início da carta, o Cabido afirma que o Arcebispo de Toledo também exerce

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funções religiosas na vila de La Guardia e que, dessa forma, não há dúvidas a respeito da veracidade da informação de que o menino Juan seja proveniente de Toledo. Ainda na carta, reforça esta idéia utilizando a literatura como argumento, baseando-se na premissa de que nenhum escritor jamais contrariou a origem toledana do mártir de La Guardia. A dúvida que envolve a veracidade da origem de Juan não existe quando se trata da origem dos judeus arrolados no processo como responsáveis pelo martírio e morte da dita criança de Toledo. Para chegar às origens do tipo de prática realizada pelos judeus, segundo os cristãos, é necessário fazer um breve histórico do início da história dos homens envolvidos no caso Santo niño de La Guardia. Os casos de assassinato ritual eram fábulas já conhecidas dos territórios que tiveram tribunais do Santo Ofício na Idade Média. Pode-se acreditar que rumores dessas histórias tenham chegado aos reinos de Castela e Aragão pela Occitânia, já que a França foi um centro muito forte de ação inquisitorial nos séculos XIII e XIV. Histórias sobre judeus já havia nessa época, mas é importante levar em conta que estes não eram perseguidos antes dos casos de assassinato ritual (também conhecidos como libelo de sangue), pois ser judeu não configurava um crime de heresia já que se tratava de religiões diferentes. Segundo Haught (2002) e Poliakov (1979), o primeiro caso de libelo de sangue de que se tem notícia na história se passou na Inglaterra no ano de 1144. Os relatos históricos recolhidos pelos autores acima demonstram que um menino de 12 anos de idade, de nome William, foi encontrado morto perto de Norwish. Haught (2002) afirma que a notícia que se espalhou na época foi a de que os judeus mataram o menino para usar seu sangue em rituais de magia dentro da sinagoga, mas nada foi comprovado. Haught (2002) ainda diz que em 1255, mais de um século depois, outro corpo de criança foi encontrado, dessa vez no poço de

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um judeu. Este fato gerou a certeza que o povo buscava desde o caso do menino William. O cronista Matthew Paris escreveu que “a criança primeiro foi engordada durante dez dias com pão branco e leite e, depois, quase todos os judeus da Inglaterra foram convidados para a crucificação”. Os judeus desesperadamente negaram a monstruosa acusação – mas de nada lhes valeu. Dezoito deles foram torturados e enforcados como sacrificadores. O pequeno São Hugo de Lincoln foi venerado em um templo, construído em sua memória. (HAUGHT, 2002, p. 45)

Além de ser o primeiro caso em que se pode atribuir a culpa aos judeus com base em fatos concretos (a descoberta do corpo no poço de um judeu), verifica-se, também, que é o pioneiro em criar uma idolatria sagrada à criança morta. Poliakov (1979) nos afirma que o primeiro caso de santificação de uma criança morta em um libelo sangue tem sua sede na Itália, na cidade de Trento. Os relatos históricos, apresentados por Haught (2002), indicam que o menino chamado Simão foi beatificado como mártir católico e, até hoje, em Trento se tem notícias de milagres que ocorreram em seu temploi. Dessa feita, as conseqüências do caso Santo niño de La Guardia não tem índice de originalidade, a não ser o fato de ser o primeiro caso de libelo de sangue em terras castelhanasii. De acordo com Poliakov (1979), a Inglaterra e a Itália propiciaram a difusão da imagem do judeu como ser diabólico que matava crianças em rituais de crucificação e que usava seu sangue para fazer bruxariaiii. O estabelecimento de um órgão capaz de conter os crimes de heresia só ocorre nos territórios de Castela e Aragão por volta de 1480. Neste ano foi criado o primeiro Tribunal do Santo Ofício. Este foi fundado na cidade de Sevilha e condenou, com base em Bethencourt (2000), Netanyahu (2000) e Prado Moura (1996, 2002, 2003), em seu primeiro ano de atuação, seis pessoas à fogueira. Essa primeira atuação do Santo Ofício gerou tanto pavor entre as pessoas que muitas delas, principalmente os judeus, resolveram fugir para terras próximas como Portugal, França e África, onde a ação

