D. Leonor de Aragão: imagens de contestação e de poder

July 7, 2017 | Autor: J. Gonçalves de F... | Categoria: Gender Studies, Women and Power in Middle Ages
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1 [Publicado em: Percepção e representações da Mulher transgressora no mundo Luso-Hispânico. Mulheres Más, ed. Ana M. Toscano e Chelley Godsland, Vol. I, Cap. I, Porto: Edições Universidade Fernando Pessoa, 2004, pp. 103-122].

D. Leonor de Aragão: imagens de contestação e de poder Judite A. Gonçalves de Freitas1

“Muita gente a mandar não me parece bem; um só chefe, um só rei, é o que mais nos convém” Homero, Ilíada, cap. II.

“O Dr. Diogo Afonso Mangancha, ilustre jurista, amigo e defensor do Infante D. Pedro, na arenga de abertura das Cortes de Lisboa de 1439, disse “(...) que fora bem feito enleger o Yfante Dom Pedro por soo Regedor, contradizendo o acordo [das Cortes de Torres Novas], (...) e mostrou claras rezooes, aprovadas per Dereito Divino e Humano (...) que Molher nom devia ter Regimento. Nem que dous em companhia nom deviam reger; mas hum soo, e pera ser hum soo devia ser o Yfante Dom Pedro (...)” Rui de Pina, Crónica de D. Afonso V, cap. XLVI.

Considerações preliminares Este estudo visa explorar a dimensão ética das atitudes e tomadas de posição da rainha D. Leonor de Aragão e do Infante D. Pedro no conflito que os opôs entre 1439 e 1441. O nosso percurso investigativo tem em vista proceder ao questionamento da transgressão no que ao meio político de então diz respeito e, quiçá, distinguir o legítimo exercício do poder régio do respectivo abuso. Por tudo isto, vimo-nos obrigada a afastarnos de uma visão que intentasse proceder a uma classificação limitativa e, de algum modo, simplista dos actos políticos dos dois protagonistas. Introdução

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Doutora em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FL/UP). Professora Catedrática da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Fernando Pessoa (UFP) – Porto, desde 2010. Membro do Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade (CEPESE) /FCT/ UP.

2 Na Idade Média a política desenvolve-se dentro de um quadro de organização social bastante amplo, muito específico e com uma estrutura complexa, e não remete unicamente para o plano temporal. As teorias sobre o poder têm origem em concepções de âmbito teológico, antropológico e ético. Para a maioria dos autores medievais a melhor forma de governo é a monarquia, por isso defendem que era necessário assegurá-la para a felicidade e o bem-estar dos súbditos. O monarca, de acordo com as fontes legislativas dos finais da Idade Média, era o vigário de Deus. “O seu poder tem uma origem divina (...); o Regimento do Reino foi-lhe dado por Deus (...) Na terra, os monarcas deverão assegurar o «serviço» divino, o qual se traduzirá na guarda do direito, da verdade, da justiça (...) da concórdia e da temperança” (Homem, 1998: 41-42). Esta ideia de uma linha estável e una do exercício da autoridade e da obediência política é bastante antiga recuando aos autores clássicos (Albuquerque: 1968) que, sob múltiplos aspectos foram glosados por D. Duarte, o «Eloquente», rei de Portugal, entre 1433 e 1438, e pelo Infante D. Pedro, seu irmão, regente in solidum entre 1439 e 1448. D. Duarte (1391-1438), filho legítimo de D. João I e de D. Filipa de Lancaster, rei de Portugal entre 1433 e 1438, casara com D. Leonor de Aragão ( ? - 1445)2, filha de D. Fernando de Aragão e da Sicília, chamado o de Antequera e de D. Leonor, denominada «La rica hembra», no ano de 14283. Tendo sido chamado, pelo Mestre de Avis, a participar desde 1411 na administração da Fazenda e da Justiça régias, foi adquirindo a partir dos vinte e poucos anos de idade uma significativa experiência nas lides governativas (Freitas, 1995: 58-59). A dinastia de Avis conheceu, à época de D. Duarte e D. Leonor de Aragão, um processo de afirmação e consolidação políticas no contexto peninsular. Avançou-se igualmente com manobras diplomáticas forjando ligações matrimoniais prestigiantes, nas quais, o mais das vezes, o elemento feminino assumia um relevante papel4. Em paralelo, a continuação da empresa ultramarina fora muito discutida desde 1433, quando D. Duarte solicita aos grandes do reino parecer sobre as vantagens da guerra aos infiéis. Apesar dos condes de Arraiolos, Barcelos e Ourém terem manifestado uma certa indecisão a respeito de saber se a guerra seria serviço de Deus ou dela resultando fama e proveito próprio

