Da assunção de dívida: as mazelas do modelo proposto pelo Código Civil de 2002 (DEBTS ASSUMPTION: ISSUES OF THE MODEL PROPOSED BY THE 2002 BRAZILIAN CIVIL CODE)

July 22, 2017 | Autor: Thiago Luís Sombra | Categoria: Civil Law, Contract Law, Comparative Private Law, Law of Obligations, Private law
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DA ASSUNÇÃO DE DÍVIDA: MAZELAS DO MODELO PROPOSTO PELO CÓDIGO CIVIL DE 2002

DA ASSUNÇÃO DE DÍVIDA: MAZELAS DO MODELO PROPOSTO PELO CÓDIGO CIVIL DE 2002

DEBTS ASSUMPTION: ISSUES OF THE MODEL PROPOSED BY THE 2002 BRAZILIAN CIVIL CODE

Thiago Luís Santos Sombra†

Referência: SOMBRA, Thiago Luís Santos. Da assunção de dívida: mazelas do modelo proposto pelo Código Civil de 2002. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore; MARTINS, Fernando Rodrigues. Temas relevantes do direito civil contemporâneo: reflexões sobre os 10 anos do Código Civil.



Professor de Direito Privado e Doutorando na Universidade de Brasília-UnB, Visiting Schoolar of London School of Economics-LSE, Mestre em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de São PauloPUC/SP, Pós-Graduado em Direito Privado pela Università degli Studi di Camerino-Itália, Procurador do Estado de São Paulo perante o Supremo Tribunal Federal, [email protected] 1

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DEBTS ASSUMPTION: ISSUES OF THE MODEL PROPOSED BY THE 2002 BRAZILIAN CIVIL CODE

Resumo: O Código Civil de 2002 enriqueceu sobremaneira as modalidades de transmissão das obrigações no ordenamento jurídico brasileiro: elegeu um capítulo específico dedicado ao tema e inseriu em seu rol o instituto da assunção de dívida. Embora o CC 1916 tenha deixado uma lacuna normativa sobre o tema, a doutrina e jurisprudência atuaram de modo a desenvolver ferramentas voltadas à transmissão singular do débito. Neste artigo, analisarei a figura da assunção de dívida, os principais contornos da sua disciplina e apresentarei uma visão crítica do modelo adotado, segundo o método de análise do Direito Comparado.

Palavras-chave: Assunção de dívida, Direito das Obrigações, Transmissão das Obrigações, Contratos, Direito Comparado

Abstract: The 2002 Brazilian Civil Code enriched the modalities in which obligations could be transferred: it dedicated one whole chapter to the subject and adopted the debt assumption institute. Although the 1916 Brazilian Civil has left a regulatory gap regarding this issue, the doctrine and jurisprudence acted in order to develop tools aimed at facilitating debts transmission. In this article, I will analyze the debts assumption institute, the main outlines of its normative approach and at the end will present a critical standpoint of the model adopted, according to Comparative Law’s analysis method.

Key words: Debts assumption, Law of Obligations, Transmission of Obligations, Contracts, Comparative Law

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Thiago Luís Santos Sombra SUMÁRIO: 1. Análise da inovação contemplada pelo CC 2002; 2. Marco teórico da assunção de dívida: conceituação e elementos; 3. Modalidades; 4. Requisitos; 5. Efeitos; 6. Distinções.

1. ANÁLISE DA INOVAÇÃO CONTEMPLADA PELO CC 2002 Segundo Luiz Roldão de Freitas Gomes, atribui-se a Delbrück, em meados de 1853, na Alemanha, os primeiros estudos da assunção de dívida, posteriormente aperfeiçoados por Windscheid, o que ensejou a codificação do tema (BGB, §§ 414 a 419)1. O Código Civil de 2002 enriqueceu sobremaneira as modalidades de transmissão das obrigações no ordenamento jurídico brasileiro: elegeu um capítulo específico dedicado ao tema2 e inseriu em seu rol o instituto da assunção de dívida, embora tenha pecado por omissão na disciplina da cessão da posição contratual ou cessão de contrato3. Mas ao longo do período de vigência do CC 1916, a lacuna normativa não significou para doutrina e jurisprudência um obstáculo à admissão da transmissão singular do débito, tal como já acenava Orlando Gomes4. No entanto, por mais louvável a inclusão da assunção de dívida dentre as hipóteses de transmissão das obrigações, o Código Civil incorreu em uma série de imprecisões de ordem técnico-legislativa que, de certo modo, comprometem a escorreita aplicação do instituto5.

