D. Pedro V e a visita ao Porto em 1861

October 6, 2017 | Autor: Pedro Martins | Categoria: History, Monarquia Portuguesa, Faculdade De Letras Da Universidade Do Porto
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A visita de D. Pedro V ao Porto (1861)

Pedro Joaquim Pereira Vieira Martins

Seminário em História Contemporânea Porto: 2011

Índice

Introdução

3

Estado da arte

5

Metodologia

9

1. O rei no norte

11

2. A anatomia do carácter

25

3. D. Pedro nas diferentes exposições: uma perspectiva comparada

31

Conclusão

37

Anexos

39

Bibliografia

44

Introdução Este trabalho para o seminário de investigação em história contemporânea centra-se na viagem do rei D. Pedro V à cidade do Porto, com o fim de inaugurar a exposição industrial de 1861. O que me levou a estudar esta viagem ao Porto, tendo em conta o meu interesse e admiração pela figura de D. Pedro, foi a indicação dada pelo professor Jorge Alves que circunscreveu o artigo a este acontecimento, enquadrando-o no conjunto das viagens do rei. Posteriormente, o facto de a visita real ao Porto não ser abordada na bibliografia levou-me a compreender a lacuna historiográfica existente, tentando este trabalho ser um pequeno contributo para o estudo deste reinado votado ao esquecimento. Explicitem-se agora os objectivos: 1) Dar a conhecer o percurso do rei (instituições visitadas), assim como a recepção da cidade e das elites portuenses; 2) Entender a importância da vista real ao norte do país (os contributos e projectos do rei) e da própria exposição industrial, sem esquecer a utilidade do discurso de inauguração proferido; 3) Compreender a complexidade do carácter de D. Pedro V e a forma como a historiografia, ao longo dos séculos XIX e XX, construiu diferentes imagens do soberano; 4) Comparar a exposição de Paris de 1855, onde o rei esteve presente, com a exposição industrial portuense para demonstrar a vitalidade e supremacia, organizativa e industrial, do Porto no contexto da Regeneração. Abre-se o artigo com o estado da arte, tendo como finalidade o entendimento do estado do conhecimento sobre este assunto, os diferentes autores que escreveram sobre D. Pedro V e as suas viagens e também o próprio conhecimento cumulativo que criaram. Segue-se um pequeno capítulo sobre a metodologia adoptada para trabalhar as fontes escolhidas. São utilizadas como fontes primárias os periódicos O Comércio do Porto e A Revolução de Setembro, procurando-se um cruzamento das notícias para se alcançar os objectivos propostos acima. O trabalho está organizado em três capítulos: 1) No primeiro, O rei no norte, contempla-se um conjunto de aspectos ligados à viagem, à visita real e à exposição industrial, tais como o modo de viajar, a recepção do povo e das elites ao rei, o carácter da exposição, o discurso de D. Pedro na inauguração, as limitações do seu olhar e finalmente a utilização desta viagem para inaugurar igualmente as obras do palácio de cristal; 2) No segundo, A anatomia do carácter, aponta-se os traços mais relevantes da personalidade do rei, sintetizando um conjunto de ideias que as fontes também dão conta e que foram sendo exploradas no primeiro capítulo (as marcas de

“santidade”, a construção romântica da figura real e o cunho de outras características como liberal e progressista). 3) Por fim, no terceiro e último capítulo, D. Pedro nas diferentes exposições: uma perspectiva comparada, tenta-se uma comparação entre as visitas de D. Pedro à exposições de Paris de 1855 e à do Porto em 1861, abordando as secções da indústria e das belas artes, com o intuito de se compreender o papel do Porto no contexto nacional da época, bem como o papel impulsionador do rei.

Estado da arte A bibliografia que versa sobre a vida e o pensamento de D. Pedro V é numerosa, apesar de tão curto reinado. Os diários e a correspondência deixadas pelo monarca permitiram aos historiadores reconstituir grande parte do seu pensamento, a nível político, pedagógico, militar, etc. Para realizar este estado da arte, impõe-se o desafio de mapear e criticar a produção académica sobre este tema, neste caso, como se olhou para este reinado ao longo do tempo. De uma forma geral, a historiografia do século XIX e das primeiras décadas do século XX deixou para a posterioridade uma imagem de santidade do rei, como o comprova a vasta literatura de carácter hagiográfico, as imensas orações fúnebres1 e o sentimento de perda por parte do povo que atravessa essas obras (Júlio de Vilhena foi o primeiro a tentar escrever de uma forma mais isenta sobre o reinado de D. Pedro porque, tal como Filomena Mónica notou2, ainda se recordava das constantes lutas entre o monarca e os regeneradores). No que toca ao núcleo epistolar, a partir dos anos 50 do século XX, Rúben A. publicou a maior parte das cartas de D. Pedro para os seus vários correspondentes, assim como parte dos seus diários de viagem ao estrangeiro. Esta tarefa foi depois complementada por Filomena Mónica e Fortunato Queirós, tendo o professor publicado os cinco Livros de Lembranças que fazem parte de um núcleo de manuscritos. Numa breve análise3, Filipa Vicente refere que percorrer este corpus documental é uma tarefa labiríntica, uma vez que a enorme produção escrita do rei foi sendo publicada em diferentes momentos do século XX, e está dispersa por diversas bibliotecas, arquivos e obras (algumas delas lacunares). Todavia, num novo empreendimento, uma boa parte de toda esta anterior produção bibliográfica foi utilizada na mais recente biografia de D. Pedro V, escrita por Maria Filomena Mónica, que não só congrega os diversos elementos dispersos sobre o reinado como também traça um perfil psicológico, uma análise do carácter e da personalidade do rei. A autora tenta encontrar um equilíbrio entre essa análise psicológica e os acontecimentos do reinado, embora previna que o facto da conjuntura na qual a personagem se movimentou ainda estar por estudar, dificulte essa tentativa.4 Igualmente todos aqueles que escreveram sobre D. Pedro V, de uma forma geral, tendem a acentuar a dualidade das suas posições face ao reinado: por um lado, uma posição objectiva que refere aquilo que foi e não foi feito; e por outro, uma hipotética, que tenta reconstituir o que teria acontecido, se o reinado tivesse sido mais extenso. Concretamente, a infância e a adolescência do monarca ficaram marcadas por uma série de acontecimentos turbulentos que exerceriam uma influência decisiva no futuro: o 1

LETÃO, 1964 MÓNICA, 2005: 7 3 VICENTE, 2003: 126-127 4 MÓNICA, 2005: 8 2

pronunciamento militar em Castelo Branco, a restauração da Carta Constitucional por Costa Cabral, a revolta setembrista em Torres Novas, a “Maria da Fonte”, a Patuleia e o golpe da Regeneração.5 Todavia, o jovem rei cresceu rodeado por livros e ilustres mestres, sendo preparado para reinar. É unânime a sua precoce inteligência, bem como as notas máximas e os louvores. Em 1852, empreendeu, com os pais, a primeira viagem ao norte do país e a sua opinião não difere muito dos estrangeiros que visitavam Portugal. A consciência da sua superioridade face ao país começava a emergir, odiando a corrupção política, o obscurantismo do povo e a desorganização que imperava.6 Seguiram-se as suas viagens para instrução ao estrangeiro, iniciadas em 1854, após a morte da mãe, D. Maria II e já durante a regência do pai, D. Fernando. Estas viagens não foram de menor importância, já que tudo o que viu e aprendeu no estrangeiro seria de uma enorme utilidade para a sua formação e para as suas futuras ideias, como a introdução dos caminhos-de-ferro e do telégrafo, o desenvolvimento das estradas e a atenção especial que a educação lhe mereceria.7 Ele viajara antes de assumir a sua Alta Magistratura, e fizera-o com o intuito de aprender, de sentir o pulso da Europa; quis preparar-se para a governação de um País que ele sabia atrasadíssimo e que desejava impulsionar. Estudou, preparou as suas notas antes de iniciar as viagens dos anos 1854 e 1855. Correu as cortes da Europa, visitou museus, escolas e arsenais militares, fábricas, asilos; perguntou muito e tomou apontamentos com a sincera admiração daqueles que o receberam. Espantou-os aquele moço que mostrava ter conhecimentos muito desenvolvidos….8

Desde que subiu ao trono em 1855 e até à sua morte em 1861, o seu reinado caracterizou-se por uma relativa acalmia política, embora o rei tenha usado todos os pretextos para intervir na vida política9. D. Pedro nunca compreendeu verdadeiramente a fórmula de Thiers que o liberalismo adoptou, em que o “rei reina mas não governa”. Não tolerava limites ao seu poder, mas sempre afirmou querer ser um verdadeiro rei liberal. Aboliu o antigo beija-mão real por considerar um ritual caduco do antigo regime absoluto e criou uma caixa de correspondência para que pudesse receber os requerimentos para obter socorros ou esmolas dos seus súbditos. D. Pedro foi igualmente o único rei a escrever e a manter polémicas nos jornais10, tendo escrito, anonimamente, dois controversos artigos sobre os caminhos-de-ferro na Revista Militar.11 Esta sua crença, partilhada por Fontes, que o país necessitava da revolução dos transportes como primeiro passo para o desenvolvimento económico, levou o monarca inclusive a criticar a inércia dos políticos portugueses. É de resto durante o seu reinado que se inaugura mais um troço da linha do caminho-de-ferro.

5

MÓNICA, 2005: 40 MÓNICA, 2005: 48 7 VICENTE, 2003: 42 8 COSTA, 1877: 59 9 “Por fim, até o poder moderador, depositado nas mãos de um rei sábio e justo, saia da órbita das suas atribuições, ingerindo-se constantemente na função do poder executivo”, em VILHENA, 1921: 7 10 LEITÃO, 1965 11 MÓNICA, 2005: 178 6

Outra área onde o rei interveio, não só teorizando mas igualmente tomando medidas concretas, foi a instrução. Também aqui, aquilo que observou no estrangeiro foi decisivo para as soluções que preconizou, depois de ter identificado as lacunas do nosso ensino.12 Fortunato Queirós refere que, neste campo, a larga visão de D. Pedro estava muito adiantada em relação à dos políticos do seu tempo.13 A sua realização mais famosa, sempre referida em todas as obras, é a criação do Curso Superior de Letras em Lisboa. Contudo, este foi apenas um “balão de ensaio pedagógico”14, assim como a Real Escola de Mafra, exemplo de como D. Pedro alargou a sua acção ao ensino primário. Em relação à Universidade, o rei defendeu a sua abertura a todos, embora com um carácter selectivo no que respeita ao aproveitamento dos alunos. A criação de outros pólos universitários foi outra das soluções apontadas, assim como o próprio apetrechamento material da Universidade de Coimbra e a sua actualização em termos de missão e programas.15 Outras medidas interessantes foram o envio de bolseiros ao estrangeiro, com o intuito de aprenderem o que de mais moderno se fazia, nos campos da investigação, da técnica e da instrução. O caminho inverso fizeram os estudantes das colónias do Ultramar para que, no regresso, pudessem exercer o magistério local e para lá foram enviados alguns livros para as escolas primárias. A Direcção-Geral da Instrução Pública, criada nesta época sob influência do monarca, demonstra toda uma planificação educativa e uma nova heterogeneidade representativa que conduziria ao futuro Ministério da Educação.16 Por fim, os assuntos militares também foram examinados, área onde o rei possuía extrema competência. Criticando severamente o sistema de recrutamento, onde os filhos dos mais ricos conseguiam sempre escapar, D. Pedro afirmava que a igualdade social teria de ser a base deste sistema, até para que o exército fosse composto por gente capaz. Aliás, na defesa do mérito como base da promoção social, criticando acerrimamente a “cunha”17, foi dos poucos a bater-se por tal. As chefias do exército também mereceram críticas devido à sua abundância e impreparação, assim como existiram numerosas referências ao estado da marinha, à compra de novo material bélico e às reparações das fortalezas em torno da capital.18 Em termos de política interna, permaneceu sempre a imagem de D. Pedro como um rei ilustrado e independente, recusando abertamente todos os subtis mecanismos que permitiam aos executivos governarem com estabilidade (as “fornadas de pares” são um exemplo). A composição dos governos, durante o seu reinado, pendeu mais para os Históricos, com dois governos liderados pelo seu tio-avô, o duque de Loulé (o primeiro de 1856 a 1859 e o segundo de 1860 a 1865), embora sempre tenha desprezado a maioria dos políticos portugueses. 12

QUEIRÓS, 1972: 48 QUEIRÓS, 1972: 36 14 QUEIRÓS, 1972: 44 15 QUEIRÓS, 1972: 39 16 QUEIRÓS, 1972: 30 17 “Os casos em que se opôs a cunhas encheriam um livro”, em MÓNICA, 2005: 204 18 MÓNICA, 2005: 142-144 13

Mais importante foi a influência que Alberto, príncipe consorte e marinho da rainha Vitória, exerceu sobre o sobrinho, como comprova a correspondência trocada19, tendo a autora o qualificado inclusive como co-regente de Portugal. Em relação às viagens que empreendeu pelo país, já enquanto rei, até porque tal diz directamente respeito ao tema escolhido, poucas são as referências na bibliografia. O artigo “As exposições industriais do Porto nos meados do século XIX”20 apresenta algumas menções à viagem de D. Pedro V ao Porto para inaugurar a exposição industrial de 1861. Igualmente a pequena obra “D. Pedro V e o Porto no tempo do muito amado”21 condensa algumas informações sobre o seu reinado, directamente relacionadas com o Porto, como é o caso das suas visitas em 1860 e 1861, enfatizando sobretudo a inauguração das obras do palácio de cristal portuense. Assim, relembrando as palavras de Filomena Mónica de que a conjuntura está por estudar e tendo em conta a lacuna referente a esta viagem de 1861, o trabalho insere-se precisamente aqui, numa tentativa de dar um pequeno contributo para melhor se compreender em que contexto se insere esta viagem e de que forma D. Pedro V apoiou estas tentativas, demonstradoras de um arranque industrial.

