D 3 versão 8 Três significados de anámnesis no Mênon

May 31, 2017 | Autor: Maria Soler | Categoria: Plato, Plato and Platonism, Platón
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Ver Anexo II
Isso pode ser ilustrado pelo estudo da palavra dynamis, realizado em 1919 por J. Souilhé e retomado em 1973 por Jaakko Hintica (ver HINTIKKA, 1973, p. 2). Ou pelo estudo do verbo mantháno realizado em 2000 por Odile Mortier-Waldschmidt (ver MORTIER-WALDSCMIDT, 2000). Ou pela alentada compilação de estudos sobre a palavra aporia na antiguidade grega, especialmente em Platão, publicada em 2001 (ver A. MOTTE, 2001, p. 133-150).
Denomino "usual" o significado relativamente consensual entre os estudos atuais. Ver o artigo Memory publicado na Stanford Encyclopaedia of Philosophy, por John Sutton em 2010.
Por exemplo, como Sócrates pode avaliar se as respostas de Mênon são inexatas se ele mesmo declara não conhecer ou não lembrar o que Górgias disse?
Conforme as indicações do Dictionnaire Grec-Français de A. Bailly e também do Greek-Engish Lexicon de Henry George Liddell e Robert Scott.
Por exemplo em Protágoras 349a: "Agora desejo, de minha parte, retomar desde o início os assuntos sobre os quais eu te interroguei no começo, e lembrar-te [...] algumas de tuas respostas ...". Ou em Górgias 500a: "Então, recordemo-nos uma vez mais aquilo que pude dizer a Polos e a Górgias. Eu dizia, se te lembras bem, que existem ...". Ou em Górgias 515c: "... faz um esforço de memória e, a propósito dos homens ilustres dos quais falaste um pouco antes, diz-me ..." Ou Cármides 161b: "Acabo de me lembrar que escutei dizer, em algum lugar, que a sabedoria ...". Há exemplos semelhantes em Górgias 513d, Crátilo 418b, Eutidemo 279c, 288d, Menexeno 235c, 246a-b, 247d, 249a, Lísis 210e. Em todas essas passagens a palavra anámnesis é usada no sentido da lembrança de algo anteriormente – nesta atual vida – conhecido.
Analisei a tranquilidade com que Sócrates apara esse golpe em outro lugar, a ser incluído em minha eventual documentação de doutorado.
Conforme Vlastos (1970) para o primeiro, e Moravcsik (1970) para os outros quatro elementos.
Sobre isso ver as considerações de Samuel Scolnicov em seu capítulo sobre o diálogo Mênon em SCOLNICOV, 1988.
Como na História de Heródoto 6, 140, onde é dito que o ateniense Milcíades, filho de Címon, lembrou aos Pelasgos uma promessa solene feita alguns anos antes, promessa que eles bem conheciam. Ou como em Alceste de Eurípides 1045, onde Admeto pede ao rei Héracles: "Não me recorde mais de meus males".
Como no Discurso da Coroa de Demóstenes 18, 17, onde o orador se propõe a lembrar aos Atenienses a conjuntura atual das posições bélicas, para que eles avaliem bem a decisão a tomar. Ou como na Anábase de Xenofonte, VII 1, 26, onde o orador anuncia que vai lembrar os eventos que ocorreram recentemente.
Ver MORAVCSIK 1970, p. 52
Barreira que será tematizada em República com a imagem do rio Lethe.
Isso o texto do diálogo exemplifica em ao menos três passagens. Moravcsik (1970, p. 53-55) cita uma delas que é conhecer "o caminho para Larissa" (97a9 - b10) A melhor estrada de um lugar para outro se aprende por experiência ou por indicações adequadas. A segunda passagem refere-se à sensibilidade de Sócrates para com o modo de Mênon falar, explicitado em 76b4-c2. Sócrates aprendeu por experiência - e qualquer pessoa pode fazer o mesmo – a distinguir como esse determinado modo de falar é o dos jovens belos, mimados e tiranizadores. A terceira passagem está na conversa com Ânito, quando Sócrates dirige a ele uma reiterada pergunta: "como, se não tiveste contato (se és desprovido de experiência – ápeiros e com os sofistas, saberias avaliar se eles fazem o bem ou fazem o mal" (92b5-c7)? Ou seja, para avaliar as qualidades de uma pessoa o contato sensorial é condição imprescindível.
Tais como o desenvolvimento de habilidades pessoais inovadoras, que ultrapassam os modelos imitados ou recebidos no ensino.
Análise realizada em outro local, a ser igualmente publicada na documentação de meu eventual doutorado.
Tais como Moravcsik (1970), Vlastos (1970), Canto-Sperber (1993), Nehamas (1991), Trindade Santos (1999, p. 73), Scott (2006, p. 101), Ebert (2007), Weiss (2001). Contudo eles também orientam sua investigação para as questões mais delicadas que subjazem à distinção mais óbvia entre ensino e aprendizagem.
Conforme VLASTOS 1970, p. 157-158
Graziano Arrighetti expressa a posição mais aceita quando afirma, na primeira frase de sua comunicação ao sétimo Symposium Platonicum, realizado em 2004, que Mênon 81a10-e2 é "comumente – ainda que não por todos [os comentadores] – definido como mito" (apud ERLER & BRISSON, 2007, p. 169).


