D. Pedro, Conde de Barcelos, e a escolha de S. João de Tarouca como locus sepulcral.In Cister. Espaços, Territórios, Paisagens, Lisboa, IPPAR, 2000, pp. 443-450

May 30, 2017 | Autor: C. Fernandes | Categoria: Iconography, Iconology, Iconografia, Gothic Art, Medieval Tomb Sculpture
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D. Pedro, Conde de Barcelos, e a escolha de São João de Tarouca como “Hocus” sepulcr& Cana Varela Fernandes

Resumo D. Pedro Afonso, Conde de Barcelos, filho ilegítimo do rei D. Dinis, foi um dos mais importantes vultos da sociedade do seu tempo, destacando-se pela actividade guerreira, pela riqueza e poder, mas sobretudo pelo legado literário de sua autoria, constituído por obras de carácter genealógico, cronística e poesia trovadoresca. A presente comunicação tem como objectivo abordar as ligações do Conde de Barcelos com o mosteiro cisterciense de São João de Tarouca, no quadro geral das relações da nobreza e da realeza com os templos da Ordem de São Bernardo e, ainda, perspectivar uma análise estilística e iconográfica do túmulo em que o conde se faz sepultar, estando este no interior do referido mosteiro.

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D. Pedro Afonso, the Count of Barcelos and King Dinis’ illegítimate son, was one of the leading figures in society of that age. He stood out as a warrior, a man of wealth and power, but mostly due to his literary legacy, as he wrote works on genealogy, chronicles and poetry. This paper aims to examine the Count of Barcelos’ links to the Cistercian monastery of São João de Tarouca within the framework of relations between the order and the nobility, and the royal family. lt also includes a styhstic and iconographic analysis of the count’s tomb at the monastery.

o tomarmos a decisão de abordar este tema, ainda que com a consciência de se tratar de um ..tkestudo preliminar, tivemos desde logo por objectivo principal não a novidade documental, mas, antes de mais, realizar uma reflexão sobre o tema proposto através da análise de alguns dados documentais existentes, já revelados por diversos autores 1, e colocar ainda diferentes hipóteses que possam de alguma forma contribuir para um melhor entendimento da questão. Sem que possamos até ao momento acrescentar informações inéditas às que já se conhecem da biografia de D. Pedro e aos contactos deste com São João de Tarouca2, tentámos elaborar uma sequência de motivos que possam ter estado na origem da escolha do Conde de Barcelos em fazer-se sepultar numa casa da Ordem de Cister, em concreto, o Mosteiro de São João de Tarouca. D. Pedro Afonso, Alferes-Mor e 3.° Conde de Barcelos, era filho de D. Dinis e de D. Gracia Anes, tendo este nascido em data que se desconhece mas que possivelmente antecede o casamento do rei com D. Isabel de Aragão. Trata-se de um dos bastardos régios mais conhecidos da história portuguesa, devendo-se esta fama à sua actuação política e especialmente à sua produção cultural na área da lite ratura, sendo autor da Crónica Geral de Espanha de 1344, do Livro de Linhagens que terá o seu nome e de um Livro de Cantigas3. Datam de 1289 as primeiras doações feitas pelo rei a este filho ilegítimo, entre as quais se contam bens em Lisboa, Estremoz e Évora Monte, contemplando-o a ele e à sua descendência legítima. Em caso de a não ter, os bens reverteriam para o seu irmão Afonso Sanches, o preferido de D. Dinis e