19

MÓNICA, 2000 ALVES, 1994 21 ALLEN, 1962 20

Metodologia Cumpre agora explicitar a metodologia que será aplicada neste trabalho, tendo em conta o corpus documental que servirá de suporte. Não esquecendo que este artigo se circunscreve a um acontecimento muito específico, a viagem de D. Pedro V ao Porto em 1861, esta temática será trabalhada através da imprensa da época, neste caso, apenas dois jornais: O Comércio do Porto e A Revolução de Setembro. As balizas temporais desta análise são entre os meses de Agosto e Setembro de 1861, tendo a visita decorrido entre os dias 24 de Agosto e 4 de Setembro. No que diz respeito às notícias analisadas, existe uma secção própria onde se acompanha a viagem do monarca (Boletim de Viagem e o Boletim de Estada) e as notícias da exposição, que serão também alvo de uma sumária análise no que toca à estrutura conferida (divisão gráfica) antes da escrita da informação, pelo próprio jornal. Concretamente, o tamanho dos artigos e o local onde foram arrumados no jornal podem traduzir a importância que, em última instância, os produtores da informação deram ao acontecimento. Definido o corpus documental, a técnica de análise seleccionada para trabalhar a fonte é a análise de conteúdo, mais concretamente a análise temática. O objectivo da sua utilização é “desconstruir” o discurso, uma vez que ambos os jornais formularam uma concepção sobre a viagem à Exposição e sobre o próprio rei que não podem ser apreendidos na “leitura normal do leigo”. Tentar-se-á então captar o oculto, o latente, o potencial de inédito (do não-dito) da mensagem”22. Em primeiro lugar, é necessário definir as duas vertentes que foram seleccionadas como objectos de análise de conteúdo: D. Pedro V e a viagem. Guiando-me pela ordem deste procedimento metodológico, definido por Bardin (“Análise de Conteúdo”), as notícias que constituem o corpus da investigação serão analisadas para que, através da sua leitura, seja possível enumerar as unidades de registo, ou seja, a unidade de base, pronta para a categorização. Ao construir um corpus de hipóteses, com o apoio da bibliografia consultada (quadro teórico) e de uma primeira leitura “flutuante”23 da fonte, recortar-se-á o texto em função de temas eixo (o referente) “agrupando-se à sua volta tudo o que o locutor exprime a seu respeito”24. Tendo em conta as unidades de registo, torna-se essencial determinar as unidades de contexto, o que em termos históricos significa “o contexto histórico”, as “estruturas sociais e/ou o universo simbólico no qual se insere (m) o (s) discurso (s) analisado (s)”25. Com as unidades de registo isoladas, estabelecer-se-ão as categorias (“a categorização é uma operação de classificação de elementos constitutivos de um conjunto, por diferenciação e, seguidamente, por reagrupamento segundo o género (analogia), com os

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BARDIN, 1977: 9 BARDIN, 1977: 98 24 BARDIN, 1977: 106 25 CARDOSO; VAINFAS, 1997: 547 23

critérios previamente definidos)26 e estas serão agrupadas por temas, seguindo um exemplo sugerido na obra de Bardin27 mas que foi adaptado a este modelo de análise e pretende ser suficientemente elástico para, se necessário, modificar-se ao longo do trabalho (ver quadro). É importante sublinhar que, a partir das unidades de contexto, algumas das categorias exemplificadas no quadro foram criadas e então arrumadas posteriormente por temas. Isto implica definir conceitos e explicitá-los ao longo do trabalho, como é o caso da possibilidade de D. Pedro ser visto como um rei progressista: o progresso aqui já não é o conceito do século XVIII, o progresso pelo saber mas “o progresso pelo trabalho e pela indústria”28.

1º tema A viagem ao Porto (o programa, o itinerário, o ambiente, o acolhimento) 2º tema D. Pedro, o visitante (atitude, contributos, projectos, limitações do olhar, discurso) 3º tema D. Pedro, o rei (liberal, progressista, santo) 4º tema Os ócios (a gastronomia, as condecorações, os presentes, os bailes) Por fim, no que toca ao discurso do monarca mensurei (sem excluir uma leitura qualitativa), através da frequência com que as palavras, associadas às categorias que defini, apareceram nas notícias, o que possibilitou descobrir as tendências temáticas do discurso. Evidentemente que um artigo deste alcance limitado não pretende esgotar as numerosas hipóteses que se poderiam levantar mas apenas abrir caminho para se estudar esta viagem e esta figura, servindo então para exemplificar e ilustrar. Em suma, com a utilização deste modelo pretende-se “estabelecer uma correspondência entre o nível empírico e teórico, de modo a assegurar-nos […] que o corpo de hipóteses é verificado pelos dados do texto”29. Na última parte, utiliza-se o novo contributo de Filipe Vicente sobre as viagens de D. Pedro V30, mais especificamente sobre a sua visita à exposição de Paris, seguindo-se então uma metodologia fundamentada na análise bibliográfica e posterior cruzamento com as informações da visita à Exposição Industrial do Porto. Assim se poderá comparar este tipo de iniciativas que se desenvolviam na Europa com aquelas que se organizaram em Portugal, até para questionar algumas visões tradicionais da historiografia portuguesa sobre a falta de iniciativa privada e a inexistente industrialização em Portugal.

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BARDIN, 1977: 177 BARDIN, 1977: 126 28 VIEIRA, 2001: 11 29 BARDIN, 1977:69 30 VICENTE, 2003: 245- 321 27

1. O rei no norte A viagem de D. Pedro V ao norte do país em 1861 tem como principal objectivo a inauguração da exposição industrial portuense, embora não se esgote apenas neste acontecimento. É de grande utilidade para o leitor conhecer o roteiro da viagem ao norte e compreender o significado desta exposição, no fundo o contexto no qual se insere a viagem. Em relação ao roteiro, o rei permaneceu no Porto entre os dias 24 e 28 de Agosto, partindo na madrugada do dia 29 para Braga, onde se demora até ao dia 2 de Setembro. Retorna, às 10 da manhã do referido dia, ao Porto e partirá para Lisboa definitivamente no dia 4 de Setembro. No que concerne à exposição industrial, planeada desde 1860, esta decorreu no Palácio da Associação Comercial, ou da Bolsa, entre os dias 25 de Agosto e 16 de Setembro de 1861, dedicando oito galerias, numerosas salas e o pátio à exibição dos produtos, um autêntico estado da arte da indústria nacional ou “verdadeiro recenseamento das forças produtivas do país”31. Contudo não foram somente industriais portugueses a exibirem os seus produtos mas igualmente espanhóis (maioritariamente catalães) e brasileiros, existindo algumas semelhanças, devido à concorrência destes produtos estrangeiros, com as complexas exposições universais e internacionais32. O acontecimento inscreve-se então na lógica expositiva do século, onde a indústria, o progresso e o trabalho, valores essenciais do liberalismo, se assumiam como estandartes da própria época. Assim, a capacidade para organizar este tipo de eventos, ou seja, de exibir e classificar os produtos segundo os critérios mais actuais, torna-se também um divisor entre os países civilizados e aqueles que não o são, sendo o avanço e a capacidade industriais a medida comparativa33 para determinar o lugar de um país nas hierarquias da civilização. Não é por acaso que é o Porto que se apresenta como a cidade que desenvolve este tipo de iniciativas, sendo considerada a mais industrial das cidades portuguesas34. Tal como o monarca refere no discurso de abertura: “Nesta feliz diversão aos hábitos da nossa vida pública, cabe o melhor quinhão a esta cidade, a primeira em todas as lides, em todas as iniciativas úteis e fecundas”35.

Note-se que já no ano anterior, em 1860, D. Pedro esteve no Porto, sem aviso prévio, para visitar a exposição agrícola. O monarca criou um laço com a cidade que haveria de perdurar muito para além da sua morte36, tendo apoiado incondicionalmente todas as acções que visavam o desenvolvimento e o crescimento, quando se tentava ultrapassar o estado de depressão que o país vivia no início da segunda metade do século XIX. Em suma, esta viagem não é apenas um mero passeio ou favor do monarca para inaugurar uma exposição mas simboliza todo um conjunto de acções e esforços que se desenvolveram na cidade do Porto e que foram reconhecidos pelo governo e por D. 31

O Comércio do Porto de 17 de Setembro de 1861 PIMENTEL, 1861: 253 33 VIEIRA, 2001: 11 34 VICENTE, 2003: 271 35 A Revolução de Setembro de 26 de Agosto de 1861 36 ALLEN, 1962: 28-29 32

Pedro V, daí que a expressão “verdadeira festa nacional”37 se adeqúe tão bem a um evento desta natureza.

A viagem nos jornais As notícias que dão conta da viagem e da estadia do monarca na cidade do Porto são numerosas e estão arrumadas de forma diferente em ambos os jornais analisados. O Comércio do Porto dá um enorme destaque à viagem e permanência de D. Pedro V, criando mesmo uma secção própria (Boletim de Viagem e Boletim de estada), tendo em alguns dias lançado inclusive suplementos anexos ao jornal, onde se relata detalhadamente os acontecimentos, seguindo portanto os passos do rei. A exposição é também alvo de uma secção própria e aparece frequentemente na primeira página de cada dia, como seria de esperar. O jornal abraça assim esta iniciativa e, como voz do norte, inclui a exposição e a visita real nos lugares de maior relevo. Quando se analisa A Revolução de Setembro constata-se rapidamente como o outro jornal é a referência, uma vez que são várias as citações que faz ao longo dos dias. É por isso possível que a sua perspectiva dos acontecimentos tenha sido condicionada pelo outro periódico que podia “in loco” acompanhar os eventos diários. Todavia, este jornal não deixou de formular os seus juízos sobre esses acontecimentos, como se pode constatar através desta caricata passagem: “No domingo, quando S.M. assistia ao espectáculo do teatro Baquet, houve um conflito entre o governador civil e o presidente da câmara municipal por causa da precedência dos camarotes […] A questão foi debater-se nos corredores para não incomodar os espectadores, e gastou-se ali legislação sobre o grave assunto, citaram-se autores de nomeada, foram chamadas as ordenações do reino, com um calor tal, que a cena já começava a ter espectadores. Por fim (oh! maravilhosa resolução) o governador civil convidou para o seu camarote o presidente da câmara, e a ordem restabeleceu-se”.38

A ironia empregue no relato do sucedido evidencia a forma como o jornal ajuizava e comentava o que se ia passando no norte. Aliás, esta notícia está enquadrada na secção “Chronica das províncias”, arrumada normalmente na terceira página do jornal, o que é sugestivo e reforça o que anteriormente foi dito. Analisando as notícias de A Revolução de Setembro constatamos rapidamente que a “Chronica” (das províncias, notícias da corte, viagem d’ el-rei e el-rei no Porto) é a secção criada para acompanhar a visita real e a exposição, havendo raramente um destaque de primeira página, o que traduz a importância secundária que o jornal lhes concedeu. Por fim, referir que é evidente que as ideologias dos dois jornais estão subjacentes ao processo da produção da informação. O Comércio do Porto, como jornal da cidade e activa voz do norte, não deixaria de noticiar, de forma detalhada, este universo vital de acontecimentos para o Porto. A Revolução de Setembro, embora já na sua fase mais moderada mas sem perder a atitude crítica, relega para segundo plano estes eventos que se passam no norte. 37 38