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inquisitorial na chamada Idade Modernaiv ainda não tinha se estabelecido. Encontrando-se os fugitivos sem domicílio seguro por causa do poder da Inquisição, desejavam vingança. De acordo com Martínez Moreno (2000, p. 23), “no encontrando en lo natural medio para ello, recurrieron a pactos con el demonio, solicitando ejecutar su depravada intención por medio de hechizos”. Como os judeus na Idade Média já tinham sido o centro das atenções devido às suspeitas de serem autores dos libelos de sangue, recaíam sobre os líderes deste povo – os rabinos — as suspeitas de serem os mestres conhecedores das bruxarias que podiam aniquilar os cristãos. Esta idéia também aparece na peça teatral de Lope de Vegav.Os judeus levados à fogueira antes de 1491, eram todos conversos e devido a este fato podiam ser acusados e condenados por heresia. De acordo com Poliakov (1979), Haught (2002) e Atienza (2002), o caso da criança de La Guardia tem sua importância histórica por ser o primeiro em que judeus não conversos são julgados e condenados pelo Santo Ofício. De acordo com Guzman (1948), as histórias de judeus detentores de poderes e fórmulas sobrenaturais oriundos de pactos com o demônio ainda eram muito presentes na França. Ao chegar neste país a notícia do que estava havendo em Sevilha, os judeus locais se revoltaram. Como aparece nas peças de Lope de Vega, José de Cañizares e nos relatos de Martinez Moreno(2000), Sarabia (1933), Marin-Rubio (1954) e Losada (2000), um grupo de judeus sabia que um rabino guardava os segredos de seus antepassados e que poderia ajudá-los em seu intento. As narrativas históricas estudadas dizem que este rabino revelou que um pó, resultante da queima do coração de uma criança cristã com uma Hóstia Sagrada, quando posto na água dos vilarejos, faria com que aqueles que acreditassem em Cristo morressem ao bebê-la. Alguns judeus saíram em busca de uma criança para roubar-lhe o coração. De acordo

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com Martinez Moreno (2000), no sul da França encontraram uma família muito pobre. O pai estava desesperado porque não tinha comida para dar a todos os filhos e o grupo de judeus persuadiu o homem a dar o coração de seu filho mais novo em troca de uma grande soma de dinheiro. El pobre hidalgo, como Cristiano católico que era, quedó horrorizado de tan inhumana propuesta y los despidió despreciando su diabólica pretensión. Manifestó después a su mujer lo que le había pasado con los judíos, y ella, que queria juntamente com sus hijos el dinero, lo consiguió todo, porque le aconsejó prontamente que matase uma puerca que tenían y que el corazón de ella lo entregase a los judíos, como que era de su próprio hijo, com lo cual se burlaba de ellos muy bien y tomaban los dineros para socorrer sus necesidades. Se ejecutó el engano, como la mujer lo había supuesto, y unos y otros quedaron contentos y satisfechos. (MARTÍNEZ MORENO, 2000, p. 11)

De acordo com a narrativa de Sarabia (1933), já de posse do primeiro artigo, os judeus precisavam conseguir uma Hóstia Sagrada. Para tanto, subornaram um mendiga para que ela comungasse e guardasse o objeto sagrado e lhes entregasse em segredo. De posse de todos os elementos necessários, fizeram a queima e jogaram o pó na água dos vilarejos no sul da França. O resultado foi que todos os porcos, que beberam daquela água, morreram. Segundo Drumond Alves (2005), o que se pode extrair deste fato é que o imaginário popular cristalizava que os judeus eram portadores de fórmulas mágicas que podiam acabar com a vida de seres vivos. Este acontecimento é emblemático na medida em que se atribui aos judeus não só o ódio aos cristãos, mas também a arte de feitiçaria. Losada (2000) nos diz que assim que foi descoberto o feito dos judeus pelas autoridades francesas, foram estes perseguidos e o grupo se desfez. Muitos deles fugiram para terras castelhanas e, para este local, levaram os ensinamentos do rabino francês. Um deles foi Benito García de las Mesuras, que chegou a Toledo. A situação deste local sempre havia sido de tolerância religiosa, mas o estabelecimento