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VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. Vol. II. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2006, p. 360; GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Da assunção de dívida e sua estrutura negocial. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, p. 80. 2 O CC 1916 somente tratou da cessão de crédito e o fez de forma absolutamente isolada. 3 A omissão quanto ao tratamento normativo da cessão da posição contratual pelo CC 2002 não tem impedido a doutrina e jurisprudência de avançar rumo à consolidação do instituto. Cf. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 356.383/SP. Relator: Ministra. Nancy Andrighi. DJ 06.05.2002, e BDINE JR., Hamid Charaf. Cessão da posição contratual. São Paulo: Saraiva, 2007. Este também o entendimento de Westermann antes da reforma de 2002 no Direito das Obrigações na Alemanha. WESTERMANN, Harm Peter. Código civil alemão: direito das obrigações. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1983, p. 183. 4 GOMES, Orlando. Obrigações. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 225. 3

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Antes de ingressar propriamente no exame do tema, impende seja assentada uma premissa fundamental para todo o desenvolvimento da perspectiva lógica de compreensão da assunção de dívida. Enquanto espécie de transmissão das obrigações, a assunção de dívida pressupõe a conservação do negócio jurídico originário, pois, caso contrário, estar-se-ia diante de uma inconteste novação subjetiva passiva6. Não há, deste modo, qualquer alteração no conteúdo da relação obrigacional, que será plenamente assumida, ressalvada a particularidade das obrigações intuitu personae. Do vínculo pessoal existente no Direito Romano à previsão normativa pelo CC 20027, a assunção de dívida representa o irrefutável reconhecimento da elevação do crédito e do débito à posição de bem jurídico de conteúdo econômico autônomo, passível de negociação abstrata nas relações sociais. Em linhas gerais, um mecanismo de redução dos riscos para os credores, voltado à estabilidade das relações jurídicas.

2. MARCO

TEÓRICO

DA

ASSUNÇÃO

DE

DÍVIDA:

CONCEITUAÇÃO,

ELEMENTOS E EFEITOS

A assunção de dívida deve ser compreendida como um negócio jurídico de transmissão singular de um débito, por meio do qual um terceiro, chamado assuntor, em princípio estranho à relação jurídica, assume a posição patrimonial do devedor originário e se obriga perante o credor, com o seu consentimento, a efetuar a prestação devida8. Em geral, a assunção de dívida – espécie de sucessão singular, e não universal - tem natureza liberatória, ou seja, o devedor é excluído da obrigação por meio de um negócio jurídico dispositivo, sem que isso importe na extinção da obrigação preexistente. A par da insolvência do assuntor ignorada ao tempo da celebração, o devedor originário, via de regra, exonera-se da responsabilidade após a assunção da dívida pelo assuntor.

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Com o objetivo de corrigir as referidas imprecisões técnico-legislativas, o deputado federal Ricardo Fiuza apresentou o PL 6.960/2002, que propunha, dentre outras alterações, a modificação dos arts. 299, 300 e 302. Lamentavelmente, a proposição legislativa fora arquivada em 2007. 6 VARELA, João de Matos Antunes. Ob. cit., p. 361. 7 Segundo Menezes Cordeiro, “no Direito Romano, a única possibilidade admitida de transmitir obrigações estava ínsita nas transmissões a título universal, isto é, naquelas que ocorriam quando todo o patrimônio duma pessoa era transferido para esfera de outro” (CORDEIRO, António Manuel Menezes. Direito das obrigações. 2º vol. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1986, p. 81; VARELA, João de Matos Antunes. Ob. cit., p. 360). Para Josserand, o antigo direito romano resolvia o problema da transmissão das obrigações de maneira rigorosa, pois “cuando se quería cambiar uno de los términos de la relación obligatoria, tenía que extinguirse la obligación para sustituirla por una relación jurídica nueva” (JOSSERAND, Louis. Derecho civil – teoría general de las obligaciones. Tomo II, vol. I. Buenos Aires: Boschi y Cia Editores, 1950, p. 639). 8 VARELA, João de Matos Antunes. Ob. cit., p. 361. 4

