Cultura Popular: A discussão de um conceito

May 27, 2017 | Autor: Guilherme Moerbeck | Categoria: History, Ancient History, Art History, Contemporary History, Cultural Theory, Theory of History
Share Embed


Descrição do Produto

Cultura Popular: A discussão de um conceito.



Resumo: Neste ensaio, produzido há ao menos uma década, é discutido o
conceito de cultura popular a partir de alguns de seus principais teóricos.
Estes expressam diferentes posições de acordo com seus respectivos
pressupostos epistemológicos. Dentre esses autores podem ser citados
Mikhail Bakhtin, Carlo Ginzburg, Peter Burke e Edward Thompson. No entanto,
trabalhamos também com autores que refutam o conceito de cultura popular,
são eles: Karen Louise Jolly e Hilário Franco Júnior.

Palavras-chave: Cultura popular; Mikhail Bakhtin; Edward Thompson

Abstract: In this essay, written about a decade ago, is discussed the
concept of popular culture concerning some of his mains researchers. These
demonstrate various positions per its epistemological options. Therefore,
we could mention Mikhail Bakhtin, Carlo Ginzburg, Peter Burke and Edward
Thompson, as well as some authors which refuse the conception of popular
culture, such as: Karen Louise Jolly and Hilário Franco Júnior.


Keywords: Popular Culture; Mikhail Bakhtin; Edward Thompson





Introdução



Quando se inicia o planejamento de um trabalho, ou mais
especificamente a procura de um tema a ser desenvolvido, somos tomados por
um turbilhão de idéias ou, pelo contrário, um vazio incomensurável se faz
presente em nosso pensamento: chegamos a pensar que inexoravelmente,
permaneceremos num estado de inércia. Felizmente me enquadro no primeiro
caso. Todavia ter muitas ideias não significa que conseguiria num breve
tempo me definir e consequentemente sair da inércia; isto é, como se trata
de um trabalho cujo tema pode ser escolhido a partir do amplo espectro, que
constitui a cultura popular, uma dificuldade imensa permeará os pensamentos
mesmo daqueles que estão cheios de ideias. Outrossim, ter muitas idéias não
equivale a dizer que elas serão boas, tendo em vista essa imensidão de
temas que poderiam ser escolhidos. Tenho, entretanto, que optar por somente
um.
Para dar cabo desta já extensa digressão inicial, cabe dizer que meu
tema foi o segundo com o qual meus pensamentos flertaram, mas talvez o
primus inter pares em minha opinião, pois antes mesmo de abarcarmos um tema
genérico, precisamos nos referir aos significados do conceito de cultura
popular. Quero dizer com isso que minhas indagações acerca de um tema para
o trabalho me levou a perguntar: o que é cultura popular? E também: isso
existe? Talvez as respostas não surjam diante de tão simplórias
interrogações, todavia um primeiro passo foi dado em direção aos problemas
que deverão ser focalizados nas próximas páginas. Tendo descrito algumas de
minhas angústias, que pouco interessam ao leitor, podemos zarpar em direção
a tão controverso conceito, momento em que, entre outras coisas, será posto
em dúvida; sua abordagem também permitirá verificar quão diversas são as
opiniões de alguns dos principais autores que se debruçaram sobre esta
problemática concernente aos estudos da história cultural.
Naturalmente, este trabalho não visa realizar um grande apanhado das
idéias acerca da cultura popular; é seletivo em suas escolhas, conquanto
seu objetivo seja discutir essas idéias e, se possível, estabelecer uma
visão crítica acerca dos trabalhos, alguns deles extremamente profícuos,
que me servem como base de estruturação de minhas próprias idéias.



"Cultura" e "Popular": a dificuldade de lidar com dois conceitos



Não creio que aqui seja o espaço ideal para se discutir o conceito de
cultura, entretanto gostaria de, em poucas linhas, tendo em vista não trata-
se diretamente de nosso objeto, apresentar minhas argumentações neste
ponto. Um dos principais problemas em definir o que seria cultura é que
percebemos, principalmente na área de antropologia e sociologia, que se
ocuparam muito especialmente de discutir tal conceito, que, através da
história, ele assumiu diversas formas e, por conseguinte, englobou diversas
dimensões da existência humana.
Podemos considerar a cultura, como fez Edward Burnett Tylor; como algo
que integra aspectos tanto ideais quanto materiais:


"Cultura ou civilização, tomada em seu sentido etnológico
mais vasto, é um todo complexo que compreende o conhecimento, as
crenças, a arte, a moral, as leis, os costumes e outras capacidades
ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da
sociedade"(TYLOR apud. CARDOSO, 2002 pp. 03)


Seria possível, ainda, afirmar que não se trata de cultura, mas de
diferentes "culturas", relativizando o conceito, como fizeram vários
autores da corrente chamada antropologia culturalista. Além disso, podemos
perceber a cultura somente a partir de seus elementos simbólicos como
fizeram Talcott Parsons e Alfred Kroeber:


"... Sugerimos que seja útil definir o conceito de cultura,
para muitos de seus usos, bem mais estreitamente do que tem sido o
caso em geral na tradição antropológica dos Estados Unidos,
restringindo seu referente a conteúdos e padrões transmitidos e
criados de valores, idéias e outros sistemas significantes do ponto
de vista simbólico, encarados como fatores que conformam o
comportamento humano e os artefatos que tal comportamento
produz..." (PARSONS, T e KROEBER, A. apud. CARDOSO, 2002 pp.10)

Diante disso podemos ao menos perceber o quão difícil se torna o
trabalho quando unimos o conceito de cultura ao de popular. Neste, veremos
diversas posições que, evidentemente, refletem não só as perspectivas em
que cada autor aborda seu tema, mas também as dificuldades de se
desenvolver uma pesquisa com conceitos tão problemáticos. Não desejando me
estender em demasia neste tópico, irei, enfim, abordar o objeto de nosso
trabalho que é a cultura popular.