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É desconhecida a data do nascimento. As negociações para a celebração do casamento de D. Duarte e D. Leonor iniciaram-se em 1427 quando foi celebrado o acordo matrimonial a 4 de Agosto daquele ano (Monumenta Henricina, vol. III, doc. 80, p. 163). O contrato de casamento foi celebrado a 13 de Setembro de 1428 (Monumenta Henricina, vol. III, doc. 122, pp. 244-250). Ao mesmo tempo assentou-se na aliança entre os reis de Aragão, Navarra e Portugal. 4 Casos de Beatriz de Castela (1309-1359), Leonor Teles (1372-1385) e Filipa de Lancaster (1387-1415). 3

3 (Duarte, Dom, 1982: 56-73)5, parece certo, segundo opinião do cronista palaciano Rui de Pina, que a intervenção da rainha D. Leonor de Aragão e do Infante D. Henrique, terão influenciado muito o monarca (Pina, cap. XIII, 1977: 518-519). Recebida a Bula papal Rex Regum, datada de 8 de Setembro de 1436, que concedia liberdade ao monarca para proceder «quando tivesse tempo e disposição» ao combate aos infiéis. No ano seguinte, em Outubro de 1437, trava-se o combate fatídico de Tânger, tendo ficado o Infante D. Fernando como refém, enquanto não se decide pela entrega da praça de Ceuta, conquistada em 1415. Depois da morte de D. Duarte a 9 de Setembro de 1438, houve necessidade de convocar e celebrar Cortes em Torres Novas onde se prestou juramento e homenagem ao futuro rei (D. Afonso V) e se discutiu o “negócio mais difícil e mais importante da agenda - o do regimento do país” (Sousa, 1990: 352), pois havia que promover o entendimento entre os diferentes grupos de opinião. Coube ao Infante D. Henrique, apresentar a proposta de compromisso entre as facções presentes. A rainha D. Leonor de Aragão aceitou dividir as responsabilidades governativas com o cunhado, o duque de Coimbra, que, e segundo Rui de Pina, “(...) sempre em sua vyda mostrou ao Yfante Dom Pedro, que nam lhe tynha boa vontade (...)” (Pina, cap. II, 1977a: 590). Porém, as divisões de opinião e os debates sobre o Regimento não terminaram aqui, uma vez que a solução apresentada não foi do agrado de nenhum dos dois partidos6. Para os apoiantes da rainha, expondo uma ideia ético-política coeva, o domínio de mais do que um, bem como o domínio de um só que usurpe o título de soberano não podia ser boa coisa7; por seu lado, para os apoiantes do Infante D. Pedro considerando que a mediação popular é a melhor solução, o domínio de uma mulher, estrangeira, não lhes parecia razoável e era muito difícil de sustentar8. A rainha representava o partido da nobreza senhorial, mas não obstante este facto alguns dos mais ilustres servidores de D. Duarte mantiveram-se do seu lado depois de terem eclodido os desentendimentos, de entre eles cabe destacar: Nuno Martins da Silveira, Escrivão da 5