Abstract

D. Pedro, Conde de B.rcelos, e a .icolha de Sào João de Tarouca como “locus” sepulcral

igualmente ilegítimo. Poder-se-á eventualmente colocar a hipótese de esta doação ter sido efectuada por altura do casamento de D. Pedro com a sua primeira mulher, D. Branca Peres de Sousa, filha de Pero Anes de Portei e de D. Constança Mendes de Sousa, ainda que com algumas reservas4. Este casamento com a herdeira da casa de Sousa veio a constituir um aumento considerável aos já vastos bens do Conde D. Pedro, uma vez que por morte da sua mulher, pouco depois de 1304, e do filho de ambos, que falece em tenra idade, herda o património de uma das casas mais ricas do seu tempo e cujo prestígio antecede a formação da nacionalidade. No testamento do Conde, quarenta e seis anos posterior à morte de D. Branca, lê-se uma refe rência ao convento de São Domingos de Santarém como sendo o local por ela escolhido para se sepul tar, juntamente com a sua mãe. Este testemunho indica-nos, sem grande margem de dúvida, que D. Branca terá sido sepultada, conforme a sua vontade, no convento escaiabitano de frades mendi cantes e não no mosteiro cisterciense de São João de Tarouca, como se defendeu durante muito tempo5. Alguns testemunhos indiscutfveis da forte ligação entre D. Pedro Afonso e seu pai encontram-se relatados na Crónica Geral de Espanha de 1344 e no Livro de Linhagens onde se descreve amplamente a viagem efectuada por D. Dinis a Aragão em 1304, em que este último serve de mediador entre Fernando iv e Jaime ii, e onde encontramos D. Pedro a acompanhar o pai em tão importante missão diplomática. Antes desta viagem, e seguindo as informações das fontes anteriormente citadas, D. Dinis fez novas doações ao filho entre 1301 e 1303, contando-se bens em Sintra e em Tavira. Em 1314, o rei con firmava uma doação que lhe fizera D. João de Soares, da Ordem do Templo, havendo igualmente notícia de outras doações particulares. No que respeita a títulos e funções, D. Pedro ocupou alguns dos mais elevados cargos do reino: em 1307 é nomeado mordomo da infanta D. Brites, que por ora náo era casada com o futuro D. Afonso IV; em 1314 recebe o título de Conde e o rei doa-lhe a vila de Barcelos, ocupando assim o título que pertencera a Martim Gil de Sousa, como 3•0 Conde de Barcelos. Vem igualmente a ocupar a função deste nobre no posto de Alferes-Mor do reino. Cinco anos mais tarde encontra-se o Conde de Barcelos no concelho da Feira, encarregue de proceder a uma das inquirições levadas a cabo no reinado de Dinis. Este será o período em que D. Pedro goza de maiores privilégios junto de seu pai, vivendo prova velmente na corte, reconhecido como homem de grande riqueza e de grande influência política. Contudo, a sorte mudará, seguindo a trajectória da roda da fortuna. Nos inícios das lutas entre o infante D. Afonso e D. Dinis, o Conde, certamente pelo facto de ser mordomo de D. Brites, sente-se obrigado a colocar-se ao lado do infante revoltoso, o que conduzirá à sua expulsão e ao exílio no reino de Castela (1317-1322) e ainda ao confiscar dos seus valiosos bens por ordem do rei. Não nos parecendo necessário referir aqui as dificuldades e embaraços a que D. Pedro se viu sujeito nos seus quatro anos e meio de exílio, talvez se justifique relembrar o que já foi salientado por vários autores no que respeita à importância capital que esta estada na corte castelhana de Maria de Molina terá tido no interesse e na formação literária do Conde. No seguimento da vida cultural e literária da corte de D. Afonso X, o Sábio, o reinado que se seguiu não perdeu a vivacidade e a capacidade pro dutiva, sobretudo no que se refere à cronística. Desta ligação e admiração de D. Pedro pelo rei de

