Cultura, Saúde e a Síntese Corpórea

June 3, 2017 | Autor: Marcelo Oliveira | Categoria: Antropologia Do Corpo E Da Saúde, Ritos de Cura
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Cultura, Saúde e a Síntese Corpórea [Autor: Marcelo. J. Oliveira]1

Resumo

Neste ensaio abordo aspectos etnológicos da tradição antropológica sobre a relação saúdedoença, partindo de dois ritos de cura descritos na literatura antropológica, respectivamente na sociedade ndembo (TURNER, 1974) e cuna (LEVI-STRAUSS, 1975), buscando compreender as técnicas e estratégias de rituais segundo categorias de pensamento identificadas com a magia e religião. Traço parâmetro de comparação com as práticas de cura de benzedeiras de região do litoral sul do Brasil, no sentido de verificar a experiência cultural da doença numa síntese entre corpo, estrutura social e cosmologia, e sua difícil relação com a racionalidade da biomedicina moderna.

Palavras-chave: antropologia da saúde; práticas rituais; biomedicina.

Introdução

A interface entre Antropologia e a área da Saúde é histórica no pensamento antropológico, pela própria constatação de processos rituais e religiosos ligados às práticas de cura, à “medicina” dos povos indígenas, abrindo espaço de discussão entre antropologia e medicina (LANGDON, 1996). Se, para a antropologia, a cultura envolve variadas formas de significar e representar o mundo, incluso formas específicas de conceber, representar e cuidar do corpo e da “alma”. A biomedicina, por especialização de área, tradicionalmente pauta a doença em seu processo biológico, fundamentalmente fisiológico e patológico. No entanto, abordagens antropológicas procuram também compreender o fenômeno da doença em seus aspectos psicológicos e socioculturais, como, por exemplo, focando a influência da cultura na experiência subjetiva da doença, implicando sentimentos de aflição. Autores clássicos da antropologia, da tradição teórica evolucionista, buscaram compreender as técnicas e estratégias de cura dos povos indígenas segundo categorias de 1

Professor Adjunto de Antropologia da Universidade Federal de Viçosa-MG (Brasil). [Como citar este artigo: OLIVEIRA, M. J. Cultura, Saúde e a Síntese Corpórea. Universidade Federal de Viçosa. Depto. de Ciências Sociais. Viçosa: mimeo, 2015.

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pensamentos identificadas com a magia e religião. Estas categorias foram empregadas conforme a classificação e origem das doenças no sistema de crença nativo. Alguns dos fundadores da antropologia teorizaram sobre certa “medicina primitiva”, e tinham como preocupação compreender os aspectos etiológicos “espirituais” e sobrenaturais da doença concebidos pelos povos aborígines: buscavam traçar a relação entre cosmologia e organização social de grupos tribais com a classificação de doenças, seu tratamento e cura. Houve, inclusive, neste período histórico da disciplina algo que se esboçou como “antropologia médica”, posteriormente também criticada em suas teses seminais (DOUGLAS, 1976). Os clássicos evolucionistas teorizam sobre conceitos nativos de doença que operam como crenças sobre a “origem dos males”, identificando uma série de motivos (de categorias) que levam aos estados de doenças. Dentre os motivos, destacam-se a feitiçaria, quebra de tabu, intrusão de substância no corpo, intrusão de espírito no corpo, perda da alma, entre outros. O “curandeiro”, muitas vezes denominado pela literatura especializada de “xamã” ou “médico-feiticeiro”, é aquele personagem que detém conhecimentos e poder para acionar as forças do mundo natural e sobrenatural, mobilizando-as para que se opere o tratamento, ativando o processo de cura pelo processo ritual (LANGDON, 1996, p. 3-5). Nesta linha, sigo com autores que se amparam na abordagem antropológica no estudo e compreensão da doença como experiência cultural. Passemos a dois exemplos de cura ritual extraídos da literatura etnológica.

