DA ANÁLISE NA INFÂNCIA AO INFANTIL NA ANÁLISE - Eliza Santa Roza e Eliana Schueler Reis

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Eliza Santa Roza Eliana Schueler Reis

Por sua vez, Eliana Schueler Reis repensa o trauma como fator de estruturação e desestruíuração psíquicas, inicialmente desenvolvido em sua tese de mestrado Trauma e repetição no processo psicanalítico uma abordagem íerencziana.

Partindo da reflexão sobre um caso clínico e atravessando as diferenças e similitudes conceituais de vários autores, entre eles Freud, Férenczi e Winnicott, Eliza Santa Roza e Eliana Schueler Reis interrogam neste livro a importância do infantil para a psicanálise. Assim, não só propõem que as indagações relativas à análise de crianças são fundamentais para a prática da psicanálise, como também sublinham a importância de tornar possível a emergência do que, mesmo estando presente como marca do vivido, não existe como lembrança, não se aproveita como experiência, não se enuncia como desejo. Eliza Santa Roza tem como objeto principal do estudo a temática do brincar como forma de linguagem, dando continuação às ideias desenvolvidas em seu livro anterior Quando brincar é dizer - a experiência psicanalítica na infância.

Como afirmam, "para produzir conhecimento é preciso afetar e se deixar afetar com intensidade pelo outro e pelo mundo". Desde Freud e sua elaboração das consequências de ser surpreendido, da análise na infância ao infantil na análise, de um caso clínico elaborado a quatro mãos ao estabelecimento de uma escrita, este trabalho conjunto não se furta às vicissitudes do brincar para a subjetivação do que nos precede. "A renovação da psicanálise como teoria - lembra Joel Birman em seu prefácio - sempre se realizou pelas vias da clínica e da sensibilidade para as questões atuais da cultura, sem as quais aquela perde qualquer gosto e interesse". Seja através da discussão a respeito do suicídio de crianças e a importância da televisão no imaginário infantil, seja a partir das surpresas, dificuldades e impasses clínicos, os artigos que compõem o livro não deixam de insistir com a constante retomada do que ainda não há para se dizer. •

Eliza Santa Roza & Eliana Schuekr Reis

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Prefacio Joel Birman

DA ANALISE NA INFÂNCIA AO INFANTIL NA ANALISE

Copyright © 1997 EUza Santa Roza Eliana Schueler Reis

Projeto Gráfico e Preparação Contra Capa

5231 d Santa Roza, Eliza Da análise na infância ao infantil na análise / Eliza Santa Roza St Eliana Schueler Reis; prefácio Joel Birman. Rio de Janeiro : Contra Capa Livraria, 1997. 190p. ; 14 x 21 cm.

ISBN 85-86011-06-1 1. Psicanálise. 2. Psicanálise infantil. I. Reis, Eliana Schueler. II. Título. CDD-616.8917

1997 Todos os direitos desta edição reservados à Contra Capa Livraria Ltda < ccapa@ easynet.com .br > Rua Barata Ribeiro 370 - Loja 208 22040-000 - Rio de Janeiro - RJ Tel (55 21} 236-1999 Fax (55 21) 256-0526

SUMARIO

]oel Birman . Além daquele beijo!? - sobre o infantil e o originário em psicanálise

Eliza Santa Roza e Eliana Schueler Reis . De uma análise na infância ao infantil na análise trauma, repetição e diferença em Ferenczi

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Eliza Santa Roza . E agora eu era o herói: o brincar na teoria psicanalítica

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. Tentativa de suicídio na infância: uma hipótese acerca do eu

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. Narcisismo, ideal do eu, criança e televisão

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, Um desafio às regras do jogo: o brincar como proposta de redefinição do tratamento da criança hospitalizada

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Eliana Schueler Reis Vida e morte do bebé sábio

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Das palavras-coisa a esta coisa das palavras

87

Uma, três ou mais coisas que o sonho faz , Múltiplos eus

119 H5

Dedico este trabalho a minha mãe, que me ensinou mui' to cedo a escutar as histórias de vida, e à memória de meu pai, que me ensinou a ler e me deu livre acesso a todos os seus livros. Eliana

Para minha mãe, que sempre brincou comigo, e à memória de meu pai, que me apontou a cultura como o maior bem humano.

Nossos {agradecimentos a todas as pessoas que estão presentes de diversos modos nesses textos. Familiares e amigos, colegas, alunos e professores, e particularmente nossos pacientes, pois sem eles não haveria motivo para escrever.

ALÉM DAQUELE BEIJO!? sobre o infantil e o originário em psicanálise

I. A QUE VIEMOS? Desde a inauguração do discurso freudiano a referência à infância se impôs e se difundiu, tanto no campo do saber erudito quanto no imaginário social, como um signo insofismável da psicanálise. Esta imposição, diga-se de passagem, se realizou por diferentes razões que não me interessa aludir neste momento. Cabe destacar, por ora, que em verdade a infância foi enunciada como o fundamento para a interpretação dos males do espírito, razão em última instância para dar conta dos impasses insuperáveis na existência psíquica dos adultos. Tratava-se de indagar no sofrimento mental destes sobre a sua causalidade e a sua génese. Nestes termos, foi suposto que aquele sofrimento teria sido produzido na vida pretérita do sujeito, na sua infância real, que deixava fendas dolorosas no seu psiquismo e sulcos sofrentes no seu corpo.

Jcel Birman

Assim, se a infância foi concebida como o tempo primordial para a produção de um acontecimento patológico, este foi delineado como algo de ordem sexual. A cena da infância seria de natureza sexual, que na passagem do sujeito da infância para a existência adulta, na adolescência, teria o poder nefasto de produzir sintomas mentais. Isso porque o cenário sexual da infância, de qualidade excessiva, não poderia ser absorvido pelo psiquismo do sujeito na suposta maturidade. O indivíduo sucumbiria ao excesso da experiência sexual da infância, aprisionando-se na teia diabólica de sua reminiscência1. Seria esta referência axial a um acontecimento sexual ocorrido na infância, portanto, a causa primordial das perturbações mentais das individualidades nas origens da psicanálise2 •* que dava caução aos procedimentos inovadores empreendidos pela cura catártica4. Apesar desta evidência histórica é preciso sublinhar, contudo, as continuidades e as descontinuidades patentes que existem entre os primórdios do discurso freudiano e os passos teóricos que foram realizados posteriormente no seu interior. Digo isso porque as diferenças são significativas, transformando os fundamentos não apenas 1 Freud, S. & Breuer, J. "Lês mécanismes psychiques dês phénomènes hystériques" (1893). Em: Freud, S. & Breuer, J. Études sur ITiystérie. Paris, PUF, 1971. 2 Freud, S. "Uétiologie de 1'hystérie" (1896). Em Freud, S. Névrose, psychose et pervenion. Paris, PUF, 1973. 3 Freud, S. "Psychothérapie de rhystárie11 (1895). Em: Freud, S, & Pjreuer, J. Eludes sur \'hystérie. Op, cit. 4 Idem.

Prefácio

do pensamento como também da clínica psicanalíticas. A introdução do adjetivo infantil neste contexto foi um acontecimento crucial na discursividade psicanalítica. Não obstante a similaridade existente entre os significantes em pauta, o adjetivo infantil não quer dizer a mesma coisa que o substantivo infância. Uma distância incomensurável os separa, certamente. Além disso, é preciso considerar que se o signiíicante infantil se introduziu pela ordem adjetiva, logo em seguida transformou-se num substantivo. Nestas diversas transmutações, significantes e gramaticais, algo de fundamental se processou na leitura do sujeito e de seu sofrimento psíquico. Pode-se dizer, sem qualquer exagero, que foi neste deslocamento entre as palavras infância e infantil, assim como nesta dança e nesta transmutação de géneros gramaticais, que se pode circunscrever a invenção da psicanálise como tal. No que tange a isso, não se pode então esquecer que as descontinuidades são muito mais importantes do que as continuidades. Isso é inegável, sem dúvida. A ruptura aqui açambarca as continuidades, levando-as de roldão. Por isso mesmo, não devemos nos confundir com a semelhança enganosa das palavras, apesar das facilidades que isso implica do ponto de vista teórico. A sedução é evidente, mas o horizonte que isso nos entreabre é pobre e limitado. Deve-se, pois, evitá-la e contornar os seus percalços, já que entre a infância e o infantil existe não apenas um intervalo abissal para a psicanálise, como também se realizou uma transformação radical na leitura do espírito humano.

Joel Birnum

É justamente isso que gostaria de indicar aqui, à guisa de um esboço, com a intenção de costurar algumas das linhas de desenvolvimento do discurso psicanalítico. Para que isso? Para indicar certas linhas de desenvolvimento do discurso psicanalítico que esta problemática impõe. Isso também nos permitirá sublinhar alguns pontos de encontro entre Freud e seus discípulos, sejam estes seus contemporâneos ou outros analistas posteriores. Pode-se vislumbrar aqui um dos pilares centrais do pensamento psicanalítico, sem dúvida. Seria esta a razão pela qual o deslocamento do registro da infância para o do infantil se mostrou tão fecundo na tradição psicanalítica.

II. EVOLUÇÃO, ÍÍISTÓRIA E TEMPORALIDADE

Deve-se evocar, inicialmente, que a referência à infância no discurso freudiano se impôs a partir do paradigma teórico dominante na segunda metade do século XIX, isto é, o paradigma da evolução. Freud retomou este paradigma na versão forjada por Darwin, fundamentalmente. Porém se o discurso freudiano foi marcado pelos pressupostos da teoria evolucionista de Darwin, o que é inegável e reconhecido por Freud em passagens significativas de sua obra, isso não implica dizer que os pressupostos do paradigma da evolução não tenham tido incidência na construção da psicanálise por outras sendas teóricas que transcendem o campo da biologia. É este tópico que pretendo destacar para circunscrever a inscrição das categorias de infância e de infantil na psicanálise desde os seus primórdios.

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Prefácio

Por que insisto nesta diferença de origem teórica dos modelos de pensamento que marcaram a construção da psicanálise? Qual a importância disso? Porque a teoria da evolução foi a revelação mais evidente de uma construção teórica sobre a natureza, a cultura e a sociedade que perpassou todo o século XIX, segundo a qual as coisas do mundo seriam atravessadas pelo tempo e marcadas no seu ser pela história. Esta perspectiva delineou o horizonte da modernidade, ultrapassando em muito qualquer registro de ordem biológica. Vale dizer, restringir o alcance desta inovação ao discurso da biologia seria não vislumbrar a ruptura maior que então se processava, pela qual o ser do homem foi inscrito nas ordens do tempo e da história. E aqui que situa-se o fundamental desta problemática da infância. Com efeito, pode-se registrar a presença desde modelo de leitura desde A Fenomenologia do Espírito5, de Hegel, na aurora do século XDC. Neste contexto, Hegel realizou a crítica da filosofia de Kant, empreendendo a leitura histórica da natureza humana pela sua inserção na ordem do tempo. Foi realizada assim uma epopeia do espírito e da cultura humana, de seus primórdios até a modernidade. Ao lado da aventura filosófica hegeliana esta construção teórica se encontrava também presente no campo da constituição de diferentes saberes empíricos, através dos quais se estabeleceram diferentes positividades. No campo das ciências, aoruitomia comparada buscava circunscrever a historicidade dos organismos desde o final do século XVIII, 5 Hegel, G, W. F. La phénomenologie de Fesprit. Volumes I e II. Paris, AuMer, 1941.

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a gramática comparada pesquisava as relações de derivação das línguas a partir de um tronco comum no século XIX e a economia política investigava os processos de formação e de circulação de riquezas desde o século XVIII. Além dos campos da filosofia e das ciências, entretanto, a temporalização e a historicidade da natureza humana se revelavam também nos registros do imaginário literário, no qual a constituição do romance como género e a sua implantação na cultura como modelo preferencial de narrativa literária foi o signo mais evidente deste processo constitutivo da modernidade. Pode-se depreender aqui as similitudes dos procedimentos de construção da escrita que se estabeleceram entre as tradições filosófica e literária. Para evidenciar estas semelhanças basta recordar que a história do espírito humano, empreendida no projeto grandioso de Hegel em A Fenomenologia do Espírito, se realizou pelo viés do estilo romanesco, advindo dos romances de formação. Destacava-se aqui a incidência de Schiller e Goethe na escritura de Hegel. Na arqueologia da modernidade realizada por Foucault em As palavras e as coisas6, a teoria da evolução das espécies e a sua derivação para as demais ciências humanas seria somente um dos signos reveladores da episteme da história que se constituiu na virada do século XVIII para o século XIX. Teria se realizado assim uma ruptura radical com a episteme da representação, que teria regulado a produção de saberes e de conceitos na denominada Idade 6 Foucault, M. Lês móis et lês c/ioses. Paris, Gallimard, 1966.

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clássica. Nesta perspectiva, tanto a vida quanto a língua e a riqueza seriam atravessadas pela historicidade e pela temporalidade. Estas definiriam, pois, as variações significativas existentes nos registros do organismo, da linguagem e da moeda. Na versão de Darwin em A origem das espécies1, a humanidade passaria necessariamente por um processo evolutivo para se constituir como tal, desde os seus primórdios no reino animal até as suas realizações mais espetaculares. Desta maneira, o homem se inscreveria como espécie na ordem da natureza, estabelecendo-se nesta leitura uma descontinuidade crucial com as anteriores concepções teológica e divina sobre a natureza humana. Esta seria animal nas suas origens, regulada por ritmos vitais e pelos ciclos da natureza, de maneira que apenas após um longo processo evolutivo se realizaria a humanização da espécie humana tal como a conhecemos. Enfim, existiria uma infância da humanidade que apenas seria superada posteriormente, depois de um longo processo evolutivo marcado por seleções naturais. Assim, pela introdução da categoria de infância, para explicar a causalidade das perturbações psíquicas pela mediação da sexualidade, Freud construiu um modelo teórico para pensar o sujeito no qual este se constituiria pelo eixo do tempo. Com isso, o sujeito seria constituído pela história e seus destinos. Seria esta então a marca básica que o discurso inaugurador do século XIX legou para a constituição da psicanálise. 7 Danvin, C. Lês origines dês espèces au mo^en de Ia séíection naturelle ou Ia lutte pour 1'existence dons Ia nature (1856). Paris, Reinwald, 1882.

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Neste legado, entretanto, duas concepções se confrontam. Estas são diferentes, apesar de suas similaridades e até mesmo de suas proximidades. Por isso mesmo, cabe distingui-las pois a nuança é significativa. Por um lado a subjetividade é historicizada, marcada que é pela ordem do tempo; retira-se assim do sujeito qualquer substancialidade absoluta. Em contrapartida, a subjetividade é colocada num processo evolutivo, marcado pelos valores da seleção natural e da adaptação. Pode-se dizer que o discurso freudiano se iniciou com a concepção evolucionista de Darwin, através da qual encontrou os pressupostos mais abrangentes da episteme da história, o que lhe permitiu se decantar progressivamente de seus valores propriamente evolucionistas. Seria esta a hipótese que esboço aqui para que se possa pensar na introdução da categoria de infância nos primórdios da psicanálise e no seu deslocamento posterior para a categoria de infantil.

III. INFANTIL POR VOCAÇÃO? O traço de modernidade do discurso freudiano é assim evidenciado, instituindo-se por uma descontinuidade radical em relação às concepções de subjetividade que eram dominantes nos séculos XVII e XVHI. Com efeito, a psicanálise revela a sua originalidade teórica frente à psicologia clássica, iniciada pela filosofia de Descartes8, uma 8 Descartes, R. "MédLtations". Em: Descartes, R. Oeuvres et lettres. Paris, Gallimard, 1949.

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vez que desloca a indagação sobre o sujeito da ordem do pensamento para o registro da história de sua existência; o pensamento como critério fundamental do existir é submetido à temporalização de uma história. Nesta perspectiva, as demandas corpóreas passarão a regular as produções mais sofisticadas do espírito, que serão cadenciadas pela lógica das pulsões, e as vicissitudes do gozo, nos seus imperativos insofismáveis, serão permeadas pelas regularidades do tempo e passarão a se constituir numa história. Com efeito, não importa tão somente a sexualidade da individualidade como tal, mas a sua produção e a sua modelagem pela mediação das teorias sexuais infantis9. Estas se ordenam ao longo da história do sujeito, de maneira a imprimir as exigências do tempo no seu corpo e nas formações de seu espírito. Neste sentido, a leitura do sujeito como inscrito no campo de uma história implica definitivamente na sua encorpação, isto é, na incorporação do espírito num corpo. Desta maneira, a incorporação do espírito na carne, num corpo ao mesmo tempo pulsional e sexual, revela o que existe na infância do espírito. Nas suas origens e nos seus primórdios aquele é corpo, sem dúvida. Porém comprova-se ao mesmo tempo o registro infantil do sujeito, uma vez que o corpo seria a condição de possibilidade de uma história, pela sua insuficiência fundamental. Por isso, o sujeito será obrigado a historicÍ2ar-se para constituir possibilidades para a sua insuficiência vital, tendo que se 9 Freud, S. "Lês théories sexuelles infanriles" (1908). Em: Freud, S. La vis sexiíelle. Paris, PUF, 1973.

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assujeitar ao outro a fim de viabilizar-se para a ordem da vida. O sujeito tem que se historicizar para que a vida de seu organismo seja possível. Disso se pode depreender o paradoxo existente entre as ordens da vida e da história, pois seria pela via da historicização do corpo, mediada pela dependência ao outro, que a ordem da vida seria efetivamente possível. Sem isso o organismo humano seria inviável, dado as suas insuficiências, que seriam apenas ultrapassáveis pelo suporte do outro. Entreabre-se, com isso, as aventuras de uma história que constituirá o sujeito propriamente dito, até mesmo como corpo. Cabe indagar agora se esta infância é a contingência insofismável de nossa animalidade de origem, signo do enraizamento do sujeito no registro corpóreo, sendo superada por processos evolutivos e civilizadores. A infância seria, nestes termos, circunscrita no tempo e cronologicamente delimitada, sendo ultrapassada por etapas superiores da humanização. Ou se esta infância é insuperável, já que para além de um longo momento históricoevolutivo e cronologicamente circunscrito do sujeito a infância remeteria para um infantil que se encontra sempre presente na individualidade. Nesta outra leitura, então, o sujeito seria infantil por vocação e não apenas por contingência de sua história evolutiva10. Disso pode-se vislumbrar como o discurso freudiano se deslocou de uma problemática do sexual centrada na infância para uma outra onde a sexualidade reenvia para 10 Pontalis, J. B. Aí»rès Freud. Paris, Gallimard, 1968.

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o infantil. Isso porque arguiu as insuficiências da ordem vital, que colocam o humano na dependência de um outro. Nesta condição, o animal humano fica fadado a uma história, maneira de procurar ultrapassar as suas insuficiências estruturais. Porém reencontra a sua finitude e a sua mortalidade, evidenciando a perenidade do infantil.

IV. DA INFÂNCIA AO INFANTIL

Trata-se de pontuar agora este deslocamento entre a infância e o infantil no interior do discurso freudiano, destacando as diferentes figuras pelas quais o infantil se apresentou na psicanálise. Em seguida, cabe indicar a retomada do pressuposto do infantil na tradição psicanalíCica pós-freudiana, sublinhando a importância deste percurso de pesquisa na tradição psicanalítica. Assim, se ao longo dos escritos inaugurais de Freud, publicados na última década do século XIX, a infância já era uma referência constante para procurar dar conta das neuroses e das demais perturbações psíquicas, foi sem dúvida com a publicação de A interpretação dos sonhos11 e dos Três ensaios sobre a teoria sexual12 que a tese em pauta ganhou mais fôlego e consistência. Contudo é preciso considerar que neste novo patamar teórico do discurso freudiano, que se identifica como a constituição da psica11 Freud, S. LWerprétaton dês revés (1900). Paris.PUF, 1976. 12 Freud, S. Trots essais sur Ia théorie de Ia sexuaiité(l905). Paris, Gallimard, 1962.

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nálise no sentido estrito, se enunciou um paradoxo. Este revela a oposição entre os registros da infância e do infantil, assim como o deslocamento de Freud de uma indagação do primeiro para a do segundo. Com efeito, a alusão ao universo da infância e à sexualidade, que se impôs com as teorias sobre os sonhos e sobre a sexualidade, tinha como fundamento o assentamento daqueles no registro da/amasia, e não no da realidade. A infância referida se inscrevia no fantasma do sujeito, encontrando aqui a sua eficácia etiológica nas perturbações psíquicas. Seria, pois, a fantasmatização do sujeito sobre a sua infância, sobre o seu passado, que teria o poder de plasmar o seu imaginário e delinear as suas maneiras de gozar. Conseqtientemente, esta infra-estrutura fantasmática teria plena efetividade-na produção dos sintomas neuróticos. Na constituição da psicanálise propriamente dita, portanto, a efetividade da infância e do sexual migraram da realidade material para a realidade psíquica. Em contrapartida, pela célebre teoria da sedução13, formulada na última década do século XIX, as perturbações psíquicas das individualidades se ancorariam no real da infância, na sedução sorrida pelo sujeito. Era evidente para Freud que o efeito patógeno da sedução se inscrevia no campo da memória do acontecimento, pois os neuróticos sofriam de reminiscências14. Apesar da mediação da memória, era suposto que a sedução acontecida na realidade seria a responsável pela construção sintomática. 13 Freud, S. "L'étiologie de l'hystérie" (1896), Em Freud, S. Névrose, psychose et psrversion. Op. cit. 14 Freud, S. & Breuer, j. "Lês mécanismes psychiques dês phénomènes hystériques" (1893). Em: Freud, S. & Breuer, J. Eludes sur ITrystérie. Op. cit.

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Nestes termos, quando Freud numa carta a Fliess formulou "não acredito mais na minha neurótica"15, uma subversão se realizou na leitura da subjetividade pela psicanálise. Isso porque não seria mais pela efetividade da sedução ocorrida que se produziriam as perturbações mentais, mas no fantasma forjado de um suposto acontecimento. A consequência maior disso foi o deslocamento do sexual do registro da realidade material para o da realidade psíquica, para se interpretar em novas bases a lógica do espírito humano. A partir daí a sexualidade passava pelo fantasma que ordenaria o corpo erógeno. Nesta perspectiva, a infância foi remanejada na sua significação, pois se deslocou do registro genético e cronológico para o do funcionamento psíquico. Foi aqui que se constituiu propriamente o conceito de infantil, marcando a sua diferença com a noção evolutiva de infância. Existiria assim um infantil no psiquismo que seria irredutível a qualquer dimensão cronológica e evolutiva. Vale dizer, foi pressuposta a existência de um infantil no psiquismo que não se dissolveria na infância cronológica do sujeito. Seria desta maneira, enfim, que o sujeito seria marcado pelo infantil não por acidente de percurso, pelas vicissitudes do processo maturacional de desenvolvimento, mas por vocação. Este infantil por vocação recebeu diferentes versões ao longo do discurso freudiano e do pensamento psicanalítico pós-freudiano. No intercâmbio de Freud com os seus colaboradores mais próximos o infantil foi remanejado na sua significação de diferentes maneiras. É tudo isso que veremos em seguida. 15 Freud, S. La ntussonce de Ia psychandtyse. Paris, PUF, 1973, p, 190,

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V. AS VERSÕES DO INFANTIL

Logo nos primórdios do pensamento psicanalftico o infantil foi caracterizado como sendo o inconsciente. Foi aqui que o infantil se transformou num substantivo, perdendo o atributo negativo anterior, onde seria representado no registro da reminiscência. Do estado de um resto, que seria remanescente no campo da memória, o infantil se substantivou na estrutura do inconsciente. Neste, o infantil foi esboçado por diferentes traços que circunscreviam o seu ser. Antes de mais nada, o infantil se identificava com o desejo. O que existia de infantil no sujeito se representaria pelo universo caótico do desejo, que aquele não renunciaria jamais. Como desejo o infantil se tornaria patente pelos sonhos16, pelos atos falhos17 e pelo chiste18. Isso para nos referirmos à "psicopatologia da vida cotidiana", pois o infantil como desejo estaria presente também na formação do sintoma. Nesta medida, o desejo seria a forma de ser por excelência do infantil, a sua matéria prima primordial. Com isso, o infantil se identificaria também com o processo primário, que regularia o desejo e o inconsciente, contraposto ao processo secundário, que regularia a razão, a consciência e o eu19. Ainda neste contexto o in16 Freud, S. L'mterprétation dês revés. Capítulos II e VII. Op. cit. 17 Freud, S. Psychojxnologie de Ia víe quolidienne. Paris, Payot, 1973. 18 Freud, S. "Jokes and their relatíon Co the unconscious" (1905). Em: Slandard Edition of the complete {js^chologicol ivorks of Siginund Freud. Volume VIII. Londres, Hogarth Press, 1978. 19 Freud, S. Vinterprétation dês revés. Capítulo VII. Op. cit.

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fantil foi circunscrito como aquilo regulado pelo princípio do prazer, que se contraporia pontualmente ao princípio de realidade, regulador dos processo racionais20. Logo em seguida, com a formulação da teoria da sexualidade, o infantil foi identificado com a pulsão sexual21. Como fundamento do inconsciente e do desejo a pulsão sexual seria a matéria prima do infantil; este se consubstanciaria, pois, pelas pulsões perverso-polimorfas, que definiriam a essência da sexualidade e do gozo humanos. Nos ensaios metapsicológicos de 1915o infantil continua a se identificar com o registro pulsional, porém a pulsão começa a perder a sua identidade obrigatória e necessária com a sexualidade; a pulsão sexual é apenas uma das modalidades do pulsional22. A partir de agora, com efeito, existiriam pulsões sexuais e não sexuais, já que o discurso freudiano passou a opor a força pulsional e sua inserção no universo da representação. Somente a inserção do pulsional no registro da representação circunscreveria a pulsão sexual no sentido estrito, ao passo que a força pulsional no sentido estrito não teria qualquer atributo erógeno. Seria justamente esta força pulsional em estado puro que neste contexto remeteria ao infantil. A força pulsional se desdobrou na concepção de pulsão de morte nos anos 1920, pois a pulsão de morte se enuncia como uma modalidade de pulsão sem representação23. 20 Idem. 21 Freud, S. Trois «saís sur Ia théoríe de Ia sexucdité. 1° ensaio. Op. cit. 22 Freud, S. "Pulsions et destins dês pulsions"(1915). Em Freud, S. Métapsychologie. Paris, Gallimard, 1968. 23 Freud, S. "Au-delà du príncipe du plaisir" (1920). Em: Freud, S. Essois de psychanaijse. Paris, Payot, 1981.

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Na sua oposição permanente à pulsão de vida, a pulsão de morte seria a representação do infantil por excelência, a sua nova substancialidade. Com efeito, o infantil agora se revela pela dimensão diabólica da repetição que, como compulsão, dá corpo ao infantil. Como compulsão de repetição, a pulsão de morte foi alocada por Freud no Isso, na sua nova concepção do aparelho psíquico delineada em 1923M. Neste contexto, o infantil se inscreve no Isso, pólo pulsional do psiquismo oposto ao Eu e ao Supereu. Desta feita o infantil seria regulado pelo principio do Nirvana, não sendo mais identificado com o princípio do prazer, já que agora aquele remeteria para os registros da morte e da expulsão, e não mais da vida. No desdobramento desta concepção o infantil foi identificado com o trauma, pela superposição que se realizou entre a tópica do Isso, a pulsão de morte e a compulsão de repetição. Como registro do traumático o infantil passa a ser permeado pela angústia do real, isto é, por uma modalidade de angústia não inscrita no registro da representação e por isso mesmo na exterioridade do campo do desejo25. Sendo identificado com a substancialidade do traumático, o infantil seria a condição do sujeito onde a dita angústia sinal falha e não entra em cena, impondo ao sujeito o real açambarcador da angústia. Nesta derivação de conceitos o infantil torna-se representado pela figura do desamparo, que passa a obcecar 24 Freud, S. "Lê mói et lê ca" (1923). Idem. 25 Freud, S. InKibition, symptôme et ongoisse (1926). Paris, PUF, 1973.

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o discurso freudiano desde os anos 193026.0 infantil como trauma revelaria a posição de desamparo do sujeito frente ao que existe de imposição no impacto da força pulsional, que lança aquele no campo da angústia do real. Neste cenário, onde a angústia sexual não pôde antecipar o perigo para o sujeito, permitindo a este lançar mão de procedimentos simbólicos de proteção, apenas resta a fragmentação psíquica. Pela mediação desta o sujeito se rompe em pedaços, forma pela qual se realiza não apenas a incidência do traumático e do pulsional, assim como procura operar uma escaramuça definitiva para evitar o impacto da angústia do real e a posição do desamparo. Por esta figuração última o infantil se identificaria então com a clivagem do Eu, com o esfacelamento pulverizante do sujeito27.

VI. AS PASSAGENS PELA MORTE E PELO SINISTRO

Considerando a genealogia da categoria de infantil no discurso freudiano, pode-se evidenciar umadescontimtidade óbvia que estaria além desta descrição e de suas diferentes nomeações. O que me interessa sublinhar agora é adireção que assumiu Freud na construção desta categoria no campo psicanalítico. É esta direção de pesquisa que pode nos indicar as passagens entre o discurso de Freud, o de seus discípulos próximos e o da psicanálise pós-freudiana. 26 Freud, S. Moloise daru Ia cívilisaiion (1930). Paris, PUF, 1971. 27 Freud, S. "Splitting of the ego in the process of defense"(1933). Em: Standard Edttíon of the complete ps^choíogical ivorícs of Sigmurui Freud. Volume XXIII. Op. cit.

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Assim, dos primórdios da investigação psicanalítica até os anos 1915 e 1920 o infantil se identificava com o registro da sexualidade, isto é, com o campo do desejo e com o que era regulado pelo princípio do prazer. Após os anos 1920, em contrapartida, o infantil passa a ser circunscrito como o que não pode ser erotizado e como o que é regulado por um além do princípio do prazer. Vale dizer, o infantil passa a ser identificado com o real da angústia e com trauma, com aquilo capaz de lançar o sujeito no desamparo e de promover o seu esfacelamento. Depreende-se disso que o infantil se deslocou do eixo da vida para o da morte, que passou a dar a tónica do funcionamento primordial dos processos psíquicos. A existência psíquica não seria uma consequência automática da condição do organismo vivo, mas implicaria numa construção complexa, na qual a pulsão de vida precisaria dominar o movimento espontâneo do organismo para a morte e a imobilidade28. Nestes termos, necessário seria o trabalho de ligação do outro, que pelos investimentos erógenos seria capaz de possibilitar ao jovem humano a proteção face ao desamparo primordial e o domínio de sua prematuridade essencial. Isso porque neste contexto a pulsão seria traumática por excelência, esfacelante para o sujeito. A razão disso se deve ao rato do psiquismo passar a ser concebido como atravessado por intensidades e marcado por um excesso que o campo da representação não conseguiria absorver imediatamente. O trauma se constituiria justamente nes28 Freud, S. "Lê problème économique du masochisme"{1924). Em: Freud, S. Névrose, psychose et perversion. Op. cit.

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te gíip, neste intervalo sempre representado entre o excesso da força pulsional e a impossibilidade de interpretação pelo sujeito daquele excesso. Com isso, os representantes-representação da pulsão (Freud) e os significantes (Lacan) estariam sempre atrasados na sua possibilidade de dominar o impacto da força pulsional que transbordaria no real da angústia. Como consequência o infantil revela a posição de desamparo do sujeito frente à "exigência de trabalho da pulsão"29. Enfim, evidencia-se a razão pela qual o indivíduo humano seria infantil por vocação e não por acidente no seu percurso gene tico-evolutivo. Pode-se também depreender desta genealogia da categoria de infantil que Freud introduziu novamente o trauma no seu discurso, no final de seu percurso teórico. Contudo, transformou-se radicalmente o sentido do conceito de trauma em psicanálise. Com efeito, se nos primórdios da psicanálise o trauma estava identificado com o real da sedução, posteriormente o trauma revelaria a dimensão sinistra daquela. Se a sedução era erotismo, mesmo que esta produzisse efeitos também dolorosos, em seguida seria apenas dor, sem restos prazerosos. A sedução agora se identificaria com o poder da morte, com o excesso pulsional que o sujeito não pode absorver pela via interpretativa, portanto com aquilo que lhe transborda e lhe fragmenta. Assim, se a sedução era anteriormente beijo e carícia, erotização corpórea do sujeito, agora transmuta-se em impacto desconcertante, anunciando a face hedionda da 29 Freud, S. "Pulsions et destins dês pulsions"(19l5). Em: Freud, S. Métapsychologie. Op. cit.

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morte. Esta se torna presença pelo esfacelamento corpóreo que promove, encharcando o sujeito pelo real da angústia. A sedução nos reenvia para além daquele beijo, para algo que se desloca do calor úmido da carícia para o que há de frio e de árido no horror da morte.