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Ao se examinar os pressupostos de concretização do instituto, em especial, a faculdade do terceiro em assumir a dívida, a natureza jurídica da assunção e a aceitação do credor, alguns questionamentos se apresentam. Quando alude ao termo “faculdade de terceiro”, o CC 2002 suscita a dúvida se a fattispecie seria consentânea com a exigibilidade de uma promessa de assunção de dívida, ou seja, se se coadunaria com a liberalidade usualmente vinculada à assunção de dívida. Seria factível que alguém dispusesse tão somente de uma faculdade, e, nada obstante, firmasse uma promessa de assumir a dívida alheia? Conquanto envolva um negócio jurídico dispositivo, nenhum óbice subsiste para que o terceiro, superada a faculdade de aderir ou não ao suporte fático hipotético, firme uma promessa ou compromisso de assunção de dívida9. Se a promessa de assunção se restringir à figura do devedor originário e assuntor, sem qualquer participação ou envolvimento do credor, se identificará um típico contrato preliminar, símile a uma promessa de liberação10, sujeito a plena exigibilidade, atendidos os requisitos do art. 462 e 466 do Código Civil. Se, por outro lado, envolver uma promessa direta do devedor ao credor, fatalmente ter-se-á a figura da promessa de fato de terceiro, nos moldes do art. 439 do Código Civil. E ainda que subsista um negócio jurídico prévio entre assuntor e devedor, a pactuação da assunção da dívida, em si considerada, jamais poderá ser exigida ou imposta pelo devedor originário ao terceiro; permanecerá como uma mera faculdade, dada a incomunicabilidade dos negócios e a natureza abstrata. Com contornos um pouco diferenciados, admite-se na Itália que o devedor originário delegue a terceiro, mediante uma ordem, a possibilidade de realizar o pagamento ao credor11 ou de obrigar-se pela dívida perante o credor12, em virtude de um negócio jurídico

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Diante da controvérsia existente na doutrina brasileira em torno da promessa de doação, alguns autores sustentam ser incabível a promessa de assunção, quando não amparada em uma relação jurídica preexistente entre assuntor e devedor originário, na medida em que seria inconcebível a exibigilidade de uma liberalidade. 10 Antunes Varela salienta que “a afinidade entre elas [assunção de dívida e promessa de liberação] terá como resultado prático, além de outros, que a assunção de dívida concertada entre antigo e novo devedor, se não for ratificada pelo credor, se converterá muitas vezes, por obediência à vontade presumível ou conjectural das partes, em mera promessa de liberação”. VARELA, João de Matos Antunes. Ob. cit., p. 363. 11 Art. 1269 - Delegazione di pagamento - Se il debitore per eseguire il pagamento ha delegato un terzo, questi può obbligarsi verso il creditore, salvo che il debitore l'abbia vietato. Il terzo delegato per eseguire il pagamento non è tenuto ad accettare l'incarico, ancorché sia debitore del delegante. Sono salvi gli usi diversi. 12 Art. 1268 - Delegazione cumulativa o promissória - Se il debitore assegna al creditore un nuovo debitore, il quale si obbliga verso il creditore, il debitore originario non è liberato dalla sua obbligazione, salvo che il creditore dichiari espressamente di liberarlo. Tuttavia il creditore che ha accettato l'obbligazione del terzo non può rivolgersi al delegante, se prima non ha richiesto al delegato l'adempimento. 5

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preexistente. A bem da verdade, a delegação, aqui, não se eleva propriamente à condição de uma promessa, sobretudo porque o negócio é celebrado para execução iminente. Trata-se, de um lado, da figura da delegação de pagamento, na qual o devedor originário confere uma ordem de pagamento ao assuntor, de modo que, ao invés de pagá-lo diretamente a dívida, entrega a referida quantia ao credor da outra relação jurídica. E, de outro, da delegação cumulativa ou promissória, em que o devedor apresenta ao credor um novo devedor, o qual assume a responsabilidade pela dívida, ainda que com a permanência do devedor. Em resumo, ordem e promessa devem ser compreendidas com a devida parcimônia. Associada à preexistência de negócios subjacentes à assunção de dívida exsurge o questionamento acerca da natureza jurídica da transmissão singular do débito. Uma minoritária corrente doutrinária sustenta que quando existir um negócio jurídico prévio, a assunção de dívida teria natureza causal13, e não abstrata, como de hodierno se aduz. Ocorre que, seja a assunção celebrada em virtude de uma liberalidade, seja em função de outro negócio jurídico, sempre terá o caráter abstrato, ou seja, a ineficácia da relação jurídica anterior não interfere na sua existência e validade. À evidência, as eventuais exceções passíveis de argüição no negócio jurídico subjacente não podem ser transportadas para a assunção de dívida. Assim preceitua o § 417, n. 2, do BGB14 e o art. 598 do Código Civil português15, a demonstrar que, em qualquer hipótese, a assunção de dívida será um negócio jurídico abstrato. É de suma importância que se compreenda a restrição deste posicionamento apenas às relações jurídicas subjacentes, de modo a que não seja confundida com os próprios negócios jurídicos geradores da assunção de dívida, porquanto o Código Civil italiano, em seu art. 1273, n. 416, admite que se invoquem exceções decorrentes da relação criadora da assunção em face do credor, quando celebrada entre devedor originário e assuntor, com a ratificação do credor17.