PIMENTEL, 1861: 252 A Revolução de Setembro de 26 de Agosto de 1861

O caminho para o Porto D. Pedro V, ao contrário do que inicialmente se esperava, viajou “numa carruagem mala posta”39, saindo de Lisboa às 3 horas da tarde do dia 22 de Agosto, parando em Caldas da Rainha, Leiria e Condeixa, até Oliveira de Azeméis, onde chegou no dia 23, pelas 8 horas e 37 minutos, pernoitando lá. Entrou finalmente no Porto no dia 24 de Agosto por volta das 3 horas da tarde. No regresso, voltou de barco, no vapor Mindello, para Lisboa. A morosidade da viagem e ambos os modos de viajar, a partida e o regresso, remetem para um dos temas mais discutidos durante o reinado de D. Pedro V e os seguintes: as vias de comunicação e, em especial, as linhas dos caminhos-de-ferro. É consabido que a ligação entre Lisboa e Porto só será concluída em 1864, já depois da morte do soberano mas durante o seu reinado houve uma extensão da linha ferroviária, tendo-se empenhado para que o país realizasse a dita revolução dos transportes, condição essencial para a sua modernização. Inclusive, nesta viagem, o rei aproveita um dos últimos dias para inspeccionar as obras das linhas férreas em Valadares40. A sua atenção para esta matéria foi reforçada pelas suas viagens ao estrangeiro que lhe deram uma outra perspectiva do atraso do país. Para começar, D. Pedro partiu de barco, já que Lisboa não se encontrava ligada à Europa por essas linhas que definiam os caminhos do progresso e da civilização. Uma vez viajando pelos diferentes países e até mesmo dentro deles, o então jovem príncipe tomou nota nos seus diários da profunda mudança que o comboio trouxe, a transformação dos ritmos da viagem e da própria percepção de um mundo que nunca tinha sido visto a tal velocidade41. Numa passagem do diário de viagem, o seu pensamento sobre uma das mais importantes invenções do século XIX está bem patente, apesar de estar consciente da resistência por parte de algumas das elites portuguesas: “em quanto não tivermos ao menos um caminho-de-ferro que nos una com o mundo civilizado, em quanto tivermos bestas que escrevam que um caminho-de-ferro que nos una com a Espanha ameaça a nossa independência, e que os vagões dos caminhos-de-ferro não podem conduzir grandes pesos, renunciaremos a ser coisa alguma, pois tornamo-nos uns bárbaros e pertenceremos assim só de facto mas não de direito ao Continente Europeu”.42

Se a união com a Espanha através das linhas férreas era vista como uma ameaça, a ligação entre Lisboa e o norte do país traria o declínio da navegação, segundo a opinião de muitos. Assim podemos observar a forma como o comboio se tornou em mais um instrumento, no século XIX, para medir o avanço e o progresso de um país, fazendo parte de um conjunto de elementos que distinguiam os países civilizados dos países “bárbaros”.

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O Comércio do Porto de 23 de Agosto de 1861 O Comércio do Porto de 2 de Setembro de 1861 41 VICENTE, 2003: 67 42 VICENTE, 2003: 72 40

Esta constante comparação entre nós e os outros está presente ao longo dos diários do príncipe, assim como estará presente em todas as suas acções do rei, com vista a aproximar o país da Europa que conheceu e que era considerada o arquétipo da civilização.

A recepção ao “muito amado” A forma como D. Pedro V foi recebido na cidade pode traduzir o laço que o rei forjou com estas gentes, embora seja sempre complicada a tarefa de decapar as construções que se criaram através destas narrativas dos jornais. Porém, aquando da construção do quadro teórico surgiram diversas pistas, através da bibliografia consultada, da aproximação do rei aos seus súbditos e do respeito e até admiração que estes lhe nutriam. Os surtos de cólera e febre-amarela que Lisboa conheceu respectivamente nos anos de 1856 e 1857 levaram o alto funcionalismo público, bem como o próprio patriarca, negociantes e a maior parte da elite lisbonense a sair da cidade. Todavia o rei permaneceu, visitando os hospitais e estando juntos dos doentes, contra o conselho de todos os que o rodeavam, o que lhe granjeou a admiração e elogios de todos os quadrantes, inclusive de Rodrigues Sampaio que a esse respeito escreveu: “Reinar por direito de nascimento pode ser obra do acaso; reinar pela força da revolução pode ser obra da fortuna; reinar pelo voto popular pode ser ilusão das maiorias; mas ser digno de reinar é mais do que ser rei e bem o merece ser quem faz tão bom uso do que é seu”.43

O povo jamais se esqueceria daquele rei que se arriscava para visitar os moribundos e tal ficou evidenciado no seu funeral, bem como na quantidade de orações fúnebres a ele dedicadas e na sua posterior imagem de santidade que a literatura de carácter hagiográfico traçou. Apesar de toda estas construções da imagem do rei, o que importa demonstrar é até que pontos os jornais analisados traduzem uma grandiosa recepção por parte da cidade, não apenas pela vinda de um rei para inaugurar um evento muito significativo para o Porto mas sobretudo pela vinda em especial de D. Pedro V, o rei “que trazia a fronte aureolada por actos de coragem e dedicação sem par, praticados durante a formidável e pavorosa epidemia de febre-amarela na capital do reino”44. Os jornais são bem explícitos sobre a recepção que se preparava e o entusiasmo que se vivia na cidade: “As comissões de ruas nomeadas pela câmara municipal do Porto para promoverem as demonstrações de regozijo público por ocasião da visita de S.M. àquela cidade, têm cumprido de um modo muito satisfatório a sua missão. Preparam-se diferentes ruas, esplêndidas iluminações, e algumas são decoradas para a chegada dos reais hóspedes”.45

Atente-se nas palavras utilizadas que remetem sempre para uma verdadeira festa, “desde o alvorecer começou o grande movimento preparatório da festa de tão grande dia”46, como se toda a cidade aguardasse a vinda do soberano. 43

MÓNICA, 2005: 161 ALLEN, 1962: 22 45 A Revolução de Setembro de 25 de Agosto de 1861 46 Suplemento d’ O Comércio do Porto de 25 de Agosto de 1861 44

O Comércio do Porto, através do suplemento, dá-nos conta da grande recepção real, com os adornos nas ruas: “Nas ruas destinadas a esse trânsito [da comitiva régia] a murta, as flores, as sedas, os arcos e os festões e as milhares de bandeiras por toda a parte”.

Mais interessante é a própria concepção de “verdadeira manifestação nacional”, concepção que se liga aos princípios liberais do século, estando representados tanto as classes mais abastadas como o povo: “… a beleza e a mocidade das classes favorecidas da fortuna foi admirada no quadro dos mais elegantes e custosos trajes”, enquanto “a beleza e a mocidade das classes que mais trabalham e menos gozam, se adornavam com o melhor que possuíam”.47 A sua recepção também se mostrou entusiasta, já que “por toda a parte onde SS. M. A. apareciam, o povo se apinhava e corria para os ver, não se cansava de manifestar com entusiásticos vivas o contentamento de que está possuído”48. Igualmente no dia 26, à noite, o jornal dá-nos o percurso do monarca desde a rua das Flores, onde “foi acompanhado por grande quantidade de povo e pelas pessoas que tinham formado alas com as tochas”, subindo para a rua da Almada “sempre vitoriado por uma grande quantidade de cidadãos”, seguindo para a praça de Carlos Alberto e “dali para a rua dos Clérigos, dignando-se suas M. e A. subir ao adro da igreja, que estava devidamente acomodada para o receber, e dali poder observar o belo efeito da iluminação da calçada dos Clérigos e do fogo de vistas que teve lugar na mesma rua”49. Esta questão da iluminação a gás de certas ruas também merece menção, sendo múltiplas as referências n’ O Comércio do Porto sobre a beleza da iluminação nocturna da cidade (curiosamente esta começou a ser iluminada a gás em 1855, ano da aclamação de D. Pedro V)50. Este sinal de progresso, constituindo um acréscimo e melhoramento fantásticos, não podia deixar de ser integrado neste corpo de notícias que não escapou ao elogio normal do jornal local à sua cidade e, mais importante, às tendências de quantificar o progresso, típicas do século XIX. Atente-se também no facto da figura central das notícias ser sempre o rei, isto é, foi à volta desta personagem principal que se construiu a narrativa da viagem e da inauguração da exposição, quase como se todos os que o acompanhavam fossem invisíveis, não merecendo o cuidado de serem referidos (ou quando o são apenas como meros acompanhantes), estando entre a comitiva o infante D. João, o ministro das obras públicas, o marquês de Ficalho e o general Caula. Personalidades que foram referidas mas nunca integradas nessa narrativa, o que nos demonstra a valorização da figura real e a sua importância nos acontecimentos (o governo foi portanto deixado num segundo plano). Pelas diferentes componentes que foram abordadas nesta recepção, constata-se facilmente o grande acolhimento de que foi alvo D. Pedro V, com grande entusiasmo e pompa, o que vem confirmar aquilo que, à partida, o quadro teórico explicitava sobre a grande ligação do monarca com os seus súbditos. 47

Suplemento d’ O Comércio do Porto de 25 de Agosto de 1861 O Comércio do Porto de 25 de Agosto de 1861 49 O Comércio do Porto de 27 de Agosto de 1861 50 ALLEN, 1962: 13 48

As elites também acolhem o rei Se toda a cidade se preparou antecipadamente para a vinda do rei e o povo o recebeu entusiasticamente, os jornais também dão conta de um conjunto de actividades, preparadas pelas elites portuenses, dedicadas ao soberano, constituindo-se como momentos de lazer ou pausa na verdadeira missão da visita real, aquilo que se poderia designar como os ócios. Reflectindo um pouco sobre a visita real em si, esta tem um carácter essencialmente político e social, aproveitando o monarca não só para inaugurar a exposição industrial mas também para ver um conjunto de instituições que mais à frente se abordarão. Existe, portanto, uma dimensão diplomática nesta viagem de um monarca a uma das partes do seu reino e, como tal, é entendida como uma oportunidade para sobretudo as elites demonstrarem a sua riqueza, o seu apreço pelo rei e o nível de desenvolvimento da sua cidade, já de acordo com os critérios do século. Assim se deve compreender este conjunto de manifestações tão diversificadas que funcionaram como actividades culturais e recreativas e simultaneamente constituíram uma pausa na verdadeira visita, tendo D. Pedro aceite todos os convites, sinal esclarecedor da sua proximidade com a burguesia portuense. O programa destas actividades foi divulgado pelos jornais, tendo o rei assistido logo no dia 24 a um espectáculo da companhia portuguesa no teatro S. João, enquanto no dia 25 deslocou-se ao teatro Baquet, onde representou a companhia nacional de ópera cómica, tendo lá voltado algumas vezes em dias posteriores para assistir a representações de diferentes companhias. No dia seguinte, antes da partida para Braga, a assembleia portuense organizou um baile dedicado ao rei, tendo a associação britânica organizado outro no dia 2 de Setembro. No baile da associação portuense, os jornais dão nos conta que “S.M. el-rei dignou-se a abrir o baile dançando uma contradança com a Sr.ª marquesa de Monfalin… sendo três horas e um quarto da noite suas M. e A. retiraram-se para o paço”51. Isto traduz a animação destas galas e, embora o monarca tenha agraciado todas com a sua presença, nunca dançava depois da abertura, preferindo ficar a um canto conversando com as diferentes personalidades presentes. Isto remete-nos para outra construção em torno da figura do rei, neste caso um estereotipo bem definido no que toca à masculinidade, sempre visto como um homem sério e intelectual, não demonstrando grande interesse pelo sexo feminino, construção simplista e típica das construções biográficas do século XIX52 . Outro momento que cumpria essa aproximação entre o rei e as elites eram os eventos gastronómicos. Tendo a iniciativa, o rei convidou sempre um conjunto de distintas personalidades que os jornais anunciaram, em longas listas, ao longo da estada real no Porto. Desde as autoridades municipais, passando pela direcção da associal industrial e comissão da exposição, diversos industriais, deputados, directores das diferentes escolas 51 52

O Comércio do Porto de 28 de Agosto de 1861 VICENTE, 2003: 319

até ao governador civil do distrito e altas patentes do exército, sem esquecer as comissões espanholas que estavam presentes na exposição. Assim se constata a heterogeneidade representativa nestes almoços e jantares, o que indicia a vontade do rei em aproveitar a oportunidade concedida pela viagem para estabelecer diferentes ligações e colocar-se a par dos diversos assuntos que diziam respeito ao norte do país, nem sempre ligados à governação mas todos conectados ao progresso e ao desenvolvimento. No seguimento do referido anteriormente, o rei cumpriu igualmente as suas obrigações, típicas do protocolo, ao receber no paço diversas pessoas e entidades, como “a câmara municipal, associação comercial, e outras corporações e cavalheiros”53. Tendo em conta a referência ao local onde a comitiva ficou alojada, será frutífero mencionar que a família real não possuía no Porto qualquer paço ou residência própria, pelo que D. Pedro adquiriu o Palácio das Carrancas, propriedade da família dos Barões de Nevogilde, para servir de residência quando viajasse para o norte do país54. Mais uma vez se comprova esta ligação entre a elite burguesa do Porto e o rei, constituindo este conjunto de manifestações culturais, organizadas em torna da vinda de D. Pedro, exemplos ilustrativos. Da sua parte, o soberano, que não tinha estima pelas velhas famílias aristocráticas que considerava decrépitas, preferiu sempre a companhia da burguesia e dos industriais, a face mais visível do progresso.