VII -. O INFANTIL, O ACONTECIMENTO E A PRESENÇA ABSOLUTA

Porém isso não é tudo. Algo mais se impõe aqui, que é fundamental para definir as relações do sujeito com as .ordens do tempo e da história. O trauma e a sedução seriam aquilo que se inscreve num registro temporal muito particular, pois não sendo ainda algo da ordem propriamente da história, seriam a condição de possibilidade de historicízação para o sujeito. Como acontecimento, o trauma tem a consistência de uma presença absoluta, que se representa permanentemente como compulsão de repetição. Esta presença absoluta, como acontecimento, seria agora o oposto de uma história. Porém seria aquilo que impõe ao sujeito a demanda de se historicizar, única forma possível que se coloca para este de dominar o acontecimento traumático. Enfim, a interpretação como trabalho de ligação do traumático seria a possibilidade única que resta ao sujeito para historicizar a presença absoluta da morte como acontecimento crucial de sua existência. Com efeito, inscrevendo-se no território do imóvel regulado pelo além do princípio do prazer, paralisado pelo fascínio da ordem do inorgânico e pelo encantamento sinistro do Nirvana, o trauma se inscreve agora fora da

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temporalidade histórica, isto é, na exterioridade do tempo da narrativa e da eternidade do desejo. Como presença absoluta, o trauma e a sedução evidenciam a pontualidade do tempo, posto que é puro acontecimento. Como eterno presente, que insiste em se apresentar, o trauma está fora da dialétíca da temporalidade histórica, na qual entre o passado, o presente e o futuro se forja o tecido intrincado de uma história. Por isso mesmo o trauma e a sedução evidenciam algo que se situa na exterioridade da história, isto é, da temporalidade cadenciada do desejo e da narrativa concatenada dos acontecimentos. Seria isso que delinearia a categoria do infantil no percurso final do discurso freudiano. O infantil como vocação fundante do sujeito estaria para além da história e da dialética temporal do desejo. Porém o infantil seria, por isso mesmo, a condição de possibilidade para que o sujeito pudesse constituir uma história e se plasmar pela temporalização. Enfim, sem o solo fundante do infantil o sujeito estaria fadado à imobilidade produzida pela plenitude, sem ter qualquer fratura no seu ser que lhe impulsionasse para a construção de uma história.

VIII. A LÍNGUA DO INFANTIL

Nestas passagens pode-se depreender como e onde se realizaram os percursos teórico-clínicos dos discípulos de Freud e dos analistas pós-freudianos no que concerne ao território do infantil. As trilhas, destes e daqueles, foram traçadas sempre para surpreender o que existia de sinistro

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no infantil. Para delinear as fronteiras deste território apátrida e sem nome, pois situado fora do tempo e da história, os psicanalistas foram obrigados a aprofundar os enunciados de Freud na direção de um além daquele beijo. Isso porque o infantil enfeixava agora, nos seus destinos, impasses e paradoxos, a matéria prima fundamental da experiência psicanalítica. A direção da cura psicanalítica se centrava em constituir destinos possíveis para o infantil, de maneira a inscrevê-lo no campo do desejo e do erotismo. Seria esta a única forma de transformar a substancialidade sinistra do infantil em história, marcando-o pela dialética da temporalidade. Trata-se, pois, de se defrontar com o infantil em estado nascente, para transformá-lo nos primórdios de uma história para o sujeito. Como origem, imobilizado pela presença absoluta da morte, o infantil seria finalmente a condição de possibilidade para ofiat lux do sujeito, numa história cadenciada pelo desejo. Foi nesta trilha de pesquisa que foram empreendidos os percursos de Ferenczi no final de sua obra. Realizou-se aqui, diga-se de passagem, o que este fez de mais criarivo para o conhecimento psicanalítico do sujeito, tanto no registro teórico quanto no manejo clínico de situações consideradas impossíveis para a comunidade analítica de então. É preciso reconhecer aqui não apenas a originalidade do discurso ferencziano frente aos seus contemporâneos, como também o seu lugar privilegiado para delinear o campo da psicanálise na atualidade. Isso porque soube captar a seriedade que a questão do infantil colocava para a teoria e a clínica psicanalíticas.

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Reconhecendo, nos anos 1920, a fecundidade teórica das novas leituras freudianas sobre o infantil, Ferenczi construiu outros conceitos que lhe permitiram seja inventar novos procedimentos metodológicos para a experiência analítica, seja reinventar em outros termos a versão freudiana final sobre o infantil. É justamente aqui que se inscreve o Lugar de criador ocupado por Ferenczi na história da psicanálise, assim como a sua imensa atualidade. No que concerne a isso tudo é sempre o infantil que está em questão no seu discurso, sendo esta a sua problemática sine qua non. Nesta perspectiva, Ferenczi retoma o início do percurso freudiano para inverter o seu sentido, pois agora a sedução é uma carícia sinistra e mortífera que lança o sujeito no trauma e na angústia do real. Nesta imersão do sujeito no caos e no dilaceramento fragmentador, no além daquele beijo, é preciso transformar a catarse em neocatarse30. Pela mediação desta atualização transferencial o trauma poderia revelar a sua dimensão trágica pára ser inscrito numa história. Esta, como qualquer outra história, se faz pela corporeidade e pelo afeto que a escande como narrativa. Foi esta retomada do afeto que Ferenczi realizou na experiência psicanalítica, fazendo trabalhar a hipótese freudiana da pulsão de morte. Com isso, procurou dar conta do excesso que impregna o psiquismo do sujeito, oferecendo trilhas possíveis para o seu desdobramento e simbolização pela neo-catarse. É sempre os destinos possíveis para este excesso o que está em questão. 30 Ferenzi, S. "Princípio de relaxamento e neo-catarse" (1930). Em: Ferenczi, S. Obras Ccnrtffetas. Volume IV. São Paulo, Martins Fontes, 1992.

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Por isso mesmo, em Confusão de língua entre os adultos e a criança pôde contrapor a dita linguagem da ternura à linguagem da paixão, para dar conta daquele excesso no sujeito que se materializaria como desamparo e fragmentação psíquicas31. Com efeito, o infante seria marcado traumaticamente pelo adulto justamente porque, falando a linguagem da ternura, não poderia ter meios para dominar a linguagem da paixão deste último. Esta seria marcada pela perversidade, pela dimensão mortífera da sedução. Com isso, se fragmentaria de maneira pulverizante, pois buscaria num desmentido silenciar psiquicamente aquilo que se evidencia de forma clamorosa no seu corpo, isto é, a sedução sinistra de que foi objeto. Neste contexto, o sujeito se constitui numa posição de "criança sábia", maneira pela qual procura manter de maneira idealizada as figuras parentais32. Com isso se ocultam seus gestos perversos, a sua face torpe e horrenda. A raiva provocada pela submissão masoquista e pela manipulação de que foi objeto conduziria o sujeito para o reconhecimento da linguagem da paixão. Seria esta a via para se dominar o infantil, inscrevendo-o numa temporalidade e transformando-o numa narrativa. Este infantil por vocação estaria na base do sujeito, fundando o seu ser, nos diz literalmente Ferenczi. Seria por isso mesmo que qualquer análise de adulto implicará sempre na análise do infantil33. Este fala continuamente 31 Ferenczi, S. "Confusão de língua entre os adultos e a criança" (1933). Idem. 32 Ferenczi, S. "O sonho do bebé sábio". Idem. Volume III, 33 Ferenczi, S. "Análise de criança com adultos" (1932). Idem. Volume IV.

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a linguagem da ternura, maneira pela qual o sujeito procura salvar a face hedionda das figuras parentais e mesmo parodoxalmente de curá-las. O exercício do psicanalisar em última instância implicaria, pois, na instauração de uma outra linguagem, pela qual se evaporariam o desmentido e a fragmentação, oferecendo ao sujeito outros destinos possíveis para o seu excesso e desamparo.

ix, ARCAICO E ORIGINÁRIO Foi justamente este eixo teórico-clínico, fundado no último Freud e em Ferenczi, que marcou a leitura pósfreudiana sobre o infantil, no que esta teve de mais fascinante e de fecunda. Esta é ainda uma das vias mais ricas da psicanálise na atualidade, revelando a sua pujança e o seu fôlego inventivo. Ainda hoje se mantém, em suas linha gerais, esta concepção do psicanalisar. Desta maneira, a dimensão estrutural do infantil — o infantil por vocação, repito — passaria a revelar a leitura do sujeito e marcar as vicissitudes do processo psicanalítico. Não haveria análise sem que o infantil fosse a caixa de Pandora do psicanalisar, a sua finalidade. Isso se evidencia pela obviedade de que, no fundamental, mesmo os oponentes teóricos vão na mesma direção da cura psicanalítica. As contradições doutrinárias, no que concerne a isso, são secundárias face a esta finalidade estratégica imposta pelo psicanalisar.

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Assim, se em Melaine Klein o infantil se revela dramaticamente pela posição esquizo-paranóide, que deve ser dominada pela lógica da posição depressiva34, o infantil em Winnicott se enuncia de maneira mais suave pelos efeitos do espaço transicional e da mãe suficientemente boa35. Apesar das diferenças teóricas óbvias nestas concepções do psicanalisar, é sempre o infantil que está em questão para ambos. Isso para me referir à tradição inglesa da psicanálise em sua face mais fecunda e criativa. Contudo, na tradição francesa o infantil se enunciou de maneira diferente no discurso psicanalítico, por diferentes autores. Com efeito, nesta direção de pesquisa a categoria do infantil se enunciou pelos conceitos de arcaico e originário em diversos discursos sejam estes de Conrad Stein36, de Piera Aulagnier37 e de Jean Laplanche38. Neste, a concepção do originário se funda na teoria da sedução generalizada, maneira pela qual Laplanche funde as concepções de Freud e de Ferenczi para fazer a passagem para a psicanálise da atualidade. E como arcaico e originário que o infantil se apresenta ainda na atualidade psicanalítica. Nestes termos, o infantil seria aquilo que se situaria fora da temporalidade do desejo e da construção da narrativa histórica, isto é, num tempo primordial marcado pela presença absoluta do trauma e da ameaça flagrante de morte. Neste registro a mors

34 Klein, M. Psicanálise da criança. São Paulo, Mestre Jou, 1975. 35 Winnicott, D. W- Piayingand recduy. London, Penguin Books, 1988. 36 Stein, C. Venfant imagina/ré. Paris, Denõel, 1971. 37 Aulagnier, P. La vtolence de 1'interpretatian. Paris, PUF, 1975. 38 Laplanche, J. NoiweauxfonàemenKfiMThpsydvmaiyx. Paris, PUF, 1987.

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te seria soberana, na sua absoluta presença que obceca completamente o sujeito. O infantil seria aquilo que não se fez ainda história, estando colado como presença no registro do acontecimento. Como tal o infantil seria do registro do mito, daquilo que fala de maneira circular e insistente do Mesmo, onde o Outro como alteridade radical ainda não se inscreveu pela dialética do presente, do passado e do futuro. Porém é evidente que, como mito e como origem, o infantil seria a condição do sujeito construir uma história, forjando pela ficção uma narrativa cadenciada de seus primórdios. Com efeito, o infantil seria então a marca impressa no corpo da impossibilidade humana, no seu esforço sempre recomeçado para tornar possível o sujeito, que revela a finitude humana no seu confronto permanente com a morte. Naquela se evidencia contudo a única possibilidade de historização para o sujeito, que de sua incompletude será fadado necessariamente à simbolização do seu excesso e de suas intensidades. Desta maneira, poderá aquele dominar as marcas de seus traumas que lanham o seu corpo frágil e quebradiço, para dar um destino suportável à sua vocação para o desamparo.

X. UM BEIJO, AFINAL DAS CONTAS

É nesta linha de pesquisa que se inscreve este belo livro, escrito a quatro mãos por duas psicanalistas inquietas com os destinos atuais da psicanálise. Nos nove ensaios que compõem esta obra fecunda de boas ideias, ambas

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procuram retomar, numa linguagem nova, a problemática do infantil na atualidade do campo psicanalítico. Percorrendo a trilha teórica que se construiu com Freud e Ferenczi, as autoras desdobram a sua reflexão através de Lacan, de Winnicott e de Melaine Klein, relançando o infantil nos percursos atuais do mundo psicanalítico, e procuram introduzir na psicanálise os desenvolvimentos atuais da pesquisa científica com bebés, como o trabalho de Daniel Stern, e de reflexão filosófica, como o de Gilles Deleuze e Félix Guattari, para repensar hoje no estatuto do infantil. Evidencia-se assim a riqueza desta obra que procura circunscrever o deslocamento cruciai que se operou pela psicanálise da "análise da infância ao infantil na análise". Para a realização deste projeto, entretanto, é preciso quebrar com as muralhas que emparedam o campo psicanalítico da atualidade. Com efeito, é preciso ultrapassar a casca superficial das diferentes doutrinas, para fazê-las dialogar entre si sobre o infantil. Com isso, promover a interlocução entre os surdos, permitindo que os mudos possam falar entre si de maneira inteligente. As autoras revelam a sua grandeza de espírito ao se valerem da riqueza da tradição psicanalítica sem qualquer mesquinharia e mentalidade de seita, para possibilitarem o diálogo de diferentes autores sobre o infantil na psicanálise da atualidade. Despidas de preconceitos, fazem Freud dialogar com Ferenczi, apesar de suas broncas recíprocas. Da mesma maneira, fazem ambos dialogarem não apenas com os analistas pós-freudianos, mas também com a tradição científica e filosófica da atualidade. Com isso, Lacan pode

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retomar o seu diálogo interrompido com Melaine Klein e com Winnicott— algo hoje já esquecido—, para relançar a problemática do infantil na psicanálise e delinear os destinos desta na atualidade. Porém isso não é tudo. Ainda bem! O debate teórico e conceituai não fica preso a si mesmo, ao suposto rigorismo da lógica teórica. As autoras pretendem sair do suposto rigor da escolástica conceituai, que se revela de uma grande esterilidade intelectual; dão um chega para lá na infecundidade de certas querelas atuais do campo psicanalítico, presas na repetição fatigante dos credos das posições doutrinárias. Dizem em surdina: chega de masturbação teórica! Assim nos convidam para o verdadeiro trabalho intelectual na psicanálise. Ufa! Que alívio poder sair desta sopa entediante que tira o gosto agradável das boas discussões e nos deixa amargos. Para a realização disso as autoras evocam que no campo psicanalítico a construção conceituai se relaciona com o registro da clínica. Este é o segredo de Polichinelo da produção intelectual na psicanálise, segredo que os psicanalistas frequentemente esquecem tal a sua obviedade. Com efeito, para se mostrar fecunda a retórica dos conceitos se nutre de seu solo, isto é, de uma reflexão sempre recomeçada sobre a experiência psicanalítica. Esta é a única possibilidade para a sua renovação, para dar frescor aos conceitos e retirá-los da condição cadavérica de entidades platónicas. Desde os tempos heróicos da constituição da psicanálise sempre foi pela via de uma indagação inquieta sobre a experiência analítica que a teorização se realizou;

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de maneira febril, pois o que interessava aos psicanalistas era captar os desdobramentos e as vicissitudes daquela experiência seminal. Nas últimas décadas do movimento psicanalítico isso foi esquecido e a teorização em psicanálise se transformou numa retórica estéril. Esta é a razão pela qual o discurso psicanalítico se transformou em diferentes doutrinas rivais, que nas suas mediocridades e fundamentalismos não debateram mais entre si, mas se digladiam como numa guerra de religiões. No Brasil, esta condição pequena do campo psicanalítico atinge o nível do descalabro. Ao perder a ligação orgânica com o solo fecundo da experiência, a retórica escolástica dos conceitos atinge entre nós os pináculos da surrealidade. Com isso, a escolástica psicanalítica se torna absurda e caricata pois não diz mais nada; transformase num simples jogo vazio de palavras, completamente deserotizado e sem tempero. As autoras deste livro nadam contra a corrente, no que concerne a isso também. Não são as únicas, evidentemente. Porém engrossam o manancial daqueles que se contrapõem a esta hipocrisia de uma parcela significativa do campo psicanalítico da atualidade. Para isso, trabalham conceitualmente considerando as suas experiências clínicas. Ousam expor as suas experiências psicanalíticas, nos seus sucessos e fracassos, para renovar a leitura conceituai em psicanálise e possibilitar a interlocução criativa entre as diferentes tradições psicanalíticas. Para isso é preciso leveza. Vale dizer, é preciso um espírito desprendido e lúdico. Para se trabalhar com o infantil em psicanálise, encarando a finitude e o confronto

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insistente com a morte, necessário é se perguntar sobre o brincar na sua banalidade ontológica. É preciso ter humildade e grandeza para se reconhecer que esta banalidade não é tão óbvia assim. É por isso que o brincar ocupa uma posição estratégica nesta obra não apenas para repensar o lugar deste método na análise de crianças, mas também para inscrevê-lo na análise de adultos. Pode pensar, pois, na possibilidade de sua inserção no tratamento de crianças hospitalizadas. Para concluir, é preciso evocar ainda que as questões da atualidade, além de serem o solo da experiência psicanalítica, são o outro do debate conceituai. A renovação da psicanálise como teoria sempre se realizou pelas vias da clínica e da sensibilidade para as questões atuais da cultura, sem as quais aquela perde qualquer gosto e interesse. No que concerne a isso também a obra mostra o seu tempero, voltando-se para questões muito atuais, como o suicídio de crianças e o impacto da televisão no imaginário infantil. Por tudo isso, em suma, trata-se de um livro renovador do espírito da psicanálise no Brasil, que nos revela que esta começa a entrar na maturidade de maneira decisiva, apesar de seus tropeços inevitáveis. Já era tempo, afinal das contas. Ganhamos com isso um beijo, não sinistro, evidentemente.

Rio de Janeiro, 20 de abril de 1997 Joel Birman

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INTRODUÇÃO

O que leva o psicanalista a escrever? O interesse teórico, clínico, o desejo, e mesmo a necessidade de expressar suas ideias, compartilhá-las com outros, sair da solidão do consultório? Um pouco disto tudo e mais ainda, provavelmente. A ideia deste livro nasceu da experiência de uma escrita conjunta na qual duas analistas resolveram elaborar um trabalho de reflexão sobre um caso clínico. O que nos entusiasmou foram, dentre outras coisas — como sempre existem muitas—, nossas diferenças, pois nossas práticas clínicas e origens teóricas são distintas. Uma vem dedicandose ao atendimento de crianças e a outra, à clínica de adultos. No entanto, fomos descobrindo em nossas conversas e estudos que esta diferença, ao invés de nos afastar e dificultar a discussão, trazia uma curiosa combinação de pensamentos. Desta maneira nasceu um trabalho que buscava essencialmente uma aliança no interior das diferenças em lugar de excluí-las, pois esta é uma das grandes dificuldades da prática analítica. De maneira geral os analistas se agrupam pelas semelhanças de suas escolhas e tendem a desconsiderar as outras possíveis. Reproduz-se no campo psicanalítico a tendência da ciência moderna de colocarse como a única ficção possível, passando a constituir um campo de verdade inquestionável e fechando-se às discussões e aos diálogos teóricos.

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nta Roza ffEliana Schweler Reis

Temos todos, inclusive, dificuldade em reconhecer a legitimidade de outras práticas terapêuticas, reproduzindo um pouco a preocupação da medicina moderna em depurar seu campo de ação para diferenciá-lo do que seria charlatanismo. O que a medicina faz com o que ela chama de "efeito placebo", nós psicanalistas tendemos a fazer com as correntes diferentes das que escolhemos. Acabamos por nos esquecer que fizemos uma escolha, considerando nossa posição como a única verdadeiramente psic analítica; tomamos as demais como erros e creditamos seus efeitos terapêuticos à incomensurabilidade da transferência, ou seja, mera sugestão. O que buscamos desfiar ao longo deste livro — atravessando as diferenças e similitudes conceituais de vários autores — é a ideia de que as indagações relativas à análise de crianças são fundamentais para a prática da psicanálise, já que o infantil se apresenta no espaço analítico como o que não se deixou domar, muitas vezes como o inominável, o trauma que impede a organização de sentidos múltiplos que possam se entrelaçar em desejos. Não importa, portanto, se o paciente é uma criança ou não, importa sim que o analista possa se entegrar com seu analisando à aventura de tornar visível o que se oculta, dizível o não dito, e mais do que isso, tornar possível a emergência de algo que, mesmo estando presente como marca de um vivido, não existe como lembrança, não se aproveita como experiência, não se enuncia como desejo. Falar da análise da infância é falar do infantil na análise, é falar do brincar como processo de organização, linguagem, expressão e complexificação da vida. O que é a

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Introdução

transferência senão a possibilidade de encenarmos nossos teatros próprios, de brincarmos de "esconde-esconde", de "mamãe-posso-ir", de "estátua", de "papai e mamãe", de "passar anel" e tantos outros. Cada sessão de análise põe em jogo um novo cenário e uma nova direção que podem modificar os antigos roteiros. Este livro foi uma forma de brincarmos juntando nossas histórias, nossa prática clínica, nossas leituras e interesses teóricos com a intenção de trazer para o texto um pouco do prazer que tivemos conversando e discutindo as questões e os ternas tratados. O livro é também a continuação e o desenvolvimento de nossos trabalhos anteriores1. Durante sua elaboração procuramos pensar os impasses de nossas experiências clínicas. Cada texto resultou do que disso compartilhamos. Da análise na infância ao infantil na análise, de um caso clínico elaborado a quatro mãos configurou-se uma parceria na qual tentamos aprofundar a reflexão sobre temas que vão desde os classicamente psicanalíticos, como sonhos, trauma, jogo, linguagem, narcisismo e teoria das pulsões, até os que tratam de questões polémicas da atualidade, como heterogênese e complexidade. Esperamos que o resultado deste encontro transmita aos leitores alguma coisa deste prazer, pois acreditamos que para produzir conhecimento é preciso afetar e se deixar afetar com intensidade pelo outro e pelo mundo. l Trauma e repetição no processo psiccmalítíco: umaobordagem/erencziana, dissertação de mestrado em teoria pskanalítica de Eliana Schueler Reis, e Quando brincar é dizer: a experiência psicanalíaca na infância, de Eliza Santa Roza. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2a ed., 1995.

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DE UMA ANÁLISE NA INFÂNCIA AO INFANTIL NA ANÁLISE trauma, repetição e diferença em Ferenczi

Eliana Schueler Reis & Eliza Santa Roza

Em abril de 1979 uma analista recebeu em seu consultório um menino de quatro anos, indicado por uma colega que havia sido procurada para uma orientação um ano antes, ocasião em que Mário—é como vamos chamá-lo — perdera sua mãe num acidente de carro. Eis seu relato colhido na primeira entrevista com a avó paterna: Mário e sua mãe iam à praia, o carro foi fechado por um ônibus e, ao desviar-se, atingiu um poste. No impacto, a mãe de Mário foi jogada contra o volante mas não ficou inconsciente, não teve ferimentos aparentes; foi levada a um hospital para exames e lá entrou choque e morreu, em consequência de uma hemorragia interna. O menino nada sofreu e foi Levado do local do acidente para casa dos avós por uma viatura da polícia.

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Elicna ScKucler Reis & Elica Santa Roza

A partir deste fato uma problemática familiar foi acirrada: sua avó materna, que sempre fora contra o casamento de seus pais, tendo perdido a única filha mulher, passou a acusar o genro — que tinha apenas 21 anos — de ter sido o causador da fatalidade pois havia dado um carro à esposa; o pai de Mário retornou à casa paterna e elegeu seus pais para cuidarem de seu filho, o que desencadeou uma disputa das famílias por ele. De um lado a avó materna jogando-o contra o pai e estimulando as lembranças da mãe (mostrava fotos, levava-o ao cemitério para ver o túmulo); de outro a família paterna evitando o assunto, adiando a notícia da morte por considerarem-no muito pequeno (diziam que a mãe havia viajado), procurando "aplacar" a dor de Mário com excesso de carinho , presentes e poucos limites. Mário tornou-se um verdadeiro "problema": agitado, desobediente, provocador. Gritava, quebrava coisas à toa, fugia na rua, xingava a todos, corria sem parar. Fazia, segundo o relato da avó, "todo o tipo de bobagens" em casa e na escola. Quando visitava sua avó materna, voltava "pior", dizendo "barbaridades" como: "Foi meu pai que matou minha mãe". No primeiro contato com Mário a analista se deparou "ao vivo" com as descrições da avó. Uma criança muito agitada, correndo o tempo todo pelo consultório, acendendo e apagando as luzes, gargalhando, derrubando livros e papéis, tentando passar cola nos móveis e na roupa da analista numa atitude francamente provocativa. Aos limites reagia dizendo: "Você não me manda".

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Da análise na infância ao infantil na análise

Na segunda sessão Mário se apresentou de modo semelhante mas já conseguiu explorar os brinquedos, e deuse o estabelecimento da transferência. Pegou um carrinho vermelho e atirou-o longe, dizendo: "O carro da minha mãe era vermelho, eu odeio vermelho". A analista lhe disse que devia odiar tudo o que lhe lembrava que não tinha mais urna mamãe, e Mário respondeu: "Você é mágica? Adivinhou como?" Após este breve diálogo Mário retornou à agitação e às gargalhadas ante a impossibilidade do adulto de limitá-lo; era rápido demais. Pegou o molho de chaves na porta, correu para a janela ameaçando atirá-lo, e disse: "Agora nunca mais vamos sair daqui, vou ficar a vida toda aqui". A analista se aproximou lentamente, dizendo que aquilo não iria adiantar, pois teriam que se separar em algum momento mas que haveriam muitos outros encontros entre eles. Ele ouviu, saiu da janela e entregou as chaves. As sessões subsequentes deram início a uma série de jogos Fort-Da: abria e fechava janelas, apagava e acendia luzes, destacava papéis, rasgava-os e tentava colar. Em algumas sessões seu próprio corpo era objeto: numa delas saiu correndo da sala, voltou, foi para o corredor do prédio. A avó ameaçou dar-lhe palmadas mas não o fez. A analista sinalizou o seu desejo de sentir-se protegido contra si mesmo, pedindo limites, e a avó, compreendendo esta fala, virou-se para Mário e lhe deu umas palmadinhas. Mário chorou, entrou na sala quietinho, encostou-se no corpo da analista e ficaram olhando a rua.

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Eliana Schweler Reii & Elí^a San

O controle, o desafio, o triunfo, o pedido de limites surgiram em quase todas as sessões durante os dois primeiros anos de análise. Mário testava a capacidade da analista de sobreviver a ele; dela não desviava seu olhar e a capturava por inteiro ao tentar estragar coisas, sujar a sala, espalhar os livros etc. Numa ocasião falou sobre seu medo de monstros. Algo assustador e monstruoso dentro dele retornava como fantasia fóbica. Ele próprio se tornara uma espécie de monstro: criança insuportável e sem limites. Custava-lhe muito ter que separar-se da analista e assim instauraram-se fenómenos transictonais1. Mário levava pequenos objetos a cada final de sessão e não os largava nem para dormir. Ele dizia: "Vou levar seus negócios". No começo do terceiro ano de análise ocorreu uma mudança substancial em Mário imediatamente após uma determinada sessão. Nesta sessão, pediu para ir ao banheiro logo que chegou. Como demorasse, a analista foi ver o que estava havendo e encontrou Mário manipulando o extintor de incêndio. Tentou impedir que abrisse a válvula mas já era tarde. Acionado o extintor, a espuma saía em jatos, atingindo a analista e todo o banheiro, enquanto Mário dava gargalhadas. Travaram uma luta corporal e em seguida a analista com raiva encerrou a sessão dizendo: "Você passou dos limites. Suma-se daqui. Não quero mais lhe ver hoje". Espantadíssimo com esta reação Mário perguntou baixinho: "E na próxima vez, eu venho?" A analista o reassegurou do retorno dizendo que o esperava na sessão seguinte. l Winnicott, D.W. Pltrçing ara! reality. Londres, Penguin Books, 1988.

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Da análise nu infância ao infantil na análise

Mário voltou com medo, tímido e assustado. Mas já não era mais o mesmo. Propôs uma brincadeira de "cair no poço e salvar" que consistia em dividir a sala em regiões: os poços de jacarés, cobras etc.; cada um na sua vez deveria "cair", gritar por socorro e ser salvo. Analista e criança alternavam os papéis de vítima e salvador. A dupla sobreviveu ao ódio, e disso brincaram durante meses. A partir daí a análise transcorreu de forma mais tranquila; Mário passou efetivamente a brincar e falar. Atuava bem menos, estava muito melhor em casa e na escola. Aos oito anos quis interromper e aos nove pediu para voltar, tendo ficado mais um ano e trabalhado praticamente uma única temática: o novo casamento de seu pai. Quinze anos depois do primeiro encontro de Mário com a analista, esta recebe um telefonema seu, pedindo um retorno à análise. O rapaz está com 19 anos e traz queixas de excesso de nervosismo e "descontrole"; dorme mal e tem fortes dores no estômago. Briga com a namorada e tem medo de machucá-la. Qual a questão fundamental que permeia a vida de Mário e que o traz de volta à análise tantos anos depois? Embora esta situação suscite a discussão sobre o final de análise na infância, este caso, se considerarmos os dados referentes à análise atual de Mário, também nos conduz ao caminho da problemática do trauma. A partir das concepções de Ferenczi tentaremos tecer algumas reflexões, procurando traçar os elos entre os dois períodos de análise deste caso. O que vemos inicialmente é uma situação de polarização, na qual uma família explora a morte da filha (mãe

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de Mário), enquanto a outra evita disso falar. Porém, o acontecimento foi negado por ambas e não houve como realizar o luto pela morta. Como Mário poderia dar sentido ao seu vivido — o acidente —, se o sentido ficou esfacelado nessas duas versões? Se aderisse à versão dos avós maternos, teria que encarar o pai como assassino. Como fazer uma identificação com um pai infantil e assassino, sem se tornar um monstro? Por outro lado, os avós paternos, que foram designados por este pai para dele cuidar, não assumiram uma versão própria, ou seja, "quem cala consente". A Mário restou a dúvida crucial: Será seu pai o culpado? Ou, o pior de tudo, será que o culpado não é ele próprio, Mário? O que se passou no imaginário dessas duas famílias, girando em torno de um acontecimento dramático? Mário não podia elaborar sua perda, uma vez que ninguém a sua volta pôde fazê-lo. A culpa parecia atravessar a todos, não poupando ninguém, Mário tornou-se então o ponto de tensão máxima de toda a história. Foi a testemunha chave e ao mesmo tempo aquele que não morreu, que sobreviveu no lugar do outro. Ele é culpado de viver. Mário — "(...) Estou apavorado. Acho que minha namorada está grávida(...) Eu não quero filho, mas e se ela fizer um aborto e morrer? Eu vou ser o responsável(...) Ai, já estou até vendo, a cadeia, a polícia vindo me pégar(...) Ai..." Analista — "Polícia? O que te lembra polícia?" Mário — "Nada(...) Nunca tive nada com a polícia, graças a Deus(...) Pêra aí...no acidente, eu fui no carro da polícia... só me lembro disso, eu tinha três anos".

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De análise na infância ao infantil nfl análise

As relações entre a mulher amada, a morte e a culpa surgiram nitidamente nesta sessão. A conduta onipotente da criança transformou-se numa problemática obsessiva na adolescência. Controlado e controlador por sua conta, Mário reproduz na atualidade com a namorada o amor/ódio da relação com a mãe. Seu medo é de que, tal como a mãe, a namorada não sobreviva ao seu ódio, que surge na perspectiva da ideia de um filho, Identificação com o "pai-assassino"? Podemos nos perguntar se a angústia experimentada por Mário chega a se delinear como angústia de castração. A angústia vivida por toda a família, e da qual Mário sempre foi o porta-voz, diz respeito à angústia de separação, angústia de morte. Percebemos que através do mecanismo da negação, utilizado maciçamente, eles tentam escapar da necessidade de afirmar a perda dolorosa, porém real. Quantas perdas estariam sendo condensadas naquele acidente fatal? A hipótese que nos parece mais plausível nesse caso é a da auto-clivagem narcísica de Mário. Vejamos melhor esta questão. Ferenczi, definindo sua nova abordagem sobre a questão traumática ligada ao surgimento de angústias incontrolãveis e atuações incoercíveis, afirma que a existência do trauma torna a criança fixada em certas atitudes obstinadas. "A personalidade ainda fracamente desenvolvida reage ao brusco desprazer não pela defesa, mas pela identificação ansiosa e a introjeção daquele que a ameaça"2. ZFerenczi, S. "Confusão de língua entre os adultos e acriançan(l933). Em: Obras Completos. Volume IV. São Paulo, Martins Fontes, 1992,p.l03.