INFLEXÕES SEMÂNTICAS DA PALAVRA ANÁMNESIS
NO DIÁLOGO MÊNON DE PLATÃO.

Nestor Müller
Doutorando no PPGFIL da UFSCar
Orientadora: Profa. Dra. Eliane Christina de Souza

RESUMO:

É bem conhecida a importância da palavra anámnesis no Mênon, onde aparece pela primeira vez a chamada Teoria da Reminiscência, conforme a cronologia mais aceita dos diálogos platônicos. São dezesseis as ocorrências dessa palavra naquele texto, seja em forma de substantivo ou de verbo. Já uma primeira leitura permite reconhecer que seu significado sofre algumas modulações, desde a memória corriqueira de uma informação adquirida no intervalo de alguns meses até a recuperação de um conhecimento proveniente de outras vidas. O objetivo desta comunicação é analisar essa deriva semântica, que obedece a três grandes grupos. Nas primeiras dez páginas do diálogo (70a1 – 79e7), anámnesis refere-se a uma lembrança comum: o personagem Mênon escutou várias vezes o ensinamento de Górgias sobre a natureza da virtude e é instado pelo personagem Sócrates a rememora-lo. Mais tarde (80d5 – e5), Mênon dispara contra Sócrates o paradoxo que este mesmo havia engatilhado por sua insistência em dizer que nada sabe sobre o tema em pauta, e Sócrates responde ao desafio com a mencionada Teoria da Reminiscência (81a1 – e2). Ali o termo anámnesis passa a denotar lembranças que tomam a forma de aprendizados e de inspirações para a investigação, e se caracterizam pela origem situada além do âmbito desta vida. Mas na demonstração da sua Teoria (81e3 – 86c3) – a célebre conversa com o menino-escravo – Sócrates passa a usar a palavra anámnesis para caracterizar o raciocínio que o escravo é capaz de realizar, acompanhando as precisas indicações oferecidas pelas perguntas socráticas. Este terceiro significado é confirmado por uma clara definição presente na antepenúltima página do diálogo (97e5 – 98a8). Além de acompanhar o percurso dessas inflexões, a comunicação irá analisar as relações entre elas e discutir algumas de suas implicações para nossa compreensão da Teoria da Reminiscência.

Palavras-chave: Platão, memória, reminiscência, aprendizado, raciocínio.


TEXTO DA COMUNICAÇÃO:

INTRODUÇÃO

O substantivo anámnesis ou o verbo que lhe corresponde, anamimnésko, comparecem dezesseis vezes no texto do diálogo Mênon. Esta comunicação busca distinguir, nesse conjunto, três acepções diferentes e começar a explorar suas implicações para a compreensão do diálogo como um todo.
A primeira acepção está presente na conversa inicial entre os personagens Sócrates e Mênon (70a1 – 79e6). Denota uma lembrança simples, no sentido ainda hoje usual desta palavra, e corresponde ao uso comum de anámnesis na época de Platão.
A segunda acepção corresponde à chamada teoria da reminiscência. Pelas razões que veremos, o significado da palavra anámnesis não pode, ali, ser considerado igual ao das primeiras ocorrências.
A terceira acepção corresponde às operações mentais realizadas pelo escravo anônimo durante sua conversa com Sócrates (82a7 – 85b7). A análise acurada do texto mostra que não se trata, neste caso, de operações de memória mas sim de investigação e de raciocínio lógico-matemático. Esta terceira acepção é confirmada pela última ocorrência (97d1 – 98a8) onde anámnesis é definida como sendo um aitías logismô, um raciocínio explicativo.
Vale lembrar que o fato de Platão usar uma mesma palavra com acepções diversas, a partir de uma mesma raiz semântica, não é fenômeno raro nem para nosso autor, nem na literatura grega antiga. Esse fato linguístico deixa ao leitor o trabalho de esclarecer o significado mais preciso da palavra dentro de cada diferente contexto, e é a semelhante tarefa que estou me propondo.