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de tribunais da inquisição em 13 províncias e os últimos acontecimentos em Sevilha indicavam que não perduraria muito esse regime. A ação do tribunal inquisitorial assustava as pessoas, que começaram a repudiar os judeus e muçulmanos. Pode-se afirmar que o medo gerado pela ação do Santo Ofício desencadeou um movimento de anti-semitismo. Benito García de Las Mesuras conheceu outros judeus que habitavam as vilas de Quintanar, Tembleque e La Guardia. A notícia do que havia ocorrido na França se espalhou pelos territórios dos Reis Católicos e não tardou-se em associar Benito García de Las Mesuras ao acontecido. A esta época, o judeu fugido já havia estabelecido residência em La Guardia. A narrativa de Guzmán (1948) nos diz que os outros judeus que viviam na mesma vila, ao invés de entregar Benito García às autoridades, se fascinaram com a possibilidade de ele ser detentor de uma maneira de acabar com as mortes de judeus em Castela. Procurado, responde Benito García [...]los inquisidores nos persiguen de muerte, no tenemos seguridad en parte alguna, cuando menos pensamos nos arrojan fuego y somos la burla y el ludibrio de los muchachos y aún de todos los pueblos? Nosotros, que somos el pueblo escogido de Dios, que seguimos la Ley de nuestros mayores, que por ser fieles en ella triunfaron milagrosamente de sus enemigos abriéndose las aguas del Mar Bermejo y habiéndolos pasado a pie enjuto, quedaron sumergidos los egipcios[...]No seáis así, amados compañeros, apliquemos el correspondiente remedio, que tanto nos importa, antes que los inquisidores nos destruyan, destruyámoslo nosotros a ellos; búsquese el corazón de un niño cristiano y una Hostia consagrada y con esto yo dispondré una masa que destruya a los inquisidores, y aún a todos los cristianos […] (Guzmán, 1948, p.62) Dessa feita, os judeus que o procuraram ficaram sabendo de seu segredo e formaram um grupo que saiu para arrecadar os objetos solicitados pelo líder francês. Em nota ao Boletín de la Real Academia (Tomo XI), segundo nos relata Fita (1887), o senhor Amador, último a ver

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o autógrafo completo, informa que a idéia de seguir os mandamentos de Benito García surgiu após os judeus da província terem presenciado um auto-de-fé que se deu em 21 de maio de 1489. Formavam parte desse grupo, além de Benito García de las Mesuras, García Franco, Lope Franco, Alonso Franco, Juan Franco, José Franco, Juan de Ocaña, Juan Sacristán e Fernando de la Rivera. Todos os Franco eram da mesma família. Juan de Ocaña e Juan Sacristán não eram judeus. Ao longo do processo, que tem sua edição crítica preparada por Fita (1887), veremos que contra os Franco se levantou a acusação de terem enfeitiçado os dois cristãos que com eles colaboraram. Sendo assim, além de assassinato e heresia, foram acusados de bruxaria. José Franco foi o responsável por conseguir o coração de uma criança cristã. A fim de realizar o que lhe foi incumbido, dirigiu-se para Toledo, pois acreditou que se roubasse uma criança em La Guardia, ou em vilas vizinhas, seria facilmente descoberto, já que estas são muito pequenas. Em Toledo seria mais difícil de ser descoberto. Guzman (1948) narra que José Franco foi escolhido para esta ação porque estava acostumado a sair com um carro puxado por bois às vilas vizinhas para consertar sapatos e entregar mercadorias. Martinez Moreno (2000, p.13) conta que, ao chegar em Toledo, José Franco “encuentra a varios niños, sin embargo no logra secuestrar a ninguna pues había mucha gente por las calles y alguien podría percibir la acción”. Ainda segundo o autor, caminhando pela cidade, chega à Igreja Catedral, na chamada Porta do Perdão e ali encontra Juan, uma criança de mais menos quatro anos de idade, filho de um velho ferreiro e de uma senhora cega que vendia flores na porta da catedral, ambos cristãos velhos, de acordo com Velayos (1955). Seduzindo o menino com presentes, conseguiu fazê-lo aproximar-se e, então, o levou em seu carro de bois para La Guardia.