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Na Itália, a delegação titulada detém natureza causal por se reportar à relação jurídica base. PERLINGIERI, Pietro. Manuale di diritto civile. 6. ed. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2007, p. 274. 14 WESTERMANN, Harm Peter. Ob. cit., pp. 183-184. 15 Art. 598 - Na falta de convenção em contrário, o novo devedor não tem o direito de opor ao credor os meios de defesa baseados nas relações entre ele e o antigo devedor, mas pode opor-lhe os meios de defesa derivados das relações entre o antigo devedor e o credor, desde que o seu fundamento seja anterior à assunção da dívida e se não trate de meios de defesa pessoais do antigo devedor. 16 Art. 1273 - In ogni caso il terzo è obbligato verso il creditore che ha aderito alla stipulazione nei limiti in cui ha assunto il debito, e può opporre al creditore le eccezioni fondate sul contratto in base al quale l'assunzione è avvenuta. 17 Assim seria no caso dos arts. 595, “a”, do Código Civil português, e 299, II, do PL 6.960/2002. 6

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No pertinente à aceitação do credor, vale observar que, em qualquer assunção de dívida, constituirá um inequívoco direito potestativo18. Somente ao credor caberá promover a modificação na esfera patrimonial do devedor e do assuntor, mediante a sua manifestação de vontade, para ensejar o surgimento da assunção de dívida19. Com efeito, a figura mais importante da assunção de dívida será incontestavelmente o credor20; sem o seu consentimento o negócio jurídico da assunção não terá reunido todos os requisitos para o ingresso no plano da existência21.

3. MODALIDADES Para se promover a escorreita delimitação das espécies de assunção de dívida afigura-se essencial adotar dois parâmetros de análise, a saber, a situação do devedor e a formação do negócio jurídico em si considerado. Quanto à situação do devedor, a assunção de dívida pode ser liberatória - escoimada nos artigos 299 a 303 do CC 2002 - e recebe tal nomenclatura pelo fato de acarretar a exoneração do devedor originário, sem a alteração do conteúdo da relação obrigacional. Trata-se, à evidência, da modalidade usual de assunção de dívida. E somente nesta circunstância se verifica a efetiva transmissão particular e singular do débito, visto que o ingresso do assuntor importa na exclusão do devedor originário. Sob outro panorama, a assunção de dívida poderá ser cumulativa quando o ingresso do assuntor não proporcionar a saída do devedor. Ao revés, compreende uma espécie em que o assuntor assume o débito conjuntamente com o devedor originário. Por suposto, não se consuma uma substituição no pólo passivo da relação obrigacional, mas uma inconteste ampliação dele, o que viabilizará ao credor a possibilidade de exigir de um ou de outro o débito. Segundo abalizada doutrina, de forma pertinente a assunção cumulativa não consta do CC 2002 por não envolver uma espécie de transmissão da obrigação22. Apesar deste

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Em reforço à posição, Westermann aduz que “a aprovação fica ao arbítrio do credor, que sopesará se a mudança de devedor lhe é favorável [...]”. WESTERMANN, Harm Peter. Ob. cit. Ob. cit., p. 184. 19 SOMBRA, Thiago Luís Santos. Adimplemento contratual e cooperação do credor. Saraiva: São Paulo, 2011, p. 63. 20 Este também o posicionamento de Gazzoni, para quem “è ovvio infatti che, per il creditore, non è indifferente la persona del debitore a causa della magiore o minore solvibilità e della maggiore o minore garanzia che offre il suo patrimonio, senza contare che, al di fuori delle obbligazioni pecuniarie, la prestazione può anche essere caratterizzata da uma certa infungibilità, specialmente nel campo delle prestazioni di fare”. GAZZONI, Francesco. Manuale di diritto privato. 14. ed. Nápoles: Edizioni Scientifiche Italiane, 2009, p. 625. 21 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AREsp 17.210/PI. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, DJ 9.9.2011. 22 Almeida Costa conclui da mesma forma à luz da legislação portuguesa. COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações. 11. ed. Coimbra: Almedina, 2008, p. 828. 7

