Currículo e Devir

July 15, 2017 | Autor: Eduardo Simonini | Categoria: Curriculum Studies, Educação, CURRICULO, Devir
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SIMONINI, Eduardo. Currículo e Devir. In: FERRAÇO, Carlos Eduardo; RANGEL, Iguatemi Santos; CARVALHO, Janete Magalhães; NUNES, Kezia Rodrigues (Orgs.). Diferentes perspectivas de currículo na atualidade. Rio de Janeiro: DPetAlii, 2015, p. 63-78.

CURRÍCULO E DEVIR Eduardo Simonini1 Tudo o que sucede, todo movimento, todo devir, considerados como fixação de graus, de forças, – como uma luta... (NIETZSCHE, 1966, p. 291).

O que aproximaria os conceitos de “currículo” e de “devir” a fim de justificar a relação dos mesmos neste texto? Qual seria um ponto de ligação que colocaria em uma zona de vizinhança dois conceitos aparentemente tão diferentes? Eu diria, produzindo um tipo de vínculo entre os mesmos, que tanto o currículo quanto o devir são atravessados pela ideia de movimento. Em suas origens etimológicas, por exemplo, “curriculum” deriva do verbo “currere” (que significa executar, prosseguir, carregando consigo uma íntima relação com o verbo “correr”) e diz respeito à construção de um caminho, de um trajeto, de um curso; enfim, remete-nos à produção de um movimento; à indicação de um sentido. Por sua vez, ao assumirmos as origens etimológicas da palavra “devir”, temos que esta deriva do latim “devenire”, que vem a significar o movimento de se passar de um estado para outro. Desta maneira, quando me proponho a abordar a relação entre o currículo e o devir, escolho iniciar tal discussão não diretamente pelos conceitos supracitados, mas pelo liame que os conecta; ou seja, pelo movimento. Pensar o movimento foi – e continua a ser – uma preocupação de muitos pensadores, uma vez que problematizá-lo coloca também em cena questões sobre a verdade, a realidade, o tempo e o destino das coisas: a realidade estaria constituída numa linha temporal a fluir num movimento contínuo sem princípio ou fim? Ou o tempo – e consequentemente a realidade – teria um fim determinado, seguindo por um fluir retilíneo de sucessões progressivas e programadas? Ou não existiria o movimento e muito menos o tempo, uma vez que tudo já estaria pré-definido e todas as mudanças se constituiriam apenas em um passe de ilusão? 1

Psicólogo, mestre em Psicologia Social, doutor em Educação, professor pelo departamento de Educação da Universidade Federal de Viçosa/MG. E-mail: [email protected]

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Esta última questão, por exemplo, aproxima-se daquelas que Parmênides2 levantou quando construiu uma concepção de realidade que teve efeitos nos séculos seguintes. Para ele, tudo o que existe estaria envolvido pelo Ser, sendo este a essência do cosmos: o Ser seria o invariante universal da existência. O movimento da matéria, o movimento do tempo, as transformações das coisas, tudo isso seriam meras fantasias dos sentidos, pois o Ser, por ser perfeito, não supõe qualquer carência, necessidade, movimento ou transformação. Citado por Heidegger (1987, p.124), Parmênides sustentou, então, que: (...) o Ser (é) sem nascer nem perecer, consistindo completamente sozinho e em si mesmo sem estremecimento e sem necessitar em absoluto de aperfeiçoamento. Nem tão pouco foi antes como também não será depois; pois, como presença, é tudo simultaneamente: único, unidade unificante, reunindo a si mesmo em si mesmo a partir de si mesmo.

Ainda mantendo a perspectiva da imanência do Ser, mas assumindo uma posição contrária, Heráclito – filósofo grego contemporâneo de Parmênides – afirmava que somente o devir e a mudança são reais. Dos poucos fragmentos de escritos de Heráclito que chegaram ao nosso tempo, temos que vários deles postulam a perspectiva de que a realidade é um fluxo contínuo, onde nada permanece idêntico a si mesmo. Todo o universo se caracterizaria por um devir permanente, sendo que: Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos. Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio. Aos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras águas; e os vapores exalam do úmido. As águas frias esquentam-se, o quente esfria-se, o úmido seca, o seco umidifica-se. A morte da terra é tornar-se água e a morte da água tornar-se ar e a do ar, fogo, e vice versa. (...) Vivemos a morte delas e vivem elas a nossa morte (HERÁCLITO, 2012, p. 141-143).