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A narrativa de Huerte Martín- Rubio (1954) indica que, ao chegar na pequena vila, os outros judeus trataram de espalhar que aquele menino era filho de José Franco. Os judeus, segundo a versão de Guzman (1948), além de querer tirar-lhe o coração, queriam aproveitar a criança para, como aparece nas confissões de Lope Franco e Alonso Franco, “[...] hacer mofa y escarnio de Jesucristo y confundir, si les fuera posible, su santísima Pasión y Muerte con la de este inocente Niño [...]” (AHN , Proceso contra Lope Franco, 1491). Segundo Martinez Moreno (2000), os judeus mantiveram a criança viva, espancando-a e submetendo-a a humilhações, até o dia 31 de março de 1490 (uma sexta-feira da Paixão). Neste dia, o Concílio judaico (nomenclatura dada ao grupo na narrativa de Velayos (1955)) levou a criança para as cavernas de Ocaña fazendo-a arrastar uma cruz sob açoites e humilhações. O menino foi renomeado de Cristóbal, uma forma de aproximação ao nome Cristo. A justificativa para esta mudança pode ser encontrada em todas as narrativas históricas estudadas e nas obras teatrais de Lope de Vega e José de Cañizares. Martinez Moreno (2000, p.16) descreve a cena de preparação da crucificação da criança, comparando-a com a de Cristo. [...] como habían determinado con la Pasión y Muerte del Niño hacer irrisión de la del Salvador, era consiguiente que no solamente hubiese crueles verdugos, sino también acusadores, falsos testigos, jueces y tribunales, en los cuales uno representase a Poncio Pilatos, outro a Herodes, al Pontífice Anás outro y outro a Caifás. El traidor Judas ya estaba bastantemente figurado en la persona de Juan Franco, el cual com engaños y falsa paz había sacado al Niño del lugar de la oración para ponerlo en manos de sus compañeros que deseaban beberle la sangre; faltaba nombrar los demás oficios y esto lo hicieron en aquel diabólico concilio.

Os judeus também puseram na cabeça de Cristóbal uma coroa de espinhos e, depois, simularam um tribunal, onde acusaram a criança de ser malfeitora, traidora do Império porque queria fazer-se rei, semeadora de subversão entre os povos mais humildes, pregadora de mentiras e blasfemadora contra Deus como se ela fosse a própria imagem de Cristo ( título da

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peça escrita por José de Cañizares). Depois a crucificaram e José Franco abriu-lhe o peito e arrancou seu coração. A descrição da crucificação feita por Martinez Moreno (2000) ainda informa que Benito García de las Mesuras cortou as veias do braço da criança na cruz e recolheu o sangue que caía em uma panela sem que os outros judeus soubessem, ao certo, para que serviria. Dessa maneira, Cristóbal morre a 31 de março de 1490 em um assassinato ritual. Já de posse do coração da criança cristã, Benito García de las Mesuras conseguiu uma Hóstia Sagrada. Sarabia (1933) nos conta que os próprios judeus tentaram fazer o pó e o testaram em La Guardia, mas não obtiveram nenhum êxito. Dando-se conta de que estaria faltando algo, resolveram pedir ajuda ao rabino da sinagoga central, que se localizava em Zamora. Assim, Benito García de las Mesuras partiu para essa cidade de posse do coração e da hóstia sagrada, que colocou dentro de um Devocionário. No meio de sua viagem para Zamora, segundo Martínez Moreno (2000), Benito passa pela cidade de Ávila. Indo à Catedral da cidade para não despertar suspeitas, finge rezar e é descoberto pelos cristãosvi da cidade que se surpreendem ao descobrir que ele carregava um coração humano e uma hóstia sagrada. Imediatamente, as autoridades da cidade foram acionadas e o promotor fiscal, Alonso de Guevara, leva o caso ao tribunal da Inquisição, que ordena de imediato a prisão dos outros envolvidos em La Guardia. Por ordem das autoridades civis e eclesiásticas, os judeus são presos em La Guardia e levados para a cidade de Ávila. Em 17 de dezembro de 1490, terminada a investigação preliminar, os judeus foram acusados formalmente pelo promotor fiscal da cidade de Ávila perante o Tribunal do Santo Ofício. Ainda que Benito García de las Mesuras fosse o mentor intelectual do crime relatado, José Franco foi considerado o chefe, pois foi quem seqüestrou, matou e arrancou o coração de

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Cristóbal, segundo o relato dos outros envolvidosvii. O processo terminou com a morte dos judeus envolvidos e com a absolvição dos cristãos co-partícipes. Dos sete judeus, cinco se converteram ao cristianismo no auto-de-fé e foram agraciados com a morte por garrote antes de serem queimados. Alonso Franco morreu ao longo do processo. O sapateiro José Franco foi o único que recusou a conversão e foi queimado vivo, jurando que era inocente. O corpo da criança nunca foi encontrado e as autoridades locais, em depoimentos nos suplementos coletados por Fidel Fita, afirmam que apenas os panos que envolviam o corpo do menino estavam na cova em que supostamente o enterraram. As pessoas da vila, até hoje, interpretaram o fato como um milagre: o menino foi levado em corpo e alma aos céusviii.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS O menino Cristóbal tornou-se um santo para a comunidade de La Guardia, que ergueu um templo em sua memória. Haught (2003, p.46) nos esclarece as conseqüências deste acontecimento. Em 1491, judeus que estavam sendo torturados pela Santa Inquisição na Espanha foram forçados a confessar que haviam sacrificado uma criança cristã em uma gruta perto de uma cidade chamada La Guardia. Eles foram queimados e todos os judeus de sua comunidade foram assassinados. “A Santa criança de La Guardia” se tornou uma lenda religiosa – ainda que nem a cidade nem a criança sacrificada tenham existido.