O Mundo da Cultura popular Bakhtiniana


Inicialmente, gostaria de apresentar as principais idéias relacionadas
ao conceito de cultura popular desenvolvidas por Mikhail Bakhtin, tendo em
vista tratar-se de um dos mais importantes autores que se ocuparam do
tema. Bakthin faz exaustiva análise sobre a cultura popular através de
análise das obras de François Rabelais (Pantagruel e Gargantuá) em livro
sobre a cultura popular na Idade Média e Renascimento.3 Aspectos como a
festa, o carnaval, o riso, o corpo e as relações estabelecidas pelo autor
entre cultura popular e cultura oficial serão abordados nas próximas
linhas. Em sua visão do que se pode conceber como cultura popular, Bakhtin
estabelece uma dicotomia básica entre cultura popular e oficial, ou seja, a
primeira, em suas inúmeras manifestações, como as festas e ritos estava se
opondo ao tom sério e dogmático da cultura oficial.
O carnaval apresentaria um aspecto fundamental que detinha uma
diferente visão em relação às festas oficiais: seria a projeção de um
segundo mundo, ou seja, uma segunda vida para aqueles que participavam
daquele ritual; o carnaval proporcionaria, desta forma, uma liberdade
frente ao dogmatismo religioso. Um dos elementos que permearia esta festa
era a liberdade, neste lugar não haveria distinções entre atores e
espectadores, pois estes não assistem, mas vivem o carnaval. Esta festa
assumia um tom que se contrapunha diretamente às estruturas das festas
oficiais, já que estas continham uma idéia que consagrava a reafirmação de
um regime em vigor, a hierarquia, a imutabilidade. Opunha-se também aos
regimes de verdade impostos pelos poderes espiritual e feudal. Sentindo-se
então em igualdade perante outros que provavam da mesma liberdade
inebriante da "outra vida", o mundo concebido pelo carnaval estaria desta
forma no constante devir, de uma universalidade, no qual estariam presentes
características como a abundância, que, como veremos, tem importantes
aspectos relacionados ao corpo, desenvolvidos na obra de Rabelais e no
interior dessa noção de cultura popular.
Outras formas de expressão da cultura popular levantadas por Bakhtin
são as que se referem à linguagem da praça pública e às imagens do corpo.
As relações estabelecidas pelo carnaval propiciariam a possibilidade de se
expressar a partir de uma linguagem muito específica, que, nas palavras do
autor, trabalharia em direção à:


"abolição provisória das diferenças e barreiras hierárquicas
entre as pessoas e a eliminação de certas regras e tabus vigentes
na vida cotidiana que criavam um tipo especial de comunicação..."
(BAKHTIN, M. 1999, pp. 14)


O duplo sentido existente nessa linguagem da praça pública, em que
coexistem o positivo e o negativo, é o que caracteriza a ambivalência da
linguagem popular, ou seja, neste terreno os iguais trocam obscenidades e
injúrias que, todavia, são ressignificadas: para aqueles que possuem a
chave desses significantes, eles são entendidos como palavras familiares e
afetuosas.
Outra expressão que caracteriza a cultura popular seria o que Bakhtin
convencionaria chamar de Realismo Grotesco, idéia em que estariam inseridas
as imagens do princípio material corporal, que deteria em sí as mesmas
característica do carnaval, ou seja, não seria o corpo individualizado.
Este corpo grotesco estaria em pleno processo de construção, em relação com
outros corpos, e mostraria toda a importância que reside nas partes do
baixo corporal, pois estas estabelecem profunda troca com os elementos
terrestres. As imagens desse mundo que se encontra além do cotidiano
confluem na idéia do banquete, da abundância. O rebaixamento que está
caracterizado nesta idéia do corpo, não apenas o faz, mas eleva também,
porque este corpo que está incompleto, todo o tempo está em contato com a
terra; isto é, lugar para onde, em princípio, os entes mortos e em
putrefação devem ir é a mesma que faz renascer a vida. O corpo do Realismo
Grotesco se encontra neste devir: ao mesmo tempo que nega, afirma; ao que
se degrada, dá lugar a que se regenere. Este é o princípio da ambivalência,
nós o encontraremos em todos os aspectos dessa cultura popular aferida a
partir de Rabelais.
Por fim o riso, assim como outros aspectos da cultura popular, detém
também ele um caráter ambivalente; por conseguinte, sendo universal, não
ofende, pois é totalmente compreendido dentro da festa popular, onde os
verdadeiros significados desse riso ritual aparecem para se opor a todo
tipo de unilateralidade, categorização, esgotamento, mostrando desse modo
toda a força renovadora que o permeia. O riso Rabelaisiano não seria o
satírico, aquele que retém apenas os aspectos negativos. Mas, para além
disso, desse riso formal, estaria a própria concepção de mundo a partir do
riso, dessa alegria espiritual, mostraria toda a incompletude e
relatividade inerentes ao devir.