D. Pedro e a exposição Como já referido, a inauguração da exposição, a 25 de Agosto, é o uso de uma prerrogativa régia que dá uma solenidade distinta ao acontecimento e patenteia o interesse do rei pela indústria. A atitude de D. Pedro, após a chegada, pautou-se pelo interesse que dedicou à exposição e a outros espaços que visitou, dando prioridade aos verdadeiros objectivos da visita, embora agradecendo o entusiasmo da recepção e aceitando os convites para as actividades culturais. Isto é revelador não só de alguns traços da sua personalidade, como também da educação que recebeu enquanto príncipe, construindo uma grelha de instrução que mais à frente se explicará. Direccionemos agora o olhar para o edifício da Bolsa, albergue da exposição, que foi considerado adequado por ambos os jornais, apesar de ainda não estar terminado. J. Pimentel no seu artigo para a Revista contemporânea de Portugal e Brazil, aponta defeitos à distribuição dos produtos “em relação bem rigorosa com os grupos e classes do sistema adoptado pela Direcção”55, embora reconheça o pouco tempo que tiveram para satisfazer as exigências de uma exibição metódica. O mesmo nos refere O Comércio do Porto, com os seguintes comentários: “Conhecemos as dificuldades que a comissão directora tinha a vencer, mormente na organização do catálogo. Nem todos os expositores prestam os esclarecimentos que se pedem e são indispensáveis para se avaliarem os produtos que remetem”.

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O Comércio do Porto de 25 de Agosto de 1861 ALLEN, 1962: 25 55 PIMENTEL, 1861: 252 54

Logo em seguida, o jornal considera esta exposição como um primeiro ensaio, cujas imperfeições se poderiam corrigir: “Ao passo que as exposições se forem repetindo irá desaparecendo esta dificuldade, que não deixou de embaraçar muito as comissões que organizaram em Londres e Paris as duas exposições universais, bem como os respectivos júris”.56

Esta necessidade de ser capaz de exibir os produtos, classificando-os rigorosamente de acordo com os critérios mais actuais, está presente em todas as exposições do século XIX. O autor do artigo discorre sobre a colocação dos produtos, tendo em conta os expositores espanhóis e brasileiros, deixando dois modelos alternativos sobre a forma de interrogações: “Devem os produtos similares dos diversos países colocar-se conjuntamente, só em atenção às respectivas classes? Devem expor-se separadamente os produtos de diferentes nações, repetindo para cada uma delas a classificação?”.57

Este último modelo foi o adoptado pelas exposições de Paris e Londres e se, por um lado, possibilita uma perspectiva mais abrangente dos diferentes países, por outro dificulta a comparação e assim o estudo. Sendo uma questão técnica, não deixou de merecer a reflexão daqueles que visitaram a exposição e que estavam a par dos modernos sistemas classificatórios (“O sistema seguido nas exposições de Londres e Paris do dístico do produto indicar também a sua classificação, deve ser mantido em todas as exposições, sejam agrícolas ou industriais”)58. A organização, porém, decidiu reunir todos os produtos dos industriais de cada país, de forma promíscua. Evidentemente que a exposição abre caminho para o estudo desta aproximação entre industriais portugueses e espanhóis, cristalizada na ideia da liga das alfandegas peninsulares, assim como na própria concepção política da Ibéria reunificada, tema em voga na época. Deixam-se apenas os tópicos enunciados, já que estes vão muito para além do alcance do trabalho. Em relação à descrição da exposição aconselha-se a leitura do artigo de J. Pimentel, já que seria infrutífero estar a resumir o seu passeio pelas galerias e salas da exposição industrial do Porto. O autor foi capaz de descrever, com algum grau de pormenor, os diferentes objectos que viu, tecendo um conjunto de comentários valorativos que enaltecem e igualmente criticam aquilo que vê. Uma das críticas mais recorrentes do autor é o arcaísmo de certas peças com que se depara, referindo um conjunto de indústrias que não eram capazes de se integrar no ciclo do progresso59. Não é estranho às exposições do século XIX originarem um grande número de escritos (narrativas) sobre si próprias, uma vez que a palavra escrita era, na época em que a fotografia surgia, o modo de transformar aquilo que se viu num discurso capaz de possibilitar ao leitor ver o espaço desconhecido, funcionando a narrativa como uma “extensão do olhar do viajante”.60 56

O Comércio do Porto de 28 de Agosto de 1861. O jornal não se cansou de, em todos os dias, referir as dificuldades da comissão organizadora, tentando justificar as lacunas que existiam. 57 PIMENTEL, 1861: 254 58 O Comércio do Porto de 28 de Agosto de 1861 59 PIMENTEL, 1861: 258-259 60 VICENTE, 2003: 140

Para finalizar, questionemo-nos sobre qual o simbolismo de que se reveste a exposição industrial. Esta, em menor medida, e a Exposição Internacional de 1865 possuem significados ideológicos de representação, na medida em que, ao serem organizadas, traduziam o poder que os países organizadores possuíam, muitas vezes de controlar lugares muito distantes da metrópole, outras vezes apenas um poder cultural (é o caso da Exposição Internacional de 1865 onde participam as colónias e alguns países europeus). Como escreveu Filipa Vicente, “os “países-museus” demonstram a sua capacidade de incorporar os discursos dos “outros” nas suas histórias, na construção do seu “nós” identitário. E todos possuem os instrumentos para expor o exótico e o “incivilizado” nos seus discursos civilizacionais”61. Portugal ainda estava muito longe de poder criar tais narrativas totalizantes mas os primeiros passos começavam a ser dados.

O discurso do rei62 Aproveitando a inauguração da exposição, D. Pedro passou, através do seu discurso de abertura, um conjunto de ideias que corporizavam o seu pensamento sobre o evento, a cidade e outros temas. Condicionado pelas circunstâncias, o rei expressou-se tendo o cuidado de medir as palavras. Numa análise quantitativa das palavras, associadas às categorias definidas, constata-se que o discurso se centra em cinco categorias previamente definidas: a cidade, a paz, o trabalho, a instrução e o progresso (quadro 1). Rapidamente se compreende que as três últimas são precisamente dois valores essenciais da ideologia coeva e componentes da grelha de instrução do rei. No que toca ao trabalho, o rei afirma que “o grande dever dos governos na actualidade [é] dar trabalho à sociedade”, prosseguindo “dar-lhe instrução para que ela não desconheça o valor do trabalho”. A mensagem, neste caso, tinha esse destinatário concreto, o governo. Não era, de resto, a primeira vez que D. Pedro utilizava discursos públicos para enviar mensagens aos seus governos pois o mesmo já havia sucedido em sessões de abertura do Parlamento, salientando-se a sua intervenção na vida política, considerada excessiva na época, tendo em conta o seu papel enquanto rei liberal (alguém que se pretendia equidistante da vida política). Igualmente a instrução, uma das suas preocupações centrais como se explicitou no capítulo do estado da arte, é aqui utilizada como ponte para se alcançar o valor do trabalho e a consciência dos deveres inerentes a qualquer súbdito: “… para que não perca, com as servidões criadas com as necessidades materiais da vida, a noção das obrigações que excedem a todas as conveniências e a todos os lucos”.

A própria função educativa da exposição também é contemplada, na medida em que constitui-se como uma actividade cultural e recreativa que é capaz de ministrar a instrução, de uma forma mais lúdica, e para um público cada vez mais alargado:

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VICENTE, 2003: 314 Todas as citações do discurso de D. Pedro são retiradas d’ O Comércio do Porto de 26 de Agosto de 1861 62

“Eram raras, não há muito ainda, no nosso pais estas solenidades, que a um tempo são estímulo utilíssimo de curiosidade e ensejo incomparável de instrução para tantos”.

Em relação ao progresso que, como na metodologia foi referido, se conecta ao trabalho e à indústria, o monarca teve palavras de encorajamento para toda a indústria nacional que começava a integrar-se nesse ciclo imparável do progresso: “Quando se contempla o que as nossas indústrias conseguiram sem quase nenhuma das condições com que tinham direito a contar, lamenta-se dobradamente o tempo perdido, mas confia-se dobradamente no provir”.

O jornal não se esqueceria de criticar essa falta de condições e apontava o caminho: “Bem fraca, vacilante e incompleta é a protecção da pauta, comparada com a verdadeira protecção que é a derivada de todas as condições dos melhoramentos públicos e sociais […] O caminho que leva a esse porvir está traçado pelos produtos expostos”.63

Subjacente a este excerto do discurso está também a ideia de passado e futuro, que são apresentados de forma distinta: o passado como o tempo das opções erradas e até do caos mas o futuro como o tempo que se espera brilhante, uma dicotomia típica da época da Regeneração. Esta ideia do passado recente como o tempo de caos associa-se à categoria da paz que, não por acaso, é a mais presente (quantitativamente) ao longo do discurso. Utilizando frequentemente antónimos, o rei exalta a paz como o valor essencial, sem o qual será impossível alcançar os objectivos regeneradores: “Esquecia-nos no meio de disputas em que nos cansávamos a imaginar razões de dissidência e da inimizade… Distinguiam-se outrora as nações pelas obras de guerra; distinguem-se hoje os trabalhos da paz e a mesma razão da solidariedade que as liga entre si, essa mesma as extrema [exalta] mais profundamente que as desconfianças, mais duradouramente que os ódios” (sublinhados meus).

As invasões napoleónicas, a perda do Brasil, a fuga da corte, a guerra civil entre absolutistas e liberais, a luta entre as facções liberais com a Maria da Fonte, a Patuleia e o golpe da Regeneração são somente alguns episódios que moldaram o quadro da primeira metade do século. Não é estranho, por isso, que D. Pedro acentuasse este ponto, uma vez que ele próprio viveu alguns destes acontecimentos. Ultrapassar o tempo das lutas fratricidas que pertenciam a esse tal passado, estimulando o valor da paz, essencial para que Portugal finalmente tivesse a estabilidade necessária para crescer, tendo estas iniciativas como a exposição apenas lugar num clima pacificado e de relativa união. Finalmente, a categoria cidade enquadra-se na vertente elogiosa do discurso, tendo o rei palavras de apreço para o Porto: “Sabeis, senhores, o prazer com que venho tomar parte na vossa festa… Nesta feliz diversão aos hábitos da nossa vida pública, cabe o melhor quinhão a esta cidade, a primeira em todas as lides, em todas as iniciativas úteis e fecundas (sublinhados meus)”.

Observe-se os adjectivos que emprega para se referir à cidade, algo que pode transcender os elogios banais, típicos de tal discurso em tal ocasião, e ser demonstrativo do laço que pretendia desenvolver, mais concretamente com as elites dessa cidade, o principal destinatário do discurso. Uma última nota para a seguinte passagem: “Acudiram também os estranhos ao vosso chamamento”. Palavras que nos falam dos industriais espanhóis e brasileiros que 63

O Comércio do Porto de 28 de Agosto de 1851

integraram a exposição industrial e remete, indirectamente, para a força atractiva que o Porto começava a exercer no contexto das exposições, numa época em que emerge como pólo industrial com grande vitalidade. Para rematar, referir que é a articulação de todas estas categorias que formam o discurso do rei e traduzem uma parte do seu pensamento político, económico e social. O exercício de “desconstrução” aqui feito é simplesmente um artificialismo para se captar a essência mais profunda do conjunto de palavras que formava a comunicação. Categorias Paz

Progresso

Instrução

Trabalho Cidade

Indicadores “Esquecia-nos no meio de disputas em que nos cansávamos a imaginar razões de dissidência e da inimizade”; “Distinguiram-se outrora as nações pelas obras de guerra; distinguem-se hoje os trabalhos da paz e a mesma razão da solidariedade que as liga entre si, essa mesma as extrema mais profundamente que as nossas desconfianças, mais duradouramente que os ódios”. “Quando se contempla o que as nossas indústrias conseguiram sem quase nenhuma das condições com que tinham direito a contar, lamentase dobradamente o tempo perdido, mas confia-se dobradamente no porvir”. “...dar-lhe instrução para que ela não desconheça o valor do trabalho”; “…para que não perca, com as servidões criadas com as necessidades materiais da vida, a noção das obrigações que excedem a todas as conveniências e a todos os lucos”; “Eram raras, não há muito ainda, no nosso pais estas solenidades, que a um tempo são estímulo utilíssimo de curiosidade e ensejo incomparável de instrução para tantos”. “…o grande dever dos governos na actualidade – dar trabalho à sociedade; “Sabeis, senhores, o prazer com que venho tomar parte na vossa festa”; “...a primeira em todas as lides, em todas as iniciativas úteis e fecundas”; “Acudiram também os estranhos ao vosso chamamento”.

Quadro 1 – Exemplo de uma grelha de análise

Ultrapassar as limitações do olhar Como qualquer viajante, D. Pedro tem a percepção que o movimento está subjacente à viagem e que isso implica permanecer num dado local, num tempo limitado. Esta viagem está assim circunscrita a um número de dias definido, estando o seu programa pensado em função dessa condicionante. Apesar disso, o rei visitou a exposição três vezes, tendo na segunda ocasião surpreendido a comissão: “S. M. apesar de não ser esperado foi recebido pela comissão directora, que teve a honra de o acompanhar na sua visita. S.M. percorreu de novo todas as galerias…”64.

64

O Comércio do Porto de 27 de Agosto de 1861

Não é apenas para demonstrar o apreço pela exposição que D. Pedro a visita por três vezes mas o seu propósito é ultrapassar todas as limitações que se impuseram ao seu olhar de viajante nas ocasiões anteriores, especialmente depois da inauguração que é sempre um momento de solenidade, onde o protocolo predomina sobre o interesse e a rigorosa apreciação (inspecção seria também adequado). O facto de ter uma comissão organizadora a acompanhá-lo, privilégio da sua posição real, tem a limitação do seu olhar ser guiado através das salas da exposição. O regresso constitui também a tentativa de se certificar que nada escapou. Tal não foi possível nas suas viagens ao estrangeiro, onde viu tudo a um ritmo quase alucinante, onde o seu olhar era guiado pelos directores das fábricas e dos museus que apenas mostravam aquilo que de bom havia nesses locais, ou privilegiando certas vistas. É também no seguimento dessa experiência que o monarca quis visitar três vezes a exposição, tendo em conta o número de dias da visita. Algo semelhante já sucedera no ano anterior, em 1860, quando visitou a exposição agrícola do Porto por mais de uma vez. Inclusive, os seus irmãos, D. Fernando e D. Luís, provavelmente enviados por ele, visitaram-na novamente, tentando permanecer anónimos no meio da multidão. Para além da exposição, que outras instituições e estabelecimentos visita o rei? Os jornais relatam as diversas visitas reais, começando pelos estabelecimentos de caridade como o asilo de mendicidade e o asilo das raparigas abandonadas, a creche de S. Vicente de Paula, o colégio dos órfãos, a roda dos expostos, o hospício dos Lázaros e das velhas entravadas. Através deste primeiro grupo, observa-se mais um traço da sua personalidade, ao visitar as instituições que cuidavam dos mais pobres e desfavorecidos, sendo a caridade uma constante preocupação do monarca e tendo demonstrado “a satisfação pela boa ordem e conforto que neles se observam”65. O hospital de Santo António e o hospital militar foram também visitados, conquanto o futuro Hospital Militar de D. Pedro V, começado a construir em 1862, teve como principal mentor precisamente o soberano. Seguindo as regras protocolares, o rei e a comitiva deslocaram-se também à Sé, sendo recebidos pelo cabido, para visitar “todas as dependências do templo” e seguidamente o passo episcopal. No dia 28, a comitiva começou por visitar o liceu da Trindade, onde “S. M. examinou alguns bordados feitos pelas alunas”, seguindo depois para a oficina tipográfica “do Sr. Miguel Novaes; concedendo-lhe a honra de se deixar retratar”.66 De tarde, partiram em direcção ao cais da alfândega e embarcaram num navio para visitar as obras da barra, observando o trabalho dos mergulhadores. Aproveitando a oportunidade, o rei decidiu visitar também a fábrica de saboaria de Vale de Amores, depois de “no baile da assembleia portuense, dignar-se a prevenir o Sr. Visconde de Castro Silva de que na manhã seguinte visitaria a sua fábrica. El-rei examinou miudamente a fábrica, em todas as suas repartições, e mostrou visível satisfação vendo, tão esperançoso, um estabelecimento fabril, que apenas conta meses de existência”.

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O Comércio do Porto de 25 e 27 de Agosto de 1861 O Comércio do Porto de 28 de Agosto de 1861

Entrou ainda na casa dos proprietários e aceitou um lanche rapidamente preparado. De seguida, o infante e o monarca abriram, em página especial, um livro destinado para os visitantes daquele estabelecimento inscreverem os seus nomes. A comitiva visitou também a fábrica de tecidos da rua do Poço e a fábrica de estamparia do Sr. Joaquim António da Silva Guimarães, na rua Fernandes Tomás, e desta vez sem anunciar. É preciosa a informação que o jornal nos dá em poucas linhas: “Examinou o estabelecimento com minuciosidade, mostrando possuir perfeitos conhecimentos naquela especialidade industrial. Conversou muito com o Sr. Guimarães sobre o material empregado, desejando saber o que empregava do estrangeiro, ou nacional; sobre os efeitos da última reforma da pauta, nas matérias-primas, e ainda sobre outros objectos relativos a esta manufactura, e aos operários que ocupava”.67

Em primeiro lugar, os laços que forjava ao visitar estes estabelecimentos eram evidenciados pelos elogios que por todo o lado se ouvia e que A Revolução de Setembro tão bem sintetizou: “Faz bem D. Pedro V, que as simpatias do povo são o mais sólido cimento dos tronos, - e essas simpatias arreigam-se sempre, quando ele deixa o paço real para, como qualquer particular, ir ver o estabelecimento do industrial honrado”.

Atente-se também nos seus conhecimentos sobre as diferentes fábricas que visitou, o que remete para a sua educação que lhe deu a possibilidade de ser um rei instruído. Sem qualquer especialização, o saber do rei pretende ser “totalizante e polifacético”, pois este dominava um conjunto amplo de áreas de saber que lhe conferiram a capacidade de falar sobre todo o tipo de assuntos, em especial aqueles que se ligam à sua grelha de instrução68. Esta grelha69 tem como principais elementos a civilização e o progresso, algo facilmente identificável pelas suas visitas à exposição, às fábricas e instituições públicas, no fundo, os espaços onde era visível a modernidade. O seu olhar é portanto dirigido por essa grelha que só compreende aquilo que é útil. Por exemplo, quando numa visita ao norte de Inglaterra D. Pedro se depara com uma fonte natural, envolvida num local belo e digno das discrições românticas daquele período, o jovem príncipe prefere contudo escrever sobre as propriedades químicas que a fonte possui, tão úteis à indústria. As paisagens, por mais belas que fossem, não o atraíam mas somente a influência que o Homem exercia sobre elas. Considera, por isso, o século XIX como o mais avançado, resultado da longa acumulação dos séculos (um conceito de história linear e progressiva)70, sendo uma mescla daquilo que de melhor cada época teve. Finalmente, tal como nos diários de viagem do jovem príncipe, os jornais analisados, nas narrativas construídas em torno da viagem, nunca contemplam directamente a face negativa do progresso, nunca abordam os flagelos urbanos, típicos desta época, como a miséria popular e as zonas degradadas das cidades. Se é verdade que esses fenómenos não fazem parte da grelha de instrução de D. Pedro, e que nas suas viagens pela Europa não fizeram parte do seu itinerário, o mesmo não se pode afirmar em relação a esta 67

A Revolução de Setembro de 29 de Agosto de 1861 VICENTE, 2003: 144 69 VICENTE, 2003: 108-114 70 VICENTE, 2003: 113 68

visita ao Porto. Os jornais, naturalmente, ocultam esses defeitos mas, por outro lado, fornecem pistas: refiro obviamente as visitas reais às instituições de caridade que abrigavam não só desafortunados mas também algumas pessoas que sofriam o lado negativo do progresso. O rei, com certeza, se deparou com esses fenómenos no norte do país e ao cruzar essas fronteiras perigosas, foi capaz de obter um olhar profundo, apreender uma outra realidade, no fundo as verdadeiras condições em que o seu povo vivia.

O grande projecto em ferro e vidro Regressando no dia 2 de Setembro, às 8 da manhã, para o Porto, D. Pedro inaugurou, no dia seguinte, as obras do palácio de cristal, dando os jornais conta do local, do projecto, do arquitecto e de todo o cerimonial, muito interessante: “No campo de Torre da Marca, que é o local destinado á construção do Palácio de Cristal, seus parques, jardins, etc., resguardou-se um grande espaço por meio de uma teia de festões de verdes, ainda ampliada por uma segunda do mesmo estilo […] Da parte de Leste, em um pavilhão atapetado, estavam duas mesas cobertas de ricos tapetes. Na do lado do N viam-se a planta, alçado, corte e perfil do projectado edifício, e que são obra do engenheiro inglês Thomaz Dillen Jones, chegado anteontem de Inglaterra e que já é construtor de sete palácios de cristal. Junto de mesa, colocada do lado sul, estava um carrinho de mão, feito de pau óleo envernizado e com chapa de prata em volta da roda. Dentro do carro estava uma pá de prata, na qual foi gravada a legenda comemorativa da inauguração da obra por S.M. El-Rei. S. M. e A., examinaram então as plantas, cujo autor lhes foi nessa ocasião apresentado; e conduzido o carrinho de mão para o ponto, do lado Oeste, onde deve começar o parque, o presidente da mesa da sociedade encheu de terra a pá e passou ás mãos de S.M., que se dignou a despejar a terra no carrinho, que S.A. impeliu a uma pequena distancia, onde se achava arvorada a bandeira da sociedade, e ali um dos directores virou o carrinho e nesse momento o presidente da sociedade levantou vivas a El-Rei, que foram entusiasticamente 71

correspondidos”.

Este corpo de notícias anuncia assim o início do grande projecto que o rei apoiou e impulsionou entusiasticamente, para além do já referido hospital militar, da própria exposição industrial e alguns outros menores. Apesar de não chegar a ver a sua concretização, já que morre precisamente no ano de 1861, o seu nome não foi esquecido pelos fundadores do palácio, como comprova o texto laudatório após a sua morte: “O nosso Preclaro Protector, o mais ardente Promotor, o primeiro Presidente da Sociedade do Palácio de Cristal Portuense já não existe!!! […] E nós, os favorecidos pela sua régia aprovação desde que encetamos a empresa de dotar o Porto e o país com um melhoramento, que ele julgou digno dos brios, e da energia e vontade de um povo esclarecido”72.

O texto pertence ao relatório da direcção do Palácio de Cristal Portuense, apresentado em assembleia em Novembro de 1861, e que ilustra com clareza como D. Pedro abraçou o projecto, tendo sido feito 1º presidente da Sociedade do Palácio de Cristal, embora os seus futuros projectos73 de inaugurar, em simultâneo, o caminho-de-ferro de Lisboa para o Porto e a o palácio de cristal, acabaram por se esfumar com a sua morte.

71

O Comércio do Porto de 4 de Setembro de 1861 ALLEN, 1962: 28-29 73 ALLEN, 1962: 31 72

A ideia da construção do palácio surge, em parte, com a exposição industrial de 1861, depois de se considerar que o edifício da Bolsa não satisfazia “todas as condições que se requerem para a boa exposição dos produtos e comodidade dos visitantes”74. Seria necessário então um novo edifício, mais apropriado para novas exposições que seriam maiores e mais complexas (esta exposição industrial aparece-nos, mais uma vez, como um ensaio). Longe de ser uma cópia, o palácio de cristal portuense apenas se inspirou no modelo londrino, partilhando a utilização do ferro e do vidro na construção e acrescentando o granito, o que lhe proporcionou características peculiares e únicas. Ao contrário do seu irmão londrino, não era amovível e a adopção do mesmo nome poderá ter ficado a dever-se à ideia de organizar uma exposição universal no Porto e igualmente à importante comunidade britânica que detinha um enorme peso no comércio da cidade75. Esta acção incansável da burguesia portuense para construir esse “Templo do Trabalho e da Indústria Portuguesa, o monumento esclarecido e duradouro da fecunda iniciativa portuense”76 mostra como “o Palácio de Cristal – tal como o Palácio da Bolsa – era o símbolo vivo da afirmação de fé dos grupos económicos portuenses na capacidade de a sua cidade liderar o processo de regeneração portuguesa, através de princípios económicos que fizeram seus”77. Votado ao esquecimento nas várias narrativas sobre o palácio de cristal, a não ser a referência do lançamento da primeira pedra, o rei teve um papel central na constituição da sociedade e no arranque da construção. A sua viagem ao norte foi assim aproveitada para lançar a obra, um acto simbólico que demonstrou a gratidão das elites portuenses ao apoio entusiástico do soberano. A lembrança de recepção escrita por ocasião da inauguração confirma o que atrás foi escrito: “deveria a mesma exposição [de 1865] ser inaugurada pelo Ilustrado Soberano Português, a quem todos os seus súbditos respeitam e amam, pois dedicado como é este príncipe ao povo, de todas as formas promove o engrandecimento da Nação já promulgando sábias e úteis leis, já prestando-se gostoso a presenciar estes actos populares para encorajá-lo a fim de nos ir colocando a par do estrangeiro…”78. A aproximação do país ao estrangeiro foi uma constante preocupação de D. Pedro que a partilhava com as elites da cidade, aqueles que tinham os meios para investir. O palácio de cristal insere-se neste contexto, tendo uma poderosa carga ideológica por detrás e uma “vocação civilizadora” inegável. Como Fátima Vieira referiu no seu artigo, escrever sobre o palácio de cristal é escrever sobre uma época que já não existe, é fazer “o obituário de uma ideologia”79 que se sintetizou em edifícios como este. D. Pedro V, sendo o oposto da figura romântica que durante muito tempo se manteve, foi um homem do seu século, guiado por essa ideologia e pelos discursos civilizadores do século XIX. 74

PIMENTEL, 1861: 252 VIEIRA, 2001: 9 76 ALLEN, 1962: 30 77 José Sarmento de Matos citado em Jornal de Notícias de 7 de Maio de 2007 (uma obra, uma vida) 78 VICENTE, 2003: 271 79 VIEIRA, 2001: 12 75

2. A anatomia do carácter Escrever sobre uma pessoa que viveu noutro século é uma tarefa complicada mas ainda mais se torna quando escrevemos sobre um rei. Para além de existir um conjunto de valores e sentimentos diferentes, uma outra forma de ver o tempo e a vida, acresce o facto da figura em questão ser D. Pedro V, o rei, e como rei foi educado de uma forma particular para ter, sobre a vida e sobre tudo, um olhar especial. Não se pretende quaisquer juízos sobre o seu carácter, nem se pede simpatias ou compreensão especiais pela sua figura mas apenas tentar entender a complexidade do carácter de um soberano que viveu numa época caracterizada por valores que foram sendo substituídos80. Ao longo do trabalho, desde o estado da arte, que fomos construindo um quadro teórico sobre a personalidade e os valores do rei. Agora, as fontes analisadas podem confirmar ou infirmar essas imagens que outros, a quem sou devedor, arquitectaram. Este é um capítulo que se pretende curto e sucinto, já que sintetiza todo um conjunto de pistas que se foram deixando ao longo do capítulo anterior e que são aqui exploradas.

Legitimar o rei A seguinte passagem exemplifica como os jornais81 confirmaram a legitimação de D. Pedro V como verdadeiro rei de Portugal, recorrendo à genealogia da casa de Bragança e ao seu enaltecimento, designadamente ao fundador, D. João IV e à sua mãe, D. Maria II: “S. M. via no júbilo de todas as fisionomias que o Porto, na homenagem de respeito e estima de tão majestosa recepção, dava provas de reconhecer no seu monarca o descendente de D. João IV, o neto do imperador soldado da liberdade, e o filho de uma rainha, que ainda mesmo se tivesse nascido longe dos degraus do trono, teria sido a primeira entre as senhoras portuguesas, como completo modelo das mais preclaras virtudes”.82

Genealogicamente, é com D. Maria II e os seus descendentes que se dá a primeira quebra de varonia na história da monarquia portuguesa, já que a rainha se casou com D. Fernando Saxe-Coburgo-Gota e os seus filhos são por via paterna, príncipes de sangue alemão. Contudo, mais importante é o facto de os jornais afirmarem que é a cidade do Porto a reconhecê-lo como verdadeiro rei, numa alusão à proveniência dos poderes, numa época em que começam a dominar as concepções de que é, em última instância, do povo que emana o poder.

80

DUARTE, 2010: 59-60. Nota introdutória inspirada na sua introdução sobre D. Sancho I A Revolução de Setembro citou o que O Comércio do Porto escreveu nesse dia 82 O Comércio do Porto de 25 de Agosto de 1861 81

O rei liberal e progressista83 No capítulo anterior, foram diversas as referências à grelha de instrução do monarca que se pautava pelos valores típicos do século XIX, integrando-se nos conceitos de trabalho, progresso, indústria e civilização. Junte-se a isto um conjunto de actos durante o seu reinado, dos quais ressalta a abolição do beija-mão real, considerada pelo rei como uma prática do Antigo Regime que já não tinha lugar no mundo das monarquias liberais. Igualmente a sua recusa em ceder às pressões políticas na Câmara dos Pares, recorrendo ao mecanismo das “fornadas”, que é elucidativo dos seus princípios e convicções liberais. Seriam várias as ocasiões que o rei aproveitaria para passar uma imagem de imparcialidade84. Já se constatou como os jornais retrataram a sua figura enquanto rei liberal, elogiando-o em diversas ocasiões, como nas visitas às modestas fábricas do Porto e no apoio entusiástico ao projecto do palácio de cristal. Sobre a cerimónia do lançamento da primeira pedra, há uma passagem no relatório da direcção do palácio de cristal muito interessante: “Quando terminada a assinatura do auto de inauguração pelas Pessoas Régias, pelas Autoridades, e pessoa notáveis, se rogava ao nosso Esclarecido Protector que se não demorasse mais tempo no meio daquele imenso concurso de povo, que, apinhado junto do seu amado Monarca, contribuía a aumentar o incomodo, que o calor do sol de meio dia, e a estreiteza do Pavilhão necessariamente lhe produziram – significava S.M. a sua vontade de não se retirar antes de ver assinar os accionistas presentes, porque a todos queria conhecer!”85

A ilação principal a tirar é a disponibilidade do monarca em permanecer na cerimónia até ao fim pois fazia questão de conhecer todos aqueles que lançavam o importante empreendimento. Como foi referido anteriormente, não foi a primeira vez que o rei se misturou no meio da multidão, saindo do Paço para inaugurar ou visitar, falar e apoiar alguns dos seus súbditos, mais concretamente aqueles que tinham os meios para contribuir para o progresso do país. Assim foi recordado o rei no encerramento da exposição a 16 de Setembro: “Inaugurada no dia 25 do mes passado, com a Augusta Presença de Sua Majestade El-Rei D. Pedro V, cumpre consignar em primeiro lugar este acto de subida distinção que […] enche de orgulho a actual governação portuguesa, por ter na glória de ver no trono um Rei que assim mostra ser cidadão constitucional e filósofo, e que tanto se distingue no seu amor pelas ciências e artes”.86

A imagem do rei como um cidadão revela bem a ideologia liberal, enquanto o patrono das artes e das ciências tornou-se num cunho associado para sempre à sua figura. Todas estas características ligam-se assim à sua vontade de criar um forte laço com o seu povo, desde que assumiu o trono. Por seu lado, distante e constatando a macrocefalia de Lisboa, o Porto via com bons olhos a aproximação do monarca. 83

O progresso aqui contemplado na sua verdadeira dimensão oitocentista, que o rei tentou implementar e não associado a nenhum movimento político, já que tentar inserir D. Pedro nessa dicotomia esquerda/direita da vida política nacional, não faz qualquer sentido como demonstrado em MÓNICA, 2005: 205 84 MÓNICA, 2005: 101 85 ALLEN, 1962: 31 86 O Comércio do Porto de 17 de Agosto de 1861

Tal facto foi notado por este que, em carta ao Conde de Lavradio, embaixador português em Londres, explicava que a sua visita o havia esclarecido sobre como Lisboa era um mundo fechado sobre si próprio: “Venho de passar alguns dias no Porto e em Braga, e lisonjeio-me de que não foi inútil esta digressão em que, por cúmulo da fortuna, deixei de ser acompanhado pelo meu primeiro ministro, convencendo os teimosos que posso passar muito bem sem ele […] Quando estas peregrinações, nem sempre cómodas, nenhuma outra vantagem tivessem para mim, bastaria o voltarem-se insensivelmente de certas dependências, e o demonstrarem-me praticamente o pouco que avulta ao longe a capital, o pouco que a sua acção se faz sentir no país, se abstrairmos da influência que lhe provém da nossa organização administrativa”87 (sublinhado meu).

Neste excerto vê-se com nitidez o predomínio do olhar, da visão, da presença do rei, capaz de apreender uma realidade que lhe fugia se confinado à capital. Já em Paris, o príncipe discorria sobre as vantagens do olhar directo: “Esta é a grande lição que se recebe pela visita das coisas, lição que os livros não dão porque ordinariamente são escritos debaixo do império de uma paixão. Neste trabalhinho terei ainda muita ocasião de assinalar a diferença que existe entre a realidade e a letra redonda, e cada vez mais me convenço de que o melhor modo de saber alguma coisa é vê-la com os próprios olhos. É o modo de não nos enganarmos, e ainda assim muito nos enganamos”.88

Pondere-se agora as palavras de D. Pedro sobre o primeiro-ministro e relembre-se o seu discurso proferido na inauguração da exposição industrial, onde remeteu algumas mensagens subtis para o governo, técnica semelhante aos memorandos que enviava aos ministros. De facto, a sua relação com os políticos nunca foi saudável e, tal como a sua mãe, D. Pedro era acusado de se imiscuir demasiado na vida política nacional. Aproveitando todos os pretextos, o monarca expressava sempre a sua opinião e apontava as soluções como se coubesse a si aplicar a legislação. Defendia inclusive mais poderes para a figura régia: “Se o princípio da existência dos ministérios constitucionais fosse somente a venal confiança dos grupos de onde vêem, o poder real seria nada. Limitar-se-ia todo o seu ofício a registar as decisões parlamentares e, para que a ficção fosse de todo ficção, entregaria aos seus agentes responsáveis a chancelaria e leria no Diário do Governo o uso que dela fizessem”89

D. Luís, considerado o perfeito monarca constitucional na primeira fase do seu reinado, não deixou igualmente de salientar a excessiva intervenção política por parte do irmão90. Esta contradição presente na figura de D. Pedro, que numa perspectiva nos aparece como liberal e progressista e noutra como alguém que não compreende o seu papel, radica do seu carácter mas sobretudo da situação em que Portugal se encontrava. O país pedia medidas urgentes e o rei não acreditava nos políticos. Se por um lado queria ser um verdadeiro rei liberal como os jornais analisados o demonstram, por outro considerava que só ele seria capaz de conduzir o país até à modernidade e ao progresso. A contradição não escapou a Eça de Queirós que, comentando no livro As Farpas, vários anos depois, escreveu: 87

LEITÃO, 1945. Carta de D. Pedro V de 17 de Setembro de 1861 LEITÃO, 1970: 160-161 89 MÓNICA, 2005: 203 90 SILVEIRA; FERNANDES, 2006: 36 88

“Como deve ser infeliz um rei inteligente, quando, caindo em cepticismo e misantropia pela certeza que adquiriu de que está no meio de uma velha política e de uma torpe intriga, não pode todavia entregar a nação à experiência republicana, nem chamar a si o poder absoluto e pessoal! Um tal rei […] termina sempre por morrer cedo”.91

A “santidade” A bibliografia de carácter hagiográfico sobre D. Pedro V é imensa, sobretudo as orações fúnebres. Os seus primeiros biógrafos tenderam para a santificação do monarca, visto como um autêntico anjo na terra, bem ao estilo romântico da época. O texto laudatório constante no já referido relatório do palácio de cristal dá uma ideia de como são os outros textos: “Possuindo no mais alto grau todas as virtudes evangélicas; dotado pela mão do Eterno com uma inteligência de subido quilate; amando o progresso do seu país acima de quantos gozos lhe pudesse oferecer a vida; abrigando em seu seio o amor da pátria mais puro, e mais dedicado – exemplo constante de abnegação própria e de devoção pela humanidade aflita. Rei pela inteligência como pela hierarquia – Soberano do coração do seu povo – Pai dos artistas – Anjo sobre a terra, não podia ele demorar-se entre os mortais! Quis Deus chama-lo para o seu lado…”.92

Eis um exemplo do que após a sua morte se escreveu, apesar de não se encontrar ainda estas marcas de santidade nas fontes que datam do tempo em que ainda era vivo. Os jornais utilizados não foram excepção, já que mesmo tendo elogiado o soberano por diversas ocasiões, não entraram num registo hagiográfico. Este não é estranho à monarquia portuguesa, já que desde Afonso Henriques que as crónicas utilizam-no para narrar certas acções dos reis e do seu povo. Neste contexto, D. Pedro, pela sua rectidão moral e infatigável dedicação ao país, foi transformado num modelo, integrador dos valores da época como o trabalho, a inteligência e o progresso. É lançada posteriormente uma capa romântica sobre a personagem do rei, por parte da historiografia da época, que persistiu durante muito tempo (o romance que viveu com D. Estefânia muito contribuiu para isso). O seu reinado passou a ser visto como uma sucessão de fatalidades até à sua morte, culminando também na morte da nação. A associação que se fez durante tanto tempo entre a sua morte e, passado quatro anos, o retiro de Alexandre Herculano, seu principal educador, para a quinta de Vale de Lobos, é um bom exemplo. Como se apurou, D. Pedro é, em quase todos os aspectos da sua vida, o oposto da figura romântica que não passou de uma mera criação. Retomando o fio condutor, num interessante e irónico artigo93 de A Revolução de Setembro, o autor destaca o efeito que a viagem e o rei tiveram sobre a cidade e os seus habitantes: “Ainda agora tudo vibra no Porto, desde o bronze dos sinos que não têm nervos, até ao bronze de certas compleições que apareceram nervosas, por esta ocasião somente”. 91

MÓNICA, 2005: 202 ALLEN, 1962: 29 93 A Revolução de Setembro de 27 de Agosto de 1861 92

De seguida, atente-se nas palavras que adjectivam o rei através do recurso à hipérbole: “O Sr. D. Pedro V magnetizou estas cem mil almas do Porto…”, remetendo noutra passagem para as diferentes classes sociais que acorreram para ver a sua passagem: “Em volta do nosso bom rei, o cidadão de primeira plana, e o gandaieiro mais desbragado confundiam-se a vitoriá-lo, S.M. passeou as ruas do Porto entre tochas, na terceira noite de iluminação”. Alguém capaz de atrair as multidões que os jornais relatam, acabaria por possuir um grande poder mobilizador e transformar-se num símbolo após a sua morte. D. Pedro cumpriu esse papel.

3. D. Pedro nas diferentes exposições: uma perspectiva comparada Enquadrar D. Pedro em duas exposições tão distintas pode, à primeira vista, parecer um exercício condenado ao fracasso. Distintas pelas diferentes dimensões das exposições em primeiro lugar, já que a exposição portuense de 1861 é uma modesta exposição nacional, com carácter vincadamente local, onde participaram também catalães e brasileiros, limitada a um edifício ainda em obras. A de Paris de 1855 é uma exposição universal, de dimensões colossais, onde participaram vinte mil expositores, presentes num recinto dividido entre um Palácio da Indústria (maior do que o espaço ocupado pela exposição londrina de 1851) e um Palácio das Belas-Artes (uma área dez vezes maior do que a de Londres). Em segundo lugar, D. Pedro é, em 1855, um visitante estrangeiro, ainda um príncipe que pretende completar a sua instrução, enquanto no Porto a sua identidade de viajante é a de rei, cuja presença conferirá uma solenidade distinta ao acto da inauguração e à própria exposição. Então para quê um capítulo que contempla a visita à exposição universal de Paris? É que ambas as viagens traduzem fases distintas da vida do rei: a primeira foi mais uma peça para o puzzle da sua formação; a segunda é a demonstração que essa formação adquirida teve uma utilidade prática, já no papel de rei constitucional. Ambas são exemplificativas, em escalas e contextos diferentes, da resposta que cada país começava a dar à crise continental. A exposição portuense é reveladora, como se viu, da vontade das elites portuenses em integrarem o movimento regenerador, fazendo da sua cidade a cabeça desse movimento. Já a exposição de Paris insere-se num contexto mais vasto pois é a resposta da França, e um pouco de todo o continente, à exposição londrina de 1851. D. Pedro entendeu toda a complexidade desta competição de uma forma notável para alguém com 17 anos de idade, competição que se exercia através de um trabalho da paz como classificou as exposições no seu discurso de inauguração em 1861: “Entre elas [as duas exposições] há que fazer uma profunda distinção; a exposição de 1851 foi altamente filosófica, foi feita pelo espírito da associação, foi a expressão de uma tendência comum de um povo, um monumento levantado às ideias que representavam nesse momento as necessidades e os interesses da nação inglesa. O grande carácter da exposição de Hyde Park foi o egoísmo; mas um feliz egoísmo que realizou os interesses de todos. A exposição de 1851 foi feita com o fim de estudar os recursos do Continente, pode considerar-se como um grande estudo político feito na melhor das escolas, a da prática e a da realidade. A Inglaterra quis ali mostrar a sua imensa superioridade, mas o Continente mostrou-lhe os germens do que se vê em Paris em 1855 […] é [agora] o Continente a mostrar que os germens que apresentou em Londres se desenvolveram, e que soube aproveitar a grande lição”.94

Esta emulação continental ficou a dever-se à Inglaterra que incitou a rivalidade através da competição industrial. Não é coincidência certamente o facto de o Porto possuir uma comunidade inglesa bastante significativa, assim como muito dos burgueses que se associaram ao empreendimento do palácio de cristal terem visitado a exposição 94

LEITÃO, 1970: 110

londrina, tendo esta ligação entre o Porto e a comunidade inglesa sido salientada por Pinheiro Chagas: “… o Porto ressente-se também muito da influência do espírito britânico. O provérbio Time is Money tem aqui foros de cidade. A índole reflexiva, calculadora, sensata dos nossos fiéis aliados inoculou-se também no ânimo dos portuenses”.95

As exposições serviam não apenas para demonstrar o que cada país, com as suas indústrias, havia alcançado mas sobretudo para servir a comparação entre esses países expositores. A exposição industrial portuense, como se verificou, anulou parcialmente essa confrontação, mediante os critérios de exibição e classificação, ao juntar os produtos dos diferentes países, o que significa que a sua preocupação se centrou essencialmente nos produtos nacionais, funcionando como um balanço ou ponto da situação. A exposição universal de Paris, assim como a do Porto, abrangeram a indústria e uma nova categoria, as belas-artes. Este binómio liga-se com as novas concepções do século XIX, sobretudo com o ecletismo, conceito que D. Pedro explica: “… quando se visita a exposição Universal de Paris, vê-se a que pontos nos levaram os nossos trabalhos unidos aos da humanidade desde os tempos da sua existência. Vê-se ali o que eu tinha dito muitas vezes que a perfeição em tudo quanto é humano acaba por ser um ecletismo, ecletismo que consiste em conservar intactas as recordações de todas as épocas, e em aplicá-las a propósito

”.96

Se foi em Paris que se aprimorou um conjunto de elementos que aumentaram a qualidade das exposições e se aproximou do dito ecletismo pela introdução das belas artes, a exposição portuense de 1861 e a seguinte, como suas herdeiras, trataram de incorporar muitos desses ensinamentos anteriores. Finalmente, o gosto de D. Pedro pelas exposições, patenteado no apoio àquelas organizadas no Porto (agrícola e industrial), explica-se pela capacidade que estes eventos tinham em condensar um conjunto de valores que traduziam a modernidade pois “forneciam objectos, informação e vistas provenientes de todo o mundo; mostravam os mais recentes progressos no campo da engenharia, da mecânica e da ciência, a par com a exibição das obras de arte mais consagradas; incorporavam ideias oitocentistas acerca da educação através da recreação; utilizavam as tecnologias de exposição de outras instituições, tais como museus ou grandes armazéns, recentemente inaugurados; e, como estes últimos, possuíam uma forte componente comercial; possibilitavam ainda uma experiência visual de muitos espaços e tempos, num espaço e num tempo reduzido”97.

95

Em SANTOS, 1989: 152 LEITÃO, 1970: 33 97 VICENTE, 2003: 245 96

Sector da indústria Portugal esteve representado na exposição universal de Paris por 443 expositores, tendo um espaço reservado de quinhentos metros quadrados (área igual à que ocupou no palácio de cristal londrino em 1851). A sua zona estava situada na parte norte do edifico, junto da Espanha, Egipto, Turquia, Tunísia e Grécia, remodelação do mapa do mundo que aproximava o sul da Europa com o norte de África, tendo um conta aquilo que os países podiam expor. Estes países exibiam, segundo o entender de muitos visitantes, produtos do solo e matérias-primas que necessitavam posteriormente de serem trabalhados. Contudo, mesmo a Espanha contava com 108 objectos no Annexe des Machines, enquanto Portugal nada expôs no sector da indústria mais avançado98 (mas não se pode esquecer que os industriais portugueses enviaram os seus produtos para Paris com atraso e que vários não puderam integrar a exposição). Na exposição industrial do Porto estiveram, no pátio do palácio da Bolsa, algumas máquinas que nos dão conta de progressos: “Desçamos finalmente ao pátio central aonde se acham as máquinas em pleno trabalho […] Ali uma bela maquina a vapor, vertical e portátil, pertencente à mesmo fábrica e com a força de seis cavalos, em plena actividade, transmite o movimento à maquina limpadora de lã, que tem por oficio separar da lã apenas lavada, os argueiros e poeira que a inquinam. Junto está uma pequena bomba da invenção do Sr. Gaspar da Cunha Lima, a qual pelo movimento de dois hélices conjugados, que se movem rapidamente dentro de uma caixa circular de ferro, impele grande porção de água, fazendo-a subir a mais de cinco metros, por um largo cano donde se despenha sobre o tanque do chafariz; a ideia desta bomba é nova, simples e engenhosa […] De outro lado estão as máquinas de vapor da fábrica do Bicalho, verticais, horizontais e de cilindro oscilante: as máquinas hidráulicas, uma turbina, as norias, estanca-rios e um carneiro hidráulico ou aríete […] Encostadas a um dos muros vemos umas poucas de máquinas agrícolas entre as quais se distingue um debulhador de milho que parece ser cómodo e de económico emprego”99.

Apesar de estes sinais, que muitos podem considerar como tímidos, Portugal destacouse na exposição de Paris sobretudo pelos produtos agrícolas, colecções de mapas e moedas, mármores e sobretudo pelos vinhos do Porto que Napoleão classificou como os melhores que já provara100. D. Pedro não deixou também de comentar a participação portuguesa, criticando-a através da participação espanhola, já que a Espanha estava ao nosso lado na exposição: “A indústria espanhola, assim como a nossa, serve para mostrar a grande abundância de elementos inexplorados do solo da Espanha; é uma indústria que não sei bem se a chame nascente se moribunda […] e por enquanto basta-nos notar a existência de duas indústrias, proporcionadas às necessidades actuais da sociedade na Península, uma policiada destinada a satisfazer as reclamações de uma civilização industrial de que as classes abastadas se tornaram representantes, uma rude e primitiva e até certo ponto moribunda com a qual o povo dos campos ocorre às suas poucas necessidades […] Da primeira é forçoso confessar que ainda muito poucos produtos figuram na exposição de Paris. […] 98

VICENTE, 2003: 265 PIMENTEL, 1861:261 100 VICENTE, 2003: 265 99

[A outra] indústria popular é inteiramente selvagem, e não é compatível com a civilização […] e era uma coisa que me entristecia ver, a curiosidade com que os franceses olhavam para os nossos toscos tecidos, para as nossas louças de barro e de pó de pedra, para os nossos tecidos de tábua, como para produtos da indústria das nações bárbaras […] A Península Ibérica para entrar na comunhão europeia tem que criar uma indústria sua…”101 (sublinhados meus).

Se aponta o diagnóstico e a solução, D. Pedro não deixa de fazer também elogios às matérias-primas, compreendendo que Portugal não esteve representado pela sua verdadeira indústria: “A exploração do nosso riquíssimo solo nos ajudará a resolver este problema. As exposições portuguesa e espanhola são mais interessantes do que parecem à primeira vista [...] a beleza das matérias primas que se nota mesmo nos toscos ensaios da nossa indústria, não pôde deixar de atrair a atenção dos especuladores. Aconteceu o que eu havia predito; as matérias primas foram reconhecidas de uma maneira muito lisonjeira para o nosso futuro comercial; a indústria popular mereceu muita atenção; a indústria regularmente organizada não fez efeito algum”.102

Em 1861 observa-se já um conjunto de indústrias muito diversificadas, os tais dois tipos de indústria que D. Pedro referiu, sinal que o país tinha aprendido com a lição. Por fim, para provar a verdadeira importância das exposições, pois dizer que estas são autênticos estados da arte das indústrias nacionais não chega, citam-se as questões que presumivelmente Fontes Pereira de Mello terá endereçado à comissão portuguesa, para se proceder ao estudo da participação portuguesa na exposição parisiense: “1) Quais são as indústrias cuja cultura mais convém favorecer em Portugal e suas possessões? 2) Qual deverá ser o grau de protecção com que se favoreça cada um dos ramos mais importantes da indústria por meio das pautas? 3) Quais são as indústrias que em Portugal se apresentam com superioridade decidida em relação às de outras Nações? 4) Quais são as causas que têm obstado ao aperfeiçoamento de certos ramos de indústria, apesar da protecção que lhe têm dado as Pautas, e quais são os meios mais eficazes de remover essas causas? 5) Quais são os produtos da nossa indústria agrícola ou manufactora que têm fora do País melhor reputação? 6) Quais são os mercados estrangeiros que pode oferecer mais amplo e fácil consumo aos nossos produtos?”103

E as Belas Artes Ao contrário de Londres em 1851, a exposição parisiense abraçou também as Belas Artes, considerada uma dos componentes mais fortes da cultura francesa, tendo D. Pedro assinalado como a França era já a líder das artes plásticas, “na exposição das belas artes a França obteve a palma”.104 Esta exibição esmagadora espelhou como era ela que detinha o monopólio do gosto105, tendo Portugal participado, embora ninguém tivesse reparado, nem mesmo D. Pedro nos seus escritos. 101

LEITÃO, 1970: 237 LEITÃO, 1970: 238 103 LEITÃO, 1970: 48 104 LEITÃO, 1970: 112 105 VICENTE, 2003: 255 102

Uma das maiores inovações da época, a fotografia, tida como arte por muitos, foi colocada no palácio da indústria em Paris. D. Pedro reflecte sobre esta nova forma de captar a realidade: “A fotografia, essa descoberta nossa exclusivamente, mostra na exposição de Paris os progressos que hoje se fazem de um ano para o outro, e onde chegará esta nova arte difícil será predizer porque ela está invadindo tudo, apreendendo a natureza em flagrante, imitando de maneira a enganar as gravuras, fazendo-nos ver os fenómenos microscópicos […] e as ciências ainda não tiraram dela todo o partido que é possível tirar”.

106

A ideia de como o progresso se acelerava de ano para ano está aqui presente, a clássica aceleração do tempo, tal como a utilização da fotografia nas novas disciplinas científicas. Aliás, na exposição de Paris foi até usada para mostrar os monumentos e paisagens estrangeiras, sendo uma autêntica viagem à volta do mundo.107 Neste campo, Portugal não se fez representar, apesar do envio tardio de algumas fotografias do barão de Forrester, fotógrafo amador. Por sua vez, D. Pedro esteve retratado na secção fotográfica por parte dos fotógrafos parisienses, Mayer et Pierson, sendo um dos testemunhos mais notáveis da sua passagem pela exposição universal de Paris. Por fim, em relação à exposição industrial portuense, esta também dedicou duas salas às belas artes como se refere no artigo de Pimentel. O gosto do autor não foi de encontro à maioria do que estava exposto, mas algumas informações valiosas são-nos dadas, no que toca ao material exposto, encontrando-se inclusive algumas fotografias: “A terceira e quarta salas foram destinadas a coisas que muitos dentre nós chamam ainda belas artes. Não me atrevo a descrever, e ainda menos a criticar a multiplicada variedade de objectos que ali se acham reunidos; entretanto há naquelas salas algumas peças de escultura em madeira que se pode chamar industrial, em modelação e desenho de ornato e em fotografia que não é de desprezar. Alguns, mas poucos, quadros a óleo, dos que merecem o nome de pintura artística, flutuam, perdidos sem esperança de salvação, num imenso mar de ninharias e horrores: passemos adiante”.108

Porquê o Porto? Para terminar, será útil continuarmos as reflexões feitas no final do primeiro capítulo sobre o Porto. Enquadrado no norte do país, já em si uma construção política e administrativa, a historiografia durante muito tempo não passou as fronteiras de Lisboa. Ainda Filomena Mónica, na recente biografia de D. Pedro, deixa somente uma referência à exposição industrial, em poucas linhas. O confronto Porto-Lisboa começa precisamente a intensificar-se a partir da Regeneração, quando a primeira tomou as grandes iniciativas e ousou mais do que todos esperavam, construindo um palácio de cristal e organizando a primeira exposição internacional portuguesa, a quinta a nível mundial refira-se. Estão assim associados os dois vectores, por um lado o desenvolvimento comercial e industrial, o peso político que foi adquirindo e o centro financeiro centrado na Associação Comercial do Porto, e por outro, o desenvolvimento arquitectónico e 106

VICENTE, 2003: 259 VICENTE, 2003: 260 108 PIMENTEL, 1861: 256 107

urbanístico, bem como o rodoviário e ferroviário. Tudo isto, tendo o suporte do poder real (D. Pedro e depois D. Luís), fará do Porto um “verdadeiro microcosmo nacional”.109 Para se chegar a essa exposição internacional, houve todo um processo de aprendizagem, não só através das visitas dos burgueses do Porto às exposições universais de Paris e Londres, mas igualmente através da organização de sucessivas exposições agrícolas e industriais, das quais a de 1861 foi o último ensaio. Foi então o Porto a colocar Portugal no mapa das exposições, a colocar-se à cabeça do progresso do país que se encontrava a dar os primeiros passos. Alguns factos demonstrativos do nosso atraso foram bem resumidos por Rúben A. : “o caminho de ferro ainda não chegara a Portugal, no Reino Unido já estavam abertas à circulação oito mil e cinquenta e três milhas de caminho de ferro, em 1854 tinham viajado nos comboios do Reino Unido cento e onze milhões e seiscentos mil passageiros, quase trinta vezes a população de Portugal! As receitas provenientes foram de mais de vinte milhões de Libras, oito vezes toda a receita portuguesa”110. Relegado para a cauda da civilização nas duas primeiras exposições universais, Portugal foi integrado, através destes discursos civilizadores, num mapa que o colocava junto do norte de África. Como ultrapassar o atraso crónico? O Porto mostrou o caminho: “mas o que podemos já concluir de tudo isto é que o mundo não pára, o trabalho útil triunfa, e que Portugal dorme muito menos do que muitos injustamente supõe”.111 O Porto não dormia e imobilismo não é uma palavra que se lhe possa associar. Este trabalho, moldado em torno de D. Pedro e da sua viagem, serviu também para mostrar que se existiu, no Portugal da segunda metade do século XIX, alguma cidade que foi o modelo da industrialização e da iniciativa privada, foi o Porto.

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SANTOS, 1989: 9 LEITÃO, 1970: 49 111 PIMENTEL, 1861: 262 110

Conclusão É chegado o momento de fazer o balanço deste trabalho, esboçando algumas conclusões e tentando compreender o que é ainda possível investigar e fazer em relação ao reinado de D. Pedro. No primeiro capítulo, compreendeu-se que a visita real se reveste de uma grande importância para o Porto, alterando o quotidiano como seria de esperar mas sobretudo porque se trata do reconhecimento, por parte do rei, da exposição industrial, uma iniciativa reveladora do dinamismo da cidade e das elites burguesas portuenses. A recepção foi entusiástica, tendo a cidade se engalanado, e o povo seguido a comitiva real para onde quer que se deslocasse. As elites também acolheram o soberano através de um conjunto de actividades culturais, pausas temporárias na verdadeira missão da visita, mas que serviram de aproximação entre estas e o soberano, demonstrando o interesse de ambas as partes Os periódicos analisados cuidaram de narrar a vinda do soberano ao norte, arrumando as notícias em diferentes secções: O Comércio do Porto tornou-se a referência, ao acompanhar detalhadamente os acontecimentos e enquadrando-os na primeira página, enquanto A Revolução de Setembro cita numerosas vezes o outro jornal, colocando estas notícias na segunda e terceira páginas, dando-lhe então uma importância secundária. A estada real foi aproveitada também para a visita a outro tipo de instituições, como caridade, ensino e núcleos industriais, exemplos que traduzem aspectos da personalidade do rei e da sua grelha de instrução. Aspectos que, por outro lado, se salientaram na exposição, designadamente no seu discurso de abertura, onde o rei fez a apologia de certos valores indispensáveis para o desenvolvimento de Portugal: paz em primeiro lugar, instrução, trabalho e progresso, elogiando igualmente a primazia do Porto no que toca ao dinamismo organizativo. No penúltimo dia, D. Pedro inaugurou o início das obras do palácio de cristal, tendo sido feito primeiro presidente honorário. O monarca, dentro das possibilidades de um rei constitucional, foi um dos maiores apoiantes de todas as exposições e deste projecto em particular, facto que não foi olvidado pelo irmão, aquando da inauguração internacional portuense em 1865. A importância desta viagem pode ser resumida por um dos melhores biógrafos do soberano: “Importa assinalar na personalidade de D. Pedro V um dom que na maioria dos portugueses falta, é o dom de agir realizando… A presença do Rei é o estímulo, as suas palavras são a nova linguagem de uma esperança”. Já em relação ao segundo capítulo, procurou sintetizar-se um conjunto de ideias sobre o carácter de D. Pedro: o rei liberal e progressista, como as suas acções no Porto o demonstram e, por outro lado, alguém que interveio em demasia na vida política, existindo uma contradição evidente que se explica sobretudo pelo estado do país. As construções historiográficas do século XIX fizeram do rei uma figura romântica, tendo se observado, ao longo dos três capítulos, que esta figura régia é precisamente o oposto de tal concepção, à excepção da sua vida amorosa (“D. Pedro V não tem nada do herói romântico que simbolizava a sociedade constitucional dos seus dias, ele é o antiromântico por natureza, o positivista, o homem que necessita de uma linguagem segura,

expurgada de adjectivos e de ditirambos, linguagem matemática para se exprimir no verdadeiro sentido da sua época”).112 Estas construções, baseadas numa literatura hagiográfica que surgiu após a sua morte, tornaram D. Pedro numa figura intocável, entrando numa galeria restrita de reis portugueses. No terceiro capítulo estabelece-se uma comparação entre a exposição industrial de 1861 e a exposição universal parisiense de 1855. Esta confrontação, contemplando o sector industrial e as belas artes, serve o propósito de demonstrar o dinamismo do Porto na época, um verdadeiro “microcosmo nacional”. “A visita de D. Pedro V ao Porto (1861) ” foi o título adoptado, uma vez que esta viagem é reveladora que “o breve reinado de D. Pedro V – que vai até 1861 – é um caminho em ritmo rápido das lições tiradas de suas viagens ao estrangeiro”.113 Por fim, tendo em conta o vasto número de escritos do rei, bem como a sua correspondência privada e os seus diários de viagem, parece ainda ser possível aprofundar-se mais o pensamento do rei (tarefa dificultada pelo mosaico de fontes que, sendo de natureza idêntica, encontram-se dispersas). Por outro lado, estudar a conjuntura de um reinado tão curto parece quase improdutivo mas para se compreender a actuação da figura de D. Pedro tal é indispensável. Maria Filomena Mónica abriu o caminho na biografia mas um estudo mais profundo necessita de ser realizado. Para concluir, saliente-se novamente que este trabalho se inscreve precisamente nessa necessidade, tentando ser mais um contributo para a história do reinado de D. Pedro V. Muitas outras formas poderiam ter sido adoptadas para contar esta visita real ao Porto mas o mais importante é o contributo da escrita deste artigo para a formação histórica e historiográfica do autor, tendo em conta a nova bibliografia consultada e a percepção das fontes históricas e da forma como são trabalhadas. E principalmente por ser o primeiro trabalho académico em que se tenta produzir conhecimento, trabalhando directamente com fontes, em vez de se recensear aquilo que outros, cumulativamente, foram escrevendo.

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LEITÃO, 1970: 54. Esta citação serve para a anterior. LEITÃO, 1970: 65

Anexos

Figura 1 - Exemplo de uma notícia (A Revolução de Setembro)

Figura 2 - Exemplo de uma notícia

Figura 3 - Moeda de ouro do reinado de D. Pedro V

Figura 4 - Estátua de D. Pedro em Braga

Figura 5 - Estátua de D. Pedro em Lisboa

Figura 6 - Hotel de Inglaterra onde D. Pedro ficou alojado na sua visita a Roma

Figura 7 - Placa comemorativa que assinala a passagem de D. Pedro pelo hotel em Roma

Figura 8 - Família real

Figura 9 - Retrato de D. Pedro

Figura 10 - Retrato de D. Pedro

Figura 11 - D. Pedro e D. Estefânia

Fontes e bibliografia Periódicos: Revolução de Setembro Comércio do Porto

Revistas: Revista Contemporânea de Portugal e Brazil

Bibliografia: ALLEN, Alfredo Ayres de Gouveia, 1962 – “D. Pedro V e o Porto no tempo do muito amado”. Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, vol. xxv. Porto: [s.n.]. ALVES, Jorge Fernandes, 1994 – “As Exposições Industriais do Porto nos meados do século XIX” [Em pdf e em linha]. O tripeiro. 7ª série, 13. Disponível em WWW: . BARDIN, Laurence, 1977 – Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70. CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.), 1997 – Domínios da História. Ensaios de teoria e metodologia [Em pdf e em linha]. Rio de Janeiro: Editora Campus. Disponível em WWW: . COSTA, Júlio de Sousa e – O segrêdo de Dom Pedro V, 1837-1861. [Em linha]. Disponível em WWW: . LEITÃO, Ruben A., 1964 – D. Pedro V: contribuição para a sua bibliografia. Lisboa: [s.n.]. , ed., 1970 – Diário de Viagem a França Del-Rei Dom Pedro V (1855). Paris: Fundação Calouste Gulbenkian – Centro Cultural português. , ed., 1945 – Cartas de D. Pedro V ao Conde de Lavradio. Porto: Portucalense editora. MÓNICA, Maria Filomena, 2005 – D. Pedro V. Lisboa: Círculo de Leitores.

QUEIRÓS, F. Fortunato, 1972 – “D. Pedro e a educação: ideário pedagógico de um rei”. Revista da Faculdade de Letras: História [Em pdf]. Disponível em WWW: . QUIVY, Rayomond; CAMPENHOUDT, Luc Van, 1992 – Manual de Investigação em Ciências Sociais. Liboa: Gradiva. PIMENTEL, J., 1861 – “Um Passeio pela Exposição Industrial do Porto” [Em linha]. Revista Contemporânea de Portugal e Brasil, vol. 3: p. 251-262. SANTOS, José Coelho dos, 1989 – O Palácio de Cristal e a Arquitectura do Ferro no Porto em meados do séc. XIX. Porto: Fundação Eng. António de Almeida. SILVEIRA, Luís Nuno Espinha da; FERNANDES, Paulo Jorge, 2006 – D. Luís. Lisboa: Círculo de Leitores. VICENTE, Filipa Lowndes, 2003 – Viagens e Exposições: D. Pedro V na Europa do Século XIX. Lisboa: Gótica. VIEIRA, Maria de Fátima, 2001 – “Os dois "Palácios de Cristal" ou a recepção da Exposição Mundial de Londres (1851) em Portugal”. Revista da Faculdade de Letras : Línguas e Literaturas, 18, p.427-438 [Em pdf e em linha]. Disponível em WWW: . VILHENA, Júlio de, 1921 – Dom Pedro V e o Seu Reinado. Coimbra: Imprensa da Universidade. vol. 1.

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