O curandeiro e o rito de cura Segundo Turner (1974), entre os ndembo, grupo tribal africano, existe a crença numa conexão direta entre doença, conflito social e o rito. Por exemplo, num rito praticado chamado isoma, cujo foco são as mulheres, verifica-se a relação entre doença, estrutura social e cosmologia. Na sociedade ndembo o ideal para uma mulher é que ela case e seja mãe de crianças saudáveis, de vigor físico e mental. Os ndembo acreditam que a mulher que estiver em desacordo com esses princípios, levando ao descontentamento e rixas nas relações dentro de seu grupo de parentesco consanguíneo e afim, e na tribo como um todo, é porque esqueceu de uma ancestral matrilinear morta (mãe, avó materna ou outra na linha consanguínea), correndo o perigo de ter seu poder procriativo (lusemu) amarrado pelo espírito ofendido (kukasila). O isoma se insere num contexto de estrutura sócio-parental ndembo de descendência matrilinear, combinando casamento virilocal. O casamento costuma ser arena de conflitos de

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linhagens quando se exige que a criança de um casal assuma sua filiação matrilinear e se mude para a aldeia dos parentes da mãe. A mãe geralmente a acompanha, provocando um número considerável de separações conjugais, gerando conflitos. Neste contexto algumas mulheres podem sofrer de distúrbios reprodutivos e permanecerem estéreis, principalmente durante o período que estão vivendo com seus maridos. Os ndembo atribuem como justificativa ao problema o fato destas estarem sendo atingidas pelo espírito-antepassado ofendido. No caso, o casal deve ser submetido a um ritual para que se obrigue a lembrar dos antepassados esquecidos. O ritual é conduzido por um curandeiro, conhecedor dos remédios e dos procedimentos corretos. O rito envolve local adequado e sustâncias: é delimitado um círculo como espaço sagrado e são utilizados vegetais, água quente e fria, aves brancas e vermelhas e sangue das mesmas, entre outras substâncias. Cânticos são empregados e movimentos corporais coordenados são feitos repetidamente. As disposições espacial e geométrica e os processos físico-químicos envolvidos (fogo, aquecimento e resfriamento de líquidos e de vegetais) acontecem de maneira que se opere transformação de estado das coisas da natureza e que essa transformação hipoteticamente também ocorra no corpo da mulher, a afastando dos espíritos que lhe afligem. A natureza (o mundo concreto dos seres e das coisas) e o sobrenatural (mundo dos espíritos) sincronizam numa espécie de espectro que se representa pelas ações coordenadas, reorganizando na concepção ndembo a existência humana e reestruturando sua ordem social pelo afastamento daquilo que a ameaça. O espectral representado pelas ações reside em seu conteúdo simbólico: cada cântico empregado, cada palavra, cada movimento e seus correspondentes significados estão diretamente relacionados à explicação de mundo, construída com a própria história e experiência do grupo, alocados numa narrativa mítica. A eficácia ritual para a cura passa a ter conteúdo pragmático: o de que a veracidade de uma proposição consista no fato de que ela seja útil à cura, tenha alguma espécie de êxito ou de satisfação. O isoma busca equilíbrio entre partes envolvidas num conflito social: a mulher que está com distúrbios reprodutivos, os espíritos dos antepassados que afligem essa mulher e a comunidade ndembo que percebe sua estrutura de parentesco ameaçada pelo fato da mesma ser base de sua organização social. Lidamos com um problema de saúde diretamente relacionado e situado no campo sócio-cultural. Outro exemplo é fornecido por Lévi-Strauss (1975), quando examina a cura xamânica de uma sociedade tribal panamenha, os Cuna. O autor procura fazer relação entre a eficácia simbólica e o sentido terapêutico embutido no processo. Na cosmologia do grupo existe um

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rito que se destina a resolver um parto difícil. O conteúdo dos cânticos entoados pelo xamã tem por objetivo reorganizar o mundo dos espíritos relacionados com a formação da vida intra-uterina e devolver a parturiente sua alma que havia sido raptada pela entidade muu. Os nativos acreditam que o xamã... “[...] empreende viagem ao mundo sobrenatural para arrancar o duplo do espírito maligno que o capturou e, restituindo-o ao seu proprietário, assegura a cura [...] ‘o caminho de muu’ e a morada de muu não são, para o pensamento indígena, um itinerário e uma morada mítica, mas representam literalmente a vagina e o útero da mulher grávida [...]” (Ibid., p. 217).