Considerações finais sobre Bakhtin



Não obstante as características que permeiam a cultura popular, como
seria entendida para Bakhtin a própria relação dela com outros aspectos do
mundo? Num primeiro momento devemos nos deter na formação dessa cultura
popular, perguntando: trata-se de uma entidade maior, para além de grupos
sociais, ou essa cultura seria reflexo da estratificação social? Além
disso, em que instância do real esta cultura se localiza, em seus aspectos
mentais, materiais? Ou trata-se de uma confluência dessas características?
Para Augusto Ponzio, a formação de uma ideologia não oficial pressupõe
a idéia de uma estratificação social, e essa nova maneira de se pensar o
mundo estaria ligada à lógica de uma classe.
A comicidade não oficial é expressão de uma visão de classe
alternativa à oficial e séria imposta pela classe dominante. O
processo de separação do cômico e do sério, de tal forma que se
apresentam como expressões culturais divergentes, uma oficial e a
outra não oficial, está ligado ao processo da formação das classes
e do Estado" (PONZIO, A. p.177)

Para Bakthin, com o regime de classes e Estado os diferentes aspectos
(sérios e cômicos) que na Antigüidade integravam a ideologia oficial foram
sendo posteriormente polarizados. E, a partir dessa dicotomia, os aspectos
não aceitos na cultura oficial (cômicos) foram sendo deixados à margem;
todavia, ganhariam força e sofreriam transformações para que, a posteriori,
se unissem em uma concepção do mundo através dos referenciais da cultura
popular. Quiçá reste ainda perguntar se, apesar de a cultura popular ter
surgido do processo de estabelecimento de um regime de classes, em um
determinado momento esta cultura popular não superou as barreiras da classe
e emergiu para um âmbito maior, ou seja, se a capacidade de decifrar os
significantes dessa cultura não estavam para além das possibilidades de uma
classe específica. Abordarei esta questão nos próximos tópicos do trabalho.
Para Bakthin, os princípios materiais e corporais seriam
fundamentais, pois eram percebidos como universais e populares. Desta
forma, a concepção do mundo, através da ótica da cultura popular, se oporia
a qualquer princípio subjetivista, ou de uma idealização meramente balizada
em princípios abstratos. Não se nega, porém, possível, e digo até provável,
confluência dos princípios material e corporal com o mundo das idéias.
Acerca deste ponto, também afirmaria Karen Louise Jolly, em seu trabalho
sobre a religião popular no mundo anglo-saxão tardio, que não existe uma
dicotomia entre o princípio material e, no caso, o espiritual, pois a
possibilidade de conexão ao mundo espiritual se tornava possível através da
realidade material, necessária aos encantamentos de que trata seu livro.
Todavia, veremos, posteriormente, que seu entendimento de cultura popular
em muito difere do de Bakhtin.
Resta-nos ainda falar, nesta primeira parte, sobre as relações dessa
cultura popular com outros campos do real através da ótica Bakhitiniana. O
autor russo afirmaria que duas concepções de mundo, a primeira derivada da
cultura popular, "a outra tipicamente burguesa", se entrecruzariam, o que
caracterizaria o realismo renascentista. Percebemos assim que, apesar da
dicotomia inicial entre cultura popular e oficial, o autor abre espaço para
que haja, efetivamente, trocas culturais. Contudo, resta ainda saber se
esta confluência de idéias "opostas" seria um processo dialético8 como
afirma Ponzio, ou uma circularidade cultural, como afirma Carlo Ginzburg.
Para este autor, assim como acontecia com Menocchio- que fazia seus
julgamentos sobre os livros que lia, com inúmeros referenciais da cultura
oral, advindos, evidentemente de um âmbito coletivo- também ocorria com as
culturas popular e oficial.


"Entre a cultura das classes dominantes e das subalternas
existiu, na Europa pré-industrial, um relacionamento circular feito
de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem
como de cima para baixo" (GINZBURG, C. 2002, pp. 12)


Talvez, no momento, seja interessante pensarmos que este fenômeno entre
a cultura popular e a oficial possa igualmente, ocorrer de maneira
dialética em certos momentos, não excluindo, todavia, os aspectos de
circularidade, de complementaridade, que os dois pólos podem assumir,
conquanto possamos afirmar que, de fato, essas relações existem, ou seja,
não se pode pensar que os campos da cultura popular e a oficial fossem
estanques. Creio que os próximos autores que discutiremos possam nos
auxiliar nessa difícil tarefa de perceber até que ponto essas relações
entre cultura popular e oficial são verossímeis, ou se devemos abordar o
assunto sob uma perspectiva diferente.
Não restam dúvidas sobre a importância da obra de Bakhtin naquilo que
tange não só aos avanços que proporcionaram às abordagens da escola
formalista russa, mas igualmente no sentido de perceber os aspectos
dialógicos pertinentes a uma obra literária, ou seja, para além de uma
análise direcionada aos seus aspectos intrínsecos, está a importância de
realizar uma correlação histórico-social da mesma.