Cf. DUARTE, Dom (1982): Livro dos Conselhos de el-Rei D. Duarte. Livro da Cartuxa. ed. diplomática, transcrição de DIAS, João José Alves, Lisboa: Editorial Estampa, pp. 56-73. 6 Não nos ocuparemos do relato circunstanciado dos acontecimentos políticos e sociais que ocorreram entre a morte do rei «Eloquente» (1438) e a saída da rainha D. Leonor de Aragão para Castela, em 1441, por duas ordens de razões: a primeira tem a ver com o facto de tal abordagem já ter sido levada a efeito por Humberto Baquero Moreno em alguns dos seus principais trabalhos (cf. a bibliografia final); a segunda prende-se com o facto de não pretendermos revisitar a contenda entre os dois cunhados numa perspectiva diacrónica, mas antes torná-la objecto de análise especulativa por quanto nos interessa aferir a valorização medieva do poder régio e da necessidade de estabelecer o governo ou autoridade num só. 7 À luz do que refere Rui de Pina “A Rainha com os de sua parte requeyram pera ella toda a governança em solydo, assi como no Testamento d’ElRey ficara determinado (...)” (Pina, cap. XIV, 1977: 600-601). 8 Segundo o cronista Rui de Pina depois de ter sido lido o testamento de D. Duarte foi dado conselho à rainha de que o poder de eleger o regente só ao reino e aos três estados pertencia (Pina, cap. III, 1977: 591).

4 Puridade e os filhos (Diogo da Silveira, Fernão da Silveira, Gonçalo da Silveira e Vasco da Silveira), Lopo de Almeida, Vedor da Fazenda, Rui Mendes de Cerveira, aposentador-mor9, Rui Galvão, Escrivão da Câmara entre muitos outros (Freitas, 1999, vol. II; Moreno, 1979, vol. I: 99 e ss.). Por seu lado, o Infante D. João quando se encontra com o duque de Coimbra faz questão de lançar o alerta: “(...) quanto a Rainha (...) nunca vy moor vergonha, e abatymento nosso, que sermos regidos por ella; pois he molher, e mays estrangeira” (Pina, cap. XXII, 1977: 609). Por seu lado, o pensamento do Infante D. Pedro manifesta uma maior propensão para a corrente de pensamento que defendia a mediação popular do poder, referindo-se “(...) ao consentimento geral dos povos, bem como ao princípio geral de um pacto de sujeição.” (Calafate, 1999: 437). O Duque de Coimbra, refere-se, dois anos mais tarde (1440) às circunstâncias políticas em que decorreram as desinteligências com a soberana, de forma a ilibar-se de qualquer responsabilidade no sucedido (Moreno, 1973: 266-269). Porém, as acções políticas dos dois governantes (D. Leonor de Aragão e Infante D. Pedro) merecem uma reflexão e explicação mais pormenorizadas. Mas antes de mais comparemos e relembremos brevemente as circunstâncias de que se partiu para as reuniões de Cortes de Coimbra de 1385 e as das Cortes de Torres Novas de 1438, tais situações são manifestamente diferentes: se nas primeiras, as condições preexistentes justificam plenamente a mediação e eleição populares do Regedor, uma vez que a linha de sucessão directa se tinha quebrado; quanto às segundas, confirma-se que D. Duarte, ao fazer testamento durante a menor idade do primogénito, nomeia sua legítima herdeira e testamenteira, a mulher, D. Leonor de Aragão. Recordemos que o Dr. João das Regras, eminente jurista, em 1385, defendera a teoria da soberania popular - à falta de rei, compete às Cortes eleger o sucessor. Esta tese teve actualidade, entre nós, até 1449, ano da Batalha de Alfarrobeira. A questão que se coloca é a de saber em que medida a rainha

D. Leonor

de Aragão, a quem D. Duarte, deixara em testamento a regência, a tutoria e guarda do herdeiro, foi ou não alvo de um acto de usurpação do poder; e por outro lado, em que medida as fontes, designadamente as crónicas de Rui de Pina, não procuram justificar a inadequação da atribuição da chefia do governo à rainha por meio do desprovimento de qualidades para assumir tal responsabilidade? De igual modo, esta reflexão pretende conduzir-nos à compreensão das ligações medievas estabelecidas entre poder e saber, entre virtude, prudência e bem-fazer, por 9

AN/TT, Chancelaria de D. Duarte, L. 1, fl. 145; L. 3, fl. 4.

5 contraposição ao mau agir e à ignorância. Podemos assim interrogar-nos acerca dos pressupostos medievos da maldade e do desmando (transgressão) ao nível do poder monárquico realçando a importância da referência aos textos doutrinais que consubstanciam o essencial do sistema político e moral tardo-medievo. 1. As fontes doutrinais São de dois tipos diferentes, quanto aos objectos de que tratam e quanto à matéria teórica e crítica de que são feitos, os textos e fontes por nós utilizados neste estudo. Boa parte dos nossos conhecimentos sobre os acontecimentos sociais e políticos em que se viu envolvida a rainha D. Leonor de Aragão provém das Crónicas de Rui de Pina, outros tantos derivam dos registos da Chancelaria de D. Duarte e D. Afonso V10. Porém, como alicerce fundamental ao entendimento que o homem medieval faz das relações estabelecidas entre poder e saber, entre prudência e virtude, ou da distinção entre bem e mal, convém tomar em conta os escritos coevos que melhor nos permitem sublinhar a afinidade de compreensão dos termos. Referimo-nos especificamente ao Leal Conselheiro11 e ao Livro da Virtuosa Benfeitoria12: o primeiro é um ensaio cuja temática se explicita no prólogo como um ABC da Lealdade, pelo qual perpassam os conselhos do rei D. Duarte «para viver e obrar virtuosamente»; o segundo é um de tratado de filosofia medieval destinado aos príncipes, escrito em co-autoria pelo Infante D. Pedro e Frei João da Verba, seu confessor (Calado, 1994: LIV-LXII), no qual domina a temática ético-política (Calafate, 1999: 411 e ss.). Parece-nos importante realçar desde já uma diferença essencial entre os dois textos: o primeiro surge como resultado da experiência pessoal do «Eloquente», “(...) mais escrevo por [o] que sinto e vejo na maneira do nosso viver, que por estudo de livros nem ensino de letrados” (Duarte, Dom, 1982: 24); o segundo, pelo contrário, é uma dissertação sobre as teorias e ideias dos pensadores dos clássicos que o final da Idade Média consagrou. Porém, algo mais que o 10

Registos que tivemos oportunidade de compulsar exaustivamente para as nossas teses de Mestrado (A Burocracia do «Eloquente» (1433-1438). Os textos, as normas, as gentes, Cascais: Patrimonia, 1996) e de Doutoramento («Teemos por bem e mandamos»..., cit.). 11 Trata-se de um conjunto de ensaios críticos e pessoais de D. Duarte, escritos em forma de apontamentos, por conselho e pedido da rainha D. Leonor de Aragão, sua esposa. É uma espécie de guia de filosofia moral (Leal Conselheiro, actualização ortográfica, introdução e notas de BARBOSA, João Morais, Lisboa: INCM, 1982). Tivemos igualmente em conta outra obra do monarca D. Duarte que segundo parece foi redigida anteriormente àquela e que para alguns autores se trata de uma primeira versão da anteriormente referida (Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa), ed. diplomática, transcrição de DIAS, José Alves, Lisboa: Estampa, 1982). 12 Este texto foi estudado nos múltiplos aspectos que fazem dele um dos principais documentos do pensamento e cultura dos finais da Idade Média. Recorremos a duas edições, uma crítica e anotada de CALADO, Adelino de Almeida (1994): Livro da Vertuosa Benfeytoria. Coimbra: Universidade de Coimbra e outra inserida na Collecção de Manuscriptos da Biblioteca Municipal do Porto (1910): O Livro da Virtuosa Bemfeitoria do Infante Dom Pedro, Porto. Doravante a segunda obra será referenciada por VB – BMP.