O parto difícil é explicado como desvio da alma do útero. A cura inicia com a remontagem de acontecimentos míticos relacionados a uma realidade concreta. A narrativa reconstitui uma história, na qual o corpo e seus órgãos é palco de uma fusão entre universo fisiológico interno (a natureza) e o mito sobre entidades espirituais (o transcendente) que controlam a vida. A retórica de invocação dos mitos de origem no processo ritual reafirma a cosmologia cuna. O conteúdo da perturbação fisiológica na ideologia nativa se relaciona com a ordem sobrenatural e se delineia na consciência da doente pela sugestão provocada pelo contexto ritual, permitindo representações psicossociais da doença e de sua cura através da invocação articulada de elementos simbólicos. A consciência do compartilhamento na crença de cura entre os nativos é o substrato de confiança no xamã, na sua habilidade e poder de curar, pois fornece subsídios simbólicos à paciente parturiente, de maneira que a doença se torne uma experiência inteligível, contribuindo no desbloqueio do processo fisiológico com o melhor controle e assimilação das contrações e dilatação pela paciente. A dilatação é o resultado produzido pelo efeito psicológico sob influência do processo ritual. Lévi-Strauss, inclusive, hipoteticamente aproxima xamanismo e psicanálise, pelo fato de ambos procurarem dissolver os conflitos e as resistências, tornando possível uma experiência específica a partir do conhecimento progressivo que a paciente adquire sobre uma nova ordem (ou reordenação) de coisas, conduzindo ao desenlace. A diferença entre o xamã e o psicanalista reside na direção que cada um toma. Num primeiro momento o psicanalista assume o papel de ouvinte e o xamã de orador, para estabelecerem uma relação imediata consciente, buscando atingir o nível inconsciente da paciente sobre o conflito/doença. Ambos...

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[...] visam provocar uma experiência, e ambos chegam a isto reconstituindo um mito que o doente deve viver ou reviver. Mas num caso, é um mito individual que o doente constrói com a ajuda de elementos tirados de seu passado; no outro, é um mito social, que o doente recebe do exterior, e que não corresponde a um antigo estado pessoal. (Ibid., p. 230)

Os dois ritos aqui reunidos são de reprodução, respectivamente relacionados à dificuldade de conceber e parir, situados a partir da cosmologia e “medicina” indígena e em suas atribuições sociais, culturais e religiosas. A partir de uma classe de ritos e do universo de valores envolvidos é possível melhor compreender os processos de saúde doença em populações indígenas.2

A síntese corpórea A experiência etnológica indígena nos leva à reflexão sobre um corpo que sintetiza símbolos e os vive concretamente manifestado em estados de saúde e doença. Um corpo subjetivado em trocas carregadas de sentidos e valores morais, estéticos e biologicamente sexuados, vivido em gêneros e crenças. Podemos, à luz da experiência etnográfica, perceber o quanto esse corpo se inscreve socialmente em conteúdos de linguagem (cotidiana e mítica) e existência física. Entre os Kaxinawá, grupo indígena pertencente às terras sul-americanas, a “pessoa” é concebida numa síntese entre “conhecimento” e “corpo”. O conhecimento é transmitido em formas materiais, espirituais e linguísticas, fundamentado na estrutura social que prevê a ordem da cultura na relação com a da natureza. No pensamento deste povo o distúrbio sofrido pelo corpo age diretamente sobre o conhecimento, e o oposto também é princípio de ordem. A concepção baseia-se na idéia de um corpo atravessado por relações de natureza física, social e espiritual. O corpo é periodicamente fabricado e construído pela admissão de substâncias rituais via oral e sobre a pele, na forma de fluidos corporais, alimentos, eméticos, tabaco, pigmentos e óleos vegetais. O corpo é o sítio da construção social da vida e o conhecimento vai se inscrevendo no mesmo (McCALLUM, 1998).

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Historicamente, a partir da relação de contato com o mundo civilizado, grupos indígenas incorporam algumas práticas biomédicas conforme situações de gravidade da doença e tipos de doenças contraídas a partir do “homem branco”. Algumas enfermidades escapam do conhecimento nativo e não encontram lugar em sua cosmologia, fazendo com que recorram a medicina científica.