"A natureza social da linguagem reside no fato de que ela
sempre se dirige a alguém e que o próprio monólogo pressupõe o
outro. Este dialogismo fundamental é que tem de ser levado em conta
em todas as abordagens da literatura. Em essência, a linguagem é
sempre dialógica." (SCHNAIDERMAN, B., 1979, pp. 22)


Não obstante todas as qualidades já percebidos no trabalho de Bakhtin,
novas perspectivas e abordagens derivariam da história cultural e dos
historiadores posteriores à história das mentalidades que utilizam a noção
de imaginário social (ou coletivo). Desta forma, veremos, a partir daqui,
diversos autores e posições que, de alguma maneira, contribuíram aos
estudos concernentes a cultura popular.



A circularidade cultural e outros aspectos da abordagem de Carlo Ginzburg



Um dos autores, dedicado sobretudo a micro-história, mantendo uma
noção, assim como Bakhtin, de classe social12, é Carlo Ginzburg. Como já
referimos acima, este coincide com Bakhtin no que se refere a noção de que
existem trocas recíprocas entre a cultura oficial e a popular, utilizando
para isto a noção de circularidade, especificando que, no âmbito dessas
relações, aquilo que era recebido por um dos lados era ressignificado a
partir dos referencias simbólicos de cada grupo. Entretanto, Ginzburg faria
algumas ressalvas a nosso autor russo, pois este faria a análise da cultura
popular através de Rabelais, através do filtro deste autor, que,
claramente era um componente interno dessa cultura; ou seja, apesar da
riqueza e das diversas possibilidades da obra de Rabelais, Ginzburg propõe
que se deveria buscar uma abordagem mais direta do assunto em questão;
conquanto afirme que ,dadas as características das fontes, esta abordagem
sem "filtros" seria demasiadamente complicada.

Edward Thompson: Os conflitos entre "cultura plebéia" e "cultura patrícia"



Outro autor que trabalharia dentro das relações entre uma cultura
popular e uma oficial seria Edward Palmer Thompson. Em trabalho extenso,
analisou a Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, observando aspectos ligados
aos costumes das classes populares. Thompson ressalta a dificuldade em se
trabalhar com a idéia de cultura, pois seria um termo extremamente
polissêmico, em relação ao que faz-se necessário examinar com cuidado
aspectos como:
"...ritos, modos simbólicos, os atributos culturais da
hegemonia, a transmissão do costume de geração para geração e o
desenvolvimento do costume sob formas históricamente específicas
das relações sociais e de trabalho" (THOMPSON, E. P., 2002, pp.
17)




Os costumes dessa cultura popular, ou, como o autor prefere, cultura
plebéia, serviriam como um mecanismo que age dentro de um corpo coletivo e
podem ser pensados, igualmente, como um mecanismo identitário no
estabelecimento de uma fronteira com o "outro". Uma das principais
discussões teóricas feitas pelo autor questiona a forma em que a cultura
plebéia e seus costumes estabelece, suas relações com a cultura oficial
(dominante), ou seja: como, nesse mundo permeado por transformações
inerentes ao processo de industrialização e concomitantemente por mudanças
nos hábitos das pessoas, a cultura plebéia se comportaria? Os costumes
agiriam como um mantenedor de estruturas ligadas às tradições, ou como um
elemento dinâmico dentro desse processo de revolução industrial? Como
veremos, a solução da questão estaria situada para além da dicotomia
simplista da pergunta formulada.
A crítica de Thompson ao termo cultura popular é extensa, pois esta
pode soar como uma idéia consensual, no sentido de sistemas de
significados, valores e atitudes compartilhados universalmente. Ressalta
que a cultura é o conjunto de diferentes recursos, contendo, no bojo de seu
devir, aspectos conflitivos. Assim, Thompson reafirma a necessidade de
direcionarmos nossa atenção para os conflitos inerentes à sociedade. A
cultura popular deve ser observada em seus contextos históricos
específicos. Desta maneira, propõe a expressão "cultura plebéia", que
tomaria sua forma muito mais pelo estabelecimento de uma relação de
alteridade, do que com valores em si. Percebe-se que o autor chama a
atenção para tomarmos cuidados com aspectos generalizantes em relação à
cultura popular, com aquilo que poderíamos chamar de aspectos universais
intrínsecos à mesma.
Assim como Bakhtin e Ginzburg, o autor em questão afirmaria que não
podemos entender as culturas popular e oficial como sistemas simbólicos
fechados. Sendo assim, percebe-se que no devir histórico dos costumes
existiria uma constante troca. No entanto, resta-nos conhecer os meandros
dessa relação. Os costumes das sociedades rural e manufatureira da
Inglaterra do século XVIII, eram regidos, por direitos consuetudinários, no
quais a ritualização e os mitos de um passado longínquo se faziam, de
diferentes formas, presentes. Desta maneira, verificamos, por exemplo, que
a tradição da transmissão oral de um conhecimento de um dado ofício
atravessava diversas gerações dentro de uma comunidade. Os costumes
tradicionais regiam a conduta das pessoas e que os infringisse seria punido
de acordo com os mesmos, todavia, devemos compreender que, apesar disso, os
costumes não estavam congelados pela tradição; mas, como veremos, inseridos
num devir no qual ocorriam conflitos entre os costumes ligados à tradição e
a ideologia capitalista.
Para entender este conflito devemos verificar, a partir de Gramsci,
que a identidade social de muitos trabalhadores transita entre a deferência
e a rebeldia, pois estes homens têm duas consciências teóricas: uma
relacionada à práxis e a outra herdada e absorvida acriticamente. Desta
forma, verificamos que o conflito toma dois rumos relacionados à cultura
plebéia. A primeira forma de reação se estabelece na tentativa de manter
uma inteligibilidade do mundo a partir de seus referenciais simbólicos, e
rechaça o que vem de fora. A outra, como que numa estratégia de
sobrevivência, aceita as influências externas, pois está dentro de um mundo
em que novas regras e necessidades estavam sendo impostas aos
trabalhadores. À guisa de conclusão, poderíamos dizer que o âmago das
relações entre as culturas plebéia e patrícia passaria pelo conflito. Como
se pode perceber, uma cultura baseada na tradição oral e outra ligada as
estruturas formais de ensino (cultura letrada) entram num processo
dialógico, concomitantemente às transformações econômico-sociais da
Inglaterra do século XVIII.