PRIMEIRA ACEPÇÃO: ANÁMNESIS COMO LEMBRANÇA ROTINEIRA

Logo na primeira página de nosso diálogo Sócrates põe em jogo a figura de Górgias (70b3), e na segunda página pede que Mênon lembre (anámneson – segunda pessoa do singular do aoristo imperativo ativo - 71c10) o que Górgias ensinou sobre "o que é areté". Trata-se de uma lembrança simples e coloquial, uma memória de médio prazo conforme uma classificação atualmente em uso. Mênon escutou, semanas ou meses antes, o ensinamento de Górgias, e de algum modo o assimilou pois "tem as mesmas opiniões que ele" (71d1-3), e mais tarde dirá que fez muitos discursos a esse respeito (80b1-3) bem como prometerá enfim revelar esse ensinamento (76b1-2).
Mas inicialmente Mênon se surpreende com a indagação de Sócrates pois sabe do encontro deste com Górgias (71c5) e sabe que o lentonino frequentemente se manifestava a respeito desse assunto. Por isso Mênon pergunta se Sócrates não concorda com as opiniões de Górgias (71c7). Sócrates desculpa-se por sua memória lacunar (71c8-9), e com ela justifica sua pergunta, dirigida três vezes a Mênon.
Em 73c7 Sócrates repete o mesmo pedido para Mênon "reavivar a memória" (anamnesthênai, aoristo infinitivo, voz passiva) e dizer o que Górgias ensinou. E no contexto das reprimendas ao "impudente" (hybristés, 76a9) Mênon Sócrates menciona pela terceira vez a lembrança do ensinamento de Górgias, mas agora em tom de reprimenda: "A um ancião atribuis questões penosas para responder, ao passo que tu mesmo não te dispões a relembrar [anamnestheís – particípio segundo do aoristo, voz passiva, 76b1] e dizer o que afinal Górgias diz que é a virtude" (76a9 – b1).
Os limites estritos desta comunicação impedem a análise das particularidades literárias e lógicas vinculadas ao tema da memória, presentes nesse trecho. Em resumo, nestas três primeiras ocorrências é sempre o mesmo conteúdo de memória – o ensino de Górgias - que é evocado. É um conteúdo bem conhecido por Mênon, de modo que o significado do verbo anamimnésko corresponde aqui ao uso comum na época de Platão. Disso há exemplos claros em Heródoto, Tucídides, Sófocles e Demóstenes. Corresponde, também, ao uso que Platão faz desse verbo em diálogos anteriores.
Resta saber por que Mênon não lembra ou não revela o que sabe da opinião de Górgias. Ou melhor: o que o autor do texto, Platão, está urdindo ao insistir nessa incapacidade ou recusa do personagem Mênon em lembrar e dizer aquilo de que parece ter conhecimento.

SEGUNDA ACEPÇÃO: ANÁMNESIS COMO MEMÓRIA DE UM CONHECIMENTO ADQUIRIDO ANTES DESTA VIDA.