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Os Yurok, do norte da Califórnia (EUA), concebem seu corpo como superfície na qual se inscrevem mudanças sociais e ambientais. Os eventos inscrevem memória nos corpos dos indivíduos, sendo que a memória está em todo corpo. As mulheres do grupo atribuem, por exemplo, à incidência de doenças degenerativas ao uso de substâncias psicoativas e alucinógenas que não fazem parte das do uso tradicional do grupo, como maconha, cocaína, crack etc. Acreditam inclusive que o aumento da criminalidade na comunidade é consequência direta da violência sofrida pela brutal invasão hispânica, pela ação dos caçadores de pele e garimpeiros, bem como pela política indigenista do governo norteamericano. A política governamental de saúde impacta na construção nativa da “pessoa Yurok”, que concebe sua saúde física diretamente atrelada à saúde mental, como um plano cultural e cognitivo de elaboração existencial e de explicação de mundo que é antagônico ao conhecimento “racional” da biomedicina. No caso, a medicina científica ancora as práticas de saúde do Estado sobre populações indígenas tuteladas, desconsiderando a correlação entre corpo e história construída pelos Yurok. O grupo entende e se explica a partir de três corpos: corpo individual, corpo social e corpo político. Um corpo afetado pela doença possui suas implicações psicológicas, mas torna-se fundamentalmente um problema de ordem social e política, que toma lugar no tempo histórico do grupo. A tônica no corpo político motiva a compreensão de certas desordens, como diabetes e alcoolismo, produzidas pela política de institucionalização do corpo Yurok, submetido a tratamentos e internações individualizadas, distante do conhecimento e corpo social do grupo (FERREIRA, 1998). Um corpo afetado pela doença possui suas implicações psicológicas, mas torna-se fundamentalmente um problema de ordem social e política, que toma lugar no tempo histórico do grupo, principalmente o de contato com o “homem civilizado”.

Benzedeiras e práticas de cura Geralmente nos é cômodo tomar conhecimento de cosmologias “exóticas” pelo fato de a localizarmos num universo de relações de sociedades que não compartilham a razão moderna para explicar o mundo e seus fenômenos, dentre eles a Saúde. Entretanto, as experiências de municípios circunvizinhos na região da Grande Florianópolis (SC) auxiliam no tema. O Município de Governador Celso Ramos é uma região conhecida por algumas peculiaridades culturais, dentre elas a crença na existência de mistérios de organizam a vida na comunidade. É comum entre os moradores do município o discurso do moderno se mesclar ao discurso do

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folclórico: histórias fantásticas sobre benzeduras, bruxas, lobisomens e outras feras antropomórficas que atacam pessoas e animais durante a noite. Alguns nativos das gerações mais novas são céticos, mas, sem dúvida, ainda convivem com estas histórias em seu cotidiano. Contam alguns que certa vez uma mãe percebeu que seu filho estava doente e o levaram ao médico.3 Após exames o médico afirmara que a criança não apresentava sinal de doença alguma. Sendo assim, a mesma resolveu levar a criança numa benzedeira. Esta última diagnosticara que a criança estava sendo “chupada” por uma bruxa. Afirmando ainda que a mãe saberia quem era a bruxa, pois iria bater na porta de sua casa solicitando remédio para dor de dente. Quando a mesma chegou em casa, com a criança, uma vizinha foi até ela pedir o remédio, descobrindo a mãe quem era a bruxa de seu filho. Esta história tem outros desdobramentos, e quando ouvimos as pessoas da região, observamos um discurso elaborado que procura dar conta da experiência cotidiana e do seu significado na explicação de algumas doenças a partir de um mundo sobrenatural e fantástico. A outra experiência cultural nesta mesma região foi com as benzedeiras do bairro Carandaí, no Município de Biguaçu. A sobrevivência dessa personagem aponta para esta “síntese corpo/alma”. Num trabalho de pesquisa desenvolvido por uma equipe de estudantes de psicologia sobre práticas curativas tradicionais empregadas por benzedeiras, foram coletados alguns relatos que ajudam a pensar esta síntese.4 Quando as benzedeiras foram instadas a responder sobre quais práticas utilizam para tratar os males que mais afligem as pessoas que lhes procuravam, responderam utilizar na maioria dos casos somente a benzedura. A recomendação de ervas em infusão ou maceradas é para casos específicos de feridas, como a erisipela (“esipra”), impigem, cobreiro, “sapinhos” na boca, gripes e tosses. Mesmo a benzedura sendo também empregada nestas afecções de pele, é mais comum para males como dor de cabeça, “mau jeito” (incluindo entorses e “arca-caída”), vermes e “mauolhado”. No último caso a benzedura é procurada como forma de mobilizar “energias” para proteção e é uma das práticas mais procurada. Uma das benzedeiras entrevistada define o “mau-olhado”:

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As duas histórias que seguem foram contadas por moradores nativos do Município de Governador Celso Ramos, coletadas durante uma pesquisa realizada no logradouro Areias de Baixo e região, pelos alunos do 2º período do curso de Pedagogia do Ensino Fundamental da UNIVALI/Núcleo de Governador Celso Ramos – 2000-II, para a disciplina Filosofia da Educação II que ministrei. 4 Pesquisa desenvolvida na disciplina Psicologia Comunitária, do 5º período (UNIVALI – SC), pelas discentes Alessandra A C. Martins, Camila P. Beckauser, Gisele R. Tubbs e Vânia F. Pereira, intitulado “As Práticas Curativas utilizadas pelas Benzedeiras na Comunidade de Carandaí – Biguaçu (2003).

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É outra pessoa que coloca em ti o mau-olhado. É outra pessoa. É justamente a inveja. Olha, eu acredito que seja a força dos olhos, a força da mente, a força da energia negativa que tem na pessoa dentro dela que passa pra outra. Vamos supor: ele te acha tão linda que aquela energia fica ruim, tão forte... ela não tem culpa! Ela não faz por querer. É meio a meio. Mas a maioria não sabe que tem essa energia forte. Ela sente inveja, mas ela não sabe que essa inveja tá fazendo mal pra aquela pessoa. E a própria mãe também coloca quebrante nos filhos. É o pior quebrante que tem: é do bem-querer [...] Mas não é toda pessoa que sente inveja e que passa aquela energia [...] parece um fluido que joga.

Para benzedura de mau-olhado outra entrevistada ainda faz algumas restrições:

Eu só não benzo pessoas adultas pra mau-olhado, o resto eu benzo de toda idade. Agora, pra mau-olhado só até sete anos. Porque uma vez fui benzer uma senhora e fiquei três dias de cama. Diz o pai dela que era o espírito da mãe dela. Aí eu não atendi mais essas pessoas. Vem gente de todo lugar: Itapema, Florianópolis, Celso Ramos, São José [...] Já trouxeram crianças do hospital que ainda não estavam bem e eu curei. Nós temos duas costelas flutuantes, uma delas sobe um pouquinho e aquilo dá febre, dá desarranjo, dá vomito, se deixar até mata. Então a gente faz uma massagem, faz uma oração [...] eu sempre me apego a Deus, a Cristo. Faço a oração uma em cima da outra. Que é o mau jeito que eles dão na criança, no pegar. É arca-caída [...] às vezes eles trazem até roupinhas das crianças pra benzer, daí a criança dorme com a roupa. Eu pergunto pras mães: ‘como passou a tua criança’. Aí dizem: ‘dormiu a noite inteira’. A criança muito atacada eu benzo três vezes. O que mais recomendo é três vezes. Às vezes uma só não resolve.

Sobre a crença e a ligação com a cura, a mesma relata o seguinte: Eu falo assim pro povo: ‘Você tem fé em Jesus Cristo e na Santíssima Trindade?’ Aí responde ‘tenho’. Então não importa a religião, tem que ter fé. Se você não tem não adianta. Mas se tem fé, tu senta pra benzer. Porque eu faço a oração e não curo ninguém. Quem cura é Jesus. Eu entrego tudo à Santíssima Trindade. Eles que estão me ouvindo e vão curar vocês. Se vocês têm fé. A pessoa tem que acreditar que vai dar certo. Acreditar que deus fez esse mundo, curou os doentes, ressuscitou os mortos, mandou as plantas para nós. Essa fé que a gente tem em Jesus é a fé que a gente entrega a criança a ele.