Peter Burke e Roger Chartier: As interações e apropriações da cultura
popular



Dois autores que integravam a suas temáticas questões relacionadas à
cultura popular são Peter Burke e Roger Chartier. O primeiro, assim como
outros autores aqui tratados, ressalta a dificuldade em se trabalhar com um
conceito tão impreciso como o de cultura; todavia, define-o como:


"um sistema simbólico de significados, atitudes e valores
partilhados e as formas simbólicas (apresentações, objetos
artesanais) em que eles são expressos ou encarnados" (BURKE, P.
1989, pp. 15)




Burke ressalta a idéia da distinção entre uma classe popular e uma
oficial, à maneira de Bakhtin; outrossim, afirma o caráter interativo
dessas culturas. Contudo, distancia-se dos estudos de Thompson, pois não
relaciona a idéia de uma cultura oficial relacionada a uma elite, ou seja,
não a relaciona com determinado grupo que se pretende hegemônico. Por
conseguinte, podemos aferir que Burke estabelece um posicionamento da
cultura popular diante da oficial em parâmetros mais abstratos, sendo o
popular quase como um rebelde que existe dentro de cada um de nós. (BURKE,
P. 1989, pp. 15) Antes de nos atermos diretamente ao caráter interativo
dessas culturas, é mister dizer que o autor em questão também relaciona aos
casos em que se estabelecem uma estratificação social o fato de ter
acontecido uma dicotomização cultural entre uma grande tradição e uma
pequena tradição; só que havia uma assimetria entre estas tradições, ou
seja, elas não necessariamente correspondiam a grupos sociais distintos.
Entendendo desta forma, pode-se dizer que a elite poderia participar da
pequena tradição exatamente por ser esta aberta, transmitida oralmente. Já
o povo não teria acesso à grande tradição, exatamente por não possuir os
conhecimentos formais, como a leitura. Burke então afirma que existiria uma
minoria, "bilíngüe" que participaria tanto da cultura oficial quanto da
popular. Outrossim, vai além na construção da idéia de uma interação entre
as culturas, para isso propondo que, entre a cultura oficial e a popular,
existiria uma cultura dos semiletrados, composta, por exemplo, pelos
oficiais impressores dos folhetos que circulavam entre o povo, as mulheres
também seriam exemplo desses bilíngües. Como vemos, Burke tenta criar uma
concepção de algo que se situaria entre a cultura oficial e a popular
(ligada a detentores das chaves de ambos os significantes), todavia, reduz
isto a determinados grupos específicos. Como veremos adiante, a noção de
cultura intermediária, proposta por Hilário Franco Júnior é bem mais
interessante do que a concepção de grupos ou indivíduos bilíngües. Podemos
fechar este ponto relativo a Burke questionando, não o fato da elite, ou
aqueles que faziam parte de uma grande tradição participarem da cultura
popular, mas sim, se realmente a participação dessa elite significava que
comungava dos referenciais simbólicos necessários para compreender os
significantes implícitos no discurso da cultura ligada ao povo, às
tradições orais e aos costumes. Vale lembrar que o autor ressalta que as
relações estabelecidas entre a cultura popular, entre 1500 e 1800, se
diferenciaram sensivelmente; a elite participara da cultura do povo no
primeiro período citado; todavia, já em 1800, havia se retirado. Bakhtin
aborda a questão de forma parecida, afirmando que a capacidade de
inteligibilidade por parte da cultura oficial em relação ao signos da
cultura popular vai decaindo até chegar a sua distorção máxima durante o
período do Iluminismo.
De maneira sucinta, vale notar que Roger Chartier estabelece uma crítica à
visão dicotômica entre cultura popular e oficial, estendendo essa crítica a
Bakhtin e Ginzburg, pois no primeiro caso a cultura popular seria captada
através apenas de Rabelais e, no segundo, através de um camponês que
traria, às suas interpretações da cultura erudita da época elementos da
tradição oral. Propõe, então a possibilidade de se trabalhar com dois
conceitos: o de representação e o de apropriação. Chartier tenta então
abrir caminho para a pesquisa através da idéia que:

"Da história social da cultura a uma história cultural do social.
(...) ... devemos encarar as representações coletivas como matrizes
que dão forma às práticas com as quais o próprio mundo social é
construído." (CHARTIER, R. 1995, pp. 549-552)

Entretanto, o que nos interessa mais é como Chartier lida com a idéia
de apropriação, dando continuidade à sua crítica acerca da dicotomia
oficial/erudito versus popular. Este autor acredita que, ao invés dos
historiadores estabelecerem conjuntos culturais que sejam aferidos enquanto
populares, deveriam analisar quais as formas com que esses conjuntos
culturais são apropriados19.