Desafiado pela quarta vez a apresentar uma definição de areté (79e5-6), Mênon reage com dois lances de contra-ataque. O primeiro (79e7-80b7) é de cunho pessoal e se dirige contra o costume socrático de provocar situações aporéticas. O segundo é de cunho epistemológico mais geral e se dirige contra o próprio procedimento investigativo em curso (80d5-e5). Para responder ao chamado "paradoxo de Mênon" Sócrates lança mão da teoria da reminiscência (81a5 – 82a3).
O conteúdo da teoria da reminiscência pode ser resumido em cinco elementos. (A) A firme crença de Platão na imortalidade da alma e em sua reencarnação (81b3-b6). (B) O axioma de que, sendo nossa alma imortal, ela se acha na condição de ter visto e aprendido "todas as coisas" antes de nossa vida atual (81c5-7). (C) Em função desse axioma (B), o que chamamos de aprender consiste numa rememoração do que já sabíamos antes (81d4-5). (D) O axioma de que todas as coisas na natureza são familiares umas com as outras (81c9). (E) A consequência de que se rememoramos uma coisa nada impede que possamos descobrir todo o restante, mediante esforço persistente (81d2-4).
Ao explicar esses elementos, Sócrates usa duas vezes o verbo em pauta. A primeira ocorrência: "não é de admirar [...] ser possível à alma reminescer [anamnesthênai, aoristo infinitivo passivo, 81c8] justamente aquelas coisas que já conhecia [por terem sido assimiladas pela alma antes desta vida]" (81c8-9). A segunda ocorrência:
estando a alma em estado de aprender todas as coisas, nada impede que, tendo alguém reminescido [anamnesthénta, aoristo particípio segundo, caso acusativo, 81d2] uma só coisa – fato esse precisamente que os homens chamam aprendizado – essa pessoa descubra todas as outras coisas, se for corajosa e não se cansar de procurar (81d1-d40).

A conclusão é que "pelo visto, o procurar (zeteîn) e o aprender (manthánein) são, no seu todo, uma reminiscência (anámnesis, no nominativo)" (81d4-5). O que é confirmado na paráfrase de Mênon: "aquilo que chamamos aprendizado (máthesin) é reminiscência (anámnesis, no nominativo)" (81e4).
Nesse trecho encontramos também uma significativa variante, que decorre do confronto entre a concepção educacional de Mênon (aprender é receber passivamente informações) e a de Sócrates (aprender é o processo gradual de gerar um conhecimento). Em 81e4 Mênon manifesta concordância com Sócrates mas pede um "ensino". Sócrates flagra a armadilha e o admoesta: "Mênon, és traiçoeiro, eis agora que me perguntas se posso te ensinar, a mim que digo que não há ensinamento (didaksái) mas sim reminiscência" (anámnesin, no acusativo, 82a1-2). A mesma asserção é retomada bem depois, quando Sócrates expõe sua proposta de investigar mediante uma hipótese as questões iniciais de Mênon: "examinemos ... se [areté] é coisa que se ensina ou, como dizíamos há pouco, coisa que pode ser rememorada (anamnestón, 87b4-8).
Essas seis ocorrências, três do verbo e três do substantivo, expressam indubitavelmente um novo significado. Ele se diferencia das primeiras ocorrências em pelo menos quatro aspectos essenciais.
(1) A origem da lembrança é radicalmente diferente. Em contraste com as três primeiras ocorrências e também em contraste com todos os usos anteriores da palavra anámnesis no corpus platônico ou nos citados autores gregos, temos agora a referência a conteúdos adquiridos exclusivamente in illo tempore, fora do âmbito da vida empírica. Põe-se aqui uma defasagem que não pode mais ser considerada com os padrões cronológicos comuns, abrindo uma outra qualidade de tempo, com todas os problemas respectivos.
(2) Dessa origem decorre um tipo especial e um grau quase completo de esquecimento. Em todos os usos anteriores da palavra anámnesis, o esquecimento do conteúdo toma a forma de mera desatenção, ou é apenas superficial, facilmente superável. Por vezes torna-se mesmo difícil distinguir entre a experiência de lembrar e a experiência de pensar duas vezes na mesma coisa, conforme os termos usados por Julius Moravcsik. Mas o tipo de memória referido na teoria da reminiscência só faz sentido se estiver interrompido pela barreira de um esquecimento qualitativamente diverso.
(3) A profundidade do esquecimento implica uma experiência de rememoração bem diferenciada. Enquanto nos casos anteriores a lembrança é o retorno de algo que se apagara momentaneamente da consciência - quer dizer, a pessoa se dá conta de estar recuperando um conteúdo já conhecido, e se dá conta de tê-lo esquecido - nos casos focalizados pela teoria da reminiscência a experiência que o indivíduo faz é a de uma primeira compreensão – quer dizer, a pessoa acessa conteúdos que têm o sabor de novos e ela não tem consciência de quando ou como os teria adquirido e esquecido. Por isso mesmo é que essa experiência consiste naquilo que normalmente chamamos de "aprendizado", ou seja, a experiência da aquisição de um novo conteúdo.
(4) O próprio conteúdo a ser rememorado é bem especial, pois nem todo aprendizado e nem toda investigação lhe cabem. Esse conteúdo é o de coisas como o conceito de areté (81c8), ou o princípio geométrico competente para a duplicação de uma área (conforme a demonstração em 82a7-85b7). Encontramo-nos aqui no campo dos conceitos não-empíricos, dos conceitos puramente inteligíveis. De fato, não faz sentido incluir nas memórias provenientes de uma dimensão fora desta vida qualquer informação factual, aprendida aqui e agora por observação, ou por transmissão de outrem.
Já vimos que nosso diálogo afasta dos conteúdos da teoria da reminiscência todo tipo de aprendizado que depende essencialmente de ensino. Pois de fato existem situações de aprendizagem que não dependem de ensino, e são estas que constituem a reminiscência. Por outro lado, submeter-se ao ensino convencional implica receber um conhecimento vindo do exterior da alma o que é diferente da reminiscência, a qual consiste na recuperação de um conhecimento presente no interior da alma.
Podemos concluir que embora o texto não defina com exatidão nem o conteúdo da memória nem o tipo de experiência visado pela chamada teoria da reminiscência, não restam dúvidas de que ele se diferencia radicalmente da acepção comum da palavra anámnesis, aquela que foi usada no início do diálogo.