Os relatos acima nos indicam alguns elementos importantes. Um deles diz respeito ao conhecimento acionado para a explicação etiológica do mal que aflige o/a paciente destas curandeiras. As explicações dos sintomas são descrições de algo visível (geralmente dermatoses), palpável e não aparentes (mau jeito, arca-caída proveniente de um movimento inadequado) ou algo espectral, “invisível” (mal-estar provocado pelo mau-olhado, capaz de deixar uma pessoa “atacada”, com insônia, ou dada à má sorte). As explicações etiológicas reportam às causas geralmente provocadas por coisas da natureza ou ações humanas, incluso

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nestas ações o poder que as pessoas têm em emitir “fluidos” que afetam outras, abalando seu “espírito” e muitas vezes levando a uma indisposição mental, a uma aflição e/ou a um estado físico doentio. A benzedeira praticamente assume o mesmo papel do xamã: faz a ligação entre as entidades que curam (Deus, Jesus, Santíssima Trindade, Nossa Senhora, entre outras), acionando as forças sobrenaturais pela reza, algumas vezes manipulando elementos da natureza (ervas), tornando a doença de certa forma inteligível ao paciente, ou ao seu cuidador (no caso a mãe da criança), e procedendo ao tratamento com sessões de rezas e recomendações de cuidados. Muitas das rezas são feitas a baixo tom e numa fala praticamente ininteligível. A inteligibilidade desenvolvida pelo paciente sobre sua doença também é amparada pela crença no poder de cura da benzedeira, além de ouvir os conselhos e recomendações desta especialista. Sabe-se que o conhecimento destas curandeiras possui caráter esotérico, conhecido e compreendido por poucas pessoas. Ouvimos de uma delas o seguinte: “Já vieram espíritas pedir minhas orações, que eu faço com o meu benzimento. Então eu disse que posso até escrever. Quando eu morrer, aí sim, eles podem mandar imprimir. Porque enquanto eu estiver viva quero benzer. Se eu der minhas orações perco minhas virtudes”. As virtudes da benzedura são repassadas por outra benzedeira. A iniciação se dá por contingências várias, como verificamos nesta fala:

O início de meu dom foi por causa de minha netinha. Eu morava no bairro Agronômica e lá tinha uma moça que benzia. Então quando minha neta tinha mauolhado eu levava pra moça benzer. Mas nós nos mudamos. Nós nos deslocávamos de Biguaçu pra Agronômica pra benzer [...] um dia eu disse pra ela que tinha me mudado [...] e ela com pena de mim, ou não sei se ela quis passar a oração pra mim, porque ela não dá ponto sem nó [risos] ela passou a oração. Aí ela passou pra mim e eu perguntei: ‘como tu sabes que vai dar certo’. Ela respondeu: ‘experimenta e vê!’. Ela sabia que ia dar certo. Deus já sabia. Vim embora e comecei a fazer, aí comentei que benzia e ali começou a se espalhar.

Segundo Maluf (1993), o imaginário da benzedeira, diferentemente da bruxa, é de uma pessoa real que desempenha papel social e estabelece laços sociais solidários na comunidade. São mulheres que detém determinados conhecimentos curativos sobre ervas medicinais, rezas e benzeduras, sobre partos e recém-nascidos, sobre procedimentos rituais contra os malefícios do quebranto, mau-olhado, feitiçaria e bruxaria. A benzedeira...

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... aparece como um misto de médico e sacerdote, uma doadora. Os produtos ou alimentos que recebe em troca, antes de serem pagamentos por seu trabalho, são uma forma de retribuição a uma dádiva [...]. A benção que a benzedeira pode dar para a comunidade, através das curas, das benzeduras, da proteção, é uma dádiva, no sentido em que significa a manutenção de um laço social. (MALUF, 1993, p.128)

É fato a grande demanda que as benzedeiras diariamente atendem nas comunidades onde a história e o conhecimento tradicional ainda se estruturam numa cosmologia que sintetiza corpo, relações sociais e “alma”. Esta personagem e o traço cultural que representa, presente ainda hoje no contexto brasileiro, revelam outros caminhos de explicação da doença a partir de um campo de conhecimentos específicos, também concebidos e percebidos por usuários do sistema público de saúde. O interessante sobre esses aspectos culturais é o quanto informam sobre formas de conhecimento e percepção de uma comunidade no que diz respeito aos processos de doença e cura. O fato de se duvidar de tais conhecimentos, em virtude de sua suposta inconsistência científica, não procede quando no investimento de se descobrir os percursos históricos, culturais e sociais de males específicos.