Embora a afirmação de Haught (2003) ajude a dar uma idéia da conseqüência do que ocorreu depois desse primeiro caso de libelo de sangue em terras castelhanas, abarca um erro: o de afirmar que a cidade nunca existiu. La Guardia, até hoje, é um vilarejo da província de Toledo e está entre Ocaña e Tembleque. Em pesquisa na vila de La Guardia foi possível verificar cartas de compra e venda, contratos de doação e certidões de batismo, de antes de

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1490, desfazendo, assim, a possibilidade de ela nunca ter existido. Há uma placa de pêsames dada à vila pelos Reis Católicos e um documento de doação de ouro para a construção de um altar assinado pelo rei Fernando de Aragão. Além desse documento, há outras ofertas de considerável respeito, como mensagens de Carlos I e Felipe II. Atienza (2002), considera este caso como fato determinante para a assinatura do decreto de expulsão dos judeus dos territórios de Castela e Aragão pela rainha Isabel I, a Católica. O caso descrito neste trabalho procurou utilizar as narrativas históricas mais significativas de cada um dos autores e filólogos que pesquisaram o acontecimento. É importante deixar registrado que não há nenhuma história idêntica à outra. Todas possuem variações e neste trabalho tentamos reconstruir por meio das documentações remanescentes (oficiais, epistolares ou literárias) a história mais consoante com a relatada no processo contra o sapateiro judeu José Franco.

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SARABIA, R. El Santo Niño de La Guardia: Narración histórica de la vida, pasión y muerte de Juan (Cristóbal) Pasamontes. Madrid: El Perpetuo Socorro, 1933. (microfilmado) VELAYOS, N. El Santo Niño de La Guardia. Madrid: Imp. Europa, 1955. (microfilmado) i Segundo Haught (2002: 48) “Em 1965, o Vaticano finalmente ordenou o fim do “culto” a Simão de Trento. Isso ocorreu logo depois que o liberal Papa João XXIII acabou com os cânticos da igreja que falavam dos ‘pérfidos judeus’”. ii

Segundo Haught (2002), esses casos de libelo de sangue foram desmentidos no ano de 1759 quando uma comissão de investigação do Vaticano afirmou que não passavam de mitos as histórias contadas e que nenhum judeu, comprovadamente, jamais sacrificou crianças. Essa afirmação vinda do Vaticano não foi suficiente para apagar a imagem construída dos judeus.

iii

Pode-se, segundo Richards (1993), verificar que, na Idade Média, a ação inquisitorial na Inglaterra e na península itálica foram muito intensas, mas é na França que ela teve maior força. Esta informação é de suma importância, pois é em terras francesas que tem início o caso do Santo niño de La Guardia.

iv

Neste trabalho estamos considerando o casamento dos Reis Católicos como ponto de início da Idade Moderna.

v

Na peça de teatro de Lope de Vega (Primeiro ato), “[...] HERNANDO: Hay en Francia un gran maestro,/ Rabino de nuestra ley/Que se le ha de dar compuesto/ De tales cosas, que mueran/ Estos ladrones, luego, / Estos negros Dominicos/ Para nosotros tan negros. [...]”.

vi

Algumas narrativas históricas, como Sarabia (1933), Losada (2000) e Guzmán (1948), afirmam que essa descoberta se deu de modo maravilhoso. Dizem que a hóstia dentro do Devocionário começou a emanar um brilho intenso e isso chamou muita atenção de todos que estavam no recinto. As demais narrativas atribuem a descoberta da hóstia a um descuido de Benito García de las Mesuras.

vii É necessário deixar claro que as confissões obtidas por parte do grupo foram realizadas nas sessões de tortura previstas no Manual do Inquisidor de EYMERICH e PEÑA. viii

Essa foi uma das constatações feitas em pesquisa de campo realizada no período de 20/07/2003 a 26/07/2003 na vila de La Guardia, Espanha.

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