TERCEIRA ACEPÇÃO: ANÁMNESIS COMO ATITUDE DE INVESTIGAR E CONSECUÇÃO DE UM RACIOCÍNIO SEGURO.

No âmbito da conversa entre Sócrates e o escravo de Mênon (82a4 – 85b7) temos quatro ocorrências do verbo anamimnésko, indicadas a seguir.
Antes de iniciar sua epideíksis Sócrates estabelece com precisão o que pretende demonstrar. Para tanto ele pede a Mênon, em 82b6-7: "presta atenção para qual das duas coisas o menino vai estar fazendo: ele vai estar ''reminescendo' [anamimneskómenos, particípio segundo, presente, masculino, caso nominativo, reduplicado] ou vai estar aprendendo comigo (manthánon par'emoû)?" . Nesta oposição entre "reminescer" e "aprender comigo", a expressão "aprender comigo" deve equivaler aqui a "receber um ensinamento", o que permite consistência com a oposição entre reminiscência e ensino, estabelecida em 82a1: "não há ensinamento mas sim reminiscência". E isso de modo tão claro que mesmo um observador "impudente" como Mênon poderá percebe-lo com nitidez. Uma distinção semelhante, entre perguntar e ensinar é reiterada em 84c10 - d2: o escravo vai descobrir algo porque estará investigando junto com Sócrates, mediante perguntas e não mediante ensino.
É nesse sentido que devemos ler a definição de reminiscência que Sócrates afirma em 85d6-7, já nos comentários conclusivos de todo o elégkhos com o escravo: "reminescer" (anamniskésthai ) é o próprio indivíduo recuperar a ciência em si mesmo (analambánein autòn em autô epistémen). Minha leitura: o estado de reminiscência ocorre quando o indivíduo se empenha na investigação e alcança epistème.
No final da primeira etapa da conversa o escravo "pensa que sabe" (82e6) qual é a solução do problema, mas é evidente para Sócrates e para Mênon que ele está no caminho errado. Sócrates insiste junto a Mênon: "Olha bem, então, como ele vai 'reminescendo' [anamimneskómenon, ] progressivamente, tal como é preciso reminescer [anamimnéskesthai ]" (82e12-13). Devemos perguntar: o que é que irá ocorrer com o escravo, o que está sendo previamente chamado de estado de reminescência? A resposta se impõe: é o fato de o escravo se dar conta de seu engano inicial, realizar outro cálculo errado e por fim cair em estado de aporia (82e14 – 84a2). Ao final dessa segunda etapa, Sócrates repete imediatamente para Mênon: "Estás te dando conta, Mênon, do estado de reminiscência [anamimnéskesthai ] em que já está este menino, fazendo seu caminho?" Ou seja, reconhecer o erro e chegar ao estado de aporia constituem nesse caso a realização de um estado de anámnesis. Porque o menino-escravo, impactado pela aporia, não desiste de investigar.
Também pelos limites de tempo não posso realizar a merecida análise, frase por frase, da conversa com o menino-escravo, de modo a contextualizar detalhadamente o conceito de anámnesis nesse trecho. Junto com vários autores - quero mencionar especialmente Gregory Vlastos e Benny Shannon - considero relevante a distância entre, de uma parte, o que Platão sugere que se passa na alma do menino-escravo, isto é, a experiência efetiva que ele vivencia ao tecer um raciocínio sob a orientação das precisas perguntas de Sócrates, experiência que constitui um fato inquestionável e até mesmo replicável, e, de outra parte, a interpretação dessa experiência nos termos da teoria da reminiscência. O que acontece de fato com o escravo, e que Sócrates aqui chama de reminiscência, é, nas palavras de Vlastos, "uma ampliação de nosso conhecimento que resulta da percepção de relações lógicas". O que ocorreu na alma do escravo é que ele "viu" que a proposição anteriormente desconhecida decorre logicamente de outras proposições que ele já conhecia.