D. Pedro, Conde de Barcelos, e a escolha de São João de Tarouca como “locus” sepulcral

Castela dá-se prova no último testamento redigido em 1350, em que este expressa a vontade de lhe ofertar o seu Livro de Cantigas 6 Regressa a Portugal por volta de 1322, a chamado do infante D. Afonso, pata se juntar a ele em mais uma investida contra o rei. Quando D. Dinis ataca Coimbra, o Conde de Barcelos acompa nha o infante, tendo aí desempenhado uma importante acção diplomática, em conjunto com outros fidalgos inspirados pela rainha D. Isabel, na tentativa de terminar o conflito que opunha pai e filho. Desta atitude conciliatória de D. Pedro resulta certamente o perdão de D. Dinis e a restituição dos seus bens e domínios. Data de 6 de Junho de 1332 um documento que nos fornece dois dados importantes para a com preensão do motivo, ou motivos, que terão influenciado a decisão do Conde em procurar sepultura no espaço cisterciense de Tarouca. Segundo Frei Francisco Brandão, trata-se de uma carta passada pelo Conde ao Mosteiro de São João de Tarouca, onde confessa ter-lhe este convento dado em vida o lugar de Várzea da Serra aly vizinho, e que por esta causa defenderia, e ajudaria muito o dito mosteiro7. A carta dá-nos ainda a informação de que reside na Honra de Lalim, propriedade herdada da sua pri meira mulher8. Esta honra, criada por D. Afonso Henriques para o seu aio Egas Moniz, situa-se muito perto de São João de Tarouca, e provavelmente D. Pedro Afonso terá vivido com alguma frequência neste local nos últimos vinte e cinco anos da sua vida. Esta proximidade geográfica com o mosteiro terá sido certamente significativa no estreitar das relações entre os dois, económica e espiritualmente. Na verdade, D. Pedro, ao receber estas terras do mosteiro, compromete-se a defendê-lo e ajudá-lo. Esta defesa deve ser entendida num sentido amplo, implicando questões do foro jurídico, se tivermos em conta as relações privilegiadas entre D. Pedro e a corte, e situações no âmbito da ajuda militar, para a qual certamente estaria à altura pelo facto de ser um poderoso cavaleiro com numerosos fidal gos afectos à sua casa. Vivendo numa localidade próxima, servia claramente como um garante ao mos teiro na manutenção da paz ou na necessidade momentânea de resolver problemas onde a presença e força das armas fosse justificada. Não sabemos qual o exacto motivo que esteve subjacente a esta doação, ainda que se possa colo car a hipótese de ter havido alguma espécie de permuta. Temos notícia de que o Conde D. Pedro faz em vida a doação ao mosteiro de uma fazenda em Santarém que havia pertencido à sua primeira mulher, D. Branca, mantendo, no entanto, o usufruto da mesma enquanto fosse vivo. No seu último testamento, ordena que esta fazenda seja entregue imediatamente à sua morte ao Mosteiro de São João de Tarouca. Este tipo de doações testamentárias são um dado frequente nas intenções dos testadores medievais, uma vez que serviam para pagar os serviços espirituais prestados pelos monges na impor tante tarefa da salvação da alma do defunto e, neste caso concreto, acresce o facto do tumulado em causa ir ocupar um lugar de destaque no interior do espaço eclesiástico. Uma questão que poderá ser colocada em hipótese, embora com muitas reticências, e que na pos sibilidade de ser confirmada pode constituir mais um elemento para fundamentar a forte ligação de D. Pedro a São João de Tarouca, relaciona-se com a redacção das obras literárias da sua autoria, que teriam acontecido no período em que o Conde se encontra a residir em Lalim. Sendo o Livro de Linhagens e a Crónica Geral de Espanha de 1344, obras de vulto, parece-nos pos sível colocar a hipótese de participação de monges do scrzptorium do referido mosteiro na redacção

IX Pedro, Conde de Barcelos, e a escolha de São João de Tarouca como “locus” sepulcral