6 parentesco dos respectivos autores aproxima estes dois livros, particularmente o âmbito da definição dos termos enunciados, e que tem a ver com o alcance teórico e metodológico daquilo que os dois escritos pessoais designam de «virtude da prudência» ou «virtuosa benfeitoria», respectivamente. Eles promovem uma leitura abrangente das regras essenciais à prática da virtude moral (prudência) ou benefício e da sua íntima relação com as concepções medievais do exercício do poder, o mesmo é dizer da arte de governar os homens. A leitura destes textos exige um exercício de pensamento e um entendimento do ideário e cultura medievos, sendo fundamental à sua compreensão perceber que nesta época nenhuma actividade era isenta da influência superior de Deus. A sociedade, o poder, o governo são concebidos de forma hierárquica, situando-se no topo Deus. Do Leal Conselheiro extravasam os pensamentos de D. Duarte, com intuitos pragmáticos e pedagógicos, acerca do agir moral ou da prática da virtude, sustentados pela sua experiência individual umas vezes, outras pelas leituras e saberes dos filósofos antigos a que faz referência. D. Duarte, muito embora não proceda eminentemente a uma leitura política tradicional do poder e das qualidades essenciais do governante, oscila entre a orientação da sociedade dos governantes para a prática do bem e da virtude tão cara à argumentação aristotélica-tomista (segundo a qual a virtude não pode ser usada para o mal) e a identificação dessa praxis, pelos príncipes, com o exercício do entendimento e da razão. A prudência, enquanto conhecimento, conduz os homens a agir virtuosamente (Albuquerque, 1968). Ao percorrermos as páginas do Livro da Virtuosa Benfeitoria, especialmente aquelas onde se trata do «bem-fazer» ou do benefício da vontade (BV-BMP, 1910, L. I, cap. VII: 17), encontramos a formulação e defesa da doutrina do exercício legítimo do poder político (ligado também à prática da virtude), que se definem, à semelhança do Leal Conselheiro, através da necessidade de uma ordem geral que se subleve aos interesses particulares. O benefício procede da vontade, “a quall nom se move a fazer cousa senom por ella seer, ou parecer boa”, consequentemente “o mal he sem voontade” (BV-BMP, 1910, L. I, cap. VII: 17). Sublinhe-se que o autor da Virtuosa Benfeitoria, o Infante D. Pedro, busca a concepção da sociedade medieva baseando-se na teoria do benefício, dizendo que este é a garantia da estrutura piramidal, cujo vértice é Deus. Dentro desta perspectiva mais geral devemos entender a teoria do governo apresentada pelo Duque de Coimbra. No que a esta última diz respeito o Infante, curiosamente, mantém na penumbra a doutrina segundo a

7 qual as assembleias populares são a fonte da soberania, em nome da qual foi eleito regente; preferindo salientar a doutrina de S. Paulo, que considera o poder como uma instituição de origem divina, não obstante os súbditos poderem rejeitar a sujeição a governantes que executem leis injustas (S. Tomás Aquino). O Infante D. Pedro manifesta, de algum modo, um pensamento discordante e contraditório nas partes quando faz ressaltar a concepção paternalista do poder régio ao referir que “(...) os príncipes seião padres dos seus próprios subdictos”13 (BV-BMP, 1910, L. II, cap. IX, p. 63). Conforme salienta António José Saraiva, “Cita-se na Virtuosa Benfeitoria a Suma, de São Tomás, mas não se tratam os problemas essenciais de que este se ocupa. Não se põe o problema da legitimidade do poder, nem o da entidade em quem reside a soberania” (1995: 224). Por conseguinte, o autor da Virtuosa Benfeitoria não se refere explicitamente ao princípio da soberania popular, muito embora saibamos que a morte de D. Duarte fortaleceu esta corrente, que alcançou uma posição mais vantajosa devido ao êxito das movimentações políticas do regente. Em suma, muito embora em ambos os textos exista uma recorrente invocação do pensamento político greco-romano e da tradição patrística, aquela surge como uma espécie de mediação conceptual, pois aparecem, para além da glosa, desvios derivados do entendimento que o homem dos séculos finais da Idade Média faz do poder, do saber, da lei, do desmando e do governo. Existe também, e convém realçar, para além das «gramáticas políticas» que imobilizam conceptualmente o mundo ético-político medieval, um conjunto de factos que revelam e desencadeiam, especialmente, os momentos de tensão, mais reveladores das resistências e características pessoais dos governantes e das consequentes práticas institucionais. Tentaremos, por isso, proceder a um sucinto contraponto empírico dos princípios enunciados tomando como pano de fundo o envolvimento dos fomentadores da «nossa» história: a rainha D. Leonor de Aragão e o Infante