Hilário Franco Jr.: A cultura intermediária e o imaginário social


Nos dois autores que finalizarão este trabalho encontramos idéias
extremamente interessantes acerca dos processos de trocas entre as
diferentes culturas. Verificando as interpretações de Hilário Franco Júnior
e Jolly, iremos abordar principalmente dois aspectos. Em relação ao
primeiro autor, discutiremos a idéia de imaginário e, dentro da cultura
oral tentaremos observar as funções tanto do mito como da utopia,
presentes, por exemplo, na Fábula da Cocanha. Ainda com Franco Júnior,
examinaremos como ele lida com o processo de trocas culturais numa
perspectiva não-Bakhtiniana, ou seja, estaremos tratando do seu conceito de
cultura intermediária. Com Jolly, que examina questões ligadas à religião
na sociedade anglo-saxã tardia, verificaremos de que maneira, ocorreram,
neste caso, as trocas entre uma cultura oral vinda dos costumes germânicos,
ao se depararem com o cristianismo, uma religião extremamente estruturada
em escritos considerados sagrados.
Inicialmente, seria interessante expormos as idéias de Franco Júnior acerca
de Imaginário, este seria:
"...um conjunto de imagens visuais e verbais gerado por uma
sociedade (ou parcela desta), na sua relação consigo mesma, com
outros grupos humanos e com o universo em geral" (FRANCO JÚNIOR, H.
1998, pp. 18)
2Podemos perceber, desta forma, que esse imaginário é produto de uma
coletividade. Além disso, o autor ressalta o papel da percepção da
realidade por parte do homem, mediada por representações (termo não
utilizado pelo autor) deste real, que poderiam ser decodificadas exatamente
pela construção dentro de uma sociedade, que seria uma rede de significados
simbólicos, de uma aparelhagem cultural que daria aos seus integrantes a
capacidade de ter a "ilusão" de captar a realidade. Nesta mediação entre
uma realidade psíquica e outra material estaria o mecanismo do imaginário
social. Seguindo neste raciocínio, o imaginário seria resultante da
confluência de dois tempos: 1- Os elementos de longa duração seriam aqueles
que tomariam o caminho da realidade material para o imaginário, podendo
assim transformá-lo. 2- Os elementos de curta duração: neste nível, a
cultura seria responsável pelas formas possíveis de leitura da sociedade
sobre sí mesma. É mister compreender que a sociedade que produz um
imaginário igualmente se torna produto dele.

Imaginário
Realidade psíquica
Realidade Material

Continuando com a idéia de imaginário, Franco Júnior ressalta:

"A modalidade do imaginário que foca sua atenção em um passado
indefinido para explicar o presente é o que chamamos de mito.
Aquela que projeta no futuro as experiências históricas do grupo-
concretas e idealizada, passadas e presentes- é ideologia. A
terceira modalidade, que parte do presente na tentativa de
antecipar ou preparar um futuro, é utopia" 24 (FRANCO JÚNIOR, H.,
1998, pp. 17)
Interessante, neste ponto, é percebermos como determinada sociedade
lida com esses elementos simbólicos que, como o mito, mantêm uma dinâmica
relação com o real. Na Europa do século XIII, em reação a um mundo em
transformação, com regulamentações e imposições vindas por parte da igreja,
percebe-se o crescimento das cidades, movimentos no sentido da organização
de conjuntos políticos maiores desembocariam no Estado moderno, respondendo
também a uma retomada do direito romano. Em tal contexto seria criado um
mundo imaginário na fábula da cocanha. Nesta fábula encontraríamos muitas
característica ligadas a um mundo utópico onde estariam ausentes as leis,
os limites e todo e qualquer tipo de repressão. Esse mundo em muito
lembraria os aspectos da cultura popular de Bakhtin, em sua análise de
Rabelais, pois neste devir a liberdade, a abundância e a ociosidade seriam
algumas das qualidades de um mundo sem leis. Quiçá seja importante notarmos
que, da mesma forma que as relações com o tempo (o calendário) e o trabalho
estavam mudando nessa época, havendo uma contra-realidade neste mundo da
cocanha, temos igualmente conflitos com a idéia das transformações sociais
e a regulação do tempo trazidas pelo advento da lógica capitalista, o que
é considerado no trabalho de Thompson (THOMPSON, E. P., 1997 pp. 267-304).
A diferença das abordagens é clara, já que Thompson, diferentemente de
Franco Júnior, analisa os aspectos conflitivos (os embates de uma cultura
plebéia e uma que se pretendia dominante) na mudança de um hábito,
relacionado ao tempo, na Inglaterra no período de transformações, próximo à
revolução industrial.
Tendo exposto esses aspectos, presentes na análise de Franco Júnior
sobre o imaginário, vamos agora examinar algo que engloba a questão do
imaginário, tendo em foco a cultura, ou mais precisamente as
especificidades das trocas culturais. Este autor estabelece uma crítica a
Bakhtin e Ginzburg, pois estes enxergavam trocas entre as diferentes
culturas, polarizando-as entretanto. Para Franco Júnior se deveria
aproximar o conceito de cultura popular a um viés mais antropológico, pois
em sua opinião poderíamos pensar a :