destes textos. A verdade é que a participação de religiosos vocacionados e treinados neste tipo de tra balho pode constituir, neste caso, uma hipótese plausível, sobretudo se tivermos em conta a proxi midade geográfica do Paço de Lalim com este mosteiro. A título de exemplo, e em época mais recuada, podemos encontrar um precedente desta situação num documento de 1145, pelo qual o prior e os cónegos da colegiada de São Sebastião de Lamego dão ao Mosteiro de São João de Tarouca dois pedaços de herdade em troca dos livros que os monges lhes haviam copiado Como refere António José Saraiva, vemos aqui um convento especializado na produção de manuscritos e fazendo disso uma indústria remunerada10. Contudo, há que ressalvar o facto de que, no período em que o Conde redige as suas obras o sis tema de produção é já distinto do que caracterizava os séculos precedentes, em que o domínio da escrita estava confinado aos religiosos. Certamente que o Conde de Barcelos contava na sua corte com a presença de letrados laicos, à semelhança da corte afonsina, o que não significa que se possa des cartar totalmente a hipótese da participação de religiosos de Tarouca, ou a eventual utilização de fon tes documentais existentes no referido mosteiro. A ser verdade, esta situação teria certamente contribuído para fortalecer os laços que por outros motivos já ligavam o Conde de Barcelos ao cenóbio de São João de Tarouca. Após a morte de D. Branca, D. Pedro volta a contrair matrimónio, desta vez com uma dama per tencente a uma poderosa família aragonesa, D. Maria Ximenes, filha de D. Ximeno ComeI. Este matri mónio revelou-se infeliz para ambos, acabando numa separação. D. Maria ainda era viva em 1350, sendo referida no testamento de D. Pedro, sem que este a beneficie, pelo contrário, declara que qual quer testamento anterior que possa contemplar a condessa seja considerado nulo. A separação de bens entie os dois ocorre em 1347, data em que D. Pedro provavelmente já vivia com D. Teresa Anes de Toledo, dama da rainha D. Brites, nos seus paços da Beira. D. Teresa morre em 1350. O seu testamento, datado de 1348, indica D. Pedro como testamen teiro e manda que a sua sepultura seja aly hu o conde tever por bem epor sua vontade. Daqui se pode depreender que o local mais provável é São João de Tarouca, local escolhido pelo Conde para a sua sepultura e certamente onde gostaria de ver sepultada a mulher com quem partilhou os últimos anos precedentes à sua morte. No ano da morte de D. Teresa, D. Pedro manda redigir, como se referiu anteriormente, o seu último testamento (dos que temos conhecimento). O Conde expressa claramente a sua vontade atra vés das seguintes palavras: Mando enterrar o meu corpo no mosteiro de São Jodo de Tarouca (u) see assen tado o meu moimento. Daqui se depreende que a esta data o túmulo já estava concluído e colocado no devido local no interior da igreja pertencente ao conjunto monástico de São João de Tarouca. Assim, a encomenda corresponde necessariamente à vontade e às determinações de D. Pedro, o que é, neste caso particular, muito significativo para as conclusões que daqui se possam tirar. O Conde de Barcelos, sendo bastardo régio, ao escolher São João de Tarouca como locus sepulcral, não toma uma decisão verdadeiramente inédita, uma vez que no século anterior já o havia feito D. Urraca Afonso, sua tia, filha ilegítima de D. Afonso 1H com D. Urraca Abril, assim como os seus primeiro e segundo marido, respectivamente D. Pedro Anes e D. João Mendes Barredo. Para tal, fazem importantes doações ao mosteiro: D. Pedro Anes lega a São João de Tarouca a aldeia de Carvalho, ~.

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disposição confirmada pela viúva, para que pudesse ter em Tarouca sepultura e “de seu linhagem”; D. João Mendes de Barredo, de acordo com a mulher, doou diversas posses sões espalhadas pelos bispados da Guarda e de Tui, incluindo os padroados das respecti vas igrejas, com a condição de lhes darem sepultura na igreja do mosteiro, em frente ao altar de São Pedro, e de lhes mandarem cele brar duas missas quotidianas perpétuas pelas suas almas’’. Contudo, já antes, em 1227, uma sobri nha de D. Sancho i, D. Aldara (filha de D. Urraca Afonso, filha de Afonso Henriques), por documento de 9 de Fevereiro desse ano, escolhia sepultar-se no Mosteiro de São João de Tarouca, ao qual deixou, entre outros bens e direitos, a sua terça parte da vila de Avejro’2. Daqui se conclui que São João de Tarouca foi desde cedo um local escolhido pela nobreza, quer da que tinha ligações directas à casa real (filhos ilegítimos de monarcas e outros familiares), quer dos seus cônjuges, para lugar de sepultura. Tal como o seu pai, D. Pedro prefere uma ligação post mortem, na continuação das relações mantidas em vida, com uma casa de Cister. Neste contexto, há que ter em conta um novo interesse e sensibilização que se sentia em Portugal desde o reinado de D. Afonso Ir pelos rituais litúrgicos cistercienses13. D. Dinis, contrariamente aos seus antecessores, não escolhe o Mosteiro de Alcobaça para repouso eterno, mas sim Odivelas, mosteiro feminino de monjas bernardas que ele protegeu desde a sua fun dação. Nesta decisão seguiu-o a sua filha, D. Maria Afonso, igualmente filha ilegítima, cujo túmulo ainda podemos ver em Odivelas. Contudo, a primeira escolha de D. Dinis havia sido o mosteiro alco bacense, onde pretendia assentar o seu túmulo e o da sua mulher. Esta primeira decisão sofre para o fim da vida um revés, pois nem D. Dinis, nem a Rainha D. Isabel se encontram sepultados em Alcobaça. Com efeito, através do testamento do rei, podemos observar que este não deixa de contemplar os monges de Alcobaça com três mil libras para concertar a Igreja, e claustro com obrigação de encomen darem os Religiosos a Deos as almas de seu pay. e a sua. Esta é a segunda maior doação de D. Dinis em testamento a casas religiosas, sendo a mais significativa a que faz ao Mosteiro de Odivelas (quatro mil libras, paramentaria e ourivesaria sacra). Desta atitude do rei se depreende que apesar de escolher Odivelas para se sepultar, não deixa de dar extrema importância aos monges alcobacenses no que res peita à salvação da sua alma. D. Pedro Afonso poderia ter revelado a mesma intenção em ficar junto de D. Dinis e da sua meia irmã, mas não o fez. Poderia igualmente ter escolhido a Sé de Lisboa, como o fez sua mãe, D. Grácia, mas o facto é que D. Pedro manifestou sempre ao longo da vida, e inclusive nas obras literárias que