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Como já assinalamos, a questão da identificação surge de modo assustador posto que Mário só pode se identificar com um pai acusado da morte de sua mãe e que não pôde se desfazer dessa acusação, pois se omitiu e não assumiu o lugar de pai de seu filho. Mário não teve como desenvolver sua capacidade de juízo, já que lhe faltaram os elementos para elaborá-la. A palavra, o sentido, a significação se apresentavam muito comprometidos nessa família. A avó dizia que ia dar uma palmada, mas não fazia um gesto efetivo nesse sentido, ficando uma palavra vazia. O jogo de Fort-Da, que Mário esboçava quando criança, implicava em lançar a si próprio no abismo. Não havia uma simbolização possível da angústia de separação pois estavam todos presos a ela tentando negá-la. Mário fala de seu carro em praticamente todas as sessões desde seu retorno à análise. Tem tanto medo de que seja roubado que não consegue aproveitar uma festa. Ele próprio é seu guardador, tendo que sak da festa inúmeras vezes para verificar se o carro continua no lugar em que estacionou, se não tem pessoas sentadas em cima dele etc. O jogo de Forí-Da que Mário empreendia com o próprio corpo na infância é agora deslocado para o carro. Mário — "Quando estou na praia, paro o carro num lugar que eu possa ver quando subo na onda. O pessoal fica me sacaneando, porque às vezes não desço em onda boa só para não perder o carro de vista". Na verdade, desde o início Mário pareceu ser o único do grupo a afirmar a necessidade de elaboração da perda. Ao tornar a vida de todos insuportável quando criança,

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Da análise na infanda ao in/tmti! na análise

ele tentava forçá-los a olhar para o seu drama. De uma certa forma, Mário encarnava o papel de "psiquiatra da família". Este termo foi cunhado por Ferenczi para designar a reação da criança a uma experiência que não pode ser elaborada pelo grupo familiar, recaindo sobre ela a responsabilidade pelo sofrimento dos outros. Esta criança sente-se encarregada de "cuidar" dos outros membros da família, ficando submetida a um "saber" que não se liga aos afetos. Há uma clivagem entre um eu machucado e um "eu que tudo sabe e nada sente".3 Mário era o psiquiatra louco que enlouquecia a família para que ela não se esquecesse de sua história. O problema é que ele, como criança, não podia dar sentido aos seus afetos e aos dos outros. Desse modo, nada se ligava, ficando somente a tentativa desesperada de Mário para dar um sentido à perda do objeto (mãe, pai etc.) O traumático no caso de Mário não foi o acidente em si, mas a impossibilidade de representá-lo segundo um código significativo para todos os envolvidos. O acidente não encontrou um equivalente simbólico, ficando então como puro acontecimento, fixado no seu presente, não podendo se tornar passado, memória, e ser esquecido. A impossibilidade de fazer ligações ameaça romper com o sentido e estabelecer a primazia da pulsão de morte. Seus comportamentos de criança terrível apontavam para isso. Suas atuações no curso da análise atual reforçam esta hipótese: 3 Ferenczi, S. "Análise de Crianças com Adultos"(1932). Em: Obras Completas. Volume IV, op. cit., p. 77.

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Mário — "Vou viajar, adoro. As estradas são perigosas mas eu ando a HO km por hora, assim me livro delas mais rápido e corro menos perigo..." Em sua "lógica" consciente Mário atira-se à repetição. No terceiro mês desta análise sofre um grave acidente, porém mais uma vez não se fere. Mário — "Acabei com o carro [descreve o acidente]. Ninguém sabe como não me machuquei... Foi milagre... Foi o destino... Não tenho mesmo que morrer de acidente de carro!" Analista — "E você está tentando? Testando?" Mário ri e diz: "A primeira coisa que fiz foi perguntar ao meu pai se meu acidente foi igual ao de minha mãe". Sabemos que o trabalho de luto normalmente é feito através de uma ligação hiperacentuada com o objeto, para então decompô-lo em suas mínimas partes, podendo deste modo o sujeito enlutado introjetar sua relação com o objeto perdido, transformando-a em investimentos de objetos internos e desfazendo-se gradualmente do objeto perdido como presença4. Os movimentos de Mário — ligar e desligar, ir e vir, brincar e destruir—representavam sua tentativa de trabalho de luto pela morte da mãe, realizado na transferência à analista. No primeiro período da análise de Mário o momento crucial que possibilitou a reconstrução/destruição do objeto e conseqúentemente a elaboração de algum luto, deuse na sessão em que a analista o mandou embora. Essa palavra, esse gesto reafirmaram a existência de Mário, 4 Freud, S. "Duelo y Melancolfan(1917). Em: Obras Completas. Volume XIV. Buenos Aires: Amorrortu,1986, p.241-55.

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Da analise na in/ância ao infantil na análise

confirmaram para ele a sua substancialidade assim como a da analista. Não podia fazer tudo porque os dois existiam e ela sabia cuidar de sua (da analista, e dele, analisando) segurança. Ao mesmo tempo, quando a analista expressou sua indignação, ela o reconheceu como sujeito existente, colocando-o num plano de consistência em que nunca se encontrara: o da responsabilidade pelos seus atos e pelas consequências destes sobre o outro. Introduziu-se aí a possibilidade de um desejo para Mário. Nessa sessão em que houve uma ruptura, reafirmouse o laço transferencial. Já podia haver uma salvação para Mário e seus objetos. A ruptura fazia-se necessária para que pudesse haver uma (re)ligação dos objetos fantasmáticos. O que podemos pensar sobre a vivência traumática de Mário é que ela não pode ser pensada simplesmente como resultante da morte da mãe. Esta morte ativou vários conflitos existentes no grupo familiar, conflitos estes que se fixaram em torno do acontecimento. Temos então algo semelhante ao desmentido a que se refere Ferenczi. O choque traumático produz uma reação de "anestesia", a "comoção psíquica" que interrompe a atividade psíquica, desligando-a da percepção. A ligação só pode ser refeita à medida que houver um outro sujeito que atue como mediador. Desse modo, um acontecimento violento que atinja uma criança, de tal modo que ela não tenha condições de significar, terá um efeito traumático se não houver um adulto (portador da palavra) que exerça uma função interpretante. Se o acontecimento não puder ser repetido pela palavra, através da narrativa a um

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outro que possa servir como receptor/transmissor, sua virulência não será mediada, permanecendo como uma marca fixa inquestionável, porque não representada5. A noção de desmentido recoloca o traumático na ordem da linguagem, criando porém o espaço necessário para pensarmos aquilo que, sendo da ordem da percepção, irrompe no vivido mas deixa de ser representado. Havendo o desmentido, há trauma e há a clivagem do eu. Mário costuma dizer agora que não confia em ninguém. "Todos mentem para mim", diz ele. O acontecimento traumático sendo desmentido não tem como se inscrever no campo das representações, passando a existir como uma memória sem memória, ou seja, suas marcas se apresentam como reais, atuais, no sentido das neuroses atuais, identificadas por Freud como afecções sem conteúdo psíquico, manifestadas em sensações corporais, crises de cólera, de angústia e fobias. Mário retorna para a análise em busca de sua memória. A analista de sua infância foi a testemunha de sua história e ele crê que é com ela que ele pode reencontrála, refazê-la. Vendo o computador em cima da mesa da analista, Mário procura saber: "Você tem a vida de seus pacientes em disquetes?(rindo) Você tem aí um disquete de minha vida? Posso ver?" Perguntado em ocasiões como esta sobre suas lembranças da análise anterior, Mário sempre alega que era muito pequeno e que não conseguia lembrar nada. No entanto, no decorrer desta análise vem trazendo lembranças atra5 Ferenzi,S. "Análise de Crianças com AduItos"U932), op. cit., p. 79.

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vês de situações externas relacionadas ao consultório. Lembra das lojas que ficavam embaixo do prédio (a análise atual se passa em outro consultório), lembra da sala "muito grande" (ele é que era pequeno), e às vezes pergunta. "O que é que eu fazia lá? Minha avó diz que eu tocava o terror..." (e ri). O que Mário procura aos 19 anos é não ter que encarnar mais uma vez em sua vida o terror (schreclc) resultante do trauma. Como sucedâneo da memória Mário tem a repetição. Quando se trata dos afetos ele não tem autonomia, age diretamente comandado pela repetição. O perigo aparece nos repetitivos sonhos com cobras, que ele associa com o veneno e por sua vez com as mulheres. "As mulheres são veneno". O que estará sendo expresso nessa frase? O perigo representado pela sua proximidade? A ameaça de morte que paira sobre os seres femininos é equivalente à ameaça que paira sobre ele de se tornar assassino e ter a punição tão esperada, pois como nenhum sentido foi dado, o crime permanece impune. O sentido que permanece fixado é o do crime e castigo. Achamos interessante ressaltar a questão de repetição, inclusive porque Mário busca a mesma analista: "Acho que é você quem pode me ajudar" é uma das frases da primeira entrevista da análise atual. Ele vem repetir com ela na tentativa de fazer as ligações. No momento atual, Mário não consegue um domínio das pulsões posto que está preso no fluxo de repetições. Ao mesmo tempo é nessa repetição da repetição transferencial que ele deposita a esperança de não repetir mais o traumático. Ferenczi fala da repetição na transfe-

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rência que possibilita a inscrição de algo novo como rememoração. A presença do analista serve de suporte à repetição e no entanto algo é diferente.6 E através da semelhança e da diferença com sua vida infantil que pode se abrir para Mário o caminho para a solução do trauma.

6 Ferenczi, S. "Princípio de Relaxamento e Nêo-catarse" (1930). Em: Obras Completas. Volume IV, op. cit., p. 67.

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VIDA E MORTE DO BEBÉ SÁBIO Elicma Schueler Reis

O que sabemos nós dos bebés, principalmente dos bebés sábios? De onde vem essa ideia que mais parece saída de contos infantis, não tendo nada a ver com as coisas sérias da psicanálise? Pois bem, Ferenczi nos fala de um sonho que aparece com uma certa frequência no relato de seus pacientes, um sonKo no qual um bebe muito pequeno fala e diz coisas doutas, ensinando aos adultos e deixando-os perplexos. Para ele este sonho revela muitos desejos entrelaçados, entre eles o desejo infantil de suplantar os grandes em sabedoria. Ou seja, uma inversão da situação na qual a criança vê serem baldados seus esforços para compreender os segredos da sexualidade humana, sentindo-se diminuída diante dos adultos1. Neste artigo, acompanhando a produção de Ferenczi, nos propomos a desenvolver alguns temas para uma reflexão teórico-clínica. l Ferenczi, S. "O sonho do bebé sábio". Em: Obras Completas. Volume III. São Paulo, Martins Fontes, 1992, p. 207.

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A CRIANÇA DO DESEJO

O sonho do bebé sábio representa, entre outras coisas, a criança das teorias sexuais que tenta elaborar, através do estabelecimento de equivalências (entre buracos: boca/ânus; entre conteúdos: comida/bebés), um saber ao qual nunca poderá ter um acesso satisfatório, mas que serve de matéria-prima para a criação de um mundo imaginário e simbólico, no qual o brincar e o fantasiar atuam como motores da produção de subjetividade. Com o desenvolvimento de sua obra Freud vem a descobrir que, antes da puberdade, a criança não tem condições — por mais que receba as informações adequadas — de conceber o papel do pai na concepção e a existência da vagina, pois este saber depende de uma articulação de aspectos cognitivos e afetivos que ela não pode fazer por si própria porque não tem ainda a experiência da sexualidade genital. A partir desta constatação, Freud desiste de esperar que a psicanálise possa vir a ter uma função profilática nas neuroses e afirma que este fracasso inevitável da criança deixa um rastro de ambivalência em relação ao conhecimento. Como consequência disto, instala-se por um lado o ressentimento e o sentimento de desvalorização intelectual, e por outro uma atitude de revolta e a tentativa de superar os limites. Esta ambivalência estará sempre presente no sujeito em suas relações afetivas e em suas elaborações intelectuais. O sonho do bebé sábio nos coloca ante a criança que experimenta as marcas de um saber não submetido intei-

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ramente à lei do mundo dos adultos. Esta é a criança das teorias sexuais infantis que comete um "bom erro" em suas avaliações sobre a sexualidade dos adultos; é o perverso-polimorfo, cujo prazer não se organiza segundo certas interdições. Este bebé nos incomoda em nossos sonhos, em nossos sintomas, ao aparecer em sua forma mais arcaica. Para ilustrar a discussão sobre este tema, vou me utilizar do relato do sonho de uma mulher, cujo processo de análise fez emergir fantasmas de um abandono precoce, que propiciou a organização de sistemas defensivos maciçamente construídos através de identificações negativas com aspectos do feminino ligados ao prazer e à maternidade. De uma certa forma este sonho marcou a passagem para uma nova etapa de sua análise e de sua vida.

Sonhei que estava tomando conta de uma criança, mas era uma criança esquisita. Ela falava, apesar de ser um bebé pequenininho. Falava e xingava muito. Gritava palavrões. Era um saco, mas eu tinha que tomar conta dela. O pai tinha deixado ela comigo. Aí eu estou numa praia e tem uma outra terra lá do outro lado, como se fosse uma ilha. Eu resolvo ir para lá, mas acho melhor mergulhar e Lr nadando debaixo d'água. Quando eu cheguei lá lembrei que o bebé estava nas minhas costas e que ele devia ter se afogado. Quando eu pego nele percebo que está se desfazendo, ele está morto, mas não tem mais a mesma forma. Então eu fiquei com medo do pai dele, do que ele ia dizer, ia achar que eu era culpada. Mas eu não estava nem angustiada, estava aliviada por ele ter morrido. Foi um alívio não ter mais aquele bebé terrível comigo.

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Partindo deste sonho em particular, podemos começar a explorar o tema do bebé sábio que além de nos remeter às questões do recalcamento, também anuncia um outro aspecto do viver infantil abordado por Ferenczi em seus últimos trabalhos. Estou me referindo a um outro saber efetivo sobre o sexual que as crianças possuem e esquecem, e que às vezes não lhes é permitido esquecer. Em nosso exemplo podemos distinguir um aspecto do sonho que foi ressaltado por Conrad Stein num artigo sobre o sonho do bebé sábio em seu livro As Erínias de uma Mãe: é a figura do bebé terrível, irado, que xinga a todos e os persegue com seu ódio. Stein considera o bebé sábio como a criança odiada, rejeitada, que aparece como figura mítica superposta à figura de Édipo; segundo ele, trata-se de um mito de origem que traz à consciência, através do sonho, a marca trágica da transmissão, no decurso de gerações, de um saber que diz respeito às experiências carregadas de paixão, culpa e ódio, assim como apresenta a transmissão de uma possibilidade de amor e desejo2. Stein privilegia o aspecto do ódio porém outros sentidos podem se desdobrar nesta imagem onírica, como veremos mais adiante.

A CRIANÇA DA DOR E DO ÓDIO

Ferenczi considera a sexualidade infantil como um registro de linguagem definido como "linguagem da ternura", que possui modos e intensidades próprios, enquanto 2 Stein, C. "O bebé sábio segundo Ferenczi" Em: As Erínias de Uma Mãe. São Paulo, Escuta, 1988.

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a "linguagem da paixão" caracteriza o registro da sexualidade adulta. Entre a linguagem da ternura e a linguagem da paixão existe um diferencial de intensidades que não pode ser anulado. O desencontro entre estes dois registros do sexual é inevitável e necessário para que o psiquismo infantil se desdobre e crie novas formas de inscrição para aceder à complexidade da linguagem do adulto. Vemos que a questão do sexual tal como é abordada por Ferenczi delimita um campo de linguagem e não de comportamentos. Não se trata somente do que cada um, criança e adulto, pode fazer, mas como essas práticas organizam campos de significação distintos, sobre os quais incidem os códigos culturais com suas interdições e possibilidades de transgressão. A linguagem da ternura encontra sua expressão principalmente através do brincar, de um certo "faz de conta" em que a satisfação se dá pelas pequenas descargas. Já a linguagem da paixão pressupõe um potencial de intensidade construído pelo recalcamento, pela inserção do sujeito na ordem da lei e da castração. Entre estas duas línguas há um espaço irredutível que nenhuma tradução pode alcançar, e neste espaço se constrói o sujeito. Em meio aos desencontros e às transgressões estruturadoras da subjetividade há certos "tabus" que não devem ser transgredidos, pois representam a garantia mínima do reconhecimento da alteridade da criança. São as interdições que estabelecem diferenças entre gerações, entre sexos, entre uma subjetividade e outra subjetividade, garantindo um espaço vazio, por mínimo que seja, para que se introduza a noção de presença e ausência necessária

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à instalação dos investimentos e do circuito pulsional no processo de introjeção. Se o adulto se relaciona com a criança sem levar em conta essas diferenças, está ignorando o registro próprio dos desejos infantis e anulando-a como sujeito. E neste momento que nos deparamos com um acontecimento de ordem traumática potencialmente desestruturador do processo de subjetivação. Em nosso sonho temos dois personagens em cena: um bebé irado e a moça que dele cuida. Ela tem que carregálo pois ele faz parte dela, ambos são personagens de uma mesma história feita de ódio e amor. Stein, como já vimos, privilegia a transmissão do ódio, já que este serviria como impulsionador à produção de um saber—a criança traumatizada torna-se extremamente sagaz e esperta para dar conta de seu sofrimento. O ódio serve portanto como proteção contra a fragmentação vivida na experiência traumática. Utilizando a potência do ódio, a criança que sofre o efeito da pressão traumatizante exercida pelo adulto (ele é o meio ambiente que a estaria impulsionando a um acesso brutal ao saber) tende a amadurecer precocemente, tornando-se aquele que tudo sabe. Com isto temos uma espécie de aceleração da temporalidade, uma "queima de etapas" perturbando os ritmos de desenvolvimento de faculdades potenciais da criança, que experimenta o acesso abrupto a um saber sobre a violência dos afetos humanos. Ela é lançada nesta temporalidade através da identificação com o adulto agressor quando este fracassa radicalmente em seu papel de introdutor da cultura e representante da lei. A criança vê-se então convocada a assumir o papel do adulto e se

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tornar o pai t a mãe de seus pais, ou nas palavras de Ferenczi a tornar-se o "psiquiatra da família", assumindo a culpa e a responsabilidade que o adulto não pôde assumir pelos seus atos. A noção de identificação ao agressor define esta relação em que a criança tende a se identificar com a vulnerabilidade narcísica percebida no adulto, tentando compensá-la. Como consequência desta aceleração no tempo do viver, a criança se vê na impossibilidade de dar sentido às suas vivências excessivamente intensas e transformá-las em experiências que façam parte do seu repertório simbólico. Ter sua subjetividade, ameaçada, seu espaço psíquico invadido por estímulos intoleráveis porque incompreensíveis, caracteriza o trauma. A ruptura traumática, uma vez que se marca como excesso, não se inscreve como representação, como traço mnêmico. O choque traumático, segundo Ferenczi, tem um efeito fragmentador do qual o sujeito se defende pela auto-clivagem narcísica, criando um espaço de viver paradoxal, no qual um eu passa a saber tudo mas não sente nada, enquanto o eu ferido mantêm-se especialmente suscetível a tudo que emana do sensório mas está impedido de saber. A imagem onírica do bebé sábio surge como representação desta clivagem, na qual dois eus convivem sem se tocarem.

O DESENCONTRO ESTRUTURATX>R

Considerando a dimensão de acontecimento traumático, a figura do bebé sábio remete à criança que adquire um saber sobre o sexual antes do tempo para compreendê-lo.

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A noção de trauma não se restringe, como se pode pensar mais imediatamente, à situação clássica de uma criança violentada sexualmente por um adulto. O trauma é sempre sexual; sabemos porém que o sexual em psicanálise diz respeito aos investimentos pulsionais, ao estabelecimento de relações de equívalências entre as sensações de um corpo que entra na vida e o mundo que o circunda. Sexualizar é fazer ligações, é humanizar e subjetivar. O bebé humano nasce imerso na cultura, ele não é um ser da natureza, e o pertencimento à cultura se constrói num processo dinâmico da relação entre o bebé e aqueles que o recebem, que devem dele cuidar e iniciá-lo na vida. Segundo Freud, a mãe seduz seu filho para a vida, para o amor, ao tocá-lo, acariciá-lo e investi-lo com seu desejo. O que deseja uma mãe para seu filho? Geralmente que ele cresça bonito, forte, saudável, inteligente e capaz de realizar em sua vida as aspirações de que ela talvez tenha tido que abdicar. Porém as relações dos pais com seus filhos não seguem somente este padrão. Quantas vezes aparece o ódio e o desejo de morte! Quantas vezes deseja-se não ter todas aquelas atribulações e angústias! Sim, porque o filho reedita para cada um de nós todas as possibilidades de prazer e de terror que foram experimentadas em nossa própria história infantil. Deste modo, a sedução realizada pela mãe não tem um sentido unívoco de amor e prazer. Está carregada de sentimentos ambivalentes que podem se presentificar nas variações das tonalidades afetivas, da voz, dos gestos, do corpo, ou, quando a intensidade dos conflitos se revela maior, nas ações dirigidas à própria criança. Ferenczi afirma que, entre os objetos do mundo, os seres humanos têm como

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característica própria serem instáveis, são os únicos objetos que "mentem"3. E o fazem não porque sejam perversos — apesar de poderem sê-lo — mas porque não sabem de sua verdade, estão imersos na ordem do recalque, da culpabilidade e da má consciência. Esta "mentira" tornase constitutiva do sujeito, deixando-o com uma brecha entre o registro pulsional e as possibilidades de articulação de seu desejo com o mundo. Ê nessas dobras obscuras do desejo inconsciente do adulto que a criança encontra espaço para se constituir como nova subjetividade e não somente ser a cópia fiel deste outro. O desencontro entre os códigos infantil e adulto produz desintrincações pulsionais e a liberação da potência disjuntora da pulsão de morte. Na brecha destas disjunções têm origem os traços mnêmicos que surgem como "cicatrizes de impressões traumáticas costuradas pela força de Eros"4. No espaço vazio dá-se o processo de subjetivação e é neste mesmo terreno do inesperado que está a possibilidade do acontecimento traumático. Consideramos portanto que o trauma não faz sua marca como fato isolado; faz parte de um conjunto de relações que dificultam ou impedem a circulação do sentido. Quando o sofrimento torna-se indizível há como que uma "imensidão de tempo vazio"5 que se prolonga numa dimensão de espaço/tempo ampliada, vivida como um "não estar lá", na qual os contornos do eu se desvanecem. 3 Ferenczi, S. "A adaptação da família à criança" (1928). Em: Obras Completai. Volume IV. Op. cit, p- 11. 4 Ferenczi, S. "O problema da afirmação do desprazer" (1926). Em: Obras Completas. Volume 111. Op. cit., p. 40Z. 5 Deleuze, G. Conversações. Rio de Janeiro, Editora 34,1992, p. 198-9.

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O Trauma está fora do tempo cronológico e mesmo fora do tempo do traço mnêmico, dos sistemas de memória inconsciente. Com isto altera-se a noção de a posteriori, na qual o trauma se dá em dois tempos, instaurando um passado que se atualiza no presente como reminiscência. O trauma visto por Ferenczi é o que se repete num tempo único, original, no qual não há passado nem presente, somente a repetição agida como acuai.

A CRIANÇA COMPASSIVA

Retomar o tema do trauma psíquico implica colocar em questão o recalcamento como forma predominante de organização de defesas na neurose. Segundo Ferenczi, a vivência traumática leva o sujeito à comoção psíquica que atua como um estado psicótico passageiro; neste se rompe a continuidade do processo identificatório através do qual o sujeito se reconhece. O sonho do bebé sábio expressa a violência desta experiência que obriga a criança a amadurecer mais rápido, através da fixação de identificações paradoxais, para poder cuidar de si, de sua sobrevivência, e desempenhar o papel que caberia ao adulto. Para escapar da fragmentação psíquica a criança torna-se pai de seus pais, mas paga um preço por isso: a autoclivagem narcísica implica na perda de modalidades experienciais que organizam o registro do infantil segundo a linguagem da ternura. Passando por um amadurecimento precoce, forjado de suas feridas, o eu infantil se

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organiza em torno de sentidos unívocos, impedido de aceder à polissemia do desejo. Deste modo, paralelamente ao ódio, o tema do bebé sábio nos confronta com outro efeito da clivagem utilizada como estratégia de sobrevivência subjetiva: o surgimento de uma criança compassiva que cuida de si e dos outros de várias formas, desde a auto-observação à observação acurada das relações em processamento em seu ambiente familiar e à interpretação compulsiva do real, através de uma leitura semiótica de informações que circulam num nível não verbal. O sujeito torna-se especialmente sensível às modulações afetivas emergentes que correspondem aos afetos de vitalidade, definidos por Stern6 como as variações de intensidades de tonalidade afetiva presentes em todo ser vivo. Os afetos de vitalidade se diferenciam dos afetos categóricos, nomeados como alegria, tristeza, raiva, dor, medo, etc., que se constituem como conceitos representacionais afetivos. São estados indefiníveis de apreensão sensória imediata, epidérmica, através da qual percebemos as variações intensivas, tal como os ritmos, tonalidades de voz, tônus corporal e de movimentos entre outros, presentes de modo inconsciente em todas as ações que realizamos. Segundo Stern, a integração das impressões sensíveis resultantes de cruzamentos amodais dos afetos de vitalidade constituem a emergência de um senso de eu e do outro que permanece como fundamento inconsciente do processo de subjetivação. 6 Stern, D. O mundo interpessoal do bebé. Porto Alegre, Artes Médicas, 1992, p. 47-53.

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Baseado em dados retirados de observações e experimentos dos psicólogos desenvolvimentalistas, Stern afirma que os bebes, desde seu nascimento, dedicam-se à tarefa de organizar suas experiências, num incessante trabalho de doação de sentido ao seu mundo através da organização de suas primeiras percepções. O que um bebé inicialmente percebe dos outros são estas variações de intensidade presentes em cada gesto, em cada tom de voz, que não são definidas por categorias afetivas mas que lhe apresentam uma infinidade de sensações. Pela repetição cotidiana dessas variações serão construídas pelo bebé algumas séries de invariantes ou "ilhas de consistência", sob as quais se dá a organização de um senso de eu e do outro emergentes. Esta sensibilidade emergente permanece ativa de forma perene, servindo de suporte às outras formas subsequentes de subjetivação, funcionando como uma retaguarda para a qual se recua ante a um sinal de ameaça ao equilíbrio atual. É como se esta memória sensória arcaica, pré-verbal, nos servisse como sistema de reorientação nos momentos de ruptura do sentido construído pelo sistema de representações simbólicas. O senso de eu emergente possui uma forma de saber estranha à linguagem verbal e conceituai, estranha ao universo simbólico humano no que este tem de histórico e cultural.

O ESTRANHO INFANTIL

Através desses conceitos procuramos nos aproximar do que seria uma subjetividade "bebé sábio", com toda a

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estranheza que esta imagem produz: a de um ser que, mesmo sabendo, permanece sendo um bebé. Um ser meio monstruoso fruto da hybrist assim como os seres míticos feitos de partes de seres diferentes, que mostram em sua ambiguidade a natureza tortuosa do espírito humano. Esta subjetividade nos confronta com algo que permanece atuando paralelamente, nem soterrado pelo recalque nem acessível ao sentido, mas clivado do eu social. No sonho relatado a imagem do bebé falante e irado remete à angústia resultante dos confrontos entre os mundos infantil e adulto, pois ao mesmo tempo que é bebé e precisa de cuidados, ele tem o poder de agredir e incomodar. O incómodo é causado pela presença do infantil no que este representa para nós aquilo que não foi submetido a uma ordenação simbólica. Não se trata, portanto, da relação da criança real com o adulto real, pois a presença do bebé sábio não se esgota num confronto intersubjetivo entre o adulto e a criança. Trata-se primordialmente de um confronto intra-subjetivo, já que o adulto traz em si a presença da criança que não deixou de ser. Mesmo clivada ou recalcada, ela retorna com os efeitos inconscientes de uma nostalgia, expressando a memória do desamparo experimentado na primeira infância, a angústia primordial de separação e ameaça de aniquilamento. A imagem do bebé sábio representa uma ameaça interna para o adulto quando simultaneamente o seduz e assusta com sua onipotência. É o "estranho familiar", o que é mais próximo e ao mesmo tempo mais desconhecido; a criança que não precisou crescer e passar pelas vicissitudes da vida para saber-se submetida à ordem do trau-

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maciço emerge como angústia de morte e instala um tempo que se repete sempre como presente. O bebé sábio foi percebido por Ferenczi como o que nos remete ao infantil, àquilo que não se deixa dizer mas se faz presente nos atos, nas sensações inesperadas seja através do sintoma, do sonho, seja nas possibilidades de criação de algo novo. Não é uma questão de lembrança do passado, mas de experiência presente, pois não somos todos, como pensava Ferenczi, bebés sábios tentando compreender um mundo que sempre nos surpreende?

O QUE O SONHO TRAZ

Ferenczi considera que todo sonho tem uma função de liquidação de traumas, já que "o estado de sono facilita a tendência à repetição de impressões sensíveis traumáticas não resolvidas e que aspiram à resolução"7.0 ato de sonhar permite a atualização dessas impressões através de pequenas descargas pulsionais e de um trabalho de resignificação realizado pelo sonho. Desta forma, o sonho não é apenas uma tentativa de realização de desejos recalcados, mas principalmente a possibilidade de reviver o trauma (como assinala Freud a respeito dos sonhos traumáticos e dos sonhos em análise8) e através dessa repetição realizar o trabalho de ligação do excesso pulsional que ameaça a subjetividade. 7 Ferenczi, S. "Reflexões sobre o trauma" (1934)- Em: Obras Completos. Volume IV. Op. cit., p. 111-3. 8 Freud, S. "Más alia dei principio de placer" (19ZO). Obras Completas. Volume XVIII. Buenos Aires, Amorrortu, 1989.

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Vida e morte do bebé sábio

No sonho da paciente vemos aparecer a clivagem através dos dois personagens: a moça adulta e o bebé que carrega nas costas; ela tem que cuidar dele para seu pai. A figura compassiva deve cuidar do outro intratável. Porém a figura de pai presente neste sonho garante a permanência da dimensão da lei da cultura e não de uma lei pessoal. Por isto ela não se vê paralisada de terror pela morte do bebé, ao contrário sente alívio por não precisar mais carregá-lo. Seu temor pela reação do pai não é maior do que seu alívio, pois na presença da figura paterna está a possibilidade de mediação dos sentimentos de ódio e culpabilidade. Nenhuma punição absurda, nada que tenha o poder mortal de anular o sentido virá desta figura. Ela sabe que deverá se explicar sobre a morte do bebé, mas isto representa a inserção da destrutividade na ordem da linguagem. A morte do bebé se dá por afogamento, mas ele na verdade se desfaz, perde os contornos terríveis, vira outra coisa. Este sonho vem como possibilidade de expressar desejos e aspirações, o que até então fora vivido como interditado, sendo todo o investimento concentrado na evitação de um mal que pudesse estar causando a alguém. A culpabilidade exacerbada é resultante da identificação com figuras percebidas como criminosas, das quais ela herdara diretamente a culpa, sentindo-se sem condições de diferenciar o que é da ordem do desejo, que pertence ao registro da pulsão sexual, e o que é da ordem da destrutividade pura, como expressão da pulsão de morte. Quando nos aproximamos da obra de Ferenczi, o que primeiro chama a atenção é sua preocupação com a cura,

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sua inquietação com o sofrimento e a consideração pela presença concreta da dor no espaço da análise. Ele se pergunta que contribuição a análise pode dar àqueles que passaram por uma desilusão desmedida e encontraram na fragmentação de si a única medida defensiva possível. A resposta esboçada por ele em seus últimos trabalhos e em seu Diário Clínico é que cabe ao analista se manter disponível para admitir que esta realidade psíquica só pode se expressar numa dimensão agida, pois não se formulou ainda como um código de representações simbólicas. Ou seja, não há condições de se estabelecer equivalências do tipo "como se" onde não existe uma mediação imaginária e simbólica para o vivido. Se o narcisismo do analista suportar a pressão exercida por esta transferência em muitos momentos agida, produz-se um mergulho em profundidade em diferentes estágios desse 'estar-fora-de-si', 'estar ausente1, fora do tempo e fora do espaço, da onísciência, da visão à distância e do agir à distância.9

A imagem do mar pode ser vista como este mergulho na análise e na vida, trazendo a possibilidade de reconstruir na relação transferencial as identificações com aspectos da feminilidade e da maternidade que estavam congeladas pelas marcas traumáticas de um abandono vivido muito precocemente. Este sonho traz à tona a possibilidade de se desfazer a posição de criança sábia, amadurecida precocemente e que deve se responsabilizar por tudo que ocorre ao seu redor. 9 Ferenczi, S. Diário Clínico. São Paulo, Martins Fontes, 1990, p, 66.