Considerações Finais Com relação as práticas curativas tradicionais, trata-se de acessar um conhecimento organizado sobre saúde/doença que a medicina científica não fornece, por mais que a medicina comunitária tenha tomado assento nas políticas pública de saúde. Cosmologia e conhecimento local (histórico em termos de memorial social) são campos úteis para a compreensão de um sistema de crença e pensamento que delimita social e culturalmente o fenômeno da doença, cujas formas complexas muitas vezes é interpretada equivocadamente como “senso comum”. Sem dúvida os avanços da medicina científica são de grande importância, mas a centralidade biomédica do diagnóstico geralmente dificulta a possibilidade de diálogo com as ciências do “corpo social”. A atribuição à doença de fatores exclusivamente biológicos afasta o cenário social e cultural que muitas vezes leva a alguns tipos de doença. Refiro-me a necessidade de perceber os aspectos sociais e culturais não somente como formas de comportamentos responsáveis por processos de disseminação de certas doenças, isto que a epidemiologia tem abordado, mas, também, como aspectos que apontam para campos de significados relacionados a origens de certas doenças. Os setores institucionais e profissionais de saúde lidam com populações e pacientes que vivem a experiência cognitiva da saúde/doença na interface entre algumas informações

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superficiais da medicina científica e o conhecimento oriundo das representações populares e das práticas curativas tradicionais. Mesmo na sociedade ocidental laica, somos educados para compreender a doença a partir de princípio religioso cristão. A doença como processo e verbalizada pelo paciente remete a própria busca do mesmo em compreender seu mal para organizar a sua experiência de dor e mal-estar, de sofrimento físico e psicológico. A prédisposição do paciente para este aspecto está diretamente relacionado com sua pré-disposição para o tratamento. As informações médicas sobre pródromo, sintoma, diagnóstico, prognóstico e tratamento da enfermidade geralmente soam estranhos ao paciente. Estes fazem o exercício de relacionar suas classificações de doença a partir do conhecimento tradicional de seu grupo social, tentando interpretativamente encaixá-las no discurso médico, no intuito de compreender o que está se passando com seu corpo, com sua vida, no mais amplo sentido. O bem-estar psicológico do paciente passa não só por uma possível cura que se processará, mas também pela inteligibilidade sobre o que lhe está acontecendo e o caminho para sua cura. Os modos como os indivíduos vivenciam a aflição da doença expressa uma síntese entre corpo e cultura, cuja síntese é anterior a qualquer conhecimento biomédico sobre a doença. Muito da resistência dos pacientes ao tratamento, às prescrições, rotinas e explicações médicas, não ocorrem pelo não entendimento do paciente do que está sendo dito pelos profissionais de saúde, mas, sim, pela dificuldade de compreender ao que é imposto ao corpo (significante) porque confronta os significados inscritos no mesmo com sua trajetória de vida. A doença quando se coloca diante das pessoas suscita dúvidas e incertezas, pois não está nos planos de nossos objetivos de vida, de nossas ações engajadas.

Bibliografia Consultada ALVES, Paulo César; RABELO, Miriam. C. Repensando o Estudo sobre representações e Práticas em Saúde e doença. In:

.Antropologia da Saúde. Rio de janeiro: Fio Cruz,

1998.

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BECKAUSER, Camila P. et al. As Práticas Curativas utilizadas pelas Benzedeiras na Comunidade de Carandaí – Biguaçu. Biguaçu, 2003. 12 f. Trabalho de Graduação (Disciplina Psicologia Comunitária) – Curso de Psicologia – Universidade do Vale do Itajaí – Centro de Educação Biguaçu.

DOUGLAS, M. Pureza e Perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976 [1966].

FERREIRA, Mariana Kawall Leal. Corpo e história do povo yurok. Revista de Antropologia. 1998, vol.41, no.2, p.53-105. ISSN 0034-7701.

LANGDON, ESTER J. A Doença como Experiência: a construção da doença e seu desafio para a prática médica. Antropologia em Primeira Mão. Programa de Pós-Graduação em Antropologia social. Centro de filosofia e Ciências Humanas - UFSC. Florianópolis, 1996.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. São Paulo: Tempo Brasileiro, 1975.

MALUF, Sônia. Encontros Noturnos: bruxas e bruxarias na Lagoa da Conceição. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 1993.

McCALLUM, Cecília. O corpo que Sabe: da epistemologia Kaxinawá para uma antropologia médica das terras baixas sul-americanas. In: ALVES, Paulo César; RABELO, Miriam. C. Antropologia da Saúde. Rio de janeiro: Fio Cruz, 1998.

TURNER, Victor. O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura. Rio de Janeiro: Vozes, 1974.

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