"cultura popular como aquela praticada, em maior ou menor medida,
por quase todos os membros de uma dada sociedade, independentemente
de sua condição social. Isto é, nessa hipótese, cultura popular
seria o denominador cultural comum, o conjunto de crenças,
costumes, técnicas, normas e instituições conhecido e aceito pela
grande maioria de indivíduos da sociedade estudada" (FRANCO
JÚNIOR, H., 1996, pp. 34)


Este denominador comum de que fala Franco Júnior seria o centro de uma
hipótese de que, para além de uma polarização do popular versus o erudito,
existiria uma cultura intermediária, na qual estariam convergindo
diferentes níveis do processo identitário (étnico, religioso, lingüístico,
etc), inúmeros pontos em comum; por conseguinte, setores culturais como:
grupos ou classes estariam se inter-relacionando. A despeito das diferenças
extremas, processos mútuos de aculturação ocorreriam porque as similitudes
dos conjuntos de significantes partilhados nesta área tornaria isso
possível. É importante ressaltar que dificilmente trocas ocorreriam entre
áreas culturais específicas, pois elas não seriam auto suficientes. Em
vista que aquilo que é deformado , ou modificado, obedece uma lógica que
deve ser partilhada no geral. Algo só poderia ser criticado ou assimilado
se anteriormente fosse compreendido. Na análise de Franco Júnior perderia
sentido a idéia defendida por Burke, sobre grupos que seriam bilíngües,
(participantes de mais de uma cultura), pois, antes de existirem indivíduos
com essa capacidade, existiria uma área intermediária que possibilitaria a
cognição de diversos campos simbólicos.


Karen Louise Jolly: O popular e o formal


Chegamos finalmente à autora que fechará nossas considerações acerca
dessas, múltiplas formas de reciprocidades culturais. Jolly fez sua
pesquisa sobre a religião popular entre os anglo- saxôes dos séculos X e
XI. Da mesma forma que Franco Júnior, Jolly se distancia das idéias de
Bakhtin e Ginzburg, pois se opõe à mera dicotomização entre elementos como
milagroso (formal) versus mágico (popular) ou cristão (formal) versus pagão
(popular), não aceitando a idéia de uma circularidade, no entanto, propondo
que para além desta polarização, existiriam esferas sobrepostas de religião
formal e popular, o que lembra a proposição de uma cultura intermediária,
há todavia, nuanças importantes, como por exemplo o fato de estar se
referindo à questão da religião em determinado período histórico.
A autora tenta mostrar que para além de um embate entre duas formas
de se entender o mundo, sendo a oral baseada sobretudo em aspectos míticos,
que têm como função principal estabelecer uma forma de inteligibilidade do
cosmo, remontando a um passado originário. O mito estabeleceria igualmente
formas e padrões de comportamento; portanto, o mito dá conta de uma
totalidade, pois apresenta a multiplicidade das relações do homem com o
cosmo. Em última instância, devemos perceber que o mito, por proceder de
uma cultura oral, estabelece uma relação dinâmica com a realidade; desta
forma, notamos por que uma determinada figura mitológica é mais evocada em
um tempo do que em outro, logicamente porque o mito estabelece uma relação
indissociável com o homem e com seu devir historicamente determinado. A
outra ponta desse problema seria a linguagem baseada em escritos sagrados,
no caso, o cristianismo. Devemos ter em vista que uma cultura baseada na
oralidade está mais propensa a se modificar (não que isso seja uma regra
geral) do que uma religião revelada, que se estrutura em livros sagrados,
que estão congelados por essa sacralização, e terão maior dificuldade de se
modificar durante o devir histórico. Não obstante as dificuldades de
modificação de uma religião tão estruturada como o cristianismo, veremos
que a análise da autora nos fornecerá argumentos substanciais para crermos
que essa modificação seria possível.
Antes de entrarmos no modelo de religião popular (que teria em suas
práticas elementos como a demarcação de um ciclo de vida, com casamentos e
aniversários, ou então na prevenção de malefícios imprevisíveis, ou ainda
assegurando uma continuidade espiritual) proposto pela autora, devemos
ressaltar que a diferenciação radical entre religião, ciência e magia, não
faz sentido no período que estamos tratando, posto que a ciência se
encontrava definitivamente unida a elementos teológicos; devemos, portanto,
entender que esses três campos discursivos encontravam-se então num
processo relacional. Mas o que seria essa religião popular? Basicamente a
idéia seria de um lugar onde as crenças e práticas podem ser decodificadas
pela maioria da população, mesmo que essas práticas encontrassem
contradição na religião formal. Neste sentido entendemos que a religião
popular englobava práticas derivadas dos costumes germânicos e de
estruturas cristãs, ou seja, ao invés de se pensar que as mudanças, com
seus múltiplos processos de aculturação, aconteceram de maneira abrupta,
devemos, pelo contrário, compreender que esse processo de conversão ocorreu
de maneira lenta, e, nele, as diferentes formas de se entender o mundo
foram se acomodando e se sobrepondo. A autora chamaria esse campo de
inteligibilidade mútua da religião popular de gray area (literalmente: área
cinza), mas podemos entendê-la como um lugar em que não estão muito
definidos os aspectos de uma cultura, isto é, um lugar nebuloso, onde as
trocas culturais estariam em seu pleno devir.
Figura I.2. Visão global da religiosidade medieval (JOLLY: 1996, p.33)