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entendimento, na I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal foi aprovado o enunciado 16, segundo o qual o art. 299 do Código Civil não exclui a possibilidade da assunção cumulativa da dívida quando dois ou mais devedores se tornam responsáveis pelo débito com a concordância do credor. Questiona-se em demasia se nesta circunstância estar-se-ia diante de uma solidariedade passiva decorrente da manifestação bilateral do assuntor e do devedor originário, uma vez que importaria num reforço das chances de adimplemento a partir da ampliação do pólo passivo. Como um efeito automático, imperioso concluir em sentido negativo, mas a se admitir que a solidariedade não se presume, decorre da lei ou vontade das partes, consoante o art. 265 do CC 2002, essencial a adesão do credor para que se ultime o ingresso do assuntor23, bem como o ajuste de todos os pormenores de uma relação solidária. Para viabilizar a configuração de uma solidariedade passiva negocial, na assunção de dívida cumulativa interna, é salutar ponderar que o consentimento do credor, mediante ratificação, operará efeitos ex tunc, o que agregará as três manifestações de vontade necessárias a tanto. A obrigação poderá, então, ser exigida na integralidade de um (devedor originário) ou outro (assuntor), na exata dimensão em que assumido o débito solidariamente24. Almeida Costa, entrementes, situa a questão de forma um pouco particularizada: Parece fora de dúvida que a lei teve somente em vista a aplicação do regime das obrigações solidárias até onde não for contrário às especialidades da situação – que se caracteriza pelo facto de o novo devedor assumir uma obrigação alheia. Portanto, não significa que da co-assunção de dívida resulte um puro e automático vínculo solidário ou solidariedade perfeita. O principal objectivo do preceito legal em apreço é a outorga ao credor da faculdade de exigir o inteiro cumprimento da obrigação, indiferentemente, ao antigo ou ao novo devedor. Contudo, as relações entre estes são reguladas no contrato em que se baseia a assunção, pelo que não haverá necessariamente o direito de regresso que se verifica na solidariedade passiva. Tal como não se aplicam outras regras deste instituto.25

E juntamente com a solidariedade passiva, controverte-se sobre o eventual desdobramento de uma sub-rogação convencional, seja por meio do pagamento feito por

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Cumpre observar que, em virtude da imprescindível manifestação de vontade de todos os sujeitos da relação jurídica, a solidariedade passiva poderia surgir apenas na assunção de dívida cumulativa interna, ou seja, formada inicialmente entre devedor originário e assuntor, com a posterior ratificação do credor. 24 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n. 9204680-47.2007.8.26.0000. Relator: Des. Paulo Pastore Filho. DJ 19.10.2011 (Ilegitimidade ad causam. Inocorrência. Apelado que assumiu, solidariamente a sua então esposa, a obrigação de pagar as parcelas do contrato de mútuo, hipotecando o imóvel financiado Motivos suficientes para sua permanência no polo passivo da execução de assunção de dívida levada a efeito na separação do casal, que não pode ser oposta ao credor hipotecário). 25 COSTA, Mário Júlio de Almeida. Ob. cit., p. 829. Antunes Varela, todavia, discorda da posição de Almeida Costa e, para fundamentar sua concepção, cita o art. 595, 2, do Código Civil português. Na Itália também se identifica a solidariedade. 8