O novo significado de anámnesis no conjunto dessa conversa será atestado quase no final do diálogo, na passagem 97d4 - 98a8. O tema dessa passagem é a diferença entre opinião correta (orthé dóxa) e ciência (epistéme), e como ela pode ser superada mediante um "raciocínio explicativo" (aitías logismô, 98a3-4). Quer dizer, um "raciocínio explicativo" é o processo com o qual um conjunto de opiniões corretas pode chegar a se tornar ciência. Mas, diz o texto, "isso [aitías logismô] é anámnesis, como foi acordado entre nós nas coisas ditas anteriormente" (98a4-5). Ora, as "coisas ditas anteriormente" referem-se claramente à conversa com o escravo, pois foi ali que o processo consistiu justamente em colher, mediante perguntas bem dirigidas, as opiniões corretas e as crenças do escravo, as quais "ergueram-se nele" (85c9). Tais opiniões acabarão por se tornar ciência "se alguém lhe puser essas mesmas questões frequentemente e de diversas maneiras" (85c10-11). O texto repete: as opiniões, conforme vão "sendo despertadas pelo questionamento, [e] se tornam ciência" (86a7-8).
Não há dúvida de que o significado de anámnesis é aqui completamente diverso da primeira acepção, acima citada. Pois (1) o propósito bem definido da epideíksis limita-se ao âmbito da "teoria da reminiscência", e (2) o texto insiste em confirmar que o escravo não tinha conhecimento anterior da questão abordada e portanto não poderia dela ter memória, no sentido comum da palavra.
Mas há três razões que me parecem fundamentar a diferenciação semântica entre esta terceira acepção, presente na conversa de Sócrates com o escravo, e a segunda acepção, presa à teoria da reminiscência.
(1) Na teoria da reminiscência (81a5 - 82a3) a palavra anámnesis obedece a um conjunto abstrato e fechado, posto por Sócrates de modo doutrinário. O significado da palavra depende dessa teoria. A teoria pretende explicar algumas atitudes. Em contrapartida, na conversa com o escravo a palavra anámnesis é usada não para explicar e sim para indicar diretamente algumas atitudes pessoais, empíricas. O que o escravo está realmente experimentando, num contexto dialógico e não doutrinário, é um fato empírico que tem valor próprio. O significado da palavra depende dessa experiência e não da teoria.
(2) O fundamento da teoria da reminiscência, em que se situa a segunda acepção, é mítico, enraizado numa antiga tradição, não-verificável racionalmente. Ele só pode ser aceito por crença. Em contrapartida o contexto experiencial e dialógico da terceira acepção é o de um raciocínio matemático, fundamentado numa lógica clara e consistente. As operações mentais em pauta ocorrem em tempo presente e podem ser replicadas e criticadas sem nenhum apelo a uma crença.
(3) A teoria da reminiscência postula anámnesis como uma espécie de memória virtual, especialíssima., vinculada a conceitos que não estão na memória comum. Em contrapartida, a conversa com o escravo parte da memória de noções e operações triviais mas denomina de anámnesis algumas atitudes e cálculos que não lidam com memória e sim com atos de investigação e raciocínio. O próprio estado de reminiscer não é uma operação da memória, mas da inteligência e da "coragem de investigar".

CONCLUSÃO:

Não é difícil constatar a diferença entre a acepção comum da palavra anámnesis no diálogo Mênon e a acepção presente na teoria da reminiscência. Bem difícil me parece atestar a diferença entre o que estou denominando segunda e terceira acepção. Esta nova diferenciação depende da discussão sobre o real caráter das orientações socráticas ministradas ao escravo de Mênon, e depende, afinal, da discussão fundamental sobre o significado de todo o argumento da reminiscência enquanto resposta ao paradoxo de Mênon.
Na fórmula básica da teoria da reminiscência, em 81d4-5, anámnesis vincula-se ao procurar (zeteîn) e ao aprender (manthánein). A via de entendimento que estou explorando privilegia o entendimento de anámnesis como sendo zeteîn, pois observa no comportamento do menino-escravo sua firme disposição de busca. Esta é a conclusão dos comentários de Sócrates para toda a sua demonstração: "aquilo que acontece não saberes agora – e isto é aquilo de que não te lembras – é necessário, tomando coragem, tratares de procurar e de reminescer [anamimnéskesthai]" (86b2-4). O menino-escravo exerceu essa coragem com admirável perseverança. Por isso, na avaliação de Sócrates, opiniões corretas "despertaram" em sua alma.
Mênon, por outro lado, esmoreceu no esforço de superar seu esquecimento. E é em função da lição ética, assim me parece, que Platão urdiu. na conversa inicial, o personagem Mênon sendo incapaz de lembrar aquilo de que afirmava ter conhecimento. O contraste entre as atitudes do menino-escravo e de Mênon indica a lição fundamental de toda a teoria da reminiscência. Pois não é outra a ressalva conclusiva de Sócrates em 86b6-c2:
Alguns outros pontos desse argumento, claro, eu não afirmaria com grande convicção. Mas que, acreditando que é preciso procurar as coisas que não se sabe, seríamos melhores, bem como mais corajosos e menos preguiçosos do que se acreditássemos que, as coisas que não conhecemos, nem é possível encontrar nem é preciso procurar – sobre isso lutaria muito se fosse capaz, tanto por palavras quanto por obras.













APENDICE
A PALAVRA ANÁMNESIS NO DIÁLOGO MÊNON

TRECHO


OCORRÊNCIA
R1 - verbo
Referente à lembrança do ensina-mento de Górgias
anámneson

(1) 71c10 – recorda-me as coisas que Górgias dizia.

anamnesthênai

(2) 73c7 – tenta recordar e dizer o que Górgias [...] diz.
anamnestheís

(3) 76b1 – e tu não te dispões a recordar e dizer o que, afinal, Górgias diz.



R2 - verbo e substant.
Referente à reminiscên-cia de conteúdos anteriores a esta vida
anamnesthênai

(4) 81c8-9 – é possível à alma reminescer aquelas coisas que já conhecia

anamnesthénta

(5) 81d2 - nada impede que alguém, reminescendo uma só coisa [...] descubra todas as outras.

anámnesis

(6) 81d5 - o procurar e o aprender são, em seu todo, uma reminiscência.
anámnesis

(7) 81e4 – aquilo que chamamos aprendizado é reminiscência
anámnesin

(8) 82a2 – não há ensino mas sim reminiscência.
R3 - verbo
Referente às operações que o escravo vai realizando
Anamimneskó-menos
.
(9) 82b7 - veja qual das duas [...] rememorando ou aprendendo comigo?
Anamimneskó-menon
.
(10) 82e12 - veja como ele vai rememorando progressivamente.
Anamimnéskesthai

(11) 82e13 – [...] tal como é preciso rememorar.
anamimnéskesthai

(12) 84a4 – o ponto de rememorar em que já está o menino.


verbo
Referente ao comentá-rio final sobre a experiên-cia com o escravo
anamimnéskesthai

(13) 85d7 – recuperar a ciência, em si mesmo e por si mesmo, não é rememorar?

anamimnéskesthai

(14) 86b4 – é necessário, tomando coragem, tratares de procurar e rememorar.








TRECHO

OCORRÊNCIA
verbo
Referente à introdução do método por hipótese
anamnestós

(15) 87b8 – a virtude é, ou não, coisa que se ensina ou [...] pode ser rememorada?


substantivo
Definição final de anámnesis como raciocínio.
anámnesis

(16) 98a4 – encadear as opiniões por um aitías logismô. E isso [...] é a reminiscência, como foi acordado...



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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