D. Pedro, segundo as fontes por nós

analisadas. 2. Resistências e caracterização pessoais - ensaio comparativo Retomemos, no essencial, a questão que lançámos na introdução: terá o Infante D. Pedro sido induzido (ou até mesmo preparado), pelo apoio que recolheu dos seus correligionários e da movimentação dos sectores populares apoiantes, a desferir um golpe 13

O monarca é pai e tutor dos súbditos.

8 de Estado, tendo cometido uma acto de abuso do poder? Ou, por outro lado, a rainha D. Leonor, muito embora designada em disposições testamentárias como Regente, tutora e curadora do herdeiro, revelar-se-ia inconstante e pouco firme, por quanto falha das qualidades essenciais ao aturado desempenho dos negócios do Estado? A mais aproximativa descrição que temos dos factos políticos e sociais envolventes é da responsabilidade do cronista Rui de Pina, conforme já adiantamos, e este não nos parece ser inteiramente imparcial na análise a que procede ao expor as desavenças entre os dois cunhados. Por isso interpelámo-nos: a caracterização da rainha na pena do cronista não pretenderá evidenciar que não poderia ser regente de Portugal por mais tempo, pelos muitos perigos e danos... que daí poderiam vir? A opinião generalizada, sustentada nos rumores dos apoiantes do regente, apontava a rainha como originária do desassossego e do mais incerto destino do reino. Procedemos ao exame dos atributos da rainha ao longo do relato dos diferentes momentos de tensão política e social e procedemos a uma comparação com as qualidades do Infante D. Pedro antes e depois do início das disputas pessoais pelo acesso ao poder. Inicialmente, D. Leonor de Aragão aparece nas crónicas de Pina como uma mulher honesta, virtuosa, prudente e devota (Pina, 1977a, cap. II, p. 590), cumprindo inteiramente “aquellas cousas do testamento d’el Rey” (Pina, 1977a, cap. IV, 593) até às Cortes de Torres Novas (1438), a saber: o regimento do reino, o despacho competente dos diferentes assuntos (Freitas, 1999: 237 e ss.), o estabelecimento do contrato de promessa de casamento do filho menor (D. Afonso) com a filha do Infante D. Pedro, consumando assim o desejo do marido (Pina, 1977a, cap. VI: 594). Por conseguinte, havia nela (rainha) muita virtude, sã consciência, grande descrição e justo juízo (Pina, 1977a, cap. XII: 599), mas também fraca disposição, por ser prenhe (grávida), o que contrariava seu contínuo desempenho de regente (Pina, 1977a, cap. XIX: 607). Logo após o início das hostilidades, na sequência da não aceitação do Regimento, a rainha-viúva surge como inimiga do Infante D. Pedro, porque lhe tinha desprezo, desamor e má vontade e só fingidamente concordou com ele (Pina, 1977a, caps. XXIV, XXV e XXX: 612, 618 e 620). Muito embora, nas crónicas, D. Leonor de Aragão, seja descrita como virtuosa e prudente, dela também acabam por ser realçadas a fraqueza, a inocência, a brandura e a falta de cuidado na escolha dos seus conselheiros e servidores por contraposição à moderação, ao rigor e à justiça do Infante D. Pedro, que, segundo as fontes, teria estendido a base de apoio popular à medida que crescem os desentendimentos com a regente. Rui de Pina busca assim a preparação do