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terceiro ao credor, seja pelo empréstimo da quantia devida ao devedor pelo terceiro, em ambas as circunstâncias com a expressa transferência dos direitos e ações26. Em princípio, nenhum óbice subsiste para que se considere a celebração de uma sub-rogação convencional, em especial porque fruto do livre acordo de vontades dos sujeitos envolvidos27. Por outro lado, na assunção liberatória, que proporciona a exclusão do devedor originário tal como se nunca houvesse feito parte da relação jurídica, não se há perquirir pela ocorrência de sub-rogação e solidariedade, com a conseqüente viabilidade de cobrança do valor pago. Além da classificação da assunção de dívida quanto à situação do devedor, também há uma subdivisão, que considera a formação do negócio jurídico. A partir deste viés e a despeito da omissão legislativa subsistente no CC 2002, mencionam-se as modalidades externa/expromissória/unifigurativa ou interna/delegatária/bifigurativa28. A assunção de dívida externa ou expromissória decorre de um negócio jurídico bilateral celebrado diretamente entre credor e assuntor, com ou sem a participação do devedor originário29. Na medida em que não sofrerá qualquer gravame em sua situação jurídica, desnecessário, em princípio, o seu consentimento30. Costumeiramente, associa-se a uma liberalidade imbuída de valores familiares, sociais ou morais31. A assunção de dívida expromissória ou externa se coaduna tanto com a perspectiva liberatória, oportunidade em que o devedor originário será excluído por um acordo de vontades entre credor e assuntor, quanto cumulativa, circunstância em que haverá uma ampliação do pólo passivo32.

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Nos moldes do art. 347, I e II, do CC 2002. GAZZONI, Francesco. Ob. cit., p. 630. 28 A nomenclatura varia consideravelmente na doutrina e jurisprudência, além de em inúmeras ocasiões vir acompanhada de uma mistura entre características particulares de cada modalidade. Cf. VARELA, João de Matos Antunes. Ob. cit., p. 362. 29 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n. 9270939-87.2008.8.26.0000, DJ 18.5.2011. Prestação de serviços médico- hospitalares - Ação de cobrança de despesas - Celebração de novo "termo de responsabilidade com assunção de dívida" que constituiu expromissão do primitivo devedor - Anuência inequívoca da credora, que aceitou o expromitente - Legitimidade deste em assumir a dívida, por se tratar do pai da paciente cuja vida foi salva em razão do atendimento de urgência - Ilegitimidade passiva declarada, com extinção do processo sem resolução do mérito. - Apelação provida. 30 Ressalvada a previsão normativa do art. 306 e do parágrafo único do art. 304 do CC 2002, hipóteses em que se almeja resguardar alguns interesses do devedor. SOMBRA, Thiago Luís Santos. Adimplemento contratual e cooperação do credor. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 136. No entender de Almeida Costa, deve “prevalecer a regra de que, em princípio, a ninguém pode ser imposto um benefício sem a colaboração da vontade própria (art. 457)”. COSTA, Mário Júlio de Almeida. Ob. cit., p. 829 31 E por esta razão, preceitua Westermann que “seu âmbito de aplicação prática é limitado, porque muitas vezes o credor não estará de acordo com a mudança de devedor e, de outro lado, só raramente existe motivo para que haja assunção dos compromissos de outrem.” WESTERMANN, Harm Peter. Ob. cit., p. 184. 32 Nesta última, para que se verifique efetivamente solidariedade passiva, será essencial a manifestação do devedor originário. 27

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A assunção de dívida na modalidade interna ou por delegação representa, a seu turno, um negócio jurídico trilateral, pois se estabelece inicialmente um negócio entre o antigo e o novo devedor (assuntor), que, para ser elevado à condição de uma assunção de dívida e adquirir conformação, demanda o expresso consentimento, a ratificação do credor em relação àquele. Enquanto não manifestada a aquiescência do credor, assuntor e devedor originário podem perfeitamente desfazer o negócio. A ratificação do credor opera efeitos ex tunc, de sorte que retroage ao tempo da celebração do negócio entre assuntor e devedor originário. Não subsistirá, portanto, um hiato, um vácuo entre a celebração do negócio e a manifestação do credor, o que terá evidente repercussão no campo da responsabilidade. E a demonstrar a condição de um direito potestativo do credor, o parágrafo único do art. 299 do CC 2002 sufraga a estipulação de um prazo pelas partes para a ratificação do acordo inicial – exercício do direito potestativo - , sob pena de ser interpretada a omissão como recusa ou decadência. Na espécie, como se impõe uma manifestação de vontade qualificada, expressa e inequívoca, não se tolera a invocação do art. 111 do CC 2002, notadamente porque condizente com a exceção prevista na parte final do aludido dispositivo. Vale salientar que autores como Roldão de Freitas e Pontes de Miranda sustentam inexistir assunção de dívida ante a ausência de consentimento do credor; admitem que em tal situação ter-se-ia exclusivamente a figura de uma promessa de liberação33, ainda que com exigibilidade duvidosa. