Da alteridade à conveniência: a \" mentalidade do soldado \"

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Da alteridade à conveniência: a "mentalidade do soldado" – Por Tiago Gagliano Pinto Alberto
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Por Tiago Gagliano Pinto Alberto – 26/07/2016
Olá a todos!!!
Você já ouviu falar na expressão "mentalidade de soldado"? Esta expressão é utilizada por alguns autores não exatamente do direito para descrever um ponto importante do processo de tomada de decisão: a decisão baseada em preconcepções. Entre os vários pesquisadores que investigam o assunto, destaca-se a Dra. Julia Galef, bióloga de formação, que, a partir da compreensão deste conceito, pondera que por vezes, ao tomarmos uma decisão, sabotamo-nos quanto às circunstâncias que as envolvem, criando barreiras para, desde um primeiro momento, escolher. A escolha, baseada neste ideário, é apriorística e o que se faz é refutar internamente qualquer outra alternativa que não resulte na decisão já realizada[1].
Em primeiro momento, a alternativa teórica traçada pelos pesquisadores deste específico ponto de exame não soaria algo diverso do que já se sustenta sob o ponto de vista realista, ou, se examinada a questão de maneira mais verticalizada e com o auxílio da epistemologia, a concepção de direito baseada no pragmatismo que tem o empirismo como base: se, afinal, não podemos acreditar em algo diferente do que ostenta uma relação de causalidade externamente aferível, verificável e passível de descrição, então não haveria mesmo sentido em conceber ideias divorciadas da plataforma de ação e esta, por sua vez, está intrinsecamente correlacionada à forma de agir, pensar e… decidir.
Há, todavia, uma diferença crucial. Sutil, porém, capaz de alterar toda a forma de compreender não apenas a tomada de decisão no campo do direito, senão a tomada de decisão de maneira geral.
A "mentalidade de soldado" parte de um pressuposto mais que ideológico. A visão acerca das circunstâncias que giram em torno da tomada de decisão é radicalmente alterada por força de uma compreensão prévia, de uma preconcepção. É preciso existir algo antes da situação fática que demande a tomada de decisão; e esse "algo antes" deve ter uma influência decisiva, crucial e efetiva, conquanto não necessariamente positiva, não apenas no fato que se situa no porvir, senão no próprio caminhar da vida do afetado. O exemplo que a Dra. Julia nos fornece para explicar este ponto é o da situação conhecida como "humilhação de Dreyfus" e, em síntese, trata da condenação por traição, em 1894, do oficial de artilharia do exército francês Alfred Drayfus. O caso envolve um erro judicial e a humilhação de Dreyfus em praça pública, seguida da aplicação da pena de prisão perpétua na Ilha do Diabo, na costa da Guiana Francesa[2].
O que foi crucial no caso Dreyfus – e motivou sua humilhação e condenação – foi o fato de ser o único soldado judeu no exército à época, o que, supostamente, tornou-o mais suscetível a trair os franceses, repassando segredos aos alemães. Esta circunstância foi crucial não apenas para a condenação, baseada na suposta coincidência de caligrafia de Dreyfus em um documento que comprovaria a traição, mas também para o fato de que mesmo depois de se descobrir o culpado, ainda assim não se acreditava na inocência de Dreyfus, alegando-se que simplesmente se descobrira outro traidor, ou que o indicado como culpado havia reproduzido a caligrafia de Dreyfus.
Esta é a mentalidade do soldado ("soldier mindset"). Os elementos concretos deixam de ter tanta importância, porque baseados em uma visão prévia de fundo neurológico. A tomada de decisão se torna desorientada ao real, inadequada em termos de concretude e lastreada apenas em concepções previamente inseridas no campo cognitivo do agente decisor. Isso a diferencia das vertentes teóricas realistas e empiristas, que efetivamente consideram o que se encontra à volta do decisor, inclusive utilizando as circunstâncias factuais como fundamentação[3].
No caso da mentalidade do soldado, a circunstância decisiva não é a externa e está para além do factual, real, ou palpável (ainda que no campo imaginativo). Tampouco se insere em formas dialógicas predefinidas, ou encontra na linguagem qualquer forma de limitação ou motivo para agir. Antes, é interna, revelando-se à sorrelfa até mesmo para quem irá decidir a situação; trabalhando qual fúria no julgamento de Orestes, a movimentação do direito a partir desta concepção molda a percepção, manejando-a aos fins que se pretende, escolhendo o material com o qual irá trabalhar para a tomada de decisão.
Algo parecido, no ambiente probatório, tem sido discutido a partir do que se conhece como "efeito flash". Neste, o que se entende é que o juiz, por meio de empatia ou não com o depoente, terá maior ou menor facilidade em acreditar na versão que a testemunha traz aos autos. Esta teoria é curiosa e, incrustando-se no ambiente da neurociência, postula que até mesmo pequenos detalhes ao decorrer do testemunho prestado, como um ajeitar de cabelo, um sorriso, ou um olhar, podem criar empatia ou a rejeição e, com isso, convencer o juiz acerca da veracidade ou falsidade de depoimento.
A premissa que se verifica na aplicação do "efeito flash" é a mesma de que trata a "mentalidade do soldado" isto é, que o elemento interior, que não se pode precisar, delinear ou esquadrinhar, convenceu o decisor, juiz ou não, acerca da medida a tomar, esteja ela baseada ou não em circunstâncias externas, que, no mais das vezes, serão úteis ou para confirmar o decidido, ou para lapidar a retórica no sentido de rejeitá-las.
A questão que fica, portanto, é a de se indagar como perceber o funcionamento desta "mentalidade do soldado"; e, se possível, libertar o decisor destes pensamentos que formam e informam a sua capacidade cognitiva para a tomada de decisões.
Uma proposta bem interessante e promissora pode ser encontrada a partir do princípio da alteridade. Também da neurociência podemos colher ensinamento no sentido de que ao atuar pensando preponderantemente no outro, calçando os sapatos alheios, como já mencionou a articulista Denize Carolina da Cunha, damos início a um novo caminho neuronal capaz de alterar a visão ambiental, a compreensão sistêmica e a articulação de ideias[4].
Neste prisma, a alteridade não é apenas um princípio, senão uma forma de ver o mundo, uma ideologia por si só, capaz de corrigir a rota da tomada de decisão que se encontra viciada na origem, quebrantada em suas premissas e malfadada em seu sucesso epistêmico.
Será que conseguimos alcançar isso? E como desenvolver esse ponto de vista? Exploraremos melhor essa visão em outra oportunidade… Não fique chateado; tenha alteridade com o articulista.
Um grande abraço a todos. Compartilhem a paz!

Notas e Referências:
[1] Interessante vídeo da autora pode ser visualizado em: https://www.ted.com/talks/julia_galef_why_you_think_you_re_right_even_if_you_re_wrong/transcript. Acesso em 25 julho de 2016.
[2] Há muitos relatos sobre o caso. Sugiro a leitura da versão resumida: https://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Dreyfus. Acesso em 25 julho de 2016.
[3] Antes que critiquem lá de Pindorama, não estou dizendo que empirismo é o mesmo que realismo.
[4] Isso, em geral, é conhecido como ressignificação. Não há espaço neste momento para abordar esta temática, mas tampouco há de se deixar de reconhece-la como um terreno muito fértil e rico para exploração.


Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.

Imagem Ilustrativa do Post: Granada de mano // Foto de: César Santiago Molina // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/csm_web/3946419825
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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