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Túmulo de D. Pedro Afonso, Conde de Barcelos. Mosteiro de São João de Tarouca. Foto IPPARIH. Ruas

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conhecemos, uma clara intenção de ser e ficar mais conotado com a família paterna, certamente pelo prestígio que daí lhe advinha. Não será necessário lembrar aqui a importância religiosa, económica, e até política que a Ordem de Cister tem na Idade Média Ocidental e de como as suas casas se tornaram rapidamente o local preferencial para a sepultura dos poderosos, transformando-se, em certos casos, em panteões reais. Considerado por alguns autores como o primeiro mosteiro cisterciense português, a fundação de São João de Tarouca não corresponde, tal como Salzedas ou Alcobaça, a uma determinação régia, emboia tenha desde cedo recebido benefícios dos vários monarcas, mas sim a uma vontade e esforço económico empreendido pela própria Ordem de Cister. O facto é que embora Alcobaça se tornasse o mais importante centro da vida monástica cisterciense em Portugal, São João de Tarouca foi sem pre uma das abadias fundamentais da Ordem em território nacional. Assim, a escolha do Conde de Barcelos não é pautada por uma vontade de se ligar no derradeiro momento da sua vida com a presença paterna ou materna, mas reflecte antes de mais uma vontade expressa de individualização do seu nome e da sua casa, escolhendo para tal um espaço religioso impor tante, distinto dos panteões reais, afastando-se dessa forma dos simbolos post mortem do poder iégio, e contemplando um local que estivesse conotado com a sua vida, com o espaço geográfico onde deteve mais influência e onde o seu túmulo pudesse ocupar um lugar destacado, bem visível e dificilmente ignorável. No que respeita ao túmulo do Conde de Barcelos existe um elemento a tratar na sua aborda gem que é, talvez, o mais revelador da personalidade deste homem. Uma vez que se trata de uma encomenda sua, tudo o que o constitui, corresponde a uma vontade individual que foi certamente respeitada pelos artífices, como é aliás compreensível dentro do esquema tradicional medieval entre encomendador e artífice. O que torna este túmulo mais singulai é a sua assombrosa dimensão. Alguns autores tentaram explicar esta enormidade pelo facto de se saber hoje, através da abertura do túmulo que se efectuou no século XVIII, levada a cabo pelos monges, que as ossadas mediam cerca de onze palmos e meio de comprimento, correspondendo, grosso modo, a um esqueleto com cerca de um metro e oitenta cen tímetros de altura. A verdade é que apesar de D. Pedro ter uma compleição física superior ao que era vulgar no tempo, não justifica só por si a encomenda de um túmulo que mede três metros e trinta e dois centímetros de comprimento. Se ainda hoje nos causam admiração as dimensões dos túmulos de D. Pedro 1 e de D. Inês de Castro, que medem em comprimento menos dez centímetros que o túmulo do Conde, muito mais admiração suscita este último, sobretudo porque não o vemos integrado num espaço com as dimensões da igreja do Mosteiro de Alcobaça. Este é, sem dúvida, o maior sarcófago português do século XIV, pelo menos dos que sobreviveram até à actualidade. Torna-se por isso evidente que este gigantismo corresponde a uma vontade plena de significado que norteou a encomenda do Conde, tratando-se claramente de uma intenção que teve em conta o impacto visual que o túmulo projecta, revelando a importância e magnificência do tumu lado. Para tal, o espaço da igreja do Mosteiro de São João de Tarouca servia claramente os seus propósitos, uma vez que as suas dimensões, algo reduzidas, comparativamente a Albobaça, por exemplo, proporcionam a sensação de imponência e grandeza pretendidas.

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Sobre os aspectos estilísticos e iconográficos, con sideramos que não é pertinente abordá-los no con texto do tema deste colóquio, uma vez que o túmulo, não obstante encontrar-se integrado num espaço da Ordem de Cister, não pode ser considerado arte cis terciense. Sobre estas questões remeto para os diver sos estudos realizados por outros autores, entre os quais se salientam os mais recentes da autoria de Pedro Dias’4 e Mário Barroca’5. Relembro apenas que a temática escolhida pelo Conde de Barcelos se inscreve num tipo de iconografia profana de carácter venatório ou cinegético, ilustrando cenas de uma caçada ao javali, iconografia que encontramos em diversos túmulos tardo-medievais portugueses, como forma de alusão à condição social dos respectivos defuntos. A heráldica está igualmente presente numa das testeiras do túmulo (representam o escudo português ligando D. Pedro, sem qualquer dúvida, à casa real) e os atributos do jacente (espada embainhada, esporas e lebreu aos pés) correspondem igualmente aos símbolos de nobilidade comuns aos jacentes de cavaleiros esculpidos neste período. O túmulo do Conde D. Pedro representa, acima de tudo, um esforço para vencer a morte, um esforço para sobreviver ao esquecimento do indivíduo na comunidade em que viveu e actuou, e um esforço de perpetuação do valor da linhagem e dos valores da nobreza. No que respeita ao conteúdo iconográfico, este representa, antes de mais, uma forma de propaganda e afirmação das principais actividades e valores tradicionais da nobreza medieval e, de alguma forma, a afirmação da classe nobre por oposição à casa real, como testemunho das frequentes lutas entre estas duas forças no que respeita ao poder e consequentes privilégios. Em conclusão, podemos encontrar nas motivações que levaram D. Pedro de Barcelos a escolher o Mosteiro de São João de Tarouca para lugar de sepultura vários factores que correspondem a dife rentes interesses por parte deste e por parte do referido mos teiro: factores de ordem geográfica, devido à proximidade da Honra de Lalim com o mosteiro; económica, se tivermos em conta a doação feita ao Conde por parte do mosteiro das já referidas Terras da Várzea e a administração pelo mesmo de umas propriedades em Santarém que haviam pertencido a D. Branca de Sousa e que esta doa a São João de Tarouca em testamento; de ordem defensiva, já que existe um comprome timento por parte de D. Pedro em defender e ajudar o mos teiro; literária, se atendermos à hipótese das obras da autoria de D. Pedro terem sido redigidas com o auxílio dos monges de São João de Tarouca; factores de tradição, pois já anteriormente outros elementos da nobreza e da bastardia régia haviam esco lhido o mesmo espaço para eterno repouso e, por fim, factores

Fig. 2

Túmulo de D. Pedro Afonso, Conde de Barcelos (pormenor). Mosteiro de São João de Tarouca. Pntn IPPARIH. Rijas

Es. 3 TúmuLo de D. Pedro Afonso, Conde de Barcelos (pormenor). Mosteiro de São João de Tarouca. Foin IPPARIH. Ruas