9 leitor para o momento em que a rainha, perseguida pelos muitos correligionários do Regente, se refugia junto do Prior do Crato (Pina, 1977a, cap. LXIV: 664-665) e daí se viu obrigada ao exílio em Castela - desde finais de 1440, onde procurou obter apoio quer em Aragão, quer em Castela para reaver o governo. Em Outubro deste ano, deslocou-se ao nosso país uma embaixada castelhana promovida pelos infantes de Aragão, com o propósito de reclamar o governo para a rainha viúva. Durante mais de dois anos (de inícios de 1440 a 1441) a rainha procurou reaver o poder, solicitou ajuda externa dos reis de Castela e de Aragão. A deposta regente viu-se obrigada a fugir uma vez que esta diligência se revelou infrutífera. Segundo Moreno, Afonso V de Aragão, seu irmão, estava bastante mais interessado nos assuntos do reino de Nápoles “para poder prestar a devida atenção ao angustioso problema da irmã, a desditosa D. Leonor” (1973: 270). Acabou por falecer em Toledo, em 1445, ao que se supõe envenenada por desejo de um dos aliados externos do Regente D. Pedro, D. Álvaro de Luna (Serrão, 1978: 483-484). Por conseguinte, parece-nos que o cronista está mais inclinado para o partido do Infante D. Pedro, pois na sua pena o infante tem como principal e leal intenção obedecer e não a de forçar reinar como diziam os «maus» conselheiros que tinham andado a difamá-lo junto da rainha (Pina, 1977a, cap. II: 589-590). O Infante é segundo Pina: prudente, discreto, direito e justo, bom, temente a Deus, discursa com palavras de grande autoridade, aconselha e tranquiliza o povo (Pina, 1977a, caps. XXVI, XXXII e XXXVIII: 615, 621 e 627) – que mais se poderá desejar de um regente? Com efeito, as qualidades que doutrinariamente são exigidas ao «chefe de Estado» são também reconhecidas no futuro regente: a lealdade, a justiça, a prudência e a virtude, e isto apesar da instabilidade político institucional e social (Freitas, 1999, vol. I: 143-149 e 240-247)14 ocasionada pela facção que o apoiara antes das Cortes de Lisboa de 1439, para que assumisse o regimento in solidum, e depois nas Cortes de 1446, quando depois de louvado, se manteve ávido do poder. Por contraste, D. Leonor de Aragão, segundo o cronista, manteve a descrita amenidade e incompetência para poder assumir-se como legítima testamentária, pois nela «reinava», a “feminil fraqueza”, que lhe contrariava seu “bom desempenho e propósito” (Pina, 1977a, cap. XIX: 607). É precisamente neste aspecto, e convém realçar, que a rainha pode ter transgredido a ética política afirmando-se mais pela sua benignidade e indolência do que pela força que lhe era exigida para afastar o cunhado e assumir de pleno as atribuições de governante. Esta última intervenção que seria

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A Regência de D. Pedro (1439-1449) foi um período de forte instabilidade ao nível dos quadros da burocracia régia.

10 legítima, de acordo com a letra do testamento régio, se pensou ou chegou a tê-la não sabemos, pois as fontes ‘negligenciam’ a evolução das posições da rainha-viúva. À falta de qualidades de dirigente da rainha associa recorrentemente o relator do vivido o caso de ser mulher e estrangeira, encontrando-se subjacente a este facto as fortes animosidades de Fernando de Aragão (pai da regente) e de Afonso de Aragão (seu irmão) para com os principais aliados externos do Infante D. Pedro, respectivamente o Conde de Urgel e D. Álvaro de Luna (Moreno, vol. I, 1979: 149-173; Fonseca, 1982: 26-34). Conclusões Por meados de Quatrocentos, no que ao âmbito do político se refere, o conceito de «bom» e de «mau» governante encontra-se associado ao exercício legitimado do poder, seja ele através da mediação popular ou respeite a linha de sucessão directa. A separação estabelecida entre as acções virtuosas e as não virtuosas, muito embora se situe no campo da ética e assente numa valoração de pendor religioso, é relativa às conveniências políticas do momento, à distinção entre o que mais convém e é útil do que não é, e, the last but not the least, ao «melhor» uso dos trunfos sócio-políticos. D. Leonor de Aragão falhou enquanto soberana para muitos, incluindo o cronista, não por falta de virtude mas por excesso, pois não foi capaz de agir contra a sua natureza (feminil). Usou a prudência e a temperança mais do que a força necessária para levar de vencida as notícias suspeitas que sobre ela corriam. Muito embora na Corte tivesse garantido o apoio de alguns dos mais relevantes servidores do marido, não foi capaz de, pela intervenção política, alcançar a supremacia no exercício do regimento e do governo do reino nem a confiança dos súbditos. FONTES E BIBLIOGRAFIA: FONTES DUARTE, Dom (1982a): Leal Conselheiro. Actualização ortográfica, introdução e notas de BARBOSA, João Morais, Lisboa: INCM. DUARTE, Dom (1982b): Livro dos Conselhos de El-Rei Dom Duarte (Livro da Cartuxa). Ed. diplomática, transcrição de DIAS, José Alves. Lisboa: Editorial Estampa. Monumenta Henricina (1960-1974), vol. III-IX, Coimbra. PEDRO, Dom (1994): Livro da Vertuosa Benfeytoria. CALADO, Adelino de Almeida (ed. crítica e anotada). Coimbra: Universidade de Coimbra. PEDRO, Dom (1910): O Livro da Virtuosa Bemfeitoria do Infante Dom Pedro. Porto: Colecção de Manuscritos da Biblioteca Municipal do Porto.