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Vida e morte do bebé sábio

Tornar-se um bebé sábio atua como medida de sobrevivência física e psíquica, porém permanecer para sempre nesta posição passa a ser um impedimento para a vida e a criação. Deixar se desmanchar este bebé odiento é abrir mão de defesas estruturadas pelos impulsos destrutivos da pulsão de morte e buscar novas formas de relação com o mundo, que permitam a proximidade com o outro. Esta morte é necessária para que o infantil possa se apresentar como o que representa a abertura para o inesperado, para a realização de novas introjeções, expressado aqui pelo desejo de mergulhar no mar e chegar a outra terra. Mas para que esta passagem possa se dar é necessário que o analista ocupe a posição de ouvinte de uma língua esquecida que se faz presente como ato no espaço analítico. Neste momento o analista vê-se diante da radicalidade da transferência, no terreno demoníaco do jogo das pulsões de vida e morte, onde não há o que interpretar e desvelar. Trata-se então da possibilidade de vir a se inscrever algo novo; não um novo conteúdo psíquico, mas um novo modo de articulação dos temas de uma história. Não se pode matar inteiramente o bebé sábio, fazer como se ele nunca tivesse existido, mas talvez nós analistas possamos ser um elemento a mais nas mãos deste bebé, um carretel com o qual ele brinque e, através deste brincar, consiga lançar-se numa nova aventura subjetiva.

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E AGORA EU ERA O HERÓI... o brincar na teoria psicanalítica

Eliza Santa

O BRINCAR É o BRINCAR Os estudos sobre o fenómeno do brincar sob a ótica da psicanálise são contemporâneos à construção do edifício teórico freudiano. Em 1919, Sigmund Pfeifer escreve Manifestações das pulsões eróticas infantis nas brincadeiras: posições da psicanálise face às teorias do brincar, que contém, segundo Petot1, uma teoria completa sobre o significado dos jogos infantis. Neste artigo o brincar é relacionado às formações do inconsciente—sonhos, atos falbos, chistes — e considerado como expressão direta da sexualidade infantil. Melanie Klein, por sua vez, a partir de 1921 inicia a sistematização da psicanálise de crianças através do brincar e de sua interpretação. Suas teses são muito seme1 Petot, J. Melanie Klein [. São Paulo. Perspectiva, 1987, p- 90

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liza Santa Roza

lhantes às de Pfeifer e sua teoria resulta numa proposta para a prática da psicanálise: o brincar possui um conteúdo manifesto que submetido à interpretação do analista revela um conteúdo latente. Ele é regido pelos mesmos mecanismos do trabalho onírico e invariavelmente expressa fantasias construídas em torno da cena primária. Para esta autora, o brincar também representa uma descarga pulsional que opera como um impulso contínuo para a atividade lúdica. O jogo portanto se oferece como um meio de expressão e como descarga de fantasias masturbatórias2. A partir destas indicações, muitos autores têm se detido nesta temática e na grande maioria dos trabalhos encontramos referências à identidade do brincar com os sonhos e como expressão direta das fantasias inconscientes. Todavia esta visão pode nos fazer crer que haveria um tipo de conduta humana na qual a sexualidade infantil se manifestasse diretamente, ou melhor que a realidade psíquica — o desejo e as fantasias que o circundam — se apresentasse de maneira inequívoca. Ora, o sonho, o devaneio, o chiste e o ato falho não possuem estes atributos: eles, por serem formações do inconsciente, têm seu conteúdo manifesto deformado pelos mecanismos de condensação e deslocamento e pela censura. Além disso o brincar não é um conceito psicanalítico, não é uma formação do inconsciente, implicando portanto numa sistematização de diferenças. Não se pode aplicar ao fenómeno lúdico as mesmas caracterizações que se dão ao sonho ou ao fantasma. 2 Klein, M. Psicanálise da criança. São Paulo, Mestre Jou, 1975, cap. l.

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Winnicott foi um dos autores que sinalizaram para esta diferença, abrindo espaço para um enunciado inovador acerca do brincar. Este fenómeno deve ser estudado como um tema em si mesmo pois se passa num espaço intermediário entre o objetivo e o subjetivo. Assim, ele não é realidade psíquica: está fora do sujeito, mas não é tampouco mundo externo. Também não é sonho, pois a criança não alucina ainda que haja um potencial onírico no jogo3. Winnicott ressalta a dimensão de criatividade no brincar, aspecto que também Freud marca no artigo "O Criador Literário e a Fantasia". Ao discutir as relações de identidade entre o brincar, os devaneios e a criação literária, Freud nos fornece uma direção na qual podemos situar o lugar das fantasias e dos desejos inconscientes no brincar, preservando sua condição de atividade essencialmente criativa. É neste sentido que pretendemos desenvolver uma leitura psicanalítica do fenómeno lúdico.

BRINCAR, SONHOS E DEVANEIOS Numa das vertentes de compreensão psicanalítica do brincar é dada uma ênfase em torno de seu paralelismo com os sonhos. Pfeifer em seu artigo pioneiro propõe que o brincar é regido pelos mesmos mecanismos do trabalho onírico— a condensação, o deslocamento e o simbolismo— e que toda a atividade lúdica da criança estaria a serviço da realização de desejos. Para ele a única diferença entre os dois 3 Winnícotc, D. W. Playing and redity. London, Penguin Books, 1988.

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é que o sonho se caracteriza pela representação em imagens enquanto o brincar é a representação em atos simbólicos4. Num dos exemplos citados por Pfeifer, uma criança de seis anos brincava de "furar o porco": o menino sentava-se sobre uma peça de madeira (o porco); grunhia como este animal, furando-o em seguida. O autor interpreta este jogo como a representação simbólica do assassinato do pai, identificação com o pai-porco e o desejo de tomar o seu lugar. O porco era uma sobredeterminação: tanto era o pai a ser furado-assassinado, quanto a mãe na posição do coito5. Exatamente da mesma forma que Pfeifer, Klein nos oferece uma visão na qual haveria uma tradução direta das imagens do jogo em elementos inconscientes. Eis um exemplo: um menino brincava com duas carroças que colidiam, de modo que as patas dos cavalos se chocavam. Em seguida os cavalos vão dormir e o menino concluía que estavam mortos. Esta cena é interpretada por Klein como sendo a relação de duas pessoas — papai e mamãe — que batiam seus órgãos genitais6. O que estes exemplos de interpretação revelam de imediato é uma contradição. Se de fato o brincar é regido pelos mesmos mecanismos do sonho, o conteúdo manifesto não é um "retrato" do conteúdo latente, pois este está deformado pela condensação, pelo deslocamento e pelo simbolismo. Assim ficamos entre duas hipóteses: ou Pfeifer e Klein não levam em consideração a complexidade das tramas de pensamento que resultam no conteúdo 4 Petot, J- Melaine Klein I, op. cit., p. 90. 5 Idem. 6 Klein, M. Psicanálise da criança, op. cit-, p. 43.

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final do sonho (ou do brincar), ou então o brincar, para estes autores, é uma atividade capaz de expressar diretamente a realidade psíquica e portanto é distinto dos sonhos. Sabemos bem que para Freud os sonhos não constituem manifestações diretas dos desejos e fantasias inconscientes. Estes últimos são mascarados pela ação dos mecanismos de formação onírica e a apresentação manifesta do sonho é frequentemente absurda e confusa. Ainda quando mostra coerência, o sonho se contrapõe à nossa vida anímica como algo estranho, acerca do qual não encontramos explicação7. Os jogos infantis, ao contrário, são em geral roteiros coerentes, mesmo quando contêm elementos que se contrapõem à realidade material: voar, mudar de tamanho, possuir super-poderes etc. Estes elementos não implicam para a criança nenhum sentimento de estranheza, pois no brincar há uma consciência da irrealidade da trama, que é produzida intencionalmente. O papel da consciência tem então no brincar uma importância fundamental. O sonho é construído durante o estado de sono, de alteração da consciência, quando a reatividade sensorial e a atividade motora estão bastante reduzidas. O pensamento vígil encontra-se interrompido e o sonhador não exerce nenhum domínio consciente sobre o desenrolar de seu sonho. Ele possui um catáter alucinatório que implica numa indistincão da irrealidade e do vivido, que só alcança a consciência ao despertar. 7 Freud, S. "El chiste y su lelación con Io inconsciente" (1905). Em: Obras Completas. Volume VIII. Buenos Aires, Amartortu, 1986, p. 154.

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O brincar é, por sua vez, uma atividade consciente, inscrita numa realidade perceptivo-motora, mediatizada por objetos reais, na qual o desenrolar da ação é determinado pela criança. Ela sabe que se trata de algo imaginado, de pura ficção. Ela não alucina. Nesta distinção parece-nos evidente que apesar dos mecanismos presentes na formação onírica poderem estar presentes no brincar — predominantemente o simbolismo —, sua apresentação manifesta encontra-se regulada pelo sistema Pré-consciente/Consciente (Pcc./Cc.), domínio do processo secundário. Deste modo incide sobre o conteúdo latente do brincar predominantemente a elaboração secundária, aspecto que nos parece negligenciado por Pfeifer e Klein. Ao sinalizarmos então para a prevalência da elaboração secundária no brincar, em função de uma certa diferenciação dos sonhos, aproximamos a atividade lúdica dos devaneios. Seria isto uma contradição, já que Freud nos indica o grau de parentesco entre os sonhos e os devaneios? De fato, eles possuem propriedades comuns: como os sonhos, os devaneios são realizações de desejos, baseiam-se em grande parte em vivências infantis e gozam de um certo relaxamento da censura. Todavia neles a elaboração secundária tem um papel predominante. O desejo inconsciente subjacente ã sua produção é, pela ação da elaboração secundária, reordenado e recomposto para constituir um novo material que, segundo Freud, mantém com as reminiscências do passado a mesma relação que os palácios barrocos de Roma possuem com as ruínas antigas. Os pilares e as colunas serviram de material para uma construção moderna8. 8 Freud, S- "La interpretador! de los suenos" (1900). Em: Obras Completas. Volume V. Op. cit., p. 489,

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A elaboração secundária nos sonhos é portanto efeito da incidência do pensamento Pcc./Cc., instaurando-se sobretudo quando o indivíduo se aproxima do estado de vigília e no relato do sonho. Freud sinaliza para a função inovadora, criativa, do trabalho da elaboração secundária. Em outro momento de sua obra ele ressalta as relações deste mecanismo com a atividade do pensamento consciente e seu potencial inovador: Uma função intelectual dentro de nós exige, de todo material da percepção ou do pensar do qual se apodere, unificação, coerência, inteligibilidade... é possível demonstrar que sobreveio um reordenamento do material psíquico em direção à uma nova meta.9

De qualquer modo, seja nos sonhos, seja nos devaneios ou no brincar, não existe uma equivalência direta entre o conteúdo manifesto e o conteúdo latente. A presença da fantasia sobre a qual incide a censura impede que seja estabelecida uma redutibilidade inequívoca da manifestação com o desejo. Por certo não negamos as relações entre desejo inconsciente e fantasias com o brincar. O que nos parece problemático é a caracterização de uma manifestação essencialmente imaginativa e consciente como algo no qual se pudesse vislumbrar imediata e diretamente a sexualidade infantil. E evidente que para a psicanálise o pano de fundo de toda e qualquer atividade humana é a sexualidade infantil e seus avatares, enfim, os destinos da pulsão. Todavia há diferenças fundamentais no modo pelo qual ela se manifesta, por exemplo como 9 Freud, S. "Totem y tabu" (1913). Em: Obras Completas. Volume XIII.

Op. cit,p. 98.

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sintoma (recalcamento) ou produção cultural (sublimação) . Neste sentido Freud nos apontará a dominância do desejo inconsciente nas produções culturais, traçará sua estreita relação com o brincar e sinalizará sua especificidade. AS CRIANÇAS, ESSES ARTISTAS...

Num artigo de 1908, "O Criador Literário e a Fantasia", Freud estabelece o elo de continuidade entre o brincar e os devaneios. O adulto deixa de brincar mas não renuncia ao grande prazer que esta atividade lhe proporcionava. Agora constrói seus "castelos no ar", os sonhos diurnos que possuem as mesmas características essenciais do brincar: remodelam as coisas do mundo a sua maneira, para que se tornem agradáveis. Apenas o apoio em objetos palpáveis do mundo real diferencia o brincar do fantasiar10. Detendo-se então na análise dos devaneios, Freud delineia suas características, cujo primeiro fundamento seria a realização de desejos. As forças pulsionais das fantasias são a realização de desejos insatisfeitos através de uma retificação imaginária da realidade insatisfatória. Cada fantasia singular é uma realização sempre referida à sexualidade: na mulher são francamente eróticas; no homem, vinculadas à exaltação da personalidade, à ambição, em última análise dirigidas à conquista erótica". 10 Freud, S. "El creador literário y el fantaseo (1908). Em: Obras Completas. Volume IX. Op. cit, p. 128. l lidem, p. 130.

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Uma segunda característica do fantasiar é o seu nexo temporal, representando simultaneamente passado, presente e futuro. O trabalho anímico se aproveita de uma impressão atual, de uma ocasião do presente que foi capaz de despertar os grandes desejos da pessoa; daí se remonta à lembrança de uma vivência anterior, infantil na maioria das vezes, na quai o desejo se realizava, e então cria uma situação referida ao futuro, que se figura como realização do desejo.12

De fato, a significação do brincar como uma correção imaginária da realidade e como uma possibilidade de realização de desejos pode ser vista como um fator que, em última análise, determina a própria existência do fenómeno lúdico. Na vertente filosófica, os autores que se dedicaram à análise do jogo dão a ele este significado. Jacques Henriot, por exemplo, nos diz que o jogo é signo da falência e da insuficiência do ser. A existência do lúdico no universo humano é resultante da profunda inquietude de um ser incapaz, por sua natureza, de encontrar a satisfação plena e coincidir consigo mesmo13. O pensamento de Eugen Fink é ainda mais coincidente com o de Freud: "De fato, no jogo nós nos regozijamos da possibilidade de recuperar as oportunidades perdidas... Nós podemos rejeitar o fardo de nossa própria história de vida14. Assim podemos dizer que o brincar é o primeiro devaneio que põe o desejo em movimento, articulando passado, presente e futuro. No jogo do Fort-Da, descrito por IZIdem. 13 Henriot, ]. Lejeu. Paris, PUF, 1976, p. 98. 14 Fink, E. Lê jeu comme symbole du monde, Paris, Minuit, 1966, p. 80.

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Freud, os movimentos do carretel, inscritos em coordenadas espaço-temporais atuais, resgata do passado o controle onipotente da criança sobre o objeto ao mesmo tempo que a lança no universo da simbolização. Como diz Freud, jamais renunciamos a nada, apenas permutamos uma coisa pela outra. O que poderia aparentar uma renúncia — a passividade da criança ante a ausência da mãe — é na realidade uma formação de substituto (o jogo). O brincar então é sempre uma atividade criativa, uma vez que à falta se acrescenta uma nova construção, via simbólico. Recordemos aqui a metáfora de Freud sobre os devaneios: sobre os pilares antigos (passado, desejo) é erguida uma construção moderna (futuro) com o material presente (o brinquedo). É esta dimensão simbólica do brincar que nos parece negligenciada nas proposições kleinianas. O jogo não está portanto confinado ao princípio do prazer. Voltemos ao artigo de 1908. Nele Freud se pergunta se podemos comparar o poeta ao "sonhador em pleno dia". Sua resposta é que, embora muitas criações literárias estejam distanciadas do arquétipo do sonho diurno, o modelo do devaneio está presente nas obras escritas. O que ocorre nestas últimas é que o desejo inconsciente sofre desvios através de uma série de transposições contínuas. Assim, uma vivência atual desperta no poeta uma recordação anterior da qual retira o desejo que procura sua realização na criação literária15. Um pouco mais tarde, em 1911, ele nos mostra que a arte é um caminho peculiar, no qual existe uma reconciliação entre os dois princípios do funcionamento psíquico: 15 Freud, S. "El creador literário y elfamaseo" (1908).Op. cit, p. 133.

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E agora ew era o herói,,.

O artista é originariamente um homem que se afasta da realidade porque não pode renunciar à satisfação pulsional que esta exigiria e dá livre curso, na vida de fantasia, aos seus desejos eróticos e de ambição. Mas aí encontra o caminho de regresso ao mundo de fantasia. Ele o faz colocando suas fantasias num novo tipo de realidade efetíva que os homens reconhecem como cópias valiosas da realidade objetiva. Por esta via se converte, de certa maneira, em herói, em rei, no contemplado pela sorte que gostaria de ser, sem empreender para isto o enorme desvio que passa pela alteração real do mundo exterior,16

Ora, é Freud quem compara o jogo da criança com a criação literária. Segundo ele, no brincar a criança se comporta como um escritor criativo, construindo uma nova ordem de coisas que lhe agrade. O jogo infantil comporta então esta reconciliação dos dois princípios presente na dialética da desilusão/ilusão; o princípio de realidade se instaura na perda do objeto através de sua representação, e a partir daí é instaurado um espaço ilusório que permite a mediação entre o desejo e sua interdição. Nesta visão o brincar é constituinte do fantasma, reordenando-o num fluxo permanente de deslizamento metonímico-metafórico. O brincar modifica então a dinâmica do sujeito, pois sua dimensão simbólica renova a construção fantasmática. Mais do que uma falsa realidade, o brincar é a imaginação no sentido original do termo. A criança não perde o sentido de realidade, e é esta esfera de irrealidade consciente do jogo uma de suas principais características, como 16Freud, S. "Formulaciones sobre los dos princípios dei acaecer psíquico" (1911). Em: Obras completas. Volume XII. Op. cit., p. 229,

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nos fala Huizinga, um dos primeiros autores a tematizar sobre o fenómeno lúdico17. Ê uma duplicidade real/irreal que corresponde às características de lei e invenção presentes no lúdico. O brincar pressupõe uma livre improvisação na qual o principal atrativo é o prazer de conduzirse "como se", em oposição ao que se é, conforme assinala Callois18. Submetidos desde sempre à lei da interdição, à lei do Édipo, começamos cedo a tentar dribá-la com nossas criações. Com o corpo, as mãos, os braços, as pernas; com tudo o que cai em nosso poder, panos, pequenos objetos; com bonecas, carrinhos, pedaços de pau e terra, e finalmente com palavras...

17 Huizinga, J. Home Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo, Perspectiva, 1980, p. 17. 18 Caillois, R. Lês jeiaet lês hommes. Paris, Gallimard, 1967, p. 40-2.

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DAS PALAVRAS-COISA A ESTA COISA DAS PALAVRAS

o brincar na análise de adultos Eiicma Schueler Reis

Ames de tudo foi o abismo (Caos) depois a Terra (Gaia) (...) e o Amor (Eros). Teogonia, 116-119

"Agora que ganhei o prémio da loteria acho que eu posso começar a terapia". Com essas palavras F. me propôs uma relação que ficou marcada desde o início pela magia do jogo. Tivéramos um primeiro contato alguns meses antes, quando ele me procurara através de um convénio com a clínica, na qual eu trabalhava na época, que dava direito a um atendimento mais barato. Após nossa primeira entrevista ele ligou e disse para a secretária que não viria mais. Estava saindo de férias e não sabia se voltaria a me procurar.

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Eiícma Sc/iwekr Reis

Passaram-se dois meses e ele ligou marcando uma nova entrevista. Nesse segundo encontro, F. me contou sobre o prémio e como isto tinha lhe dado coragem de iniciar o tratamento. Esta sua afirmação continha dois aspectos que deviam ser levados em conta: tinha mais dinheiro podendo arcar com o custo do tratamento, e por outro lado o prémio da loteria servia como um escudo mágico que lhe dava coragem para realizar o primeiro movimento em direção ao confronto com seus terrores. A prática clínica tem me proporcionado o encontro com pessoas que, como F., conduziram-me ao confronto com os preceitos estabelecidos sobre o setting analítico. Fui aprendendo por ensaio e erro o quanto esses pacientes sofriam do temor de serem invadidos por forças poderosas, percebidas como originadas da realidade externa e adquirindo às vezes qualidades quase alucinatórias. Na verdade, na história de suas vidas essas forças em alguns momentos vieram realmente de fora, significando um excesso ou uma falta de estimulação nas relações primárias com o mundo externo. Essas pessoas tiveram suas análises atravessadas por estados-limite de sua subjetividade. Não me interessa classificá-los como "casos-limite" ou "border-lines" e sim procurar entender esses estados psíquicos e corporais que se apresentavam subjetivamente como ameaças de aniquilamento e morte. Essas experiências apontam para um território psíquico que, mesmo sendo pensado teoricamente, desafia a clínica ao colocar analista e paciente diante do impensável. Tentando encontrar soluções para o problema representado por esses pacientes, Ferenczi apresentou em 1931

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r Dos patavros-coisa a esta coisa das palavras

à Associação Psicanalítica de Viena um trabalho, produto de suas últimas reflexões teor iço-clínicas, intitulado "A análise de crianças na análise de adultos"1. Como analista para o qual se costumava enviar os casos mais renitentes, recusava-se a considerar os fracassos eventuais como sinal da inanalisabilidade do paciente e sim como resultado das dificuldades do próprio analista em adaptar sua técnica às necessidades de cada paciente em particular. Referindo-se às modificações técnicas introduzidas na análise de crianças, Ferenczi revelou que os problemas encontrados em sua prática com analisandos adultos o levaram a se aproximar dos analistas de crianças. O infantil está sempre presente no espaço analítico seja através dos sonhos e das fantasias inconscientes de desejo, seja de modo mais concreto através de gestos, tons de voz, sensações corporais fugazes, até fenómenos dissociativos. São manifestações transferenciais que se expressam por tonalidades afeavas, não podendo ser entendidas somente pelo viés da resistência. Têm a qualidade de atos e como tal devem ser percebidas. O agir tem um caráter de automatismo, de hábito, de repetição aparentemente sem sentido. Mas a aparente ausência de sentido configura um espaço potencial em que o gesto automático pode se tomar o gesto criador. A transferência ao analista coloca-o como objeto catalisador de processos introjetivos capazes de anexar ao Eu do analisando atributos (diferenças) que vêm do outro — aquele que é ao mesmo tempo estranho e semelhante. l Ferencii, S. "Analyse d'infants avec dês adultes" (1931). Em: IV. Paris, Payot, 1982,

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O estranho se faz semelhante pela repetição. É pela repetição das brincadeiras e das histórias que as crianças dominam a angústia que as ameaça constantemente em seus contatos com o mundo. O menininho que pergunta incessantemente sobre tudo que vê e que não vê está repetindo uma pergunta primordial: quem sou eu, quem é você, como eu sou eu e não você? Essas perguntas precisam encontrar destinatários que as possam receber e entender que não importa muito a resposta e sim a possibilidade de recepção do ato de perguntar. Da mesma forma o analista muitas vezes se defronta com perguntas originadas da angústia provocada pelo confronto entre o psiquismo e o "estranho", que está fora e precisa ser salivado, deglutido, introjetado, para se tornar Eu2. Winnicott, interessado nos aspectos psíquicos ainda não organizados em um sulco significante, propõe o brincar como o ato capaz de ligar o interno e o externo pela utilização do espaço intermediário entre o Eu e o não-Eu. O espaço transicional é o vazio de sentido que permite a criação, área que não é disputada porque nenhuma reivindicação é feita em seu nome exceto que ela exista como lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa humana de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que inter-relacionadas.3 2 O estranho remete à ordem pulsional, àquilo que originário do corpo não se constituiu ainda como psíquico. Pode ser gerado tanto como consequência da pressão exercida por estímulos externos quanto por excitações internas. É o que perturba a ordem, produzindo oscilações e desintrincações pulsionais que libertam a força disjuntiva das pulsões. 3 Wiiuúcott1D,W.ObnncareareaIid^.RiodeJaneÍrD,Imago, 1975, p. 15.

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Dos palavras-coisa a esta coisa das palavras

Reportamo-nos ao conhecido exemplo oferecido por Freud4 do menino brincando com o carretel. Através de sua brincadeira a criança domina a angústia pela repetição dos gestos e dos sons, surgidos no vazio da presença da mãe. Nesse vazio ele cria um jogo no qual se rés significam o sentido de sua existência (separada do corpo da mãe) e da existência do objeto (que permanece presente enquanto ausente) simbolizados na ligação entre o gesto que controla o objeto e o som que o designa. Fazendo a aproximação entre essas concepções, percebemos que Ferenczi entende o espaço analítico como o espaço capaz de conter não só as interpretações dos sentidos enigmáticos para o sujeito, mas também o vazio transicional produtor de novos sentidos. O brincar significa um trabalho de criação não somente no sentido estrito de criação artística, mas de invenção, de abertura de caminhos e de investigação sobre o real.

II Gostaria de voltar ao relato de um fragmento desta análise, responsável em grande parte por meu interesse pela leitura de Ferenczi, Winnicott e outros autores que abordam as mesmas questões. Desde o início do atendimento, F. me deixou perplexa com o modo como falava de seus problemas. Não tinha muita ideia do que era fazer terapia, mas dizia não suportar mais o seu sofrimento. 4 Freud, S. "Más alia dei principio dei placer" (1920). Em: Obras Completas. Volume XVIII. Buenos Aires, Amorrortu, 1989, p. 14-15.

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A primeira queixa formulada era de que não podia dizer "não" para ninguém, fosse no trabalho ou nas relações de amizade. Isso trazia consequências muito concretas para sua vida, pois convidado para várias festas numa mesma noite, sentia-se obrigado a ir a todas; ou se lhe pedissem para fazer vários trabalhos ao mesmo tempo, era obrigado a cumprir todas as tarefas. Da mesma forma, quando viajava a trabalho levava uma bagagem excessiva, temendo que lhe faltasse alguma peça. Mantinha-se numa agitação constante, cortando a cidade em todas as direções, tentando atender a compromissos em lugares distantes uns dos outros, sem poder descansar. Os horários de sessão foram durante um bom período o único tempo no qual se permitia ficat quieto, apesar de muito vigilante. De uma certa forma, esta foi a primeira consequência terapêutica de sua análise: fazer do settíng um lugar no qual o espaço e o tempo adquiriam a dimensão de repouso necessária para que algo pudesse ser inventado. Sua queixa inicial, aparentemente simplória, trazia em si implicações muito amplas que não serão exploradas nesse trabalho. Pretendo somente assinalar o modo como a transferência emergiu com toda a sua força, logo nos primeiros dias. No final de uma sessão F. me pediu que ficasse com os seus remédios (tranquilizantes que tomava para dormir), estendendo-os para mim, parado na porta do consultório. Tomada de surpresa por esse pedido, eu lhe disse que ele estava querendo saber se estava disposta a cuidar dele, de suas coisas. O que eu podia dizer é que poderia fazê-lo se ele continuasse a vir e falar delas, inclusive dos remédios. Quanto a estes, se eu os guardasse comigo, ele

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Das palauroí-coísa a esta coisa das palavras

não poderia toma-los, já que ficaríamos separados nos dias entre as sessões. Ele não tinha se dado conta desse detalhe e ficou meio desconcertado. Mas pareceu entender que a minha recusa era relativa ao remédio e não ao pedido que me fizera. Com a continuação do atendimento as questões subjacentes a este pedido foram aparecendo. Não pretendo me estender sobre elas e sim utilizar o relato de um sonho e de alguns momentos de sua análise para ilustrar o modo como se deu o processo. Só uns sete a oito meses depois de iniciado o nosso trabalho F. relatou o primeiro sonho, pois não se lembrava deles após acordar. Este sonho ocorreu quando estava viajando a trabalho, como fazia com frequência. Ele costumava me telefonar quando ficava muito angustiado durante as viagens.

Foi um sonho muito cansativo, passei a noite inteira sonhando e acordei muito cansado. Sonhei que estava com um passarinho na mão e segurava ele assim (fez o gesto de segurar algo bem pequeno apertado junto ao peito). Ele se mexia e eu tinha medo de apertar muito e ele morrer. Mas se eu afrouxasse a mão, ele podia voar e eu não podia deixar que ele fugisse. Pensava que tinha de arrumar uma gaiola em que ele pudesse ficar em segurança sem se machucar e sem poder escapar, mas como que eu ia poder pegar uma gaiola se tinha que ficar segurando ele com as duas mãos? Passei a noite inteira assim, sem saber o que fazer e apavorado com medo dele morrer ou fugir de mim. Quando acordei de manhã bem cedinho eu estava tão cansado que não sabia o que fazer. Fiquei assustado pensando que não ia conseguir trabalhar, por isso liguei para você naquele dia.

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De início, F. não entendeu bem meu interesse pelo sonho e não conseguiu associar nada além das sensações e sentimentos que experimentou enquanto sonhava. Quando lhe perguntei se não via uma semelhança entre a situação do sonho e a sua vida, ficou me olhando com um ar de dúvida, sem saber se levava em consideração o que eu estava dizendo ou se aquilo tudo era uma bobagem. F., como o menino do carretel, vivia a angústia de separação como ameaça à sua integridade, mas, de modo diferente do deste, não podia jogar com o objeto, pois para ele não havia alternância entre ir e vir; se deixasse o passarinho voar, ele próprio se perderia. Não tinha com que construir uma gaiola simbólica que o protegesse das vivências diretas do real. Daí precisar ocupar todos os espaços, não poder dizer não, não poder viver na ausência do outro. Por outro lado a sua (do outro) presença era tão avassaladora que o impedia de pensar os seus próprios pensamentos. Seu cansaço, que em um certo momento ele perceberia como não sendo físico, vinha do uso excessivo de seu corpo e de sua atividade como único ponto de sustentação da barreira de proteção contra a invasão de seu espaço egóico pelas forças pulsionais. A interpretação desse sonho se fez ao longo dos anos. De vez em quando voltávamos a ele pois continha toda a história de sua vida e sua análise foi o processo de construção do espaço suficiente para que o passarinho vivesse sem um aperto sufocante: nem morte, nem escapada sem fim (esta significava a loucura, que ele já experimentara quando mais jovem).

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F. experimentava o pensar e o fazer como muito próximos. Se se permitia enunciar algo que fosse o seu desejo, havia um retorno como punição. Daí estar sempre atento ao desejo do outro como única forma de investimento que lhe restava, alienado em sua palavra e sua presença. Inicialmente F. não conseguia seguir uma linha de associações. As minhas palavras eram tomadas como ordens e se fossem enigmáticas, deixavam-no num tal estado de angústia, que não podia ir embora enquanto não obtivesse um sentido, que por sua vez seria fixado e repetido como medida de segurança e causa de terror. Mas ele tinha algum humor, embora tímido, que se expressava através das palavras percebidas em seu sentido ambíguo, nos ditos populares e gozações dos grupos masculinos de esquina, muito característico da cultura dos subúrbios cariocas. Esta ambiguidade lhe era possível porque vinha através da boca do povo. Era comum dizer: "Vou no popular". E esse foi o nosso espaço de trabalho durante um bom tempo. A linguagem popular era seu território, no qual ele sabia mais do que eu. Aí podia me ensinar muita coisa e à medida que eu ia apre(e)ndendo o jogo, podíamos trabalhar com associações nascidas dessa linguagem e que lhe serviam como máquina de pensar. O espaço transferencial passou a ser propício a jogos equivalentes a um brincar infantil. Nesse espaço de investigação e de investimentos o analista desempenha mais de uma função: como parceiro de jogo está no meio da brincadeira, é surpreendido em seu saber teórico e precisa inventar utilizando sua própria experiência como analisando; como mediador, é representante da lei, sua pre-

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sença serve como garantia que o jogo não será mortal, mesmo sendo perigoso. O analista serve como mediador entre o mundo externo e o mundo interno, fazendo a ponte que torna possível a realização de introjeções. Uma vez que F. havia conservado essa dimensão do humor, pude introduzir um jogo de "nonsense", contradizendo as minhas palavras cada vez que ele tentava fixálas. Procurava com isso fazer aparecer o paradoxo existente em suas expectativas de encontrar uma resposta final que extinguisse de vez a sua angústia. Ferenczi propõe no texto citado um jogo no qual as perguntas devem ser feitas numa linguagem simples e não conceituai, a linguagem de uma criança começando a falar e perguntar sobre ~p mundo. São jogos de linguagem no qual as palavras adquirem o seu sentido, ligado às vivências singulares. São palavras concretas, palavras-coisa, que atingem sua dimensão metafórica à medida que se constitui um espaço compartilhado através do brincar.

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Durante um período F. teve medo de fantasmas. Quando estava sozinho em sua casa, ouvia barulhos e via vultos, sombras em cada canto, que o deixavam aterrorizado, vigilante, sem poder dormir. As possíveis interpretações não tinham nenhum efeito, já que para ele essas ameaças vinham realmente de fora. Uma noite lembrouse de acender velas para as almas e conseguiu um pouco de paz.

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Quando me contou isso, disse-lhe que estava descobrindo, com os seus próprios recursos, que não era necessário ficar a mercê dos seus fantasmas. A ideia de ter recursos próprios e poder fazer uso deles foi uma revelação. Nunca tinha lhe ocorrido que isso fosse possível, pois vivera sempre obedecendo ordens. De uma certa forma esta também foi uma ordem, porém com uma certa ambiguidade, pois eu, que para ele era quase toda-poderosa, reconhecia sua capacidade de criar algo seu, sem esperar pela minha solução. Para Ferenczi, a transferência é algo que se dá sincronicamente no plano económico e no das representações. O analista, como mediador de novas introjeções, possibilita os investimentos pulsionais, a ocupação de espaços psíquicos, fazendo deslizar quantidades energéticas e criando possíveis sulcos de significação. Na transferência F. pôde reinvestir e dar qualidade a sua ação, introjetando as palavras de aquiescência do analista, o que talvez não fosse possível se eu tivesse interpretado seus fantasmas mais uma vez. Com as velas os fantasmas se aquietaram, e F. começou a perceber a ligação entre certos fatos que aconteciam com ele, certos estados de espírito e a presença dos fantasmas. Começaram a surgir memórias e delas a ideia de que os fantasmas eram sua criação. O jogo entre as palavras fantasma (assombrações) e fantasma (memória dos desejos inconscientes) foi uma descoberta, produzindo polissemia onde só havia univocidade. Com o deslizamento do sentido foi surgindo a possibilidade de falar de quase tudo que é vergonhoso, monstruoso, desconhecido.

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O jogo em si funcionou como as velas, servindo de barreira de proteção contra a violência da excitação pulsional. Mas a possibilidade de falar foi um pouco além: trouxe para o espaço analítico a questão dos limites entre dentro e fora, eu/não eu. Passou a ser parte do espaço psíquico algo que ficava fora, assombrando e ameaçando invadir de forma mortífera. Com a multiplicidade do sentido F. começou a descobrir que eu não sabia de antemão o que ele pensava. Podia até me enganar, ocultar seus pensamentos e eu suportava esse não saber, não ficava enfurecida, nem destruída. A partir disso sua culpa começou a ser sentida e verbalizada. Minha aceitação do seu recurso às velas como procedimento válido introduziu uma dimensão super-egóica menos persecutória. F. voltou a usar recursos desse tipo, porém com uma visão humorística de si próprio, que lhe permitiam não ficar colado ao fato real e duvidar de seus temores, introduzindo a ambiguidade onde antes existia certeza.

IV

O uso do senso de humor como forma de trabalho analítico está a serviço de uma resistência do Eu ao sentimento de perda de limites. Segundo Freud, o humor traz uma possibilidade de ganho narcísico ante o sofrimento não pela negação do sofrimento em si, mas pela sua afirmação como "noroense". Através do humor o analisando introduz o paradoxo em sua fala, posto que não apresenta

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a solução de um problema e sim um outro olhar sobre o mesmo; um novo olhar que tem um efeito transformador sobre a formulação do problema, tirando-lhe o excesso de peso e gravidade. Freud afirma que o humor difere do chiste, que se origina da elaboração inconsciente, por ser "a contribuição ao cómico pela mediação do super-eu"5. Assim, a imagem do objeto idealizado e perseguidor, projetada por F. sobre o analista, era neutralizada quando ele podia fazer humor com as minhas palavras, Da mesma forma que foi capaz de produzir um sonho tão perfeito em sua concisão, F. foi capaz de criar formas de trabalhar psicanaliticamente dentro de sua linguagem. Minha participação consistiu em ter me deixado guiar pela sua mão, não caindo na cilada que eu armei logo no início, quando pensei que ele não teria condições de fazer análise por ter o raciocínio tão concreto e parecer tão embotado. Na verdade, acredito que essa análise se deu graças à diferença entre analisando e analista. Funcionamos como ordens incompatíveis que, ao se encontrarem, produziram um estado de caos (no sentido de abismo, de vazio), de desconhecimento mútuo, no qual foi inventada uma linguagem possível. *. A medida que pôde usar o espaço da análise e a minha presença como figura ao mesmo tempo protetora e provocadora, F. foi inventando vários temas ou jogos que se repetiam durante meses até gastarem e desaparecerem simplesmente. Num certo momento surgiu a imagem de 5 Freud, S. "El humor" (1927). Em: Obras Completas. Volume XXI. Op. cit.,p. 157-62.

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uma escada pela qual ele subia, mas da qual sempre despencava, o que o deixava derrotado. Comentando essa imagem me veio a frase: "Dois passos adiante um atrás". F. veio a fazer um importante uso dessa ideia, transformando-a em uma imagem e uma forma de medida. Cada vez que "caía", estabelecia uma relação entre os espaços percorridos e avaliava os prejuízos, podendo relativizar assim suas conquistas e derrotas em diversas situações da vida. E preciso assinalar que em termos de organização psíquica F. se apresentava como um obsessivo grave, cujos pensamentos beiravam formas delirantes nos momentos de maior angústia. Foi a onipotência do pensamento característica da neurose obsessiva, no entanto, que permitiu o nosso trabalho nos primeiros anos, pois o pensar como compulsão o levou à descoberta do prazer de pensar as diversidades. O próprio ato de pensar foi sobre-invés tido inicialmente pela descoberta da possibilidade de pensar na presença de outro. Essa possibilidade descortinou um novo continente, pois até então isto seria equivalente a uma violência sexual, na qual não ficava claro em nenhum momento quem era a vítima e quem era o agressor. Durante alguns anos o pensar e o falar na análise ocuparam praticamente toda a dimensão de prazer para F. Era como se ele não vivesse lá fora e sua existência só adquirisse significado durante as sessões. As reações transferenciais surgidas nesse período foram das mais intensas e muitas vezes assustadoras para ele e para mim. Acredito que a manutenção de um espaço de jogo, de brincadeira, de nonsense, contribuiu para tornar suportá-

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VQ\s intensidades, visto que se podia "fazer de conta" como quando as crianças brincam expressando suas fantasias agressivas e amorosas. Através desses jogos de linguagem F. aprendeu a falar "como se". Poder estabelecer diferenças e equivalências, utilizando-se das interferências provenientes de fora, foi sua principal aquisição nesse processo de análise. Pensar que quando se cai, nunca se cai no mesmo lugar, que acender uma vela equivale a falar na sessão de análise, que existe mais de um sentido possível para as palavras. O seu pensamento pôde se enriquecer com os fantasmas externos uma vez que eles puderam ser transformados em mundo interno. Estabelecendo essas relações, F. pode constituir o sentido erótico de realidade 6 , através do restabelecimento de relações de prazer com os objetos. Da concretude dos pensamentos mágicos F. fez a matéria-prima de seus investimentos, como o bebé que brinca com as fezes, o menino que faz bolinhas e cobrinhas de massa e depois fala em coco e xixi com grande prazer, até poder ler e escrever aquelas bolinhas e cobrinhas que chamamos de letras. O espaço transferencial analítico serviu de palco para essas transformações. Talvez mais do que isso: foi o espaço vazio, o abismo no qual F. decidiu se lançar impelido pelo sinal mágico da loteria. Nesse sentido, funcionou como espaço transicional e potencial para o exercício da 6 Ferencii, S. Thalassa: ensaio sobre as origens da gerdtcdídade (1924). São Paulo, Martins Fontes, 1989. Nesse texto Ferenczi estabelece um paralelo entre o sentido de realidade egóico e erótico, através das equivalências entre as etapas de constituição do Eu e a erogeneizaçlo do próprio corpo e do mundo externo.

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capacidade de brincar e criar novas significações para seu corpo/psique, que deixou de estar sujeito a penetrações violentas pelo mundo externo. F. usou o espaço da análise, a presença do analista, a regularidade das sessões, a continuidade dos anos como a repetição do gesto de lançar e recolher o carretel. Repetição necessária para a inscrição de uma outra história.

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TENTATIVA DE SUICÍDIO NA INFÂNCIA uma hipótese acerca do Eu

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O suicídio e os desejos inconscientes de morte que aparecem nos sonhos, nos atos falhos e nas condutas autodestrutivas estão entre os problemas mais complexos e contundentes que a clínica coloca para o analista. Quando se trata de crianças, o desejo da própria morte nos provoca uma emoção mais intensa, visto que a infância é tida como o começo da vida, repleta de expectativas e apontada para o futuro. A morte da criança é insuportável e, como diz Leclaite, "nela reencontramos o terror sagrado (...) o próprio Deus detém a mão de Abraão, o sacrifício será realizado, mas trocaremos Isaac por um cordeiro"1. O senso comum tenta negar que a criança possa matar-se. Tende a responsabilizar o destino pelos acontecimentos trágicos, caracterizando-os como acidentes, ou os adultos por negligência nos cuidados com a criança. l Leclaire, S. Mata-se uma criança: um estudo sobre o narcisismo primário e a (jutsõo de morte. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977- -

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Nem sempre, porém, isto é possível, e se muitos casos deixam um rastro de dúvidas, algumas crianças se mostram claramente suicidas, lançando-se deliberadamente à morte, explicitando verbalmente o desejo de morrer ou ainda adotando condutas auto-destrutivas que se configuram como tentativas de suicídio. Todavia há certamente importantes diferenças entre o ato suicida explícito e determinados comportamentos que podem levar à morte, sendo que entre estes últimos também existem diferenças que os aproximam mais ou menos do ato suicida. Pensamos que somente através da clínica podemos tentar delinear estas distinções. Elas dizem respeito ao ato em suas duas vertentes: o "acting-owt" e a passagem ao ato. Menard observa que o "actmg-out" consiste numa representação de uma história em ação, portanto dentro de coordenadas simbólicas, enquanto na passagem ao ato estas coordenadas estariam ausentes2. Assim, o "actíngout" é provido de um sentido não acessível à consciência, um sentido inconsciente que se revela em ato no lugar da lembrança. Nele há uma direção, um endereçamento, uma "fala". A passagem ao ato passaria ao largo do sentido como puro excesso e descarga pulsional, não comportando nenhuma interpretação3. O ato suicida poderia então se configurar dentro destas duas perspectivas. Winnicott trata da temática do suicídio ao formular o conceito de "medo do colapso". Para ele, o suicídio é o 2 Menard, A. "Acting-out ou passagem ao ato?". Em: Falo, n. 3,1988. 3 Chemama, R. Díctíarmaire âe Ia ps>cJianal>se. Paris, Latousse, 1993, verbete Tocie".

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"envio do corpo a alguma coisa que já aconteceu na psique", sendo esta coisa um colapso (breakdown) experimentado nos primórdios da vida4. Como podemos compreender o que seria este colapso? Em primeiro lugar Winnicott nos leva a refletir sobre os primórdios da vida, quando a criança ainda não é suficientemente madura para dar sentido a determinadas ocorrências. Não são necessariamente fatos objetivos, mas acontecimentos tanto da ordem dos fatos como da percepção da criança das relações com o ambiente, através do corpo ou da linguagem. Tais acontecimentos, impossíveis de serem "absorvidos", "metabolizados", rompem com a continuidade do ser e são vividos como experiências de aniquilamento5. Estas experiências irrompem quando o ambiente não é capaz de prover o cuidado necessário para evitar o surgimento das "ansiedades inimagináveis", provenientes da irrupção pulsional, num estádio anterior à distinção Eu/não-Eu. Ficam portanto desprovidas de sentido, já que, não havendo um Eu organizado, "o indivíduo não estava lá para poder lembrar-se"6, e se configuram como sensações de "cair para sempre", "perder a conexão com o corpo", "perder a orientação", "desintegrar". Nestes casos não haveriam portanto lembranças a serem retomadas através do ato — "o acting-out" —, uma memória historicizada, mas uma atualização de marcas 4 Winnicott, D.W. "O medo do colapso". Em: Explorações PsiccnalíncaiPorto Alegre, Artes Médicas, 1994. 5Idetn, p. 6 Winnicoct, D. W. "A integração do eu no desenvolvimento da criança". Em: O Ambiente e os Processos de Maturação. Porto Alegre, Artes Médicas. 1992.

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de memória, uma espécie de "borrão" na memória: embora sem sentido articulado, algo aconteceu na psique. O corpo se lançaria no ato, na tentativa de retomada da préhistória do sujeito, trazendo sensações já experimentadas e que deixaram seus rastros. Ana, uma menina de cinco anos adotada aos cinco meses, vem para a análise em função de comportamentos inadequados e destrutivos. Estraga coisas em casa propositadamente, agride colegas na escola e fala palavrões. Acorda todas as noites e quer a presença da mãe adotiva. É muito "desobediente": na rua, desprende-se da mão dos pais ou da babá, corre "feito uma louca", arriscando-se a ser atropelada. Faz coisas "incompreensíveis", em desacordo com sua idade. Recentemente matou um peixe de seu próprio aquário. Ana foi abandonada no hospital logo após seu nascimento. Prematura e com diversos problemas orgânicos, ficou na incubadora por quase dois meses, de onde saiu para um orfanato religioso. Suas condições físicas ainda exigiam muitos cuidados quando foi adotada três meses depois e dos seis meses aos cinco anos foi submetida a vários procedimentos médicos. Praticamente sem sequelas orgânicas, Ana é hoje uma criança bonita e saudável fisicamente. O início da análise desta criança foi marcado fundamentalmente por atos. Ana tenta controlar a analista agindo todo o tempo: joga coisas pela janela, abre torneiras, tira livros da estante, troca os móveis de lugar. Detém assim um poder quase absoluto, fazendo com que a analista não desvie o olhar de seu corpo, siga seus passos,

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contenha, dê limites, segure. Três meses depois propõe a primeira brincadeira organizada: encolhida debaixo de uma cadeira diz estar num "buraco", do qual precisa sair mas para isto a analista deve ampará-la na saída, "se não vou cair". Este pedido é atendido, a brincadeira se repete algumas vezes mas, apesar de instigada a falar, Ana nada diz a respeito. Durante o primeiro ano de trabalho o tema das sessões e das interpretações foi praticamente o mesmo. Ana tinha necessidade de tomar conta da analista, de controlar sua presença, de fazê-la olhar, de estar perto, de estar junto fisicamente. O que se repetia ali, na transferência? A ausência precoce do objeto? As perdas sucessivas de referencial dos primeiros meses? O medo de perder a mãe adotiva? Sem dúvida havia uma necessidade de contenção, de "holding" e "handlíng", no sentido winnicottiano de cuidados primários essenciais. Todavia, ao lado do controle da analista, havia um componente agressivo nas "bobagens" que Ana fazia. Um acontecimento específico durante uma sessão nos possibilitou uma nova compreensão das agressões no comportamento de Ana. Ela tenta atacar os peixes do aquário do consultório e ao ser impedida de matá-los fala consternada sobre o episódio em que matou seu peixe. Dh que não o matou de propósito e que não sabe "o que é morrer". Chora compulsivamente — o que é raríssimo — e se recusa a continuar o assunto. Sai, pela primeira vez, deprimida. O assassinato de seu peixe reproduz a situação vivida para a qual foi produzido um sentido: o peixe é Ana, nãodesejada, abandonada no estádio de dependência absolu-

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ta, numa incubadora (aquário/??), "assassinada" como sujeito. Ao mesmo tempo ela própria é a mãe de seu peixe, é ela a mãe-assassina, na tentativa de deter o controle mágico sobre a separação, A semelhança do menino que Freud descreve no jogo do Fort-Da, que joga com carretel a ausência da mãe para obter domínio sobre o impressionante, para dar sentido ao excesso pulsional, Ana tenta se tornar aquela que comanda, de vítima a carrasco: na identificação com o agressor ela ataca o peixe, pequeno, frágil, submetido ao desejo do mais forte, assim como ela. Como bebé nada podia fazer. Agora Ana controla o adulto com seus atos desagradáveis e impulsivos. O que ela não consegue é historicizar e simbolizar as marcas de seu passado através do jogo, atualizando-o em ato na transferência. O episódio pode ser falado porque há alguém—a analista — para impedir sua repetição e para perguntar "Por que você quer matar meus peixes?" Há um sentido que pode se constituir na transferência. Por outro lado, Ana corre "como uma louca" na rua, em direção ao nada. Lança seu corpo num espaço-nada e diz "criança não pode correr na rua, senão morre, né?11 Qual é o sentido deste outro ato? Ana sabe que o risco é a morte, mas nada sabe sobre ela a não ser o vivido como experiência de aniquilamento—algo que aconteceu na psique. Do útero à incubadora, de um processo de continuidade corporal ao rompimento total do referencial intersubjetivo, que nos primórdios da vida é essencialmente corporal (o ritmo do batimento cardíaco, o cheiro, a tonalidade da voz, as sensações táteis do corpo materno), há um hiato na vida de

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Ana que rompe com a continuidade do ser. Trata-se de um acontecimento que não pode ser lembrado a não ser com o próprio corpo em desconexão com o psíquico, pois corno nos mostra Winnicott, esta conexão ainda não havia se estabelecido. Ana não estava lá para poder lembrar-se. O medo do colapso (breakdown) que Winnicott examina é o medo de um colapso da integração do Eu, ou seja, da organização narcísica primária, colocada em risco pela irrupção desta memória pré-histórica. Freud em 1914, conceituando o narcisismo, postula que o Eu não existe desde o início, tendo que ser desenvolvido pelo agregamento das pulsões auto-erôticas através de uma identificação primordial que se dá em função do investimento dos pais na criança. A partir daí, constitui-se uma dialética entre auto-erotismo e narcisismo, ou seja, a angústia representando uma ameaça à integridade do Eu, um possível retorno à anarquia pulsional7. Nesta perspectiva, uma interpretação possível da passagem ao ato suicida diz respeito a este movimento pendular narcisistno/auto-erotismo: o "breaJolown" como colapso de Eu é a mais terrível das mortes. Sob o impacto da angústia de aniquilamento (psíquico), a pulsão emerge num ato, sendo o corpo dissociado da organização psíquica. O "correr como uma louca" expressa um momento em que Ana é tomada por uma "ansiedade inimaginável", nos termos winnicottianos, uma angústia de aniquilamento psíquico, que a remete a estádios anteriores à organização do Eu e que ameaça sua integridade. Para salvá-lo, Ana corre, expondo-se à morte corporal. 7 Freud, S. "Introducción ai narcisismo" (1914). Em: Obras Completas, Volume XV. Buenos Aires, Amonortu, 1986.

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Leclaire propõe que a lógica do suicida resulta de um silogismo perfeito: "para viver, é preciso que eu me mate"8. Mas quem sobrevive e quem é morto? Freud em 1920, a propósito da exploração de um caso de uma jovem homossexual, entende a tentativa de suicídio dentro da organização edípica, no jogo de forças entre as fantasias de realização do desejo da jovem pelo pai, culpa pelo desejo de morte da mãe e autopunição. Assim ele delineia no suicida uma das duas condições inconscientes: o retorno sobre si mesmo de um desejo de morte sobre outra pessoa, ou o desejo de matar o objeto da identificação9. O objeto da identificação é primordialmente um olhar e um desejo outro que nos constitui, com o qual se articula "uma nova ação psíquica", organizadora do Eu10. Para Leclaire, só há vida possível ao preço da morte desta imagem primeira, estranha, posto que é desejo dos pais. Para viver, diz este autor, é necessário portanto matar "esta criança maravilhosa ou aterrorizante... extremo de esplendor e também ao mesmo tempo, criança abandonada, perdida numa solidão total, diante do terror e da morte". Conservá-la seria então condenar-se a não viver, porém renunciar a ela seria morrer, não encontrar mais razão para viver11. 8 Leclaire, S. Mata-se uma criança: um estudo sobre o narcisismo primário e a pukãa de morte. Op. cit-, p. 12.

9 Freud, S. "Sobre Ia psicogenesis de un caso de homossexualidad feminina" (1920). Em: Obras Completos. Volume XVIII. Op. cit. 10 Freud.S. "Introducción ai narcisismo" (1914). Op. cit. 11 Leclaire, S. Mata-se uma criança: um estudo sobre o narcisismo primário e a pulsâo de morte. Op. cit., p. 10.

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Neste ponto encontramo-nos diante de um paradoxo. O narcisismo como imagem e semelhança do outro da identificação opõe-se ao sujeito. Porém, concomitante mente, sua organização fornece um sentido de existência própria. Assim, se "para viver é preciso que eu mate este Eu-outro da identificação", como diz Leclaire, pensamos que por outro lado "para viver é preciso que eu proteja e conserve esse Eu, que me fornece um sentido de existência". Paula aos 11 anos atirou-se da janela de um prédio, após uma discussão com a mãe. Salvou-se por milagre, tendo ficado vinte dias numa UTl. Na primeira entrevista, alguns meses depois do episódio e já recuperada das graves lesões corporais, Paula nos relata o ocorrido: Não sei o que me deu... Estava com umas amigas em casa e briguei com elas... Minha mãe logo começou a falar de mim, me deu um troço, saí correndo e me atirei...Não aguentava mais, entende? Ela fica no meu ouvido, se mete em tudo, ela não me deixa existir! f

E porque a mãe é sentida como não deixando Paula existir que a menina renuncia à vida jogando-se para morte? Ou, ao contrário, para que o sentido de existência do Eu seja preservado o corpo é sacrificado, num ato de vontade "in extremis"? Aqui, outro paradoxo. Se, como postula Freud, o Eu é sobretudo corporal, como poderia em nome de sua sobrevivência enviar o corpo à destruição? Podemos nos aproximar deste problema lembrando em primeiro lugar que na economia psíquica todo o trabalho é realizado no sentido de evitar a angústia. Vários estados psicopatológicos

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nos mostram que a integridade corporal — fisiológica e anatómica — é sacrificada em favor do tamponamento da angústia, ameaça maior à integridade do Eu. O corpo pode funcionar como receptáculo da realização do desejo, servindo ao mesmo tempo à defesa contra angústia — como na histeria — mas sua funcionalidade é sacrificada. Nos distúrbios psicossomáticos isto é ainda mais evidente: o corpo é alvo de descarga pulsional para além da realização simbólica do desejo, para além do princípio do prazer, e é atingido não apenas em sua funcionalidade como também em sua integridade fisiológica e anatómica. É justamente este paradoxo que conduz Freud à conceituação da pulsão de morte, através da análise do fenómeno da compulsão à repetição. O prazer é o objetivo último a ser atingido, mas a repetição do desprazer é necessária, uma vez que reduz o excesso pulsional. Assim, há algo fora do circuito das representações. Na economia dos processos psíquicos há um balanço no sentido de promover o equilíbrio, evitando a angústia disruptiva. O horror, o temido, diz respeito às forças de morte e destruição, puro excesso que provoca o surgimento da angústia e o medo do "breakdown". Não suportando a incerteza diante do incognoscível — já que o excesso diz respeito ao pulsional não-ligado, sem sentido—, o sujeito se esforça para provocá-lo com o intuito de dominá-lo. Nas palavras de Rosset: "Mas .o pior nunca é bastante certo aos olhos do que pretende temê-lo, mas só consegue assegurar-se disso provocando ele próprio sua realização"12. 12 Rosset, C. Princípio de crueldade. Rio de Janeiro, Rocco, 1989.

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Voltemos a Paula. Ela é filha única, fruto de uma aventura extraconjugal do pai que desapareceu, não tendo sequer reconhecido a filha legalmente, Embora passasse o dia com a avó — pois a mãe trabalhava fora —, a mãe administrava os cuidados e sempre dormiram as duas na mesma cama. Foi muito doente até os sete anos, tendo tido inúmeras infecções e crises de asma. Até os nove anos era "um doce de criança", mas quando a mãe se aposentou, passando a ficar mais tempo com Paula, sobrevieram crises de agressividade nas quais trancava-se no banheiro aos gritos e agredia a mãe verbal e fisicamente. Estas crises se iniciaram a partir da morte do pai de uma amiga da menina, homem a quem era muito ligada e fazia as vezes de pai. Paula traz, ainda na primeira entrevista, fantasias de morte da mãe. Embora seja excelente aluna, não vai mais à escola pois quando está afastada da mãe imagina o corpo desta estirado no chão e cercado de velas, o que lhe provoca uina crise de angústia. O embate narcísico entre mãe e filha coloca Paula numa situação limite: a integração do Eu, que pode fornecer um sentido de identidade, depende do investimento narcísico dos pais, mas para que este sentido de identidade se sustente é necessário expulsar o outro para um lugar de não-Eu. Para Paula, o jogo é de vida ou morte, de Eu ou o outro. Mas este outro é entretanto vital, pois Paula só tem a mãe como objeto de amor, impossibilitada de se voltar para o pai, já que este é ausente até mesmo no seu nome. A angústia, diz Freud, é o perigo de desvanecimento psíquico do Eu, bem como o perigo da perda do objeto num estádio inicial, quando o Eu é imaturo e a autonomia

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não se estabeleceu13. A fantasia de Paula sobre a morte da mãe realiza o mais temido dos horrores, atualizando na regressão o estádio de dependência absoluta, mas também supõe um desejo de separação radical: "Ela não me deixa existir!"; portanto, para existir preciso matá-la. O Eu está ameaçado pois sua manutenção depende da presença do objeto — dependência absoluta. Por outro lado, a impossibilidade de separação impõe ao Eu a submissão ao objeto, ameaçando sua própria existência — "ela não me deixa existir!". E neste limite que se estabelece uma dissociação da psique com o corpo, sendo este sacrificado em nome da salvação, ao mesmo tempo do Eu e do objeto. Nos processos de separação da organização psíquica da criança estes mecanismos se revelam nas crises de birra e oposição por volta dos dois anos de idade. É a chamada fase do "não", quando a criança recusa tudo o que vem do adulto, até mesmo quando lhe são oferecidas coisas de que gosta. O corpo perde em importância para o psíquico: a criança pode jogar-se no chão, bater com a cabeça, recusar guloseimas, deixar de alimentar-se e muitas vezes não é demovida nem com palmadas que lhe provocam dor física. Tais crises marcam a necessidade da distinção Eu/Mão-Eu, da afirmação da identidade do Eu. Ao mesmo tempo elas garantem a permanência do objeto, uma vez que demandam a presença do adulto, salvaguardado do ódio mortal que se volta para o próprio corpo da criança. A intensidade destas crises varia em função da maior ou menor capacidade do ambiente em permitir à criança 13 Freud, S. "Inibición, sintoma y angústia" (1926). Em: Obras Completas. Volume XX. Op. cit-, p. 134-

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Tentativa de suicídio na infância

a sustentação de uma identidade própria, de uma autonomia, em última instância às possibilidades ou impossibilidades dos pais de lidarem com sua própria angústia de separação. Neste estádio, a angústia de separação relativa às primeiras experiências do bebe — que pode ter sido experimentada como angústia de aniquilamento — se reaviva, sendo colocado em jogo um Eu integrado. Alessandra, de três anos e meio, encaminhada por um pediatra, é trazida pelos pais para uma consulta de emergência pois ficou 72 horas recusando qualquer tipo de alimento ou líquidos. Foi internada com desidratação aguda, obtendo alta hospitalar após a reposição hídrica mas sob vigilância médica, pois continua sem comer e beber. Este sintoma teve início imediatamente após a última briga violenta entre os pais, que, embora separados, discutem e se agridem fisicamente sempre que se encontram e na presença da criança. Durante as brigas, Alessandra fica calada e com "os olhos arregalados". A briga dos pais funciona para Alessandra como um excesso, sendo impossível para ela compreender seu significado. Para Winnicott, a função do ambiente facilitador dos processos de integração do Eu é justamente a de impedir este excesso, num momento em que a criança é incapaz de lidar com ele. O ambiente caótico produz um estado caótico no indivíduo, "O caos ocorre em relação à integração, e um retorno ao caos é a desintegração"14. A irrupção da angústia diante do caos põe o Eu em perigo, na eminência do colapso — breakdown. 14 Winnicott, D.W. Natureza Humana. Rio de Janeiro, Imago, 1990.

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Elíza Santa Rojo

No caso de Alessandra, o Eu está em perigo não apenas pela irrupção pulsional através do excesso, mas também porque a criança não é considerada em sua identidade separada dos pais: as brigas violentas eliminam temporariamente a existência da criança pela total e completa desconsideração de sua presença. Alessandra defende-se de uma "angústia inimaginável", reafirmando-se narcisicamente através da recusa alimentar. O corpo não importa; importa mostrar sua existência, mostrar que está ali, mostrar que está sendo atingida. Ela o faz também por oposição: os pais são ambos gordos e a comida tem extrema importância nesta família. É como se dissesse: "Eu não sou vocês, eu existo, eu tenho uma identidade própria, mostro isto fazendo o contrário do que vocês querem. Se querem que eu coma, então eu não como nada". Recusando-se a comer, Alessandra sustenta sua autonomia, da um sentido para a angústia e se preserva do caos, do aniquilamento psíquico. Seu sintoma também serve como freio da loucura familiar, posto que os pais deixam de brigar para se preocupar com a filha doente. A família reproduz a situação vivida na primeira entrevista, realizada com os três. Os pais discutem violentamente, com acusações mútuas, e Alessandra nada diz, nem toca nos brinquedos, ficando com os olhos arregalados. A analista escuta e observa a criança e nos últimos minutos da consulta dirige-se fisicamente para perto da menina e diz: "Alessandra, acho que você está muito assustada com estas brigas da mamãe e do papai. Acho que você não está entendendo, que está com medo e não consegue gritar. Se você não comer nada, eles param de brigar e olham

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Tentativa âe suicídio na infância

para você. Esse é o jeito que você consegue dizer: 'Olhem para mim, eu estou aqui!" Esta construção promove uma remissão imediata do quadro. No mesmo dia da primeira entrevista Alessandra volta a comer e pede aos pais para ver a analista novamente, A partir daí as entrevistas são realizadas sob demanda, sem ritmo determinado; ora Alessandra com a mãe, ora com o pai. Os processos de separação e organização edípica retomam seu curso, aparecendo a oposição e a rivalidade com a mãe, e o amor ao pai. Nossa compreensão sobre estes três casos brevemente discutidos e a abordagem da temática do suicídio e da auto-destruição na infância é uma dentre as muitas hipóteses possíveis para a complexidade destas questões. A clínica nos impõe alguns paradoxos que nos levam a refletir sobre o papel do Eu frente à angústia. Se por um lado a compulsão à repetição revela a insistência da pulsão no sentido da inscrição, para além do princípio do prazer, por outro a força pulsional transborda, invade o Eu, ameaçando sua integridade. O ato suicida poderia então ser pensado como uma medida defensiva do Eu, para além do corpo.

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UMA, TRÊS OU MAIS COISAS QUE O SONHO FAZ Eliatut Schueler Reis

Imagens são palavras que nos faltaram. Poesia é a ocupação da palavra pela imagem. Poesia é a ocupação ãa Imagem peio Ser. Manoel de Barres

O sonho é uma tentativa de realização de desejo. Esta é uma afirmação que nenhum psicanalista pode contestar. Constitui-se como uma das pedras fundamentais da teoria e da prática psicanalíticas desde o momento em que Freud definiu sua especificidade através do modelo da interpretação dos sonhos1. Porémf como sabemos, muito antes de Freud os sonhos sempre foram objeto do interesse dos homens. Sua decifração era considerada decisiva no desfecho de batalhas e no destino dos povos. 1. Na verdade são duas as afirmações. Na "Interpretação dos Sonhos", Freud define o sonho como realização de desejo. Mas em 1932, nas "Novas conferências introdutórias à psicanálise", na 29a conferência sobre a revisão da doutrina dos sonhos, afirma que os sonhos são tentativas de realização de desejos, já que existem no sonho outras intenções, tal como a liquidação dos traços mnêmicos das impressões traumáticas.

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Eliana Schueler Reis

No Rio de Janeiro, quando as pessoas sonham com um número ou com um animal, podem entender isso como um sinal da fortuna. Lembro-me de um rapaz que sempre jogava no bicho seguindo os palpites de seus sonhos. Um dia eu lhe perguntei como era isso e ele me disse: "Mas você não sonha? O sonho é que faz o bicho! É só você entender o seu sonho que você ganha". Essa afirmação "o sonho é que faz o bicho" me deixou intrigada, pois indicava uma construção do sentido do sonho e dos acontecimentos que invertia, de uma certa forma, minha concepção do sonho como revelador de um desejo oculto. Indicava que o sonho podia ser entendido como algo que tem poder de produzir transformações no mundo. Continuei pensando nisso, pois no cotidiano de meu trabalho clínico percebi que certos sonhos, em certos momentos de uma análise, produzem efeitos que vão além da revelação de um desejo inconsciente, além da interpretação. São sonhos que têm um efeito curador, revelam para o sonhador algo de novo, inscrevem em sua vida psíquica novos sulcos significantes. Em "Para Além do Princípio do Prazer" Freud se referiu aos sonhos traumáticos e aos sonhos que se apresentam nas psicanálises que trazem à tona recordações dos traumas psíquicos da infância como exemplos em que a compulsão à repetição excede os limites do princípio do prazer. Esses sonhos apontam para algo que se processa no psiquismo, e exercem um papel na tarefa de dominar (ligar) as pulsões. A repetição nos sonhos teria como função eliminar o fator de surpresa presente na situação traumática, produzindo o sinal de angústia, necessário para

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Uma, três au mais coisas que o sonho foz

desencadear o movimento defensivo que ficara ausente no momento do choque2. Indo mais adiante nessa linha de pensamento, Ferenczi afirmou que os sonhos em geral têm como função não só a realização de desejos, mas o retorno de impressões sensíveis traumáticas não resolvidas, que tentam uma resolução. O ato de sonhar facilitaria a repetição de traumas e em cada repetição se daria a liberação de pequenas descargas energéticas, que contribuiriam para aplacar o processo excitatório produzido pelo choque traumático3.

O TRAUMA PRECOCE DA CONFUSÃO DE LÍNGUAS

Mas de quais traumatismos estamos falando? Ferenczi retornou à noção de trauma como fator desencadeador das neuroses, definindo como vivência traumática aquela em que os estímulos recebidos desencadeiam um aíluxo de excitações pulsionais de tal intensidade, que ultrapassa a capacidade do psiquismo para realizar a sua tarefa de conter e dominar as pulsões. O psiquismo não consegue elementos para elaborar as excitações ligando-as num processo associativo; desse modo não se produzem derivações que permitam o escoamento e descarga gradual das quantidades pulsionais. 2 Freud, S. "Más alia dei principio de placer" (1920). Em: Obras Completas. Volume XIX. Buenos Aites, Amorrortu, 1989, p. 32. 3 Ferenczi, S. "Réflexions sur lê traumatisme" (1934). Em: Psjdionafyse 4Paris, Payot, 1982, p. 143.

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O traumatismo psíquico não pode ser pensado sem uma ação violenta exercida pelo meio sobre um indivíduo que ainda não tem condições de reagir a ela. Esta violência não se resume a uma violência sexual stríctu sensu, mas a determinadas formas de relação nas quais um sujeito mais fraco é submetido aos desejos de outro sem que os seus próprios desejos sejam levados em consideração. A violência determinante para a fixação do trauma é representada pelo desmentido, por parte do adulto, do sofrimento experimentado pela criança. O adulto atua como outro, devendo realizar a ação efetiva de nomear e organizar as experiências infantis. Uma vez que detém o código cultural, ele é o introdutor da linguagem e da lei no universo infantil. Cabe a ele reconhecer a criança em sua condição de sujeito, ouvir suas queixas e ajudá-la a dar um sentido às vivências, para que elas possam ser introjetadas como experiências de dor ou de prazer. O desmentido faz cair o silêncio sobre o acontecimento traumático, impedindo o acesso ao campo das representações. Sem isso não há como esquecer (recalcar) nem como rememorar. O trauma se fixa como impressão pontual que não se insere numa série significante. Punições excessivamente cruéis, cuja razão a criança não pode entender a não ser se sentindo culpada por uma falta que não conhece, ou o "terrorismo do sofrimento", pelo qual uma mãe torna a criança testemunha e responsável por suas dores — por exemplo nos conflitos familiares —, transformando-a no "psiquiatra da família", são formas de submeter uma criança, introduzindo-a à força numa forma de sexualidade — a paixão — seja ela sádica

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Uma, três ou mais coisas que o sonho faz

ou masoquista11. Uma relação erotizada por um amor ou um ódio de intensidades inapreensíveis pelo psiquismo infantil. Nesse caso, o descompasso, inevitável, entre a sexualidade infantil e adulta torna-se excessivo e resulta numa "confusão de línguas", na qual a "língua" do infantil — marcada pelas intensidades parciais e chamada por Ferenczi de linguagem da ternura — não encontra retranscrições na língua do adulto — marcada pelo recalque e pela culpabilidade —, de uma outra intensidade. Nesta confusão fica impedida a construção do sentido através da tradução de um código de significações para o outro. A criança sujeita a essas pressões, tentando se salvar, identifica-se com o adulto agressor e toma para si sua culpabilidade, adquirindo precocemente um "saber" sexual, genital; amadurece muito rapidamente como forma de se curar. Ferenczi reintroduziu a criança traumatizada no campo da teoria psicanalítica, assumindo de uma certa forma o papel dessa criança. Foi considerado o "en/ant térrible" que trazia questões espinhosas para o interior das discussões teóricas, recusando-se a abandonar os casos difíceis em que a resistência do paciente e o seu narcisismo faziam com que o considerassem inanalisável. Denunciou a resistência do analista em buscar formas diferentes de acesso ao universo psíquico como uma nova forma do desmentido. Contra essa posição de resistência afirmou que enquanto o paciente retornasse às sessões não se teria rompido o fio de esperança5. 4. Ferenczi, S. "Confusion de langues entre lês adultes et Penfant" (1932). Em: Psychaiudyse 4- Op. cit., p. 161. 5. Ferenczi, S. "Analyse d'enfants avec dês adultes" (1931). Em: 4. Op. cit., p. 100.

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Seu desejo de curar fez com que retornasse à questão do traumatismo, que deixa no sujeito a marca do dilaceramento do tecido psíquico, impedindo que se façam registros de sentido. Nesse caso, a reação ao sofrimento é a autodestruição parcial do Eu como uma forma mais primitiva de recalcamento. Ferenczi utilizou o modelo da autotomia—capacidade que têm certos animais de abandonar partes de seu corpo para escapar de perigos que os ameaçam — como paradigma para os processos de defesa, notadamente aqueles ligados aos choques traumáticos. A criança mal acolhida pelo mundo (pelo outro) ao nascer é presa fácil das pulsões de morte, pulsões em estado de dispersão que devem ser contidas pela ação ligadora e organizadora da presença do outro. Se essa ação não se faz a contento, o psiquismo é impressionado pela marca da fragmentação e da destruição. Com o choque traumático representado em alguns casos, pelos modos como essa presença efetiva se faz nos primeiros tempos de vida, as energias psíquicas são despertadas sob a forma de precauções e preocupações narcísicas, impedindo que sejam dirigidas para investimentos libidinais de objeto6. A CRIANÇA APONTA O CAMINHO

Ferenczi relatou um tipo de sonho, contado com uma certa frequência por seus pacientes, ao qual ele deu o nome 6. Ferenczi, S. "Notes et fragments" (1930). Em: Ps^chanafyse 4. Op cit., p. 279-80.

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Uma, Irei OH mais coisas que o sonho faz

de "o sonho do bebé sábio"7. Nesse sonho aparece um bebé que surpreende as pessoas falando sobre coisas complexas, demonstrando um saber inesperado sobre o mundo. C. Stein considera o bebé sábio como uma figura mítica que se superpõe à figura do Édipo, "criança odiada, rejeitada, e condenada ao saber". Mito que fala sobre a transmissão, de geração em geração, do sofrimento, da culpa, do amor e do saber. Para Stein, Ferenczi não percebeu que a sua abordagem do trauma, por esse viés da criança que amadurece cedo demais à força, estabelecia um novo mito. Stein considera que, ao reafirmar a importância do fator exógeno na etiologia das neuroses e na problemática edípica, Ferenczi estaria marcando este fator externo como contigente8. Porém, o exógeno para Ferenczi diz respeito à presença do outro, incómoda e fundamental. Desde a formulação do conceito de introjeção (e sua contrapartida, a projeção) como processo fundador do psiquismo, houve em seu pensamento a preocupação com o movimento em direção ao outro, com apropriação não do objeto e sim das qualidades percebidas nesse contato. Os fatores exógenos dizem respeito ao desencontro necessário e irremediável entre o registro da sexualidade e da linguagem do adulto imerso na cultura e o universo infantil com sua linguagem própria. Essa relação é traumática, ou seja, produz uma ruptura na ordem existente, e representa uma exigência de trabalho, no sentido de conter e elaborar os elementos exógenos e endógenos através da construção de um psiquismo. 7. Ferenczi, S. "Lê revê du nourrison savant". Em: Ps-ychancdyse 3. Paris, Payot, 1992, pg. 203. 8. Stein, C. "O bebé sábio segundo Ferenczi". Em: As erínios de uma mãe. São Paulo, Escuta, 1988, p. 74-5.

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Desse modo percebemos que a noção de trauma em Ferenczi pertence a dois registros: o trauma estruturante de um processo psíquico, marcado pelo desamparo primordial do infante diante do mundo, e o trauma desestruturador, representado pela presença de um outro enlouquecido, que submete a criança às suas necessidades, impedindo que ela tenha acesso ao próprio desejo. A figura do bebé sábio revela o conflito entre o adulto que sabe porque esqueceu e a criança cujo saber tem algo de estranho e inquietante. O bebé sábio re-apresenta para o adulto o que teve de ser recalcado. Ele está presente em cada um de nós e nos ameaça e nos seduz com sua onipotência, pois "não precisou crescer e passar pelas vicissitudes da vida para saber". Por outro lado, o bebé sábio é a criança do ódio, a criança traumatizada por um excesso do outro, a criança que amadureceu precocemente, tomando-se responsável por esse outro agressor. Esse sonho revela a forma como a criança, exposta à violência de uma sexualidade incompreensível para ela, incorpora a culpabilidade do adulto agressor, construindo um arremedo de super-ego, extremamente severo e exigente. A marca das impressões traumáticas retomam no sonho, daí a irritação presente muitas vezes nesse bebé que reclama e desacata a todos com seus ditos ferozes. Esse sonho pode ser interpretado como um sinal de alerta para a consciência, sinal de que algo tem de ser feito para construir uma ponte entre um saber infantil soterrado e o saber atual que não dá conta da compulsão à repetição.

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Uma, ires ow mais coisas que o son

Como esse, outros sonhos nem sempre podem ser interpretados como realizações de desejo. Às vezes, como vimos com Freud, o sonho é uma tentativa de dar conta de algo que se passa fora do princípio do prazer. Para que haja realização de desejo, é preciso que o desejo possa ser formulado. Aí o sonho tem que "fazer o bicho", ligar as pulsões a partir da dispersão, representada na teoria pela noção de pulsão de morte. O estado de sono prioriza o princípio de prazer (menos tensão); ao mesmo tempo, o rebaixamento da censura propicia o retorno das impressões sensíveis traumáticas. Nesse sentido o sonhar faz aparecer um estado semelhante ao vivido no choque traumático, ou seja, estimulações que não podem ser contidas por uma barreira protetora eficiente. A passividade muscular característica do dormir impede os movimentos de fuga (vide os sonhos nos quais o sonhador se sente perseguido e não consegue sair do lugar). Porém, esse mesmo estado de passividade torna possível reviver e rememorar experiências traumáticas, o que é evitado pela consciência. Nesse sentido o sonho pode ser criador, fazer acontecer algo, indicar caminhos, dar pistas para o fazer psíquico.

SONHANDO o PROCESSO DE CURA O sonho contado em análise pode ter o poder de um sonho profético não pela revelação dos desejos inconscientes interditados pelo recalcamento, mas porque o pró-

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prio ato de sonhar participa da economia do processo da cura psicanalítica. Gostaria de exemplificar, utilizando um sonho que me foi relatado por uma analista, sonho do final de um processo de análise: Era um dia de sol e eu olhava para o céu. Havia um avião e meu pai estava lá dentro. De repente o avião explode e caem pedaços de metal e carne... Engraçado, eu não estava chorando, simplesmente olhava os pedaços brilhando no céu...(ameaça bater na boca, gesto muito antigo e repetido, mas desta vez contém o gesto). Eu devia estar triste? Devia estar assustada? Não estou me sentindo assim.

Não escava "arrasada", nem em "pânico", e diz: Afinal era só um sonho não é? (ri) Não pude escolher as coisas que recebi, tive a vida inteira que aceitar, entender... Não dá para nascer de novo, não é? Mas de certa forma sinto que nasci de novo, sim... Só que as lembranças estão lá. Tenho raiva sim e o sonho é meu. Se é só um sonho, porque devo me culpar?

Esta seria a última sessão de uma análise iniciada há alguns anos, num estado de angústia e desamparo que exigiu da analista e analisanda esforços incalculáveis9. Neste sonho se concretiza a morte do agressor, seu estilhaçamento não como uma vingança, mas como morte necessária para que ela pudesse sair da fragmentação e viver. 9 Cereto, C. "Questões transferenciais: um caso clínico". Trabalho apresentado na Livre Associação Psicanalftíca, 1991, cópia xerográfica.

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Uma, Crés ou mais coisas que o sonho {az

A experiência analítica pode ter o caráter de um novo nascimento, como a criação de um tecido psíquico esgarçado, destruído. O efeito terapêutico da relação transferencial reside na repetição diferencial das relações primárias do sujeito. Há um elemento inédito em relação aos modelos adquiridos nos primeiros anos de vida: o que foi votado ao silêncio deve ser dito, os sentimentos de amor e ódio podem ser revividos, as explosões corporais podem aparecer. Essa diferença propicia a rememoração e reconstrução, à medida que a presença do analista possa servir como suporte e mediador desse processo. A interpretação dos sonhos como revelação de desejos e conflitos inconscientes, quando se impõe como a única forma de escuta e de verdade do sonho, atrofia a riqueza de possibilidades experimentadas ao sonhar. Este sonho, que tem a concisão de mito, contém todo o percurso realizado durante a análise. Um percurso marcado pelo terror e pela dor, no qual a morte esteve presente desde o início até o final, quando ela constata que algo deve morrer sim, que as marcas permanecem e são dolorosas, mas que é possível inventar um novo sentido. Esta é uma das tarefas do bebé sábio, envolvido no ódio e na reparação. O objeto desejado e ameaçador, alvo das pulsões de destruição, é representado no sonho juntamente com a possibilidade de construção de sentido. Os fragmentos luminosos do avião se misturam aos pedaços de corpos, e com essa mistura os afetos experimentados ao sonhar expressam algo de novo ("sinto que nasci de novo, sim") surgindo da fragmentação e da destruição.

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Eííana Sc/iweler Reis

O trabalho de rememoração e reconstrução empreendido durante a análise é apresentado nesse sonho no dia em que a paciente havia decidido que seria o de sua última sessão, pois ela precisava ficar sozinha, separar-se de sua analista, desfazer esse laço que fora fundamental. Vemos que o sonho expressa o conflito da separação e a possibilidade de introjeção vividos nesse processo, para que ela possa viver com suas memórias e não agi-las como sintomas. Porém, além da interpretação do sonho no contexto psicanalítico, existe, antes de tudo, a experiência do sonhar com toda a sua diversidade de possibilidades de sentido. Sobre esse sonho, que foi sonhado para a separação, que marca a ruptura com um tipo de produção de sentido organizado em torno do amor de transferência, ela diz: "Eu preciso (posso) ficar sozinha". O sonho lhe indica que é possível experimentar outras produções em outros modos de relação, sem que a relação corn o analista tenha que estar presente, concretamente, como pano de fundo.

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NARCISISMO, IDEAL DO Eu, CRIANÇA E TELEVISÃO Eliza Santa Roza

Tendo sido convidada como psicanalista da infância a falar numa mesa redonda sobre o tema "A Criança e a Mídia", comecei a refletir sobre o que a psicanálise teria a dizer a respeito. Não é incomum hoje em dia vermos o corpo teórico da psicanálise sendo utilizado isoladamente para explicar os mais variados fenómenos humanos, de tal forma que certos psicanalistas terminam por fazer de seu instrumento de trabalho uma 'Weltanschauung (visão de mundo), capaz de dar conta de tudo o que nos cerca. Certamente não compartilho com este olhar, mas creio que alguns conceitos da teoria psicanalítica são úteis para nos ajudar a pensar, se aliados a uma visão que não deixe de lado o momento histórico-social dos sujeitos envolvidos naquilo que pretendemos analisar. Assim pensando, foi que me lembrei de uma crónica escrita por Umberto Eco, semiólogo e romancista italiano. Ele conta-nos e comenta um fato ocorrido em Nova

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Eliza Santa Reza

Iorque: alguns meninos brincavam perto do fosso dos ursos polares no Central Parle, quando um deles desafiou os demais a tomarem banho no fosso, nadando em volta dos ursos. Os meninos entraram na água, nadaram em torno de um urso plácido e sonolento, provocaram o animal, que terminou se aborrecendo e destroçando com suas patas dois dos meninos, espalhando pela água seus pedaços. Os jornais comentaram o acontecimento, a polícia foi acionada, conjecturou-se em sacrificar o urso, mas finalmente as autoridades concluíram que o urso era inocente. Os meninos eram de cor, afeitos à bravatas, como é comum em grupos de crianças pobres, e estas características deram origem tanto a comentários cínicos do tipo "seleção natural, foram idiotas o bastante para desafiarem os ursos", quanto a interpretações de cunho social, justificando a tragédia como resultante da escassez de educação nos bolsões de pobreza. Eco se pergunta, todavia, que escassez de educação é essa, se até o menino mais pobre vai à escola — nos EUA — e pode ver televisão, na qual os ursos devoram homens e são mortos por caçadores? Levantando então uma outra hipótese, Eco nos propõe uma nova vertente interpretativa: não teriam os meninos entrado no fosso justamente porque vêem televisão? Os meios de comunicação de massa exageram nas ações educativas quanto à consciência ecológica, diz ele. Utilizam uma técnica persuasiva que distorce e omite a realidade. "Deixam-se morrer as crianças do Terceiro Mundo, mas os meninos são incentivados a respeitar não apenas as libélulas e os coelhinhos, mas também as baleias, os crocodilos e as

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Narcisismo, Ideal do Eu, criança e televisão

serpentes". A fim de tornar os animais mais dignos de sobrevivência, eles são humanizados e infantilizados pela mídia. Os ursos são apresentados como seres amáveis, engraçados e bonachões, não se dizendo que têm direito à sobrevivência apesar de serem selvagens e carnívoros1. Eco desconfia que os meninos do Central Park tenham morrido não por falta, mas por excesso de informação, vítimas de nossa consciência infeliz porque educamos nossos filhos à base de baleias falantes, lobos que se inscrevem na ordem terceira dos franciscanos e sobretudo Teddy Bears, ursinhos de pelúcia.2 De fato, todos temos a oportunidade de observar que este modo de veicular a informação pela TV, por razões que adiante comentarei, exerce forte influência não apenas sobre as crianças, mas também sobre os adultos, principalmente em nosso país, no qual a maioria da população não tem acesso à educação nos bancos escolares. Recentemente, numa praia do litoral catarinense, dois homens foram atacados ao tentar brincar com golfinhos que surgiram no mar, tendo um deles morrido. Na linha interpretativa de Eco, nos perguntamos se para aqueles homens os golfinhos não foram identificados como sendo da mesma natureza que os domesticados, mostrados pela TV nos shows aquáticos do SeaWorld. Então, a partir destes fatos concretos e da interessante interpretação de Eco, poderíamos refletir sobre uma importante questão da atualidade: os meios de comuni1 Eco, U. "Como falar dos animais". Em: Segundo diário mínima. Rio de Janeiro, Record, 1993. 2, Idem, p. 140.

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cação de massa, através de seu poder de manipulação do real e de sua poderosa carga pedagógica, são capazes de alterar comportamentos e remanejar atitudes? E, como um desdobramento desta pergunta, se consideramos que comportamentos e atitudes são reflexos de organizações psíquicas, teria a mídia — particularmente a televisão— influência sobre a organização do aparelho psíquico? v A primeira vista a resposta é afirmativa, notadamente quando falamos de crianças como as maiores "vítimas" da imposição discursiva da televisão. Pensa-se comumente em crianças como seres ainda não completamente formados sob o ponto de vista psíquico, flexíveis, e portanto mais vulneráveis às influências ambientais. No entanto, esta última afirmação é apenas parcialmente verdadeira, pois todos os seres humanos estão expostos às influências ambientais. Para a criança, todavia, as relações familiares iniciais são de caráter fundamental. Assim, passarei a considerar as diferenças existentes entre as influências do ambiente como relações com outros seres humanos e como discurso televisivo. O ser humano é um ser de linguagem, constituído como tal por outro ser humano. O bebe é acolhido por alguém que o nomeia e dá sentido às suas experiências e necessidades, inserindo-as num código significativo, numa permanente troca tntersubjetlva. Este par—mãe/bebé— é praticamente indissociável no início da vida, de tal modo que, conforme nos diz Winnicott, "não existe tal coisa chamada bebé"3; o que existe é sempre o bebé e alguém. 3. Winnicott, D. W. "Desenvolvimento emocional primitivo". Em: Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988.

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Narcisismo, Ideal do Eu, criança c televisão

Neste percurso de tornar-se alguém, a criança, ainda não falante mas falada pelo outro, vai se constituindo num processo, onde é rigorosamente imprescindível a mediação deste outro em direção ao reconhecimento de si mesmo, através do corpo como entidade total e autónoma. A chegada a este termo é o coroamento de um processo de dimensões bastantes complexas, inteira e permanentemente perpassado pelas relações interpessoais através da linguagem. Particularmente neste início da vida, a linguagem não-verbal exerce um papel fundamental: é através do brincar que a criança vai gradativamente edificando o próprio corpo, estabelecendo as relações entre continente e conteúdo, criando a dimensão de volume4. A passagem por estas etapas é condição para que a criança chegue ao que a psicanálise, através de Lacan, denomina como Estádio do Espelho5. Aqui é formada a primeira imagem de si, através da identificação ao outro, inaugurando uma instância organizadora, o Eu. Para que este Eu se constitua é necessário, como nos diz Freud, um investimento dos pais (ou substitutos) na criança, que faz com que as pulsões sejam unificadas numa nova ação psíquica. Freud denominou este estádio como o Narcisismo Primário, onde é constituído um Eu Ideal, um Eu imaginário,^ articulado aos modelos parentais sobre a crianca. E o investimento narcístco dos pais, resultante de seu próprio narcisismo direcionado para a criança: 4. Santa Roza, E. Quando brincar é dizer, a experiência psicanaUtica rui infância. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1995. 5. Lacan, J. "O estádio de espelho como formador da função do eu". Em: Seixo, Maria A. (org), O sujeito, o corpo e a letra: termos de análise. Usboa, Arcádia, 1977.

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"Sua Majestade o Bebé", que não deve sofrer, que não deve renunciar ao prazer, que não deve ter restrições, em quem a doença e a morte não devem ter vigência6. Assim, reflexo deste Eu Ideal, imaginariamente completo e sem falhas, a criança é onipotente, egocêntrica e individualista. Tal modelo está sempre presente no sujeito; podemos supô-lo em todo indivíduo, diz Freud. Entretanto, com a entrada na cultura dá-se a derrocada deste ideal imaginário. Os limites, a educação, o controle esfincteriano, as restrições ao livre curso do prazer e fundamentalmente a interdição do incesto na passagem pelo Complexo de Édipo vão apontando para a criança as falhas deste Eu Ideal. Desta forma o Complexo de Édipo configura-se como um momento lógico organizador, do qual resulta a contrapartida do Eu Ideal, o Ideal do Eu, uma vertente do Supereu que se organiza através das identificações da criança com os pais: "Não posso ter ou ser tudo, não posso possuí-los, mas posso ser como eles, buscar realizar meus desejos como eles"7. Permanece, portanto, um ideal imaginário de completude, sinalizando para os pais como um ideal possível, no entanto já mediado por uma organização simbólica, o Ideal do Eu. No processo de estruturação psíquica articulam-se então duas instâncias, numa dialética que tem como mediador o universo simbólico e cujo alvo é a satisfação do desejo: Eu Ideal, narcísico, completude imaginária que falha, e Ideal do Eu, um mais além do sujeito. 6 Freud, S. "Introducción ai narcisismo" (1914)- Em: Obras completas. Volume XIV. Buenos Aires, Amorrortu, 1989. 7. Freud, S. "El Yo e el Ello" (1923). Em: Obras completas. Volume XX. Op. cie.

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Narcisismo, Ideal do EM, criança e televisão

Retomarei à questão que formulei inicialmente: a televisão teria alguma influência nesse processo de estruturação do sujeito? Em que medida? Para Muniz Sodré, um dos mais importantes estudiosos deste tema entre nós, a televisão é um outro espelho identificatório, que se introduz no espaço doméstico, e é capaz de produzir processos identificatórios que têm nas crianças seus melhores agentes. Segundo ele, estudos sócio-psicológicos apontam para a facilidade que as crianças têm de imitar comportamentos e atitudes vistos no vídeo, como se a representação televisiva desencadeasse algo equivalente à presença real. O Supereu infantil seria pressionado com incitações heróicas como modelos referentes a um Ideal do Eu, em concorrência com as figuras parentais. Esta concorrência se daria também pelas modificações que vêm sofrendo a estrutura familiar: o enfraquecimento do pai como fonte soberana de discursos morais, visto que perde seu lugar na produção; a participação cada vez maior da mãe na ideologia masculina da competitividade; a nuclearização da família em torno de um pai, uma mãe e poucos filhos8. Sodré levanta a hipótese de que a antiga autoridade familiar perde sentido num espaço regulado pelo valor supremo da competência técnica individual, os pais deixando de ser fontes seguras de orientação para o mundo externo. Em lugar de sua palavra, entra o discurso fascinante da Organização (o Estado associado à grande empresa) , o discurso veiculado pela mídia. A própria estru8 Sodré, M. A máquina de Narciso. Rio de Janeiro, Achiamé, 1984.

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nta Roía

tura edipiana poderia vir a ser substituída por uma estrutura narcísica, a base de autogestão psíquica. O sujeito se constituiria, então, como sujeito psíquico sob a égide do controle social, que produz no vídeo o desejo, por efeitos de fascinação, de convencimento, de persuasão9. Ora, podemos supor que de fato as modificações dos papéis sociais das figuras parentais certamente terão efeitos sobre os processos identificatórios, uma vez que estes são também configurações da ordem do imaginário. As alterações do imaginário social incidem sobre os adultos e consequentemente sobre seus filhos. Acreditamos porém que se o discurso televisivo cria ou acompanha estas alterações, não são as crianças aqueles prioritariamente atingidos; todos o são. Uma recente reportagem de um jornal local comentava a espantosa venda de um determinado modelo de blusa vestida por uma belíssima atriz de uma novela, venda que não se restringia às adolescentes; mulheres de todas as faixas etárias a compraram. Assim as crianças são levadas a identificações com personagens televisivos não porque são mais "frágeis" ou mais suscetíveis a estas influências, mas também e principalmente porque identificam-se com os adultos de seu ambiente, capturados pelo Ideal de Eu proposto pelo discurso da mídia10. O que é então essa máquina que habita quase todos os lares, ou melhor o que ela representa? Como nos mostra magnificamente Sodré, a televisão está a serviço das ideologias do sistema, uma brilhante forma de controle 9Idem 10 Sodré, M. et alli "Xuxa de Neve e seus Baixinhos". Em: O Brasil simulado e o real. Rio de janeiro. Rio Fundo, 1991.

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social que através da eliminação da gratuidade, ou seja, daquilo que no discurso não está comprometido com a produção, da eliminação da liberdade, da pluralidade e da sociabilidade do diálogo, leva o espectador a identificar-se com os modelos que apresenta11. Assim, a televisão representa o sistema e seus interessados, que procuram manter o status quo através de simulacros da realidade e da univocidade do discurso, no intuito de manter e fomentar a ideologia capitalista, sendo o consumo um dos principais objetivos a ser atingido, não importa através de que meios. Para isto é necessário não apenas saber que o desejo humano é infinito, mas também saber direcioná-lo, apostando na tentativa do sujeito em aproximar duas instâncias: Eu Ideal e Ideal do Eu. Por esta via são socialmente construídos ideais, montados na exterioridade: um corpo perfeito, em roupas maravilhosas, dentro de um carro importado, saindo de uma garagem de um magnífico condomínio etc. é apresentado como um dos modelos de completude e felicidade. Por outro lado, a TV é uma máquina e neste sentido permito-me discordar de Sodré quanto à sua influência na constituição do sujeito psíquico. Retomarei, então, o início deste texto, onde procuro explicitar a posição da psicanálise em relação aos sujeitos humanos, constituídos na linguagem e na intersubjetividade. Haveria trocas subjetivas entre uma criança e o discurso televisivo? E o próprio Sodré quem nos diz que a televisão se caracteriza por uma produção fechada de sentido, pela não-reciproU. Sodré, M. OmonotxSlio da feda. Petrópolis, Vozes, 1984.

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cidade entre falante e ouvinte, impedindo assim a multiplicidade de possibilidades de circulação simbólica, essência da experiência e do conhecimento. Trata-se de uma linguagem domesticada, doada, unívoca, sem troca verdadeira ou respostas possíveis12. Então, na relação criança-televisão a experiência intersubjetiva está ausente, portanto impossível se pensar na emergência do sujeito do desejo, que surge justamente na dialética da presença e da ausência, no que emerge de criação no "gap" existente entre a fala e a resposta. Seria pensável um sujeito psíquico constituído com base de autogestão? O que seria, como fala Sodré, uma estrutura narcísica substituindo a estrutura edipiana? Não posso crer que a máquina tenha este poder. Podemos pensar que ela, ou melhor o discurso que veicula, se utilize do desejo, reconfigurando as redes do imaginário coletivo, mas não podendo produzi-lo. Pode induzir seus contornos, mas se desejo é desejo insatisfeito, qualquer desejo é desejo e isto caracteriza o sujeito constituído no Édipo. Ilustro minha compreensão com um exemplo clínico: uma moça que acabara de dar à luz, encontrava-se bastante ansiosa, com insónia e nervosismo. Ela contava à psicóloga da enfermaria de puérperas que havia visto um programa de TV que se propõe a orientar as mães de primeira viagem. Nele era explicado o que seria "correto" a mãe fazer nos cuidados com seu bebé: dar tais e tais sucos de frutas, em mamadeiras com bicos assim e assado, chupetas importadas que não prejudicam os dentes, roupas de tecidos especiais etc. "Como vou ser 12. Idem

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uma boa mãe — perguntava ela à psicóloga — se não poderei comprar nada disso para meu filho?" À primeira vista tem-se aqui um poderoso efeito modulador e perverso da mídia, que ditaria as regras do modelo de boa mãe, calcado na perspectiva das classes dominantes e do consumo. Uma outra mãe com melhor poder aquisitivo mergulharia na ilusão de estar cumprindo bem seu papel, se fizesse tal como orientava o programa. Mas por quanto tempo? O programa não dialoga, não responde senão ao que se propõe. O programa não é capaz de atingir o ponto fundamental de toda mulher que pela primeira vez se torna mãe: o que é ser mãe? Por outro lado, quem poderá responder a esta questão senão ela própria ao longo de sua relação com o filho? Assim, pergunto-me se a ansiedade e a insónia também não se apresentariam nesta paciente ante um discurso de sua própria mãe quanto às atitudes adequadas nos cuidados com a criança. A ansiedade neste caso se produz pelo contraponto permanente que mantemos entre o Eu Ideal e o Ideal do Eu, que a mídia tão bem sabe capitalizar, ainda que não seja responsável pela sua produção. É evidente que, conforme já sinalizamos, existem profundas diferenças entre o discurso televisivo e a troca interpessoal. Neste caso que relatamos, a TV fecha qualquer possibilidade de resposta, qualquer alternativa possível, ao passo que se a paciente estivesse ouvindo sua mãe, o diálogo estaria em aberto. O que fez aqui a TV não foi produzir o sujeito do desejo mas, a partir do conhecimento das dúvidas, das ambivalências e da busca do ideal das mulheres que se tornam mães, tentar desenhar a seu modo o desejo.

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Uma segunda objeção que levanto em relação à posição de Sodré diz respeito à problemática das identificações. Poderia, de fato, a mídia vir a substituir os modelos parentais? Os heróis são novidade inventada pela massmíàia ou sempre existiram como modelos de Ideal do Eu, desde os tempos remotos? As crianças da favela estão mais identificadas com os heróis da televisão — inacessíveis para elas até em suas reproduções em brinquedos — ou o que vemos mais comumente são as identificações com os "heróis" reais, os poderosos traficantes que enfrentam a polícia assassina, que distribuem remédios, que pagam a conta da venda, os verdadeiros pais simbólicos das favelas? Aproveitemos para relembrar Freud em "Psicologia das Massas e Análise do Eu", afirmando que em nossa vida anímica o outro conta com total regularidade como modelo, como objeto, como auxiliar e como inimigo, de tal modo que desde o começo o sujeito é legitimamente um sujeito social. Os processos identificatórios se instalam a partir das relações objetais, ou seja, dos laços afetivos iniciais para depois serem substituídos pelos laços sociais, de acordo com a importância que o ambiente social tem para o sujeito13. Deste modo, a criança se identifica secundariamente com elementos de seu meio, como professores por exemplo, mas neste processo estará necessariamente implicada uma troca afetiva. Existiria esta troca entre uma criança e a televisão? Poderíamos refletir, por exemplo, sobre o poder que exercem os apresentadores de programas infantis, levando as crianças à dramáticas declarações de amor e a copiar seus 13 Freud, S. "Psicologia de Ias massas y análisis dei yo" (1921). Em: Obras completas. Volume XVIII. Op. cit.

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menores gestos. Todavia, estes apresentadores fazem efeito porque representam por sua vez ideais para os pais destas crianças: esbanjam beleza, distribuem brinquedos, detêm poder. Os próprios pais não se furtam a vestir suas filhas como a Xuxa ou a Angélica. Desejam para si e para seus filhos sucesso igual, e é este padrão identificatório que é introjetado pela criança a partir da troca afetiva com seus pais. Os modelos parentais não são portanto substituídos pelos heróis; os heróis equivalem aos modelos de ideal dos pais, assim transmitidos aos filhos. Seriam então as crianças presas tão fáceis da manipulação da mídia ou, na realidade, o que a mídia faz é capturar os adultos, apropriando-se de organizações do imaginário já existentes, estas sim funcionando para a criança como estruturas identificatórias? A meu ver é ingénua a ideia de que a criança é mais suscetível de dominação que o adulto. As crianças são crianças, infantis são os adultos. Evidentemente que, sob o ponto de vista sociológico, as influências da mídia estão em todos nós, e nos encarregamos em nossa má consciência, como nos diz Eco, de perpetuá-la em nossos filhos. Em a Máquina de Narciso, Muniz Sodré fala da televisão como uma máquina que nos captura pelo olhar, capaz de nos congelar como objeto, obj crivando-nos e nos dominando. Diz-se que a mídia está transformando a sociedade, alimentando o individualismo e criando seres narcísicos, presos pela imagem, estagnados no Eu Ideal, cada vez mais distantes da cultura, da experiência concreta, do conhecimento. Todavia a mídia é um efeito de sentido de uma organização social que produz uma subjetividade, e não sua causadora. As crianças podem ser as maiores vítimas desta organização.

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A máquina e seu conteúdo são efeitos do homem; portanto não podem substituí-lo naquilo que ele tem de único, que é justamente produzir o humano. O monstro comerá seu criador? Estão aí para provar o contrário os vírus de computador, apontando para o essencial: o homem ainda é soberano. Nenhuma máquina poderá substituir o olhar do outro, constituinte do Eu Ideal; nenhuma máquina poderá gerar a estrutura básica da cultura, constituinte do Ideal do Eu. Se não posso negar completamente a influência da mídia no comportamento e nas atitudes dos homens, também não posso superestimá-la, sob pena de ter que submeter-me aos seus veredictos. Abandonaremos nosso sujeito freudiano cinquenta anos depois? Apenas mais uma pergunta para finalizar, retomando o texto de Umberto Eco, com todo respeito que devo às suas interpretações: será que muito antes da moss-midia meninos não se lançaram pelo simples desafio em fosso de ursos polares? De que matéria eram feitos os loucos heróis de antigamente? Quais são os conteúdos dos contos de fadas, povoados de animais falantes, seres mágicos, monstros e super-heróis? São essencialmente diferentes dos desenhos animados e filmes de sucesso da TV, como He-Mcm, ]aspion e Power Rangers? As fantasias de completude do Eu Ideal, derrotadas pela castração, e a busca da irrealizável onipotência pelo Ideal do Eu são essencialmente condição humana. João sobe no pé de feijão e derrota o gigante, roubando-lhe a galinha dos ovos de ouro, He-Man diz "Eu tenho a força", Cinderela sai da pobreza, casa-se com o príncipe e vive feliz para sempre, e finalmente Xuxa "é tudo o que você queria ser"...

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De primeiro as coisas só davam aspecto Não davam ideias. A língua era incorporante. Manoel de Baixos

Nós psicanalistas somos supostos trabalhar com a questão da subjetividade, pensar e teorizar sobre o sujeito. Mas nern sempre lembramos que a subjetividade não é uma produção individual, e sim coletiva, histórica e contextualizada no seu tempo e em sua cultura. Freud sabia muito bem disso quando delimitou, descreveu e definiu as neuroses histéricas como um fenómeno da alma humana, e não como uma degeneração ou simplesmente um problema moral. Desafiando o saber reconhecido, afirmou que a histeria não era somente uma questão de mulheres, que os homens também estavam sujeitos a este modo de subjeti* Publicado originalmente em Costa, Mauro Sá Rego (org). Pontos de fuga: visão, tato e outras pedaços, Seminário Transdisciplinat da Universidade Livre. Rio de Janeiro, Taurus, 1996.

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vidade. Percebia, porém, que as mulheres, por terem em geral suas atividades circunscritas ao espaço interior da casa, cozinhando, costurando, fiando, tornavam-se propensas aos devaneios e às fantasias que vinham ocupar o lugar de atividades mais aventurosas, que lhes estavam vedadas de um modo geral. Ora, muitas fantasias e pouca realização concreta acabavam criando o caldo psíquico propício ao surgimento das realizações histéricas características da subjetividade feminina naquele período. Fenómenos semelhantes àqueles da histeria constituíram em outros tempos o material dos processos inquisitoriais contra as bruxas e feiticeiras. Na Idade Média as questões relativas ao humano não eram pensadas como questões subjetivas e sim como questões que diziam respeito à submissão às leis do cristianismo e à salvação da alma. Os fenómenos de possessão das feiticeiras se apresentavam como uma combinação paradoxal de transgressão/ submissão das mulheres aos poderes que se exerciam sobre o universo feminino, assim como as fantasias e os sintomas histéricos foram também uma forma de cumprir e descumprir o destino do feminino alguns séculos depois. Ao construir sua teoria a partir do trabalho clínico e do estudo das manifestações da histeria, Freud define a alma humana tal como a vê. Uma alma dividida, que desconhece as forças propulsoras de seus desejos e de seus atos. Esta será a principal característica do sujeito psicanalítico: um sujeito dividido, submetido a conflitos dos quais sua consciência não se dá conta. Não mais o sujeito cartesiano capaz de alcançar com sua dúvida todas as

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dobras da consciência, buscando assim escapar das armadilhas que se colocam para a razão, mas uma alma que se perde e se encontra em seus sintomas, em sua miséria neurótica. O sujeito da cultura ocidental em nosso século, que se confunde com o sujeito p s ic analítico, reconhece-se já como dividido, "sendo possuidor" de um inconsciente que lhe prega peças, o faz sofrer as agruras do desejo insatisfeito e tudo o mais. Disso nós falamos em nosso cotidiano de pessoas cultas ou não. A mídia se utiliza dessas noções, assim como a indústria cultural, através de seus veículos cada vez mais potentes e onipresentes. Mas, mesmo se sentindo dividido e em conflito, o sujeito ainda se pensa como um continuam linear, coerente em sua divisão. Tudo que for além disso no campo da experiência pessoal nos acena com a ameaça da loucura e da fragmentação. E disto temos medo, como os homens medievais temiam aqueles a quem chamaram de bruxas ou de hereges porque buscavam a comunhão com o sagrado através de experiências que se faziam no limite do profano. IDENTIDADE E SUBJET1VIDADE

Nosso espírito ocidental se assenta sobre a presunção da identidade. Podemos ter aceito a ferida narcísica imposta pela psicanálise quando afirma que o homem não é senhor em sua casa, que ele não comanda conscientemente seus pensamentos, seus atos ou seu corpo. Mas não suportamos tão bem experiências em que os

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atravessamentos do mundo põem em risco o nosso último bastião: a nossa identidade coesa em sua divisão. Tentamos nos convencer que são irremovíveis os contornos de nosso corpo; para isso nos olhamos no espelho, nos pesamos, nos verificamos a cada passo, para nos certificarmos de que permanecemos tal como somos, como nos queremos sendo. Tal como na época de Freud, a cultura de nosso tempo tem caraterísticas próprias, cultura que, apesar das semelhanças, não é mais a mesma. As modificações introduzidas no mundo a partir da segunda metade do século apontam para isso. A transformação das cidades nos põe em contato excessivo com o outro, numa invasão constante do espaço subjetivo. Walter Benjamim1, utilizando a noção de choque traumático explorada por Freud2 em "Mais Além do Princípio do Prazer", observou que na cidade moderna a presença da multidão faz com que as pessoas reajam ao choque causado por um excesso de estímulos. Como consequência, cria-se um sistema de proteção contra estímulos, uma espécie de carapaça extremamente rígida e impermeável às impressões e sensações, que impede sua inscrição como registros experienciais, como memória. O choque causado pelo excesso sensório tem que ser defletido. Em Benjamin, a multidão aparece como massa, como presença uniformizadora que altera o regime do tempo, não há o ir e vir entre as impressões sensíveis e a reflexão subjetiva. 1 Benjamin, W. "Sobre alguns temas em Baudelaire11. Em: Obras Escolhidas. Volume III. São Paulo, Brasiliense, 1989, p.103-49. 2 Freud, S. "Más allá dei principio de placer" (1920). Em: Obras Completas. Volume XVIII. Buenos Aires, Amorrortu, 1989.

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A transformação nas relações espaciais e temporais na cidade moderna cria um fluxo de corpos e de sensações, como em O homem da multidão de Edgar Allan Põe, no qual um homem observa a multidão da janela de um bar em Londres e vai relatando os movimentos da massa como imagens parciais de um imenso corpo que se move à sua frente, ou como no poema Um dia de Chuva de Baudelaire Cada um, nos acotovelando sobre a calçada escorregadia, Egoísta e brutal, passa e nos enlameia, Ou, para correr mais rápido, distanciando-se nos empurra, Em toda a parte, lama, dilúvio, escuridão do céu: Negro quadro com que teria sonhado o negro Ezequiel. (l, p-211) 3

Benjamin trata dos efeitos de des-subjetivação produzidos pelo desenvolvimento capitalista, no qual o homem deixa de ser visto como o agente da ação, passando a ser "agido" por algo que lhe escapa, seja a multidão, seja a produção industrial. Atualmente vemo-nos diante da revolução da informação que produziu a globalização da imagem, alterando o ritmo dos fluxos, que já não são mais corporais e sim eletrônicos. Esta globalização da informação eletrônica veio alterar os limites identificatórios e subjetivadores de cada povo e de cada região. Quando esta identidade é tão atacada — e cada vez mais somos atravessados por estímulos que ultrapassam nossa capacidade de retê-los e transformá-los em memória representacional —, tentamos nos esconder em trin3 Baudelaire, C. Vers retrowís. Paris, Jules Mouquet, 1929, citado por Benjamin,

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cheiras defensivas que nos protejam contra a sensação de pulverização cotidiana de nosso eu. Somos atingidos por essa sensação a cada momento, quando andamos na rua e temos medo, quando ligamos a televisão e vemos o jornal nos mostrar a guerra ao vivo e a cores, juntamente com os pedaços de felicidade virtual que se insinuam a cada intervalo eletrônico. A questão é: será que as trincheiras identificatórias a que nos aferramos nos defendem de alguma coisa, ou só nos impedem de explorar certas dimensões da experiência, que cada vez mais se impõem a nós através da fragmentação das imagens?

EU EM FOCO

Vamos pensar um pouco na dimensão de eu, tal como a entendemos em nossa experiência cotidiana: um eu que luta para se manter como um contínuum coerente, reportando-se ao tempo passado da memória para atingir o tempo futuro da antecipação. Na verdade, não podemos dispensar esta continuidade; ela é a própria condição do movimento, pois para dar um simples passo com nossa perna, precisamos acreditar que outro se seguirá e mais outro. Esta função antecipatória do eu é fundamental em nossa existência; sem ela permaneceríamos cravados num presente eterno. Mas onde fica minha questão? Ela se inicia justamente aí, no presente. O que fazemos do presente, do momento, do ínfimo instante das sensações? Será que o presente só pode existir como passagem entre um passado do qual lembra-

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mós e um futuro que antecipamos? O que é estar no momento, no instante, no próprio acontecimento, antes de sua repetição como representação mnêmica? A noção de continuum é necessária para que não nos percamos numa dispersão caótica de instantes, mas a crença demasiada na fixidez da continuidade pode nos lançar na repetição de hábitos idênticos a si mesmos, que não fazem sentido e perdem a própria memória. Voltemos à teoria psicanalítica. Venho falando de eu, e convém pensar que eu é esse. Para Freud o eu ou o ego, como é mais conhecido, é a instância capaz de realizar as trocas com o mundo. Exerce a função organizadora e antecipadora de que viemos falando. Freud se utiliza da imagem de uma ameba que lança periodicamente seus pseudópodos para o mundo, explorando sensorialmente a realidade, colhendo amostras, estabelecendo diferenciais qualitativos. A partir destas explorações, o eu se constitui como a instância organizadora de uma multiplicidade de identificações realizadas através das amostragens absorvidas do mundo dos objetos, com os quais vai se esbarrando. Um outro autor, contemporâneo de Freud, seu discípulo e colega, Sàndor Ferenczi, interessou-se muito pelas questões do eu. Tomando um caminho diferente de Freud, que procurou definir conceitualmente qual seria a função de uma instância egóica, Ferenczi mergulhou no turbilhão de sensações e percepções constituintes do eu. Em um livro publicado em 1924, Thalassa; ensaio sobre a teoria âa genitalidade*— thalassa é a palavra grega 4 Ferenczi, S. "Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade (1924). Em: Obras Completos. Volume III. Sào Paulo, Martins Fontes, 1992.

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psramar,ouKatastro{)hak, título da edição húngara—,Ferenczi desenvolve uma teoria da sexualidade, partindo dos erotismos parciais, múltiplos, ínfimos, que surgem das primeiras experiências do bebé com o seu mundo. Até aí nenhuma novidade, é claro. Mas, ao lermos seus textos, começamos a perceber sua disposição para se deter no instante, no gesto, no tique, nos pequenos abalos do continuum do eu, que nos mostram como essas parcialidades continuam atuais e atuantes em nossa vida. Na exaustiva descrição de situações episódicas sem importância, que revelam alterações despercebidas pelas próprias pessoas, vai demonstrando como o modo de movermos o corpo, ou as tonalidades de nossa voz, nossos cheiros e ruídos, apresentam a infinidade de variações tonais pelas quais passa o nosso eu em sua (dês) continuidade. MÚLTIPLOS EUS

Ferenczi explorou esse universo de multiplicidades não como sintomas, mas como possibilidades. Sua teoria se baseia na ideia de que a vida se organiza e evolui a partir de catástrofes que irrompem, provocando a destruição parcial do que já está organizado. Esta destruição exige dos seres vivos um constante e oscilante trabalho de reorganização, no qual as catástrofes são os acontecimentos, as variâncias do viver. A erotização do corpo e das experiências do bebé, em sua relação com a mãe e outros que se acercam dele, se

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faz por essas rupturas e suturas. Neste movimento de fazer e desfazer se constitui o eu, originariamente feito de marcas parciais, não partes de um todo, e sim partes todo. Cada pequena parte é um pequeno eu autónomo em sua experiência com as coisas do mundo — outras partes que se constróem num movimento simultâneo ao eu. O olhar constitui o olho e seu objeto, o gosto faz a boca e do que ela gosta, as sensações táteis marcam pedaços diferentes do corpo antes de criarem a pele como invólucro e limite corporal, o cheirar cria um espaço sensório de memória com o rastro dos primeiros cheiros, que se misturam com outras memórias sensórias criando imagens sinestésicas que conjugam cheiros, cores, texturas, sons etc. Outro psicanalista Daniel Stern5 baseou-se nas experiências feitas com bebés pelos psicólogos desenvolvimentalistas, para definir estágios de construção de "Sensos de Eu e de Outro". Apesar de distantes no tempo, Stern e Ferenczi são muito próximos em suas concepções. Ambos consideram que o bebé é ativo desde seu nascimento (ou mesmo em sua vida fetal), sendo capaz de organizar suas experiências sensórias num processo intenso de construção de planos de sentido. Stern define quatro planos ou Sensos de Eu: Senso de Eu Emergente, Senso de Eu Nuclear (eu versus Outro, eu com Outro), Senso de Eu Subjetivo e Senso de Eu Verbal, cada um destes correspondendo a modos de apropriação das percepções e de construção de sentido. Cada Senso de Eu se processa, se transforma e continua em um 5 Stern, D. O mundo interpessoal do bebé. Porto Alegre, Artes Médicas, 1992, p. 42-5.

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outro Senso de Eu, mas seus atributos próprios permanecem como ordens autónomas organizadoras das experiências segundo o seu próprio regime. O Senso de Eu Emergente corresponde aos primeiros tempos de vida de um bebé e é definido como o período em que se iniciam os processos de apreensão do mundo e de construção de sistemas de auto-invariâncias, através da integração das experiências sensórias, motoras, perceptivas e afetivas. A integração dessas experiências permite ao bebé criar "ilhas de consistência", ou seja, ordens de sentido que vão se fazer segundo as capacidades de organização de cada bebé a cada momento. Para o Senso de Eu Emergente as percepções fundamentais são as que dizem respeito às primeiras diferenciações auto-perceptivas do bebé, e sua correlação com as percepções do mundo exterior. Stern descreve experiências que mostram como os bebes de poucas semanas são capazes de estabelecer relações entre sensações tácteis e visuais, ou visuais e proprioceptivas, ou mesmo visuais e auditivas. Ou seja, são capazes de estabelecer cruzamentos entre informações de uma modalidade sensorial e traduzi-las simultaneamente para outra modalidade sensorial, criando percepções amodais que permitem a construção de uma dimensão complexa de objetos. Do mesmo modo que as percepções dos objetos inanimados, as experiências perceptivas do comportamento expressivo humano também passam por esses "cruzamentos amodais", possibilitando aos bebes "interpretarem", segundo o seu modo de apreensão sensória, as variações afetivas expressas pelos adultos com os quais se relacionam.

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O interessante é que Stern introduz uma dimensão afetiva, a dos afetos de vitalidade, que seria a dimensão fundamental da emergência do Senso de Eu e do Outro. Afetos de vitalidade são as variações intensivas expressas em cada gesto e ação que realizamos. Apesar de nos sentirmos como contínua invariantes, oscilamos a cada instante em variações qualitativas não categorizáveis, que podem ser melhor definidas por termos dinâmicos como surgindo, desaparecendo, passando rápido, explosivo, crescendo, diminuindo, devagar, mole etc. Ou seja, são qualidades experienciais sensíveis que escapam inteiramente ao registro semântico verbal. São sensações afetivas indefiníveis pela palavra que estabelecem diferenciais intensivos e vão marcando o corpo/psique do bebé. Nesse sentido, o outro funciona para o bebe como um auto-organizador do Senso de Eu Emergente, tomando-se parte da auto-percepção do bebe ao mesmo tempo que permanece como outro, como signo de exterioridade. O que nos fica desse modo de organização emergente por nossa vida? A capacidade de ser afetado pelas variações intensivas do outro e de nós mesmos de forma absolutamente inconsciente com a potência do instante, do ínfimo, quase imperceptível, que escapa à definição pela palavra e na maioria das vezes escapa à nossa própria consciência. São sensações fugazes que em geral são descartadas pela razão, ou no máximo são entendidas como intuições que fogem à explicações lógicas. Voltando à questão do eu como possibilidade de multiplicidade s, sabemos que este universo de sensações singulares tende a se organizar, através da linguagem, numa memória representacional,

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formada segundo moldes culturais próprios a cada grupo de humanos. Em nossa cultura nos organizamos como subjetividades dotadas da noção de um dentro e um fora, de eu/não-eu, em que o universo múltiplo das sensações se organiza como umconíirmum que se superpõe a experiência da multiplicidade. Quando a vivência de multiplicidade se apresenta em sensações que nos lançam nestes registros de sensorialidades intensivas, geralmente nos sentimos ameaçados de fragmentação e de aniquilamento. Nestes momentos o que experimentamos são estados emergentes que a linguagem verbal não consegue capturar; estamos no terreno do indizível, do irrepresentável, não há memória de passado nem possibilidade de antecipação. Os loucos, os poetas e às vezes os artistas parecem ter mantido em aberto a possibilidade de passar do contmuum para o descontínuo, sair da ordem para o caos e fazerem seu testemunho. No caso dos loucos, ninguém presta muita atenção, pois nos incomoda demais sua explosão sensorial e seu sofrimento por não conseguirem reconstituir um mosaico desses cacos. Quanto aos poetas e aos artistas, nos regozijamos com eles, às vezes nos incomodamos também, mas eles estão lá no seu mundo das artes, das licenças poéticas, e nós aqui no mundo comum, das pessoas comuns, respeitáveis, que acreditam que precisam desse corttinuum para poderem existir. Não podemos ser excêntricos, fugir do nosso centro, pois tememos nos perder e não nos encontrarmos mais. E aí o temor da loucura nos acena com todas as suas faces loucas.

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EU E MUITOS OUTROS

Eu gostaria de falar desta experiência de nos sentirmos outros de nós mesmos, da heterogeneidade não só dos poetas e dos loucos, mas das pessoas comuns, que vivem seus dias mais ou menos rotineiros, buscando não criar muitos problemas na vida. Quando esta identidade sofre abalos, tentamos não perceber e nos recolhemos à carapaça protetora de que já falamos. Mas é quando a identidade se fecha sobre si mesma numa crença em sua consistência, que nos tornamos mais vulneráveis às intempéries. Lembro-rne de uma fábula que li quando criança e que me impressionou muito, pois, como era pequena e me sentia frágil perante o mundo dos adultos, entendi muito bem como era aquilo; era a fábula do carvalho e do salgueiro: o carvalho é uma árvore imponente, majestosa e orgulhosa de seu porte, enquanto o salgueiro é frágil, até meio raquítico, com seus ramos quase ténues de tão leves. Numa tempestade muito violenta, inusitada, o carvalho não resistiu e tombou com suas raízes arrancadas da terra. Por seu lado, o salgueiro dobrou-se sob o vento intenso, lançado de um lado para o outro, seus ramos flexíveis não se quebraram, simplesmente oscilaram; quando passou a tempestade, estava vivo graças a isso. Da mesma forma, cada vez que nos recusamos a viver as tempestades, ou as pequenas fissuras de nosso cotidiano, empurramos para o lado inúmeras percepções e sensações que poderiam servir de matéria-prima em nosso viver. Acabamos nos endurecendo e correndo o risco de

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nos sentirmos quebrados, com as raízes arrancadas pela violência dos acontecimentos. Não é só na experiência da loucura ou da arte que nos deparamos com o caos e a dispersão; a cada momento vivido estamos saindo de um estado de equilíbrio e redescobrindo um outro estado, sem nos darmos conta disso. Quando essas experiências de dês continuidade se apresentam, vivemos a explosão do sentido, a explosão da identidade; somos lançados no caos. Isto pode se dar numa experiência de risco, numa perda afetiva, ou em perdas de forma geral. Nosso mundo se desorganiza em seu sentido anterior. São momentos de crise, de quebra da continuidade, nos quais somos de novo lançados no múltiplo, no parcial, no corporal. O coração dispara, o sangue aflui, o corpo fica mole, a voz falta, a respiração fracassa. Nestes momentos somos lançados nas puras intensidades sem palavra, nos estados emergentes dos afetos de vitalidade. As memórias de que dispomos como possível traço de orientação não são representações, são memórias sensórias de experiências emergentes do instante. Quando conseguimos, quando não nos assustamos demais, recomeça em seguida o processo de dar ordem ao caos. Mas jamais se retorna para o mesmo ponto. Cada ruptura deixa uma marca, um rastro, uma cicatriz; e neste rastro, nesta cicatriz, podemos tentar trafegar para não esquecer, para não nos perdermos tanto na estrada da continuidade. Mas as rupturas nem sempre são catástrofes geológicas desse porte. As rupturas podem ser perceptíveis a cada sensação que se destaca, e que geralmente nem queremos

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perceber e registrar. Um som, um gosto, um banho no dia de calor, mudanças de textura das coisas desimportantes, que vão pontuando os instantes de nosso dia, e que deixamos passar porque são matéria de pré-coisas, como diz Manoel de Barros, poeta que fala deste sensório mínimo e só se preocupa com as coisas inúteis: As coisas que não levam a nada tem grande importância Cada coisa ordinária é uru elemento de estima6. Com as pré-coisas construímos um mundo emergente, que não se faz como ordem rígida e capaz, mas que talvez nos deixe mais à vontade para viver o instante em toda sua força, sem ser só com o canto do olho, como normalmente fazemos para escapar de todas as imagens doloridas que nos atropelam pelas ruas, A clínica psicanalítica também se utiliza desta abordagem, quando o analista encontra disposição para a descoberta do múltiplo, e acompanha o analisando em seu percurso de descolamento da identidade como bastião inexpugnável contra o sofrimento. O analista serve de suporte, de catalisador de combinações, não só de intérprete, pois muitas vezes não há o que interpretar, pois não há ainda o que dizer, só uma pré-coisa do dizer. O dizer dos poetas pode nos ajudar nisso, pois eles também não são só poetas, são pessoas que num certo momento de sua vida, talvez logo ao nascer, ouviram, 6 Banos, M. "Matéria de poesia" (1974). Em: Gramática Exposiúva do CKão. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1990.

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como Drumond, o chamado de um anjo torto que lhe disse para sergflitc/ie na vida, ou como Manuel de Barros que nos diz: "Me procurei a vida inteira e não me achei— pelo que fui salvo". Os poetas percebem esses fragmentos e deles fazem matéria de poesia: são os cheiros, texturas, pedaços de sons, pedaços de coisas, que se ordenam e se organizam posteriormente como representações, símbolos e metáforas, como no poema de uma poeta ainda inédita, Katia Blanco7: Quase sempre Da rua já se percebe os bons e os outros dos quartos e das salas e cozinha a pressão das panelas desmacula feijões sonorizando arrepios nos passantes o cheiro quente do forno e a plena disposição do sol expõem bandeiras de corpos bolos e tolos Uma casa são sentidos.

Como ela podemos dizer: uma vida são sentidos, eu somos muitos. 7 Blanco, K. et alli. Etc poesia & tal. 1993, Cópia xerográfica.

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UM DESAFIO ÀS REGRAS DO JOGO o brincar como proposta de redefinição do tratamento da criança hospitalizada"

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INTRODUÇÃO

Em que consiste atualmente a assistência pediátrica durante a hospitalização da criança? O que visa a equipe de saúde? Em princípio, a hospitalização se dá num contexto de crise: a criança apresenta uma patologia aguda, ou uma patologia crónica que se agrava, ou ainda complicações de doenças que não foram tratadas. O hospital tem por objetivo se não a "cura"1, ao menos uma melhora sintomática do paciente que permita seu retorno às condições habituais de vida, acompanhado ou não de um atendimento ambulatorial. Tenta suprir a ausência, as falhas, ou mesmo as dificuldades do tratamento ambulatorial, num contexto controlado, mais equipado e teoricamente com maior possibilidade de eficácia. * Projeto de Doutoramento em Saúde da Criança no Instituto Fernandes Figueira/FlOCRUZ. l Aqui o termo "cuia" está sendo utilizado na compreensão médica comum, como um "retorno à normalidade fisiológica" e não como conceito, o que certamente mereceria um maior aprofundamento e discussão.

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Mas o que a medicina entende por eficácia? Castiel, abordando esta temática, nos diz que o termo "eficácia" é utilizado para denotar o grau em que uma intervenção resolve, com mínimos efeitos danosos, a questão de saúde trazida pelos indivíduos, após serem diagnosticados e obedecerem às riscas as recomendações e/ou terapêuticas propostas.2

Neste sentido, a prática da pediatria hospitalar, nos modelos atuais, poderia ser considerada como uma prática eficaz? Quais efeitos danosos são comumente enfatizados e quais se tenta minimizar no decorrer da internação? Em geral, fala-se daqueles que advêm das intervenções medicamentosas, e da conhecida e temida infecção hospitalar, resultante dos fenómenos de resistência bacteriana e do intercâmbio dos agentes infecciosos entre pacientes, acompanhantes e equipe técnica. Partese portanto do pressuposto que, reduzindo-se a um mínimo estes efeitos e seguindo-se "à risca" as terapêuticas propostas, poder-se-ia efetuar uma prática eficaz. Entretanto, quando lançamos um outro olhar sobre o paciente internado, podemos delinear uma série de fenómenos "colaterais" surgidos durante o tratamento hospitalar, mas que não fazem parte da investigação e do planejamento terapêutico da moderna pediatria. São sintomas na esfera mental, que na infância se apresentam comumente como distúrbios do comportamento ou do desenvolvimento. Muitos deles são sutis, pouco perceptíveis, ou são atribuídos a problemas orgânicos como, por exemplo, a anorexia, os vómitos, a insónia. Outros, como 2 Castiel, L. D. O buraco e o avestruz: a singularidade do adoecer humano. São Paulo, Papirus, 1993, p. 78.

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as depressões, não incomodam a equipe das enfermarias, até mesmo facilitando seu trabalho: as crianças deprimidas são quietas, mais passivas e submissas. Tais sintomas raramente são observados pelos pediatras e, menos ainda, relacionados à situação de hospitalização. Quando a sintomatologia mental é perturbadora para o ambiente, dificultando o tratamento ou tornando a criança incómoda na enfermaria, a equipe médica solicita a presença de um especialista, um psiquiatra ou um psicólogo. Estes quadros são encarados como pertencentes a um "outro" campo, implicando questões que não devem ser formuladas principalmente porque não se enquadram no espírito cientificista do modelo biomédico de causa e efeito. Este modelo é calcado na visão do corpo como uma máquina com defeitos a serem corrigidos — seja ao nível fisiológico, seja ao nível celular ou molecular—, perdendo de vista o paciente como ser humano em sua natureza complexa. Sua eficácia é dimensionada de maneira simplificada, adquirindo assim uma faceta imediatista: o tratamento que debela uma infecção é eficaz. Trata-se de um modelo pontual, restrito a uma mecânica simplista e portanto precário. A concepção de saúde como bem-estar bio-psico-social, que por definição envolve os aspectos físicos, psicológicos e ambientais da condição humana, aponta para os múltiplos aspectos do homem em seu contexto vital3, e nos ajuda a questionar o conceito de eficácia da atual medicina hospitalar, apontando para outros efeitos danosos que esta prática pode gerar. 3 Embora esta definição da OMS já tenha sido bastante criticada, dentre outras coisas por ser utópica, pode servir como um ponto de partida para um questionamento sobre a interrelação entre estes níveis.

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Este modo de pensar encontramos em Capra, quando afirma que, embora o desenvolvimento da ciência médica tenha contribuído para eliminar certas doenças, isto não reestabeleceu necessariamente a saúde4. Desta forma, a discussão em torno dos efeitos da terapêutica hospitalar amplia-se para além das ações dos psicofármacos e das artimanhas dos microrganismos que circulam nas enfermarias. Algumas questões podem ser de imediato delineadas. O que significa, especialmente para a criança, o adoecimento corporal e o confinamento no hospital? A manipulação e a submissão necessárias ao tratamento poderiam ser fatores adversos à saúde, interferindo na evolução da doença ou produzindo novas patologias a curto, médio ou longo prazos? AS REGRAS DO JOGO

Para entrar nesta problemática, tentaremos nos aproximar de uma compreensão das consequências do adoecimento físico da criança. Ele comporta uma série de modificações de ordem subjetiva, relacionadas às mudanças corporais, ao medo da morte e aos remanejamentos no contexto familiar5. Aliadas às limitações físicas que a doença impõe, impossibilitando a criança de reagir normalmente às demandas ambientais, surgem a angústia diante do desconhecido, o sentimento de desvalorização 4 Capra, F, O ponto de mutação. São Paulo, Cultrix, 1982. 5 Ganger, R. "Psychological reactions to physLcal ilness". Em: RudolpK, A. M. & Hoffman, J. E. Pediatrics. Califórnia, Appleton &. Lage, 1987.

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em relação às outras crianças e a captação da ansiedade dos familiares6. Evidentemente, estes aspectos são intensificados quando é necessária a hospitalização.7-8 O contexto institucional hospitalar implica a criança em uma enorme gama de perdas: do ambiente doméstico e do aparato familiar — a casa, os irmãos, os parentes mais próximos, os objetos pessoais, a alimentação costumeira, as roupas; do ritmo de vida — a escola, os amigos, os horários habituais. No hospital, a criança é confrontada com a vertente deficitária de seu próprio corpo, com outras crianças adoecidas, com a situação de morte que muitas vezes presencia, e é submetida aos procedimentos médicos e de enfermagem. A atividade natural da infância é então substituída pela passividade necessária ao contexto hospitalar, ficando a criança temporariamente destituída de praticamente tudo que a referenciava no mundo9. Na enfermaria, a criança é "objetivada" como apenas um corpo doente, configurado como único foco de atenção sob o ponto de vista do diagnóstico e da terapêutica10, sendo confinada a um ambiente onde predomina a 6 Ajuriaguerra, J. Manual de psiquiatria infanta. Barcelona, TorayMasson, 1976, cap.XX!V, 7 Perrin, J. M. &. MacLean, W. E. "Childten with chronic ilness: the prevention of disfuntion". Tfie Pedíot. Cíin. North Am,, 1988, 35(6), p. 1325-37. 8 Aussiloux, C et alii. "l/énfant anxieux et sés milieux". Neuroftsyc. Enfance, 1995, 43(4-5), p. 189-93. 9 Lê Vieux-Anglin, L. & Sawyer, E. H. "Incorporating play interventions into nursing care". Pedial. Nurs., 1993,19(5), p. 459-63. 10 Maciel, E. M. A criança como objeto àe saber; os limites de um conceito. Dissertação de Mestrado em Saúde da Criança do Instituto Fernandes Figueira/FIOCRUZ, 1992.

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hegemonia do discurso clínico-laboratorial11. O hospital contemporâneo uniformiza e numera, e em nome da objetividade científica se estabelece um processo de destituição subjetiva dos pacientes: perde-se de vista o contexto emocional, cultural e social da criança, perde-se de vista a subjetividade12.0 atendimento é despersonalizado, desumanizado, sendo enfatizadas a tecnologia e a "competência científica". Nas palavras de Capra: Neste modernos centros médicos, que mais parecem aeroportos do que ambientes terapêuticos, os pacientes tendem a sentir-se impotentes e assustados, o que frequentemente os impede de apresentar melhoras.11

Os hospitais, antes denominados "casas de saúde", converteram-se em instituições de cunho técnico-estratégico, com sofisticados aparatos bélicos contra a doença, que é vista como um inimigo a ser derrotado14. No contexto institucional hospitalar o sofrimento humano é uma dimensão negada: desconsidera-se as ansiedades acarretadas pela doença, pela separação, pelas perdas familiares e sociais; ignora-se a angústia decorrente da entrada num ambiente desconhecido, o medo e as fantasias oriundas da manipulação física e das intervenções mais violentas como coletas de sangue e secreções, punções, dissecações 11 Ansermet, F. "Psychanalyse et pédopsychiatrie de Haison en pédiatrie". Neuropsyc. En/once, 1994, 42(4-5), p. 173-9. 12 Oliveira, H. A enfermidade na infância: um estudo sobre a doença em crianças hospitalizadas, Dissertação de Mestrado em Saúde da Criança do Instituto Fernandes Figueira/FlOCRUZ, 1991. 13 Capra, F. O ponto de mutação. Op. cit., p. 141. 141dem, cap, 5.

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de veias, contenção física (para que os equipamentos não sejam desconectados) etc. Para a criança, a atmosfera hospitalar é, além de tensa, ao mesmo tempo hipo e hiperestimulante. Faltam estímulos adequados ao período da infância e necessários à continuidade do desenvolvimento psíquico e sensóriomotor; excedem os estímulos gerados pela necessidade da intervenção médica: agulhas, máscaras de oxigénio, aparelhos que emitem ruídos, luzes acesas dia e noite. Muitas vezes solicita-se à criança que não reaja, que não chore, que seja "boazinha", que entregue-se àquilo que, distante de uma compreensão possível, lhe é estranho e ameaçador. Podemos considerar como violentas as tentativas de normatização e dessubjetivação, justamente no contexto que se pretende terapêutico15. Sob a perspectiva do fazer médico, o corpo é sistematicamente violentado, controlado e codificado. O relacionamento da equipe com a criança e seus acompanhantes, e mesmo intra-equipe, é fiel a este modelo: burocrático-científico, nunca pessoal16.

TRAUMA E SAÚDE Assim contextualizada, a hospitalização pode de um modo geral se configurar como um evento traumático, uma vez que desconsidera a complexa dimensão humana. Qualquer ambiente ou situação que introduza maciça15 Foucault, M. A micTopsica do toder. Rio de janeiro, Graal, 1979. 16 OUveira, H. A enfermidade na infância: um estudo sobre a doença em crianças hospitalizadas. Op. Cit., cap. 5.

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mente estímulos desconhecidos, que não fazem parte da organização histórica de uma pessoa, provoca de imediato o terror. É necessário que o Eu17 disponha de dispositivos de interpretação para que a experiência seja gradativamente assimilada, ou seja, articulada com outras situações já experimentadas e compreendidas18. O trauma, portanto, não diz respeito a um fato em si mesmo, mas à impossibilidade do Eu em dar sentido aos fatos, de elaborar novas circunstâncias, inserindo-as num código significativo19. Fora desta possibilidade, o trauma se inscreve como uma marca não simbolizada, produzindo seus efeitos, ou seja, originando sintomas20. A despeito de suas propostas terapêuticas, o ambiente hospitalar pode, portanto, produzir efeitos nefastos sobre a saúde dos pacientes, principalmente na infância. A criança, diferentemente do adulto, não dispõe de experiências prévias e de recursos linguísticos21 para falar e com17 Trata-se aqui de uma referência psicanalítica, no registro freudiano, à questão do trauma. O Eu na qualidade de instância articuladota entre os processos inconscientes e pré-conscientes/conscientes e como interpretante do real. 18 Schueller Reis, E. Trauma e repetição no processo psicanatitico: uma abordagem ferecyana. Dissertação de Mestrado em Teoria Psicanalítica daUFRJ, 1992. 19 Freud, S. "Más alia dei principio dei placer. Em: Obras Completas. Volume XVIII. Buenos Aires, Amorrortu, 1986. 20 Ferenczi, S. "Confusão de Ifngua entre a criança e o adulto". Em: Obras Completas. Volume IV. São Paulo, Martins Fontes, 1992, 21 Esta questão é discutível em Psicanálise, contudo estamos nos baseando na afirmação de Freud de que na infância o Consciente encontrase em processo de desenvolvimento, transpondo-se apenas parcialmente em expressões linguísticas. Cf, Obras Completas. Volume XVII. Buenos Aires, Amorrortu, 1986, p.95-6.

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preender a situação de hospitalização — mesmo quando esta lhe é explicada—, especialmente as menores de dois anos, que ainda não falam, estando impossibilitadas de expressar assim o seu sofrimento. Nestas, a expressão se dá prioritariamente através do corpo, naquilo que Wallon denomina de "diálogo tónico", como uma função de comunicação essencial. O diálogo tónico, em virtude das posturas que suscita, expressa as flutuações afetívas que constituem a maneira que a criança encontra de interiorizar e assimilar sua experiência a dos demais22. Por conseguinte, até os 24 meses as crianças privadas do movimento, dos estímulos ambientais, da interação com o meio, submetidas às sensações de agressão corporal geradas pelas intervenções médicas, tendem a apresentar alterações no desenvolvimento23. Na vigência de uma experiência inominável, portanto traumática, o diálogo tónico se altera, impedindo o processo de constituição da unidade de prazer sensório-motora, da imagem corporal e consequentemente da consciência de si24. As crianças maiores, embora possuindo o recurso da fala, não têm na linguagem verbal seu principal meio de compreensão, expressão e comunicação, priorizando o brincar como linguagem fundamental da elaboração e apreensão do mundo25. Desta forma, as crianças retidas no leito ou cuidadas apenas sob o ponto de vista da doen22 Bemard, M, El cuerpo. Buenos Aires, Paidós, 1980. 23 Ajuriaguerra, ]. Manual de psiquiatria m/amil. Op. cit., cap. XXIV. 24 Aucoututier, B. Texto apresentado no VI Congresso Brasileiro de Psicomotricidade. Rio de janeiro, 1995. C6pia cedida pelo autor. 25 Santa-Roza, E. Quando brincar é dizer: a experiência psicanalítica na infância. Rio de Janeiro, ReUime-Dumará, 1995.

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ça física, inativas no ambiente hospitalar, sem estímulos para a atividade lúdica, ficam sem recursos para a elaboração das situações-limite que a doença e a hospitalização impõem. A hospitalização pode funcionar então como um "caldo de cultura" para o desencadeamento de reações psicológicas, principalmente quando um elemento da família não pode estar continuamente acompanhando a criança na internação. Mesta situação os riscos são consideravelmente maiores em função da privação afetiva parcial ou total. Diversas pesquisas, em vários países, são concordantes em relação aos efeitos trágicos das separações precoces ou prolongadas em função de hospitalização26. Quadros como a depressão anaclítica—com retraimento, apatia e anorexia — , regressões importantes no desenvolvimento, suscetibilidade à infecções, e até a morte são relacionados às síndromes de privação afetiva27. Mesmo que acompanhada pela mãe ou outro parente, a criança internada está exposta aos efeitos das perdas secundárias ao isolamento hospitalar e aos fatores estressantes do tratamento médico. Bemard, citando Roíisseau, aponta para "a inequívoca nefasta influência que exerce na conduta da criança toda a coação física"28. Durante a internação e após a alta podem surgir diversos quadros psicopatológicos, que permanecem como seqíie26 Bowlby, J. Apego e perda. Volume 1. São Paulo, Martins Fontes, 198427 Spitz, R. O Primeiro ano àe vida. São Paulo, Martins Fontes, 1979, cap. XIV-XV. 28 Beinard, M. El cuerpo. Op. cit., p. 49.

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Ias desta experiência. Nos bebés se evidenciam inibições psicomotoras, distonias, apatia, debilidade psicomotora, dispraxias, distúrbios da alimentação e do sono29. Nas crianças maiores, os transtornos reativos ao estresse grave se manifestam como depressões, fobias, distúrbios de comportamento, agressividade, agitação psicomotora, perda do controle esfincteriano, anorexia e insónia30. A DIMENSÃO PLURIFACETADA DO ADOECER

Vários caminhos teóricos nos conduzem à necessidade de ampliação das investigações sobre o adoecer, e conseqúentemente sobre a terapêutica. É preciso também considerar que os efeitos produzidos pelas marcas traumáticas não se restringem à esfera mental, podendo alterar aspectos da própria organização biológica. Segundo Winnicott, não é possível estabelecer uma distinção entre os processos psíquicos, os somáticos e os ambientais desde o início da vida. Com o desenvolvimento do conceito de psique-soma, este autor postula que a saúde é um estado de interrelação entre o psíquico e o somático, que se mantém desde que a continuidade da existência não seja perturbada, ou seja, um estado de equilíbrio dependente de um ambiente perfeito31. 29 Guillaud-Bataille, J. "Réflexions cliniques à propôs de Ia dépression avant 1'âge de trois ans". Neurojjryc. En/once, 1994, 42(3), p. 55-62. 30 Ajuriaguerta, ]. Manual de («iauiama in/anul. Op. ck., cap. XXIV. 31 Winnicott, D.W, "Amenteesuarelaçãocomopsique-soma^.Em: Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978.

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Nos estádios iniciais, então, a adaptação do ambiente às necessidades do bebé favorece um processo de constituição deste psique-soma, o corpo tornando-se a residência da consciência de si32'33. No entanto, é impossível que este processo de continuidade não seja nunca perturbado, fazendo parte da experiência vital as reorganizações psicossômicas e o adoecer. Winnicott chama a atenção para o crescente interrelacionamento de complexidade entre soma e psique34. Assim, saúde e doença podem ser compreendidos como estados complexos, nos quais uma grande quantidade de elementos estão implicados em distintos níveis de organização, com caráter de imprevisibilidade e reintegração, razões pelas quais um corpo conceituai é insuficiente para abordá-los. O pensamento que gira em torno da ideia de complexidade promove uma desorientação das proposições científicas universais, já que questiona os mecanismos de ação e de previsibilidade dos sistemas observados. É, segundo Morin, um desafio a ser aceito e um incitamento para pensar. O complexo — aqui, especificamente o ser vivo — contém não apenas a diversidade, a desordem, mas abrange também as suas leis, a sua ordem, a sua orga3 2 Outeiral, J .O. "Comentários sobre o conceito de psique-soma". Em: Outeiral, J-O & Grafia, R. Doralo" W .Wirmtcott: estudos. Porto Alegre, Artes Médicas, 1991. 33 "Consciência de si" é uma das fonnas de referência ao conceito de Se!/ em Winnicott. No desenvolvimento da criança o Sei/ designa a constituição de uma consciência de si, uma diferenciação entre interno e externo. 34 Winnicott, D.W. A natureza humana. Rio de Janeiro, Imago, 1990.

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nização, em contínua interação. Enquanto o pensamento reducionista separa os diferentes aspectos do homem — físicos, biológicos, sociais, psíquicos e espirituais — ou os unifica através de uma simplificação mutiladora, o pensamento complexo tenta conceber as articulações, que são destruídas pelos cortes entre as disciplinas, entre categorias cognitivas, entre diferentes tipos de conhecimento35. Aspirando à multidimensionalidade, a complexidade — ao contrário do pensamento vigente no modelo biomédico — comporta fundamentalmente um princípio de incompletude e incerteza. Morin nos fornece uma panorama das várias direções que conduzem ao desafio da complexidade: a irredutibilidade do acaso e da desordem, a transgressão dos limites da abstração universalista, a complicação, a desordem reorganizadora ("arder from noise"), e a organização dentro de uma perspectiva sistémica36. Esta última baseia-se na visão dos fenómenos do real como interdependentes e interrelacionados, de forma que nenhuma teoria ou modelo comporta mais verdade do que o outro, e todos devem ser compatíveis. Na concepção sistémica o organismo é visto em termos de relações, de integração e de processo. Assim, diz Capra, ele se mostra com elevado grau de flexibilidade e plasticidade internas, e não há dois organismos rigorosamente idênticos. Não se trata, todavia, de abandonar a universalidade de certas leis, mas de articulá-las permanentemente com o singular. Embora o organismo como um todo apresente 35 Morin, E. Ciência com Consciência. Lisboa, Europa-América, 1982. 36Idem,p. 137-51.

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certas regularidades, o formato de suas múltiplas partes não é rigidamente determinado, podendo exibir comportamentos absolutamente singulares37. Nesta perspectiva, a teoria dos sistemas aponta para o fracasso da visão de causa e efeito no adoecer que pretendem reger as terapêuticas. Múltiplos fatores estão envolvidos no processo e podem ampliar-se através da interdependência e da realimentação, de modo que é irrelevante saber qual deles foi a causa inicial. Além disso, no pensamento sistémico está implicado o princípio de auto-organização dos seres vivos, que significa que sua ordem não é imposta pelo meio ambiente, mas estabelecida pelo próprio sistema, sendo capaz de se auto-renovar e de se dirigir criativamente para além das fronteiras físicas e mentais nos processos de evolução38. Assim é possível situarmos o paciente como um sistema de sistemas, todos entrecruzados entre si, formando uma rede tal que se alterados alguns aspectos, alteram-se todos os outros porque interconectados, conforme assinala Maturana39. Esta forma de pensar implica numa nova visão da realidade da criança: como um ser vivo num estado de interrelação e interdependência de todos os fenómenos — biológicos, psicológicos, sociais e culturais. Significa, portanto, ampliar e aprofundar a prática pediátrica, desde o diagnóstico da doença que leva uma criança ao hospital até a consideração dos múltiplos agentes estressores do ambiente hospitalar. 37 Capra, F. O Jxmto de mutação. Op. cit., p. 259-63. 38Idem,p.263-64. 39 Magro, C &.Santamatia, R. "Entrevista com Humberto Maturana". Em: Conhícer o conhecer: ideias de Humberto Maturana. I Congresso de Universidades Federais Mineiras de São João dei Rey, 1993.

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MUDANDO AS REGRAS DO JOGO Para seguirmos "à risca" o conceito de eficácia em relação à terapêutica hospitalar com crianças seria necessário, então, identificar os agentes estressores, considerálos adversos à saúde no mesmo nível, por exemplo, das infecções hospitalares e procurar, dentro da perspectiva denominada "terapêutica com um mínimo de efeitos colaterais", reduzi-los a um mínimo. Dito de outra forma, visualizar a hospitalização em seu aspecto paradoxal: como uma situação de risco para a saúde, na qual se faz necessário revisar as estratégias de intervenção. De uma maneira geral, então, a terapêutica deveria comportar ações direcionadas para evitar a solução de continuidade nos processos de desenvolvimento da criança gerados pelo contexto hospitalar40-41, para possibilitar a manutenção de sua individualidade, para permitir as manifestações de sua subjetividade que atuassem positivamente no organismo da criança42-43. Quais ações poderiam ser instituídas? É possível se redimensionar o tratamento hospitalar para que ele possa, no dizer de Castiel, se conduzir

40 Bennett, F. C. et alii. "Eftectiveness of developmental interventions in the Erst fwe years of life". Pedíat. Clín. NortK Amer, 1991,38(6), p. 1513-29. 41 Dilks, S. "Developmental aspects of child care". Idem, p. 1529-43. 42 Danon, G-St Hervé, M. "Travail de séparation et hospitalization pédiatrique - groupe bebe". Neurose. Enfonce, 1994, 42(8-9), p. 633-6. 43 Madelin, J.C. "Travail de séparation et hospitalization pédiatrique grands enfants et adolescents". Idem, p. 544-5.

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para além do habitual do discurso médico (clínicolaboratorial), extremamente pobre não só para confortar. Mais do que isso: para funcionar como agente produtor de uma atmosfera curativa44.

Muito pouco se encontra na literatura pediátrica a respeito de intervenções coadjuvantes aos procedimentos clínico-laboratoriais que possam ser utilizadas na abordagem terapêutica abrangente das crianças hospitalizadas. Contudo alguns trabalhos apontam para os efeitos terapêuticos e profiláticos da atividade lúdica, que então se configuraria como um destes recursos. A revisão das comunicações científicas sobre este tema específico nos últimos cinco anos revela a escassez de produções nesta área, principalmente realizadas por profissionais médicos. A maioria dos textos foi escrita por enfermeiros, e são poucos se comparados às produções na área clínico-laboratorial. Na revisão dos últimos cinco anos encontramos apenas três textos de autores brasileiros em revistas indexadas. Em todos eles encontramos a afirmação de que o brincar é uma importante forma de intervenção em saúde mental para crianças hospitalizadas, contribuindo de maneira significativa para o desenvolvimento da cognição, da linguagem, da área motora e da área social 44 Castiel, L. D. O buraco s o avestruz: a singularidade do adoecer humano. Op. cit, p. 88.

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da criança45"50, A atividade lúdica é considerada de alto valor nos processos de diagnóstico, de adaptação, de redução da dor e da socialização51 da criança hospitalizada, bem como importante medida para o restabelecimento físico, psíquico e cognitivo dos pacientes52. Todavia, uma recente comunicação americana, fazendo uma extensa revisão bibliogáfica do assunto, nos diz que são necessárias medidas para validar cientificamente os programas de assistência hospitalar que utilizam o brincar. Os dramáticos aumentos nos custos da hospitalização vêm fazendo com que estes programas estejam sendo cortados dos orçamentos para favorecer outros recursos terapêuticos — tecnológicos principalmente — cuja validade está mais comprovada. Embora o brincar durante a hospitalização seja até mesmo recomendado pela Academia Americana de Pediatria, as pesquisas existentes não 45 Marino, B.L. "Assessements of infant play:aplicatíons to research and pratice". Iss.ComíJ.Pediai.Nurs, 1988; 11, p. 227-40. 46 Huerta, E, P. "Brinquedo no Hospital". Rev. Esc. En/erm. L/SP, 1990, 24(3), p. 319-27. 47 Ribeiro, C.A. X) efeito da utilização do brinquedo pela enfermeira pediátrica sobre o comportamento de crianças récem-hospitaUzadas1'. Rev. Esc. Enf. USP. ,1991, 25(1), p. 41-60. 48 Scott, G, "Children in hospital: professional play". Nim. Stand., 1992,18-24:7(9), p. 22-3. 49 Dolan, A. "A day in life of a hospital play speciaKst".BriL J. Thnate. Nuis.,1993,3(3):31-Z. 50 Angelo, M. "Brinquedo: um caminho para a compreensão da criança hospitalizada". Rw.Esc.En/.USP, 1985.19(3), p. 213-23. 51 Jesse, P. "Nurses, children and play". Iss.Comp.PedúitNurs., 1992, 15(4), p. 261-9. 52 Summers, K.H. "Providing of play in the caie of children". Pediot.Ntm, 1991, 17(3), p. 266-7.

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são capazes de provar sua eficiência curativa, necessitando portanto de maior aprofundamento. Estes programas correm então o risco de desaparecer, diz o autor, em função da mentalidade burocrata e tecnocrata vigente na América do Norte53. Uma parte deste aprofundamento diz respeito a um estudo abrangente do fenómeno lúdico em várias disciplinas, que iniciamos em nossa disssertação de mestrado54. Trata-se de poder situar as funções do jogo na condição humana e definir seu estatuto ontológico.

A DIMENSÃO ONTOLÓGICA DO BRINCAR O brincar é uma forma de comportamento característica da infância e pertence a um conjunto de atividades que compõem a noção de jogo. Baseado numa manipulação de imagens, o jogo representa a realidade, recriando-a pela metáfora na realização de uma aparência: o jogo é imaginação no sentido original do termo. Imaginação, termo derivado do latim imago-ginú, que por sua vez deriva do grego phantasia, significa aparição, representação, ação de mostrar-se. No pensamento grego, a fantasia foi concebida como uma atividade mental através da qual se produzem imagens equivalentes à representação. 53 Thompson, R.H. "Documenting the value of play for hospitalized children: the challenge in playing the game". The Açaí. Advocate, 1995, 2(1), p. 11-9. 54 Santa Roza, E. Quando brincar é dizer: a experiência ÍJsicanaíítica na m/dncia. Op. cít., p. 15-38.

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Para Platão, a fantasia seria uma manifestação da opinião que, ao invés de produzir ideias, engendra imagens. Já Aristóteles diferencia a fantasia do pensamento discursivo, embora admita que não possa haver juízo sem fantasia. A fantasia é antecipadora e possui um caráter de liberdade quanto às sensações» combinando representações55. Para o pensamento moderno a imaginação tem também um papel crucial no pensamento. Hume enfatiza na imaginação a capacidade de engendrar imagens, produzindo o pensamento num processo criativo em função da liberdade de transposição e modificação das impressões recebidas. Para este autor, a imaginação é a produção de ideias relacionadas às impressões, sendo absolutamente essencial para o conhecimento, para a interpretação de experiências. No pensamento kantiano, o conhecimento também está vinculado à imaginação: ela induz uma relação entre o objeto-palavra e as experiências, de modo que uma determinada experiência possa ser reconhecida e identificada com a palavra. A imaginação tem, em Kant, uma forma não só reprodutiva mas também produtiva por uma capacidade de síntese a priorí, que ele denomina de imaginação transcendental56. Assim, o discurso filosófico sinaliza para a dimensão ontológica da imaginação e, consequentemente, da atividade lúdica que permite o exercício da fantasia. Sob a ótica da reflexão metafísica, o fenómeno lúdico é o signo da incompletude humana, surgindo como um movimen55 Ferra ter-Mora, J.F. Dicciorario de Filosofia. Madrid, Alianza, 1990, verbetes imcgínación e fantasia. 56 Warnock, M. Imagínatían, London, Faber and Faber, 1976.

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to no qual o homem se faz homem: no ato de jogar, o sujeito é separado de si mesmo e, distanciando-se do que ele é, se projeta e se inventa na produção de seu ato. Na determinação histórica de sua existência, o homem pode reinventar-se, através do jogo, pela imaginação57. A essência do brincar é a sua potencialidade de transformar em hábito uma experiência devastadora58, e isto ocorre em função de sua dimensão metafórica, ou seja, por sua capacidade de recriar a realidade, como uma linguagem. Todavia, dizer que o brincar é uma linguagem significa conferir-lhe um caráter de prática signifícante, tal como Freud o postula em sua conceituação da compulsão à repetição. A partir do jogo com o carretel empreendido por uma criança ante a ausência da mãe, Freud situa o brincar como um movimento estruturante, a partir do qual a força pulsional é inserida na ordem psíquica, posto que inscreve-se no campo simbólico. O momento em que a criança mergulhada na linguagem é por ela tomada, instaurada na condição humana, é representado na teoria psicanalítica por um momento de jogo59. Neste ponto de vista o brincar vincula-se à constituição do sujeito e torna-se o protótipo de uma atividade simbólica. O advento do símbolo estaria então relacionado aos jogos de ocultação, enquanto antecipadores da presença e da ausência, tal como postula Winnicott em sua formulação dos objetos transicionais. Para ele, uma 57 Henciot, J. lê J&i. Paris, PUF, 1976. 58 Benjamim, W. "Brinquedo e brincadeira". Em: Obras Escolhoías. Volume 1. São Paulo, Brasiliense, 1987. 59 Freud, S. "Más alia dei principio dei placer". Op. cit.

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primeira atividade lúdica — os fenómenos transicionais — teria o estatuto de passagem do pólo natural ao cultural, da completude imaginária ao acesso da criança à função simbólica. Tais fenómenos instauram uma área intermediária entre o corpo da criança e o corpo da mãe — o espaço potencial — que se constitui como uma área de ilusão. Assim, os fenómenos transicionais designam um processo de reconhecimento da diferença e a jornada do simbolismo, configurando-se aí uma equivalência lógica: objeto transicional — brincar — brincar compartilhado — cultura60. As manifestações lúdicas adquirem um lugat diferenciado nos estádios pré-verbais como precursores das operações simbólicas que caracterizam a linguagem. Os jogos de imagens constituem uma protolinguagem numa etapa lógica que marca a descoberta da diferença, da dialética da presença e da ausência. Mas o brincar tem ainda funções fundamentais e mais precoces, que antecedem e preparam o terreno para a dialética da presença e da ausência, par que rege e inaugura o universo simbólico: a edificação do próprio corpo através do traçado e da inscrição de uma superfície, e do estabelecimento das relações entre continente e conteúdo, que cria num espaço bidimensional a dimensão de volume61. Para que estas operações se estabeleçam é necessário a participação do ambiente e é neste sentido que Maturana e Verden-Zoller marcam a importância da existência do jogo entre pais e filhos. A criança adquire a consciência 60 Winnicott, D.W. Playing and reality. London, Penguin Books, 1988. 61 Rudolfo, R. O brincar e o significante. Porto Alegre, Artes Médicas,

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social e a consciência de si mesmo somente quando cresce na consciência operacional de sua corporalidade, e esta só se estabelece numa dinâmica de jogo62. Se tomamos, como postula Lacan, que o que diz respeito ao humano não pode situar-se fora de suas relações com a ordem simbólica63, o brincar se configura como um fenómeno de linguagem. Mas que linguagem é esta que pode não dispor da palavra, veiculando-se como gestos, ações e imagens? Teremos que situá-la no conjunto que compõe a linguagem denominada analógica, cujo estudo pertence ao campo da semiótica, e determinar suas diferenças em relação à linguagem verbal64. Wilden é um dos autores que tenta estabelecer uma distinção metodológica entre estas duas formas de linguagem, apontando para suas diferenças lógicas: a analógica é concreta, imprecisa, ambígua por comportar uma riqueza semântica e uma pobreza sintética, sinalizando para diferenças de magnitude, frequência, distribuição e organização; a digital (palavra) é abstrata, objetiva, sititática e diferencia por distinção e oposição. O analógico é colocado no lugar do referente, com os eixos paradigmáticos e sintagmáticos ligando-se por similaridade e contiguidade, 62 Maturana, H. & Verden-Zõller, G. Amor y juego: fundamentos olvidados dei humano. Santiago, Inst.Terap.Cogn., 1993. 63 Lacan, J. O seminário, livro 2: o eu na teoria de Fremi e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge ZaKar Editor, 1987. 64 Embora não nos esquecendo de que a linguagem verbal também possui aspectos analógicos, bem como os signos analógicos são penetrados pelos linguísticos. Barthes, em Elementos de Semiologia (São Paulo, Culttix, 1971, p. 74), nos diz que o encontro do analógico com o nãoanalógico é indiscutível no seio de uma linguagem.

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enquanto a digital é metafórica e metonímica65. Na linguagem analógica, então, a sequência lógica da rememoração não se estabelece, sendo apenas memória, e correspondendo ao que Freud denominou de representação-coisa (Sachvorstellung). Sob o ponto de vista da psicanálise, estas representações são os primeiros investimentos de objeto, imagens mnêmicas derivadas da coisa (Sache), que consistem nas representações inconscientes. O sistema pré-consciente nasce quando estas representações-coisa são superinves ridas pela representação-palavra66. No panorama da análise de Wilden a linguagem analógica é capaz de gerar efeitos de significado, mas não pode produzir a significação. Para ele, os jogos de ocultação representam, numa comunicação com elevado nível de organização, uma analogia com o que a psicanálise denomina de "falta do objeto". É a descoberta primordial da diferença entre a presença e a ausência, que é depois digitalizada em termos de uma oposição imaginária. O brincar abriria o caminho para a instauração do significante linguístico, ganhando aí um estatuto de ponte para a digitalização do análogo, necessária à linguagem67. É neste sentido que Rosolato resgata a importância da linguagem não-verbal, propondo o conceito de significante de demarcação. Estes pertencem ao campo do analógico, sentidos de experiências vividas, dificilmente 65 Wilden, A. Sustem and structure: essays in cornrnunicatioris and exchange. New York, Tavistock, 1984. 66 Freud, S. "Lo Inconciente" (1915). Em: Obras completas. Volume XIV. Op. cit. 67 Wilden, A. Sustem and structure: essays mcommurucaaons andexchange. Op. cit., p. 149-51.

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anterior69, e paralelamente a uma perspectiva de ampliação de um trabalho de extensão da UFRJ, denominado Projeto Brincar70. Este programa vem sendo realizado há três anos no Instituto de Psiquiatria e consiste na assistência aos pacientes psiquiátricos internados e seus filhos, através da atividade lúdica. Para minimizar os efeitos das separações prolongadas, o Projeto Brincar instituiu um espaço lúdico nos dias de visita, permitindo que as crianças frequentem o hospital psiquiátrico — o que antes era proibido — e proporcionando o relacionamento destas com seus parentes internados. Este projeto original, premiado pelo MEC e pela Fundação ABRINQ Pelos Direitos da Criança, ampliou-se então ao IFF, com a criação do Projeto Saúde e Brincar, tendo sido feito um acordo de colaboração técnico-cientírlca entre as duas instituições. Desde agosto de 1994, foi implantado um "settmg" lúdico nas enferrnariaspediátricas.Uma equipe interdisciplinar de estagiários e profissionais das duas instituições71 coordena 69 Santa-Roza, E. Quando brincar é dizer: a. experiência Jjsícanalítica na infância. Op. cit. 70 Saggese, E, G. "Piojeto Brincar" Jom.Bras.Ps4, 1995,44(4), p. 185-87. 71 Equipe do Projeto Saúde e Brincar: Eliza Santa Roza, psiquiatria da infância, coordenação; Marcelo de Abreu Maciel, psicologia, pesquisador visitante, sub-coordenação; Maria Aparecida Bezerra, comunicação visual, projeto de ambientação das enfermarias; Maria Manha Duque de Moura, pediatria; Carlos Eduardo Costa, psicomotricidade relacional, mestrando; Mirna Barros Teixeira, graduação em psicologia e bolsista de Iniciação cientifica CNPQ; Regina Kosinski, pedagoga, doutoranda; Rosa Maria de A. Mitte, terapeuta ocupacional e psicopedagoga; Denyse T. Lamego, psicomotricista educacional, bolsista de apoio técnico; Priscila M. de Aragão, graduação em psicologia; Gabriela G. Albernaz, graduação em psicologia.

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atividades lúdicas semanais e participa também de seminários teóricos e supervisões clínicas. A partir desta nossa inserção no hospital, inúmeras questões foram se apresentando para além daquelas que de início tinham inspirado a criação do trabalho. Chamou-nos a atenção, dentre outras coisas, a reação das crianças aos procedimentos médicos que são realizados, particularmente na sala de curativos e coleta de sangue — que as crianças denominam de "câmara de tortura"; a restrição das crianças no leito, mesmo aquelas que podem se locomover; um grande número de bebés internados sem acompanhantes, quase totalmente privados de estímulos afetivos e cognitivos; a ausência de material lúdico ou cultural. Verificamos que a maioria dos pacientes apresenta graves comprometimentos no desenvolvimento e nas relações interpessoais, ocasionados pelo grande tempo de internação. Ao lado disso, no decorrer do trabalho, fomos constatando que várias crianças, após a participação nas atividades lúdicas, saíam de estados depressivos, mostravamse mais ativas e participantes, apresentavam melhoras sintomáticas dos quadros orgânicos e redução da dor. O brincar coletivo estava possibilitando também o incremento das relações entre pais e filhos, acompanhantes e equipe, crianças entre si e destas com a equipe. Através das observações participantes, de entrevistas e da análise de imagens de vídeo — que são colhidas sistematicamente — foram se configurando vários problemas da hospitalização, bem como alguns caminhos para sua abordagem, transformando a experiência numa pesquisa.

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Elica Santo Roza

Cabe portanto a nós tentar validar cientificamente a importância do brincar dentro do hospital não como uma atividade para ocupar as chamadas "horas ociosas", mas como um elemento terapêutico coadjuvante, capaz de interferir direta ou indiretamente nos processos orgânicos, podendo inclusive reduzir o tempo de recuperação e internação.

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EXEMPLAR N°.

Esta obra foi impressa na cidade do Rio de Janeiro sobre papel Off-set 90 g/m1 pela Imprinta para a Contra Capa Livraria em agosto de 1997. A composição utili2ou o tipo Coudy Old Styk. A capa foi impressa sobre papel Color Plus 240 g/m2, com filmes fornecidos pela Huguenacolor.

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