D. Pedro, Conde de Barcelos, e a escolha de São João de Tarouca como “locus” sepulcral

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que se relacionam com a notoriedade pretendida por D. Pedro, uma vez que sendo este um mosteiro de grande importância e prestígio dentro da família de casas cistercienses portuguesas, e podendo o túmulo do Conde D. Pedro ocupar aqui um lugar de destaque no interior da igreja, servia claramente as suas intenções. Sem que o tema se possa esgotar nestas breves paginas, uma vez que se trata de uma abordagem preliminar às ielações do Conde D. Pedro com o mosteiro cisterciense de São João de Tarouca, ficam abertas propostas de trabalho e seu consequente desenvolvimento para um futuro estudo de carácter mais profundo, quer no que respeita às fontes documentais, quer à própria iconografia do túmulo que por si só constitui uma importante e reveladora fonte histórica.

Notas ‘Ver Lindley Cintra, Crónica Geral de Espanha de 1344, vol. 1, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1951, e A. de Almeida Fernandes, A História de Lalim, Lamego, Câmara Municipal de Lamego/Junta de Freguesia de Lalim, 1990. 2 Da documentação referente a São João de Tarouca apenas se terá salvo do incêndio que destruiu o Arquivo de Viseu uma parte da documentação que não contempla o século xiv, reunida por A. de Almeida Fernandes, Taraucae Monumenta Histórica, Tarouca, Câmara Municipal de Tarouca, 1991. Ver Luís Krus, “PEDRO, D., Conde de Barcelos”, em Dicionário Enciclopédico da História de Portugal. vol. ii, Lisboa, Publicaçóes Alfa, 1991, pp. 91-92. Hipótese levantada por Braacamp Freire e rebatida por Lindley Cintra em oh. cit., p. 132. Esta informação permite-nos ainda reforçar a ideia defendida por Almeida Fernandes e Mário Barroca de que o pequeno túmulo que hoje se encontra no Museu Regional de Lamego, habitualmente identificado como o sarcófago de D. Branca, não o seja de facto. A verdade é que, mesmo sem a referência documental, esta arribuiçáo levanta sérias dúvidas, tendo em conta que a iconografia esculpida na arca, representando uma caçada ao javali, está, obviamente, relacionada com temas afectos ao mundo masculino da nobreza, evocando uma das suas principais actividades em tempos de paz e não com a iconografia habi tualmente expressa nos túmulos de mulheres da nobreza, geralmente de cariz religioso ou simplesmente heráldico. 6 Esta oferta não viria a realizar-se, uma vez que Afonso xi havia falecido três dias antes da redacção do testamento do Conde de Barcelos, situaçáo que este último devia desconhecer. Ver Frei Francisco Brandáo, Monarquia Lusitana, vol. vi, p. 424. 8 Idem, ibidem, p. 424. Ver Sousa Viterbo, C’alígrafos e Iluminadores Portugueses, p. 3. António José Saraiva, Obras. A Cultura em Portugal. Teoria e História, vol. li, Lisboa, Gradiva, 1991, p. 44. ~ M. da Costa Gonçalves, História do Bispado da Cidade de Lamego, vol. ii, Idade Média: Paróquias e Conventos, Lamego, 1979, ‘°

pp. 452-453. 12 Rosa Marreiros, “Os Coutos do Mosteiro de São João de Tarouca na Idade Média: sua organização administrativa e judicial”, em Bracara Augusta, Braga, 199 1-1992, p. 324. 13 Ver José Martoso, “O Culto dos Mortos no Tempo de São Bernardo”, em O Reino dos Mortos na Idade Média Peninsular, Lisboa, João Sá da Costa, 1995, pp. 87-107, e Saul António Comes, “Os Panreóes Régios Monásticos Portugueses nos Séculos Xli e xiii”, em 2.’ Congresso Histórico de Guimaráes, vol. 4, Guimarães, Câmara Municipal de Guimaráes, 1196, pp. 283-295. ‘~ Pedro Dias, “O Gótico”, História da Arte em Portugal, vol. 4, Lisboa, Alfa. IS Mário Jorge Barroca, “Sarcófago do Conde D. Pedro”, em Nos Confins da Idade Média. Arte Portuguesa Séculos XIJ-XV, Europália 91, pp. 137-138.

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