11 PINA, Rui de (1977a): “Crónica de D. Afonso V”. In ALMEIDA, M. Lopes de (ed.): Tesouros da Literatura e da História. Porto: Lello & Irmão, pp. PINA, Rui de (1977b): “Crónica de D. Duarte”. In ALMEIDA, M. Lopes de (ed.): Tesouros da Literatura e da História. Porto: Lello & Irmão, pp. BIBLIOGRAFIA: ALBUQUERQUE, Martim de (1968): O poder político no Renascimento português. Lisboa: ISCSPU. CALAFATE, Pedro (1999): História do Pensamento Filosófico Português. Idade Média. vol. I, Lisboa: Editorial Caminho. FONSECA, Luís Adão da (1982): O Condestável D. Pedro de Portugal. Porto: INIC/CHUP. FREITAS, Judite A. Gonçalves de (1999): «Teemos por bem e mandamos». A Burocracia Régia e os seus oficiais em meados de Quatrocentos (1439-1460). 2 vols., Cascais: Patrimonia. FREITAS, Judite A. Gonçalves de (1996): A Burocracia do «Eloquente» (1433-1438). Os textos, as normas, as gentes. Cascais: Patrimonia. FREITAS, Judite A. Gonçalves de (1995): “O Estado do «Eloquente» (1410-1438)”. In Anais, série História da Universidade Autónoma, vol. II, Lisboa, pp. 57-69. GOMES, Rita Costa (1995): A Corte dos Reis de Portugal no final da Idade Média. Lisboa: Difel. HOMEM, Armando Luís Carvalho (1998): “Poder e poderes no Portugal de finais da Idade Média”. In Praça Velha. Revista de Cultura da Cidade da Guarda, ano I, nº 3, 1ª série, Maio, pp. 39-68. MATTOSO, José (1997): “A Cultura da Nobreza”. In Revista de História das Ideias, vol. 19, Lisboa, pp. 7-37. MORENO, Humberto Baquero (1979): A Batalha de Alfarrobeira. Antecedentes e significado histórico. 2 vols., Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade. MORENO, Humberto Baquero (1973): “Carta do Infante D. Pedro aos conselheiros de Barcelona, sobre a situação política portuguesa de 1438 a 1440”. Sep. de Portugaliae Historica, vol. I, Lisboa, Faculdade de Letras/Instituto Histórico Infante D. Henrique, pp. 266-272. SARAIVA, António José (1995) [1979]: O Crepúsculo da Idade Média em Portugal. 5ª ed., Lisboa: Gradiva. SERRÃO, Joaquim Veríssimo (1978) [1964]: “D. Leonor de Aragão ( ? – 1445)”. In Dicionário de História de Portugal. ERRÃO, Joel (dir.), vol. III, Porto: Liv. Figueirinhas, pp. 483-484. SOUSA, Armindo de (1990): As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490). 2 vols., Porto: INIC/CHUP.

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