"Essas duas categorias, popular e formal, são esferas sobrepostas,
com o formal embutido quase que completamente dentro do popular. O
popular é uma esfera mais abrangente e no entanto mais amorfa,
incorporando a maior parte da população e das práticas. (...)
Desta maneira a religião popular e a formal têm uma relação
simbiótica no interior de um cultura partilhada, cada uma ligada à
outra." (JOLLY, K. L. , 1996, pp. 17-18)




Conclusão


Nestas breves páginas podemos em diversos momentos observar quão
múltiplas podem ser as abordagens da cultura popular, ou, como diria Jim
Sharp, dessa perspectiva de uma história vista de baixo. Porém, como vimos,
até a idéia de uma história vista de baixo e o conceito de cultura popular
podem ser relativizados. Neste sentido, poderíamos perguntar: qual seria,
enfim, a saída correta desta "sinuca de bico"? Entre circularidade,
conflitos e culturas intermediárias, qual seria o conceito que melhor daria
conta desse real ?
Precisamos observar primeiramente, que nenhum desses modelos engloba a
multiplicidade de determinantes que estão em jogo nas relações culturais,
mas sim, como em geral acontece, na pesquisa científica, responde a
determinadas perguntas que foram formuladas a um objeto. Todavia não
ficaremos em cima do muro, e, mesmo de maneira incipiente faremos algumas
reflexões acerca do tema que acabamos de abordar.
Apesar de cultura se apresentar como um termo extremamente polissêmico
através da história, não creio que isso seja impedimento para o
desenvolvimento de uma pesquisa; contudo, creio que deva ser ressaltado,
corroborando assim a maioria dos autores aqui citados, que não devemos
tentar encontrar aspectos universais dentro de uma cultura. Para isso, é
importante a determinação de que se está falando de certa cultura, que está
inserida
em determinado contexto; considerando também, que a noção de uma cultura
intermediária, como propôs Franco Júnior, e de maneira parecida, Jolly,
pode ser um importante instrumento de percepção das múltiplas variáveis
culturais. Tendo em vista estes conceitos, entendo que para que haja
relações de qualquer tipo entre duas áreas culturais, estas devem estar num
campo que seja inteligível para ambas as partes, mesmo que o resultado
dessas relações desemboque em interpretações distintas. Não descarto a
idéia de que, em dado momento histórico, um determinado conjunto de idéias
tenda a se tornar hegemônico e entre em conflito com outro; desta forma,
vejo a possibilidade de conflito entre diversos grupos, inseridos numa
interseção de diferentes áreas culturais.
Creio que o fato de se pensar uma determinada cultura para além de uma
idéia de classe ou grupo consista em um avanço e numa relativização
necessária; todavia, relativizar não significa excluir: sendo assim, acho
perfeitamente plausível, que em determinada conjuntura histórica, uma certa
área cultural, com definições ideológicas (sejam quais forem suas origens,
orais ou escritas), possa ser "personificada", quase que em sua totalidade,
na figura de uma determinada classe social.
A forma como abordamos a história está intrinsecamente ligada a
nossos pressupostos teóricos. Assim, o fato de considerar a cultura
enquanto aspecto determinante de outros campos do real, ou então,
determinada por fatores político-econômicos, parte de um posicionamento
epistemológico. Em minha opinião, não se deveria privilegiar
aprioristicamente, nem aspectos ligados à infra-estrutura, nem à
superestrutura, pois ambos encontram-se num devir indissociável. Todavia,
em determinado momento, evidentemente, poderíamos ter, tanto na primeira,
quanto na Segunda, sistema o nível dotado de maior influência em dado
processo.












3 Cf. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento:
O contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, Brasília: Editora
da Universidade de Brasília, 1999.



8 Ver Cardoso, C. F. Ensaios Racionalistas. Rio de Janeiro: Campus,
1988.p.04 "A realidade está em perpétua e universal transformação: mas
cada elemento qualitativamente novo que surge em função da resolução
de uma contradição dialética retém algumas das qualidades dos
elementos contrários que entraram em luta e assim o geraram"

12 GINZBURG, C. apud CARDOSO, C. F. op. cit. 2002 (b) p. 09 "Um conceito
de estrutura de classes, mesmo concebido em termos gerais, ainda
constitui um grande avanço sobre a ausência de classes"
19 Críticas aos conceitos de apropriação e representação ver: CARDOSO, C.
F. "Uma opinião sobre as representações sociais" In: ______ e MALERBA,
Jurandir. (orgs). Representações: Contribuição a um debate
transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000. Col. Textos do Tempo. Pp.
11-20 ; VAINFAS, Ronaldo. Op. Cit. Pp. 153-155 ou ainda BURKE, P.
"Overture: the new history, its past and its future." IN_ New
perspectives on historical writing. Cambridge: Polity Press, 191. Pp 1-
23
24 Idem, ibidem. pp. 17

-----------------------
1

2
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.