Nesse sentido, a vida em si seria transformação constante e os corpos se constituiriam como estabilizações provisórias dentro desse processo de contínuo fluir. Se em Parmênides a atenção se fixa na manutenção do Ser, em Heráclito a atenção é atraída para o movimento que devém. O que faz lembrar um questionamento levantado por Machado de Assis, dito pela boca de sua personagem – Quincas Borba – quando pergunta a amigos: “Nunca viste ferver água? Hás de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são essas bolhas transitórias” (ASSIS, 1997, p. 9). Dessa maneira, os seres que somos e, consequentemente, as realidades que constituímos no convívio, seriam temporárias

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Filósofo grego pré-socrático que viveu supostamente entre o final do século VI a.C e começo do século V a.C.

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bolhas d’água na sopa fervente que constitui não uma realidade sustentada na paralisia, mas em um fluxo que nos engole no seu movimento e nos reinventa em seu ferver. Assim, se temos que ter atenção às bolhas (esses fenômenos de transitória forma e estabilidade), é na ousadia de também acolher a turbulência das intensidades a se presentificarem nas águas quentes – que criam e diluem bolhas – que se encontra o desafio do pensamento de Heráclito. Seguindo, pois, o movimento heraclitiano, somos levados à compreensão do existir enquanto imerso em um ininterrupto devir, onde o Ser seria ele mesmo um processo em transformação, sendo que não existiria “a” realidade enquanto fato exterior e independente aos processos que a constituem. Seria, pois, uma realidade a se autoproduzir de maneira contínua no calor dos encontros, misturas e mestiçagens. Como as diferentes concepções de realidade não são entidades inertes, mas forças em disputa, temos que as propostas de existência enunciadas nos pensamentos de Heráclito e Parmênides se digladiam até nossa contemporaneidade, sendo que vários outros pensadores fizeram com elas diferentes composições. É o que acontece, por exemplo, com Platão, quando observamos o quanto sua filosofia pagou tributos a Parmênides. Isto porque, na cosmogonia platônica, o universo por nós (re)conhecido foi criado por um demiurgo que, ao vislumbrar o esplendor perene de Ideias perfeitas, resolveu, qual um compositor, um pintor ou escultor, organizar as formas em caos ao seu redor e modelá-las à imagem da Perfeição que vislumbrava. Nesse ato de modelagem, a nossa realidade emergiu como sendo o efeito da re-apresentação da dimensão do Ideal, dimensão esta de essências puras e fora do tempo, uma vez que ausentes de devir. Tais essências, por terem sido usadas como modelo pelo demiurgo, manteriam uma relação de semelhança com nosso mundo, porém este estaria sempre condenado a ser uma cópia e um arremedo da perfeição em que foi inspirado. Para Platão, a possibilidade do vislumbre das Ideias imóveis só seria possível por uma prática intelectual e contemplativa que buscasse a pura verdade naquilo que, por ser pleno em sua pureza e essência, não comportaria o movimento e a mudança. Deste modo, para Platão, o ato de pensar nunca se comprometeria com os verbos “inventar” ou “criar”, uma vez que o objetivo da prática do pensamento seria a busca do que já preexiste enquanto Perfeição. Por sua vez, o cultivo de tal proposta platônica de realidade provocou a desqualificação da vida cotidiana, abordada como sendo uma

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cacofonia de encontros, movimentos, desejos e ilusões, a desviar o ser humano do verdadeiro propósito de sua existência: o encontro com a imutabilidade das Ideias perfeitas. Contudo, foi Nietzsche quem fez uma das críticas mais severas a Platão. Para ele, Platão era uma farsa, um embuste, e sua filosofia um logro à vida (NIETZSCHE, 2000). A crença platônica na existência de um mundo perfeito, imutável e atemporal que rejeitava oferecer legitimidade à mundanidade cotidiana foi, para Nietzsche, uma escolha pela impotência, pela decadência e, por fim, pela morte. Contrariando Platão, Nietzsche considerou que o mundo não se guiaria pela referência a Ideias de transcendente perfeição, mas seria composto e consumido em devires que não têm condição final, nem tendem ao ‘ser’ (NIETZSCHE, 1966). Deleuze (1998) prosseguiu na crítica realizada por Nietzsche, ao propor que o que mais incomodava Platão não era necessariamente o dualismo entre a cópia e a Ideia, mas a existência de expressões que simulavam copiar a verdade da Ideia, mas que se constituíam em uma deformação da imagem da Perfeição. Questionava, pois, Platão (1991, p. 153): Mas que nome daremos ao que parece copiar o belo para expectadores desfavoravelmente colocados, e que, entretanto, perderia essa pretendida fidelidade de cópia para os olhares capazes de alcançar, plenamente, proporções tão vastas? O que assim simula a cópia, mas que de forma alguma o é, não seria um simulacro?

