Culture’s In-Between (O entrelugar da cultura) - traduzido

July 22, 2017 | Autor: Hudson Marques | Categoria: Estudos Pós-Coloniais
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Culture’s In-Between O entrelugar da cultura Homi K. Bhabha BHABHA, Homi. Culture’s In-Between. In: HALL, Stuart; GAY, Paul du. Questions of Cultural Identity. London: Sage, 1996, p. 53-60. (Tradução: Hudson Marques da Silva) OBS: paginação conforme original

Uma recente mudança na escrita da crítica cultural deixou a prosa mais plana, com menos floreios no argumento. Onde antes 'as aspas' enfeitavam o texto igualmente às decorações de um casamento indiano, agora existe certa sobriedade nas celebrações semióticas e pós-estruturalistas. Os 'ismos' e 'alinas' – aquelas questões que mexiam com o dogma da crença crítica – não impactam mais nos novos paradigmas ou problemáticas da existência. A morte do autor, ou o sepultamento da intenção, são ocorrências que não causam mais escândalo do que a visão de um carro fúnebre em um subúrbio de Palermo. As práticas críticas que buscaram destotalizar a realidade social ao demonstrar as micrologias do poder, as diversas situações enunciativas do discurso, a derrapagem e o deslizamento dos significantes, estão repentinamente desarmados. Ao relaxar nossa guarda, talvez na esperança de que as formas intelectuais que buscávamos promover tinham se tornado o discurso comum da crítica, fomos pegos de surpresa. Privados de nosso ofício de escritor, somos convidados a encarar toda a realidade frontal da ideia de “Cultura” em si – o próprio conceito cujo guia pensávamos ter dissolvido na linguagem de práticas significantes e formações sociais. Esta não é nossa escolha, os termos do debate foram criados para nós, mas, no meio das guerras culturais e das manobras do cânone, não podemos nos esconder atrás das vestes da aporia e protestar exageradamente que não existe nada fora do texto. Onde quer que eu olhe nestes dias, deparo-me fixando os olhos de um oficial de recrutamento – às vezes ele parece com Dinesh D'Souza, outras vezes com Robert Hughes – que olha para mim intensamente e diz: “A Civilização Ocidental precisa de você!” Ao mesmo tempo, uma vozinha dentro de mim também sussurra: “A teoria crítica também precisa de você!” O que está em questão hoje não é a noção essencializada ou idealizada arnoldiana de “cultura” enquanto um arranjo arquitetônico do hebraico e do helênico. No meio das guerras multiculturais estamos surpreendentemente mais próximos da compreensão das Notas para uma Definição de Cultura de T. S. Eliot, em que Eliot demonstra certa incomensurabilidade, uma impossibilidade necessária, na reflexão sobre cultura. Diante da noção fatal de uma cultura europeia independente e a noção absurda de uma cultura não-contaminada em determinado país, ele escreve: “Nós somos portanto pressionados a manter o

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ideal de uma cultura mundial, ao admitir que se trata de algo que não podemos imaginar. Podemos apenas conceber isso como o termo lógico das relações entre culturas.”1 A fatalidade de pensar sobre culturas “locais” como não-contaminadas ou independentes força-nos a compreender culturas “globais”, as quais por si próprias mantêm-se inimagináveis. Que tipo de lógica é essa? Parece-me significante que Eliot, nesse ponto incerto de seu argumento, reporta ao problema da migração colonial. Embora escrevendo principalmente sobre sociedades coloniais, as palavras de Eliot carregam uma ressonância irônica com a condição contemporânea da migração do terceiro mundo: As migrações dos tempos modernos [...] se transplantaram de acordo com certa determinação social, religiosa, econômica ou política, ou certa mistura peculiar destas. Existe portanto algo nos movimentos análogos na natureza dos separatismos religiosos. Os povos levam com eles apenas uma parte da cultura total [...] A cultura que desenvolvem na nova terra deve ser, portanto, nebulosamente igual e diferente da cultura materna: será complicado algumas vezes por qualquer que sejam estabelecidas as relações com alguma raça nativa e ainda mais pela imigração, desde que não seja a fonte original. Assim, emergem tipos peculiares de afeição-à-cultura e choque-decultura.2

Essa cultura “partida”, essa cultura parcial, é o contaminado tecido conjuntivo entre culturas – ao mesmo tempo a impossibilidade da independência da cultura e de sua fronteira. Certamente é algo como o “entrelugar” da cultura, nebulosamente tanto igual quanto diferente. Para se alistar na defesa dessa “clandestinidade”, migratória, de natureza parcial da cultura, devemos recuperar aquele significado arcaico de “listar” como “limite” ou “fronteira”. Feito isto, introduzimos nas polarizações dos liberais e liberacionistas a sensação de que a tradução das culturas, seja assimilativa, seja agonística, é um ato complexo que gera emoções e identificações fronteiriças, “tipos peculiares de afeição-à-cultura e choque-de-cultura”. A peculiaridade do parcial das culturas, mesmo a presença metonímica reside na articulação dessas divisões sociais e desenvolvimentos desiguais que atrapalham o autorreconhecimento da cultura nacional, horizontes ungidos de território e tradição. O discurso das minorias, emitido a favor e contra, nas guerras multiculturais, propõe um sujeito social constituído através da hibridização cultural, da sobredeterminação das diferenças comunais ou de grupo, da articulação da igualdade difusa e da divergência banal. Essas negociações fronteiriças da diferença cultural geralmente violam o profundo compromisso do liberalismo em representar a diversidade cultural enquanto escolha plural. Os discursos liberais sobre o multiculturalismo experimentam a fragilidade de seus princípios de 'tolerância' quando tentam resistir à pressão da revisão. Ao abordarem a demanda multicultural, encontram o limite de sua consagrada noção de “respeito mútuo”; e ansiosamente reconhecem a atenuação na autoridade do Observador Ideal, uma autoridade que vigia os direitos (e discernimentos) éticos da perspectiva liberal do alto do púlpito do tribunal. Ao contemplar as promessas liberais-tardias da cultura com o migratório,

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cultura parcial das minorias, precisamos transferir nosso senso do terreno sobre o qual podemos melhor entender as disputas. Aqui nosso entendimento teórico – em seu sentido mais geral – de “cultura-como-diferença” nos permitirá alcançar a articulação entre fronteira da cultura, espaço clandestino e tempo. Onde essa compreensão poderia ser encontrada? Apesar de sua suscetibilidade ao consenso, pelo qual ele é bastante criticado, a obra de Jurgen Habermas sugere algo do enfatizado terreno da cultura em face da diferenciação social. Uma vez que abandonamos o sentido universalizante do “sujeito autorreferencial, contemplando todos os sujeitos individuais”, sugere Habermas. A questão arriscada para o consenso resulta no tipo de diferenciação do mundo da vida no qual perda de significado, anomia e psicopatologias são os sintomas mais óbvios.3 Como resultado, “as causas das patologias sociais que outrora agruparam-se em torno do sujeito de classe agora entram em fragmentadas contingências históricas”.4 O efeito dessa fragmentação – a diferença migratória mais uma vez - produz as condições para uma “rede cada vez mais bem tecida de intersubjetividade construída linguisticamente. A racionalização do mundo da vida implica diferenciação e condensação simultaneamente – um espessamento da rede flutuante de tópicos intersubjetivos que ao mesmo tempo mantém unidos os componentes cada vez mais nitidamente diferenciados da cultura, da sociedade e da pessoa.”5 O multiculturalismo – um termo polissêmico que abrange desde o discurso das minorias até a crítica pós-colonial, desde os estudos gays e lésbicos até a ficção chicana – tornou-se o sinal mais carregado para descrever as fragmentadas contingências sociais que caracterizam a contemporânea Kulturkritik (crítica cultural). O multicultural tem por si só se tornado um “significante flutuante” cujo enigma está menos em si do que nos usos discursivos dele para marcar processos sociais nos quais a diferenciação e a condensação parecem ocorrer quase sincronicamente. Para criticar os termos nesse terreno tão contestado, e até contraditório, precisa-se fazer mais que demonstrar as inconsistências lógicas da posição liberal quando deparada com a crença racista. O conhecimento preconceituoso, racista ou sexista, não pertence à “reflexividade” ética ou lógica do sujeito cartesiano. Ele é, como descreveu Bernard Williams, “uma crença protegida contra a reflexão”. Requer um “estudo da irracionalidade na prática social [...] mais detalhada e substantiva do que as considerações esquemáticas da teoria filosófica”.6 Os multiculturalistas empenharam-se na instanciação das diferenças sociais e culturais dentro das quais um companheiro democrático tem de lidar com uma estrutura do “sujeito” constituído dentro do “campo projetivo” de alienação política.7 Conforme Etienne Balibar escreve, a linguagem identificatória da discriminação funciona ao contrário: “a identidade racial/cultural de ‘nacionais verdadeiros’ permanece invisível, mas é inferida da [...] visibilidade quase alucinatória dos ‘nacionais falsos’ – judeus, ‘wops’ (termo pejorativo para italianos), imigrantes, índios, nativos, negros”.8 Assim construído, o conhecimento preconceituoso está para sempre incerto e em perigo, porque, como conclui Balibar, “os ‘falsos’ estarem tão visíveis nunca

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garantirá que os ‘verdadeiros’ estão visíveis o suficiente”.9 Esse é um dos motivos para os multiculturalistas que se empenham em constituir identidades minoritárias nãodiscriminatórias não poderem simplesmente fazê-lo afirmando o lugar que elas ocupam, ou retornando a uma origem ou pré-texto autênticos “desmarcados”: seu reconhecimento requer a negociação de uma perigosa indeterminação, uma vez que a presença demasiadamente visível do outro subscreve o autêntico sujeito nacional, mas nunca pode garantir sua visibilidade ou verdade. A inscrição do sujeito minoritário em algum lugar entre o demasiadamente visível e o insuficientemente visível nos traz de volta à compreensão da diferença cultural, e da conexão intercultural, de Eliot, enquanto algo além da demonstração lógica. E isso exige que o sujeito discriminado, ainda que em processo de sua reconstituição, seja localizado num momento presente que é temporariamente disjuntivo e efetivamente ambivalente. “Tarde demais. Tudo está antecipado, pensado, demonstrado, com a maior parte feita. Minhas mãos trêmulas não seguram nada, as veias estão minando. Tarde demais!” Franz Fanon, claramente, fala a partir desse atraso10 no lugar da enunciação e identificação, dramatizando o momento do reconhecimento racista. O sujeito ou a comunidade discriminada ocupam um momento contemporâneo que historicamente é prematuramente atrasado para sempre. “Vocês chegam tarde demais, tarde de mais mesmo. Sempre haverá um mundo – um mundo branco – entre vocês e nós [...] Em face dessa efetiva ancilose [...] é compreensível que eu pudesse ter feito minha cabeça para soltar meu grito negro. Pouco a pouco, expelindo projeções temporárias aqui e acolá, eu segreguei uma raça.”11 Em contrapartida, a dialética liberal do reconhecimento a princípio é vista bem na hora. O sujeito do reconhecimento permanece num espaço sincrônico (como acontece com o Observador Ideal), averiguando o nível do jogo que Charles Taylor define como o território liberal quintessencial: “a premissa do respeito mútuo” para a diversidade cultural. Contudo, a história nos ensinou a desconfiar das coisas que cumprem o horário, como os trens. Não que o liberalismo não reconheça a discriminação racial ou sexual – isso é o carro-chefe dessas lutas. Mas existe um problema recorrente com sua noção de igualdade: o liberalismo carrega um conceito não-diferencial do tempo cultural. No ponto em que o discurso liberal tenta normalizar a diferença cultural, tornar a premissa do mútuo respeito cultural no reconhecimento do mútuo valor cultural, ele não reconhece as disjuntivas temporalidades “fronteiriças” das culturas parciais, minoritárias. O compartilhamento de igualdade é genuinamente pretendido, mas apenas enquanto começamos a partir do espaço historicamente congruente; o reconhecimento da diferença é genuinamente sentido, mas no sentido que não representa as genealogias históricas, geralmente pós-coloniais, que constituem as culturas parciais das minorias. Taylor expõe isso da seguinte forma: A lógica por trás de algumas dessas demandas [multiculturais] parece depender de uma premissa de que devemos respeito mútuo a todas as culturas [...] A implicação parece ser que [...] verdadeiros julgamentos de valor de diferentes obras colocariam todas as culturas mais ou menos na mesma posição. Claro, o ataque poderia vir de um ponto de vista mais radical, neo-nietzschiano que questiona o próprio status dos

57 julgamentos de valor [...] Enquanto premissa, a alegação é que todas as culturas humanas que têm animado sociedades inteiras em alguns consideráveis períodos históricos possuem algo importante a dizer a todos os seres humanos. Escrevo assim para excluir as comunidades culturais parciais dentro de uma sociedade, bem como fases curtas de uma cultura importante, [itálicos meus]12

Ou ainda: Meramente em nível humano, pode-se argumentar que é razoável supor que as culturas que forneceram o horizonte de significado para grandes quantidades de pessoas, de diferentes personalidades e temperamentos, por um longo período de tempo [...] estão quase certas de terem algo que merecem nossa admiração e respeito, [itálicos meus]

Obviamente a rejeição de culturas parciais, a ênfase em grandes quantidades e longos períodos, está desatualizada com os modos de reconhecimento das minorias ou culturas marginalizadas. Fundamentar a premissa sobre “sociedades inteiras em alguns consideráveis períodos históricos” introduz um critério temporal de valor cultural que omite o presente disjuntivo e deslocado através do qual a minorização interrompe e interroga o clamor homogêneo, horizontal, da sociedade democrática liberal. Mas essa noção do tempo cultural funciona em outros níveis além da semântica ou do conteúdo. Vejamos como essa passagem localiza o observador – como ela permite Taylor fazer da premissa da igualdade o julgamento do valor. A cultura parcial, minoritária, destaca as diferenciações internas, os “corpos estranhos”, no meio da nação – os interstícios de seus desenvolvimentos assimétricos e desiguais, que dá lugar a sua autoindependência. Como Nicos Poulantzas brilhantemente argumenta, o estado nacional homogeneíza as diferenças ao dominar o tempo social “mediante uma medida única, homogênea, que apenas reduz as múltiplas temporalidades [...] ao codificar as distâncias entre elas”. 13 Essa conversão do tempo em distância é observável no modo como o argumento de Taylor produz um binário espacial entre sociedades inteiras e parciais, uma como princípio de negação da outra. A dupla inscrição da parte-no-todo, ou a posição minoritária como o lado externo do interior, é repudiada. Contudo, algo dessa “parte-no-todo”, as minorias como simultaneamente transição interna e o “corpo estranho”, registra-se sintomaticamente no discurso de Taylor. É melhor descrito como o desejo pelo “dialógico”, um termo emprestado de Mikhail Bakhtin. Mas ele priva o “dialógico” de seu potencial hibridizante. O sintoma mais evidente disso é que, apesar de sua “premissa de igualdade”, Taylor sempre apresenta a posição multicultural ou minoritária como uma imposição vinda da “parte de fora” e com demandas criadas lá. “O desafio é lidar com seu senso de marginalização sem comprometer nossos princípios políticos básicos” (itálico meu).14 De fato, o desafio é lidar não com eles/conosco, mas com as posições historicamente e temporalmente apartadas que as minorias ocupam ambivalentemente dentro do espaço da nação. O esquema avaliativo de Taylor, que coloca o pressuposto da igualdade e o reconhecimento do valor (o antes e o depois do julgamento liberal) no longue durée das importantes

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culturas nacionais e nacionalizantes, é de fato antitético para o híbrido bakhtiniano, que precisamente ataca tais clamores de totalização cultural: O [...] híbrido não é apenas bivocal e duplamente acentuado [...] mas é também bilíngue; pois nele existem não apenas (nem mesmo tanto) duas consciências individuais, duas vozes, dois sotaques, como existem [duplicações de] sociolinguística, consciências, duas épocas [...] que andam juntas e conscientemente o combatem no campo do enunciado [...] É a colisão entre diferentes pontos de vista no mundo em que são incorporados nesse formato [...] esses híbridos inconscientes têm estado ao mesmo tempo profundamente produtivos historicamente: eles estão repletos de potencial para novas visões de mundo, com novas “formas internas” para perceberem o mundo em palavras.15

De fato, Bakhtin enfatiza um espaço de enunciação em que a negociação de duplicidade discursiva pela qual não quero dizer que a dualidade ou binarismo produzem um novo ato de fala. Em meu próprio trabalho, desenvolvi o conceito de hibridismo para descrever a construção da autoridade cultural dentro das condições de antagonismo e desigualdade políticos. As estratégias de hibridização revelam um estranhável movimento na “autoridade”, mesmo a inscrição autoritária do signo cultural. No ponto em que o preceito tenta se objetivar como um conhecimento generalizado ou uma prática normalizante, hegemônica, a estratégia ou o discurso híbridos abrem um espaço de negociação em que o poder é desigual, mas sua articulação pode estar equivocada. Tal negociação nem é assimilação nem colaboração. Torna-se possível a emergência de uma agência “intersticial” que nega a representação binária do antagonismo social. As agências híbridas encontram sua voz numa dialética que não busca a supremacia ou soberania cultural. Elas implantam a cultura parcial a partir da qual emergem para construir visões de comunidade, e versões da memória histórica, que dão forma narrativa às posições minoritárias que ocupam; o lado de fora do interior: a parte no todo. No romance Amada (1987), de Toni Morrison, o conhecimento cultural e comunal surge como um tipo de amor próprio que é também o amor do “outro”. É um amor ético no qual a “intimidade” do sujeito é habitada pela “radical e anárquica referência ao ‘outro’”16. Esse conhecimento é visível naqueles capítulos intrigantes onde Sethe, Amada, e Denver realizam uma cerimônia para invocar e nomear através de subjetividades interseccionais e intersticiais: “Amada, ela é minha filha”, “Amada é minha irmã”, “Eu sou amada e ela é minha.”l7As mulheres falam em línguas, de um lugar de fuga “entre elas” que é um espaço comunal. Elas exploram uma realidade “interpessoal”: uma realidade social que surge dentro da imagem poética como se estivesse em parênteses esteticamente distanciados, retidos, porém historicamente moldados. É difícil transmitir o ritmo e a improvisação desses capítulos, mas é impossível não vê-los no desfecho da história, uma comunidade recuperou na criação de um nome. Conforme escrevi em outro lugar. Quem é Amada? Agora entendemos. Ela é a filha que volta a Sethe para que sua mente não esteja mais sem lar.

59 Quem é Amada? Agora podemos dizer: Ela é a irmã que volta a Denver, e traz esperança do retorno de seu pai, o fugitivo que morreu em sua fuga. Quem é Amada? Agora sabemos: Ela é a filha feita de amor assassino que volta para o amor e ódio e se liberta. Suas palavras estão quebradas, como as pessoas linchadas com pescoços quebrados, desencarnadas, como as crianças mortas que perderam suas fitas. Mas não há erro no que suas vivas palavras dizem quando emanam dos mortos apesar de sua sintaxe perdida e sua presença fragmentada. “Meu rosto está aparecendo Eu tenho que tê-lo Estou procurando a junção Estou adorando meu rosto Quero uni-lo Estou adorando meu rosto Meu rosto sombrio está perto de mim Quero unilo.”18

A ideia que a história repete, normalmente tida como uma declaração sobre o determinismo histórico, emerge frequentemente dentro de discursos liberais quando o consenso falha, e quando as consequências da incomensurabilidade cultural faz do mundo um lugar difícil. Nesses momentos, o passado é visto como retorno, com estranha pontualidade, para tornar o “evento” intemporal, e a narrativa de sua emergência transparente. Lidamos melhor com a realidade de “sermos contemporâneos”, seus conflitos e crises, suas perdas e dilacerações, dotando a história com uma longa memória que interrompemos, ou nos assustamos, com nossa própria amnésia? Como nos permitimos esquecer, dizemos para nós mesmos, que a violência nacionalista entre hindus e muçulmanos encontra-se exatamente na pele da modernidade secular da Índia? Não deveríamos ter “lembrado” que as antigas tribos balcânicas se formariam de novo? Estas questões destacam uma observação que está se tornando cada vez mais comum: a ascensão dos “fundamentalismos” religiosos, a propagação dos movimentos nacionalistas, as redefinições dos clamores por raça e etnicidade, está proclamado, trazendo-nos de volta para um movimento histórico precedente, um ressurgimento ou um reestadiamento do que os historiadores chamaram o longo século XIX. Sublinhar essa reinvindicação é uma inquietação mais profunda, um medo de que o motor da transformação social não seja mais a aspiração a uma cultura democrática comum. Entramos numa angustiante era de identidade, na qual a tentativa de memorizar o tempo perdido, e de recuperar territórios perdidos, cria uma cultura de desiguais “grupos de interesse” ou movimentos sociais. Aqui a afiliação poderia ser antagônica e ambivalente; a solidariedade poderia ser apenas situacional e estratégica: a comunalidade geralmente é negociada através de “contingência” de interesses sociais e reinvindicações políticas. As narrativas da reconstrução histórica podem rejeitar esses mitos da transformação social: a memória comunal pode almejar seus significados através de um senso de causalidade compartilhado com a psicanálise, que negocia a recorrência da imagem do passado ao manter aberta a questão do futuro. A importância dessa retroação encontra-se em sua habilidade de reinscrever o passado, de reativá-lo, de recolocá-lo, de ressignificá-lo. Mais significante, ele compromete nosso entendimento do passado, e nossa reinterpretação do futuro, para uma ética da “sobrevivência” que nos permite trabalhar através do presente. E esse trabalho liberta-nos do determinismo da

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inevitável repetição histórica sem uma diferença. Isso nos possibilita confrontar essa difícil fronteira, a experiência intersticial entre o que fazemos da imagem do passado e o que está de fato envolvido na passagem do tempo e na passagem do significado. Agradecimentos Este ensaio é uma homenagem aos participantes e colegas do meu seminário na Faculdade de Crítica e Teoria, Dartmouth, 1993, sem cujo estímulo e apoio não teria tomado a forma que tomou. Notas 1 T.S. Eliot, Notes towards the Definition of Culture, Harcourt Brace, New York, 1949, p 52 2 Ibid., pp.63-64. 3 Jiirgen Habermas, 'The normative content of modernity', in The Philosophical Discourse of Modernity, trans. Frederick G. Lawrence, MIT Press, Cambridge, MA: 1987, p. 348. 4 Ibid. 5 Ibid., p. 346. 6 Bernard Williams, Ethics and the Limits of Philosophy, Harvard University Press Cambridge, MA, 1985, p. 116. 7 Etienne Balibar, 'Paradoxes of universality,' in David Theo Goldberg (ed.), Anatomy of Racism, University of Minnesota Press, Minneaplisand Oxford, 1990, p. 284. 8 Ibid. 9 Ibid., p. 285. 10 See my 'Race, time, and the revision of modernity', in The Location of Culture Routledge, London, 1994. 11 Franz Fanon, Black Skin, White Masks, trans. Charles Lamb Markmann, Grove Weidenfeld, New York, 1967, pp. 121-2. 12 Charles Taylor, Multiculturalism and 'The Politics of Recognition', Princeton: University Press, Princeton, 1992, pp. 66-7. 13 Nicos Poulantzas, State Power and Socialism, trans. Patrick Camiller, NLB, London 1978, p. 110. 14 Taylor, Multiculturalism, p. 63. 15 Mikhail Bakhtin, 'Discourse in the novel', in Michael Holquist (ed). The Dialogic Imagination, trans. Caryl Emerson and Michael Holquist, University of Texas Press, Austin 1981, p. 360. 16 See Emmanuel Levinas, 'Reality and its shadow', in Collected Philosophical Papers, trans Alphonso Lingis, Martinus Nijhoff, Dordrecht, the Netherlands, and Boston 1987, pp. i_|3 17 Toni Morrison, Beloved, Plume/NAL, New York, 1987, pp. 200-17. 18 From my essay 'The home and the world', in Social Text, 10:2 and 3,1992, pp. 141-53 in which I develop this line of argument concerning Morrison's Beloved at greater length

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