Se a cópia comunga de uma aproximação com a verdade da Ideia, o simulacro seria um falso a ser denunciado, encarcerado e/ou destruído. Deleuze, por sua vez, entendeu que o simulacro não era meramente uma cópia enganadora, mas sim uma diferença anunciada em (e anunciadora de) outros devires. Haveria, portanto, no simulacro, o fervilhar de outras possibilidades de compor mundos; mundos estes potencialmente incômodos àqueles que ansiassem pela ordem harmônica do Belo, do Ideal e do Absoluto. E foi especialmente no seu trabalho junto a Félix Guattari que Deleuze explorou as dimensões em devir como estando prenhes em simulacros e não como movimentos endereçados a um aperfeiçoamento, a uma evolução ou a um ideal. Assim, para Deleuze e Guattari (1997) estar em devir, diferentemente de se constituir num movimento de “tornar-se algo”, diz respeito a velocidades que ganham e dão vida a encontros, misturas e intensificações a mestiçarem elementos que muitas vezes não carregam nenhuma

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relação de proximidade entre si. As intensidades em devir traçam, pois, conexões bastardas que, não seguindo escalas hierárquicas, históricas e/ou evolutivas, desenhamse nas linhas de uma realidade rizomática. A imagem do rizoma é, pois, potente para se pensar nas proliferações que, em devir, trançam redes, conexões e anômalas diferenças. Sendo um conceito capturado por Deleuze e Guattari (1995) do universo da botânica, o rizoma é biologicamente definido como um caule modificado em forma de raiz, podendo formar bulbos e tubérculos. Estes são ricos em reservas energéticas para as plantas e apresentam crescimento horizontal, formando teias vegetais que ligam uma planta a outra. Assim, não necessariamente imergindo em profundezas, os rizomas formam redes conectivas como ocorre com as gramíneas que, mesmo possuindo raízes fasciculadas, estão tecidas em rizomas. Essa característica conectiva foi o que atraiu Deleuze e Guattari (1995, p. 32) a sustentarem, já em uma perspectiva filosófica, que o rizoma: conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços da mesma natureza.(...) Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda.

Desta maneira, um rizoma se apresenta numa dinâmica na qual um ponto pode se conectar a outro sem necessidade de qualquer correspondência de natureza causal, identitária, geográfica ou mesmo temporal entre eles. Igualmente, uma dinâmica rizomática não é redutível a um estado dissecável, uma vez que se constitui em conexões, fluxos e circulações; enfim, em devires. O que faz com que eventos sucessivos não sejam totalmente previsíveis, já que num rizoma há somente trajetos que se ligam formando dimensões complexas, passagens inusitadas e/ou nós, bloqueios, que fazem dele o mapa das multiplicidades (HAESBAERT, 2010). Numa perspectiva rizomática, portanto, as conexões em devir tramam uma mutante realidade cotidiana; realidade esta que, a exemplo de uma blusa de tricô 3, não existe em separado das linhas que compõe sua superfície. Diante dessa concepção, Deleuze e Guattari acreditam que seguir as linhas desses rizomas nos lança em movimentos e/ou paralisias que inauguram e sustentam distintos, contraditórios e problemáticos trajetos a (des)estabilizarem provisórias constâncias, as quais 3

É uma técnica para entrelaçar fios – de lã ou outra fibra têxtil – de forma organizada, criando-se, assim, um adereço, uma roupa, um sapato, um enfeite.

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costumamos chamar de “verdade” ou “realidade”. Contudo, é importante não sermos ingênuos e tomarmos as dimensões em devir como sendo esferas festivas, uma vez que estas podem também produzir desorganizações e desnorteamentos àqueles que nelas se banham ou por elas são tragados. Conscientes desse perigo, Deleuze e Guattari se posicionaram de maneira humilde frente às potências em devir, alertando sobre o risco que cada indivíduo e grupo está exposto a todo instante em que margeia tais intensificações. Diante disso, eles alertaram e aconselharam que: O pior não é permanecer estratificado – organizado, significado, sujeitado – mas precipitar os estratos numa queda suicida ou demente, que os faz recair sobre nós, mais pesados do que nunca. Eis então o que seria necessário fazer: instalar-se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.23-24).

Estabelecer-se, pois, sobre um estrato é construir para si um território, ainda que provisório, a fim de não naufragar em movimentos por demais caóticos. E construir um território é igualmente definir um limite, uma demarcação, um caminho, um curso..., um currículo. Territórios curriculares Assim, quando falamos em currículos e nos movimentos que os tramam na construção de territórios de conhecimento a referendar condutas e maneiras de pensar, falamos simultaneamente em processos a tramarem realidades. Pois estabelecer um currículo é igualmente urdir um caminho e um roteiro de vida. Nessa linha de composição, fazer currículo – e, em especial, fazer currículos nas escolas – é se comprometer com territórios de subjetivação a definirem o que deve ser sonhado, pensado e atuado como possibilidade individual e coletiva. Isto fica bastante evidente quando seguimos as discussões em que estavam envolvidas as políticas curriculares que emergiram nos Estados Unidos da América no início do século XX. Toda a discussão sobre o currículo escolar naquele país – discussão esta que influenciaria os debates ocidentais desse campo durante grande parte do século passado – estava rizomaticamente trançada a questões políticas, econômicas, ideológicas e morais. Tal trama ocorreu porque, no ocidente, o século XX nasceu sob a marca da emergência de novas tecnologias e da mudança de valores de consumo. Nas

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fábricas norte-americanas, em especial, o conceito de eficiência passou a ganhar importância, principalmente diante dos resultados econômicos provenientes de metodologias tayloristas e fordistas de controle do tempo, do desempenho e, consequentemente, da produtividade dos trabalhadores. Por sua vez, essas políticas de eficiência transbordaram também para a arena educacional, trazendo à baila questionamentos sobre a efetiva produtividade das escolas e seu consequente papel frente às exigências do mercado capitalista. Como exemplo de tal preocupação, temos que Andrew Carnegie4 escreveu a um jornal, em 1902, que os pais estavam enviando seus filhos para as escolas a fim de que estes: perdessem tempo procurando obter conhecimento em línguas como grego ou latim, que tinham tanto uso prático quando o Choctaw5. Eles, em sentido algum, têm sido instruídos. Muito pelo contrário, o que têm obtido só serve para embuti-los de falsas ideias e para dar a eles o dissabor para a vida prática (CARNEGIE, apud CALLAHAN, 2013, p.9 – tradução nossa).

Seguindo esta mesma direção de crítica aos então tradicionais métodos educativos, John Rockefeller, contemporâneo de Carnegie e igualmente um grande empreendedor norte-americano, declarou, em 1909, que: O Conselho Geral de Educação, do qual o Sr. Carnegie agora se tornou um membro, é um interessante exemplo de uma organização formada com o propósito de trabalhar, de uma forma ordenada e bastante científica, o problema de se auxiliar o estímulo e a melhora da educação em todas as partes de nosso país. (...) Ajudar uma escola ineficiente, mal localizada e desnecessária é um desperdício. Eu fui informado por aqueles que dedicaram um estudo mais cuidadoso a esse problema que suficiente dinheiro já foi desperdiçado em projetos educacionais tolos. Poderiam ter construído um sistema nacional de ensino superior adequado às nossas necessidades, se o dinheiro tivesse sido corretamente direcionado para esse fim (ROCKEFELLER, 2005 – tradução e grifo nosso).

Na passagem acima, Rockefeller anunciou claramente a interferência de empresários como Carnegie e ele próprio na (re)elaboração das metas educacionais daquele país. Desta maneira, na perspectiva de tornar a educação mais científica, meritória, eficiente e voltada para as lógicas do crescimento econômico, nos Estados Unidos foi cunhada – aliada às necessidades dos grandes capitalistas da época – uma abordagem educacional sustentada no “saber-fazer”, no conhecimento prático, sendo erigida uma proposta de ensino que valorizava a resolução dos desafios concretos da sociedade e da economia.

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Industrial norte-americano que, após uma infância/adolescência de pobreza e muito trabalho, tornou-se um dos homens mais ricos de sua época. 5 Tribo de nativos norte-americanos.

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Assim, se por um lado a proposta norte-americana teve como direção o projeto de elaborar currículos que atendessem às urgências do mercado, passou também a desenhar uma nova figura ideal de ser humano: aquele voltado para a realização eminentemente econômica. Como o conceito de “sucesso” para os norte-americanos se associava ao acúmulo de bens materiais, a educação deveria se comprometer com a capacitação dos jovens para que pudessem atingir o seu próprio sucesso em uma sociedade cada vez mais competitiva. Desta forma, todo movimento educacional deveria ter como meta a atualização da ideia de perfeição através do sucesso financeiro. Este ficou, pois, representativo de um novo modelo para a plenitude humana, e a educação, através de uma proposta curricular mais prática, objetiva e científica, foi convocada a instruir corretamente as pessoas a como fazer o caminho do “Belo” e da “Felicidade” financeira com maior rapidez e competência. A partir da década de 1960, contudo – e em meio a marchas contestatórias, em vários países, contra valores opressivos – houve questionamento dessas lógicas sociais de sucesso, até então dominantes. Nesse mote, surgiu também o questionamento dos currículos voltados para as necessidades do mercado capitalista e para o ajustamento do educando às lógicas produtivistas. Muito dessa discussão ganhou forma em diversos movimentos que, para além de se aterem à problemática de como fazer um currículo adequado, passaram a denunciar as maneiras como o modelo capitalista de sociedade se encontrava reproduzido nas maneiras de selecionar e organizar o conhecimento escolar. Mas se

muitos desses

movimentos, em suas diferentes influências,

problematizaram o modo hegemônico de pensar o currículo – ao evidenciarem a naturalização, nas práticas educativas das escolas, das lógicas capitalista de produzir realidade – não se furtaram de também propor, muitas vezes, o ideal de uma sociedade desalienada. Haveria, pois, de um lado, um sujeito consciente, crítico e desalienado a funcionar como facilitador para que, do outro lado, um sujeito qualificado como acrítico e alienado pudesse ascender a modos de pensar mais verdadeiros (GARCIA, 2002). Contrapunham, pois, um “eu-consciente” a um “eu-alienado”, sendo que o “euconsciente” acabaria com as formas enganosas de se compreender o funcionamento da realidade, convocando os alienados a uma transformação social legítima. Essa perspectiva se apresenta de maneira emblemática em uma seção de um jornal artesanal,

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denominado de “Informativo da Educação Popular do Campo6”, distribuído na Universidade Federal de Viçosa/MG. Neste, um autor anônimo assim bradou: Estamos construindo uma sociedade que vislumbramos a partir de lutas e conquistas de muitos com os quais caminhamos. Sabendo de nossas fortalezas, olhamos também para as soluções que ainda temos que encontrar. Para as já encontradas, nos preparamos para o caminho que acreditamos ser o que nós devemos seguir. Sabemos que se trata de um sonho real. E assim motivados, vamos rumo ao horizonte que vemos. Sabemos o que queremos. Lutamos pelo horizonte que queremos. Avante educadores populares: agricultores, associações, cursinhos populares, EFAs7, Universidades... Vamos de mãos dadas.

Portanto, a sociedade a se atingir já estaria modelada no horizonte; uma vez que já se teria uma ideia pronta do “caminho que acreditamos ser o que nós devemos seguir”. Já se supõe, portanto, uma verdade a se atingir, uma vez que o caminho e/ou o currículo a se praticar já estaria pavimentado pelos projetos de outros tantos visionários. Novamente todo movimento, todas as transformações, teriam por objetivo um fim estabelecido no partejar de uma consciência crítica e, consequentemente, mais esclarecida sobre as verdades do mundo. Porém, como já salientado, há outras propostas que consideram a realidade não é uma valor estático, mas um processo em movimento que não se congratula com qualquer propósito de atingir a certeza de um “mundo-verdade”. E é no pensar a realidade – e igualmente os currículos – como conexões e processos, que considero que o conceito de dispositivo possa vir ser um valioso aporte teórico dentro da perspectiva de se compreender as tramas curriculares de uma maneira mais complexa e rizomática. Segundo Foucault (1998), um dispositivo não é uma entidade específica, mas um conjunto heterogêneo no qual estão envolvidos discursos, enunciados científicos, projetos arquitetônicos, proposições filosóficas e morais, leis, medidas administrativas, enfim todo um conjunto de práticas que, em rizoma, organiza um mundo. E é no bojo de tal definição que Guattari (1987, p.108-109) veio a considerar que “um dispositivo não compreende somente a palavra, o sujeito e o significante: é o engendramento de mil componentes que faz com que a realidade e a história sejam o que são”. Ou seja, nas tramas de suas linhas, um dispositivo produz o visível e o invisível, sendo que: Visibilidade não se refere a uma luz geral que iluminaria objetos préexistentes; esta é feita por linhas de luminosidade que formam variadas figuras inseparáveis de um dispositivo. Cada dispositivo possui seu regime de 6 7

Informativo da Educação Popular do Campo, n.1,v.1, 2014, p.1 Escola Família Agrícola

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luminosidade (...) distribuindo o visível e o invisível, gerando ou eliminando um objeto, que não pode existir sem ela (DELEUZE, 2006, p.339 – tradução nossa).

Nesse sentido, enquanto produtores de regimes de verdade, os currículos podem também ser pensados como dispositivos de subjetivação que, em seus diferentes delineamentos de mundos, tanto ampliam quanto estreitam as experiências de realidade dos sujeitos sob sua influência. Comprometem-se, pois, com a produção de histórias, de geografias, de temporalidades, de corpos, linguagens, maneiras de pensar, de perceber, de sentir e de sonhar. Numa ilustração de como aspectos de um currículo podem se conectar com elementos muito além dos ministrados em sala de aula, temos que, na década de 1980, muitas crianças aprenderam nas escolas que um substantivo abstrato era aquele que se remetia a uma realidade fantasiosa ou de natureza incorpórea: como fadas, fantasmas, a música e os sentimentos. Contudo, o substantivo “Deus”; mesmo não tendo uma realidade empírica e quantificável; era apresentado como concreto. A criança que contestasse tal fato, seria punida: fosse por meio de repreensão verbal ou pela perda de nota na avaliação. Temos, assim, que as regras gramaticais, que então estabilizavam um currículo para o ensino da língua portuguesa, estavam rizomaticamente urdidas à religião e potencialmente a um modelo de família, de conduta disciplinar, de reconhecimento social, de projeto moral, dentre outros. Contudo, por mais que os dispositivos curriculares enlacem uma experiência estável de realidade – e mesmo que Deus permanecesse incontestável como substantivo concreto – , sempre há intensidades em devir que escapam às lógicas de ordenação de um dispositivo e forçam determinado modelo de mundo a tocar perigosamente alguns de seus limites. Nietzsche (2001, p. 57) muito bem percebeu isso quando anunciou que: (...) o novo é, em todas as circunstâncias, o mau, aquilo que deseja conquistar, lançar por terra as antigas marcas de fronteira e as velhas piedades; e somente o antigo é bom! Os homens bons de cada época são os que cavam fundo nos velhos pensamentos e os fazem dar frutos, os lavradores do espírito. Mas todo terreno se esgota, enfim, e o arado do mal precisa sempre retornar.

Então, há blocos de devir – esses lavradores do “mal” – que atravessam as tramas curriculares sem pedir licença, atualizando singularidades que tantas vezes colocam em movimento expressões não autorizadas pelos currículos praticados nas escolas. Têm, pois, a intensidade da surpresa e do incômodo, ignorando regras

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estabelecidas e forçando a emergência de outros ritmos que tendem a ser abordados – por aqueles apegados às garantias do antigo terreno – como um descompasso ou uma cacofonia. E quando um bloco de devir se acelera – a exemplo de uma onda que cresce repentinamente em mar calmo –, ninguém sabe ao certo como se conduzir frente a essa novidade que, por não ter sido planejada, geralmente é pouco querida e arrasta consigo a seguinte questão: “o que eu faço agora com isso?” Como exemplo de uma dessas ondas que transbordaram as barreiras de contenção, trago o relato de Sepulveda (2012) sobre um adolescente de 16 anos, adepto do Candomblé, e que foi “expulso da sala de aula e chamado de filho do demônio por uma professora”8. Em conversa com uma funcionária daquela escola a respeito do referido fato, Sepulveda (2012, p. 148-149) colheu o seguinte relato: Na verdade, esse aluno já sofria discriminação por parte de seus colegas há muito tempo, mas não por ele ser adepto do candomblé, e sim por vir para a escola, desde de muito pequeno, com mochila rosa, estojo rosa e com bonecas. Seu pai é homossexual e criou seu filho para ser homossexual. Foi essa aprendizagem que ele teve. Deus criou o homem para a mulher e a mulher para o homem, esse negócio de homossexualidade está fora dos padrões normais. Por causa disso os colegas o descriminavam, o chamavam de mulherzinha, bichinha e etc. A forma como ele lidou para conviver com essa situação foi amedrontá-los usando elementos do candomblé. Ele ficava falando para os colegas cuidado que você vai virar cabra; o chifrudo vai vir de noite e vai pegar no teu pé; você vai virar galinha de despacho, cuidado que o diabo vê o que você está fazendo e vai te levar para viver com ele. Ele falava essas coisas assim... Nesse dia que aconteceu isso ele havia perturbado tanto os colegas que a professora perdeu a paciência.

Na história acima estão presentes, portanto, singularizações que atravessaram a escola, colocando em questão temáticas incômodas como: a homossexualidade é uma expressão sexual legítima; um erro que necessita ser corrigido ou um desvio espiritual a ser curado? Um pai que cria o filho sozinho produz uma criança disfuncional? Ensina-se outra pessoa a ser homossexual? Pais homossexuais deveriam ou não adotar um filho? É possível se declarar abertamente como praticante de uma religião afro-brasileira em uma escola de maioria católica e evangélica? Um aluno pode se vestir diferente dos outros em sua participação na escola? Roupas para homens e mulheres são peças naturais ou dependem de valores sociais? Qual o local do professor na educação: um sacerdote da normalidade ou um problematizador de diferentes processos relacionais nos contextos de aprendizagem? Como lidar com um adolescente que se assume 8

Jornal O EXTRA, terça-feira, 27 de janeiro de 2009.

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abertamente homossexual e feiticeiro? Como abordar a relação deste com uma sala de aula em que colegas e professora o agridem em sua diferença? Enfim, “o que eu faço agora com isso?” Se não há respostas prontas a tantas questões trazidas pela abrupta onda que atravessou aquela escola, as perguntas que potencialmente emergem de situações como essas não se furtam a fazer pensar: pensar em como construímos as verdades que tanto alimentam nossas vidas, quanto também nutrem os currículos que nada ensinam sobre o Candomblé; que ignoram a homossexualidade, as discussões de gênero, a diversidade sexual ou a existência de diferentes modelos de família. Tais incômodos e questões – que emergiram a partir da reação intempestiva de um adolescente a se afirmar como diferença – podem também oportunizar vetores inventivos que forçam a escola à experiência de se permeabilizar a outros mundos de referência e a outros modos de existir. O multiplicar de tais questões pode, como indicado por Nietzsche, contribuir para o revolver de solos desgastados em sua estabilidade, contribuindo, assim, para um trabalho de raspagem das verdades instituídas e a abertura a um campo de ignorâncias mais do que de certezas. Isto porque expressões novas a se acelerarem em devires inquietos só são possíveis de serem concebidas na ousadia do desaprender; uma vez que quanto mais se sabe sobre algo – quanto maior o controle e ordenação de um mundo – menos espaços há para se flexibilizar a movimentos bastardos e mestiços. É como anunciou Nietzsche (1966, p. 273): “conhecimento e devir excluem-se”. Ou seja, quanto mais enraizado em um saber, mais impermeável se está àquilo que surpreende como novidade a abrir passagem a outras sensibilidades. Portanto, se os currículos geralmente compõem territórios a estabilizarem um caminho, uma direção e uma segurança, acompanhar devires que os atravessam significa, por sua vez, seguir os estranhamentos, as dúvidas e incertezas que brotam entre as verdades concebidas e entre os roteiros planejados. Porém, é importante advertir que acompanhar os devires de uma dinâmica curricular não significa rejeitar conhecimentos, abolir tradições ou desqualificar o que foi construído enquanto acúmulo de saber. Contudo, não se podendo negar a necessidade de um campo de coerência a enlaçar conhecimentos e valores socialmente compartilhados, não se deve igualmente ignorar que reduzir a realidade ao que é conhecido e estável pode ser um conforto

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perigoso. Nesse sentido, há o risco de se estreitar o mundo naquilo que um sujeito ou um grupo pensam que deva ser o mundo9. Como alerta Fiorini (1991, p. 14): (...) temível é o empobrecimento defensivo frente à palpitante riqueza do campo, a resignação a tanger uma única corda onde explode em sons uma exuberante polifonia. O perigoso está em que todo expert em uma técnica mostra-se inclinado a tentar abarcar com ela o mundo. E é mais do que sabido que monocultura e subdesenvolvimento caminham de mãos dadas.

As palavras do autor me fazem lembrar, por sua vez, de uma pequena anedota que ilustra como a polifonia em devir da vida ultrapassa a rigidez classificatória na qual se tenta totalizar uma realidade: E quando eu já havia seguramente classificado e distinguido os mamíferos como sendo aqueles que não põem ovos e que possuem glândulas mamárias, me surge o ornitorrinco: que tem bico de pato, rabo de castor, põe ovos, faz ninho, não tem mamas, mas o leite escorre do corpo da fêmea por poros abdominais. O ornitorrinco foi a diferença que quebrava a garantia da universalização de minhas classificações.

O ornitorrinco é, pois, uma atualização biológica de movimentos mestiços que também podem ganhar corpo – e nos assustar – nos territórios curriculares. Se há, porém, possibilidades de trabalharmos nas intensidades que devêm, tais possibilidades são dependentes de nossa disponibilidade de ficarmos permeáveis às mesmas; e de apostarmos no incerto, nas conexões rizomáticas e nas experimentações. É, pois, “desarmados” e “desvestidos” de excessivas certezas, que estaríamos mais leves para errar; mas errar na perspectiva de promover um conhecimento que, sem garantias de porvir, é errante: (...) aproximativo, inquieto, ignorante e ingênuo, obedece à experiência, caminha à margem do erro, sempre esperando ser provado, instável e paciente, impalpável e móvel, por vezes desorientado, exaltado quase até à loucura, resignado às intuições singulares sem jamais saborear a vitória (SERRES, 2008, p. 59).

Portanto, assumir os efeitos das intensidades em devir num currículo é igualmente assumir que uma vida e uma escola não se fazem apenas por disciplinas, obrigações, ordens, provas e leis, mas também por núpcias, misturas e fecundações. Diante disso, há em cada escola potencialidades curriculares que podem tanto dar passagem ao inusitado dos encontros, quanto também cristalizar propostas que, assépticas, oprimem mestiçagens; estéreis, não se permeabilizam às misturas e aos contágios; e crendo não correrem perigo, acreditam-se seguras em sua inanição.

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Como no caso do adolescente do Candomblé, em que a funcionária entrevistada só considerou possível e viável um único tipo de relação afetivo-sexual: a heteronormatividade.

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Qualquer proposta educacional, mesmo aquela qualificada como revolucionária, carrega consigo essas potências conjugadas: seja no oportunizar contágios e/ou no erguer garantia contra os encontros no dia a dia. Muitas vezes, porém, são as dimensões paralisadas no medo da mudança é que mais se evidenciam, neutralizando muitos blocos de devir pelo receio à surpresa e à perda de controle. Porém, como preconizou Heráclito (2012), o fogo é o símbolo das transformações – servindo de metáfora para o ferver dos devires – e nos engendramentos a vitalizarem os dispositivos curriculares, uma faísca descuidada sempre pode vir a produzir um inesperado incêndio. Contudo, se o calor e o fogo trazem consigo perigos, as labaredas podem, talvez, vir a ser tão belas que exijam de todos um renovado empenho, mas não para apagar a chama e sim auxiliá-la a compor linhas de luminosidade que tracem outras formas de inventar o olhar, o sentir e o pensar. Todas as coisas o fogo, sobrevindo, separará e empolgará (HERÁCLITO, 2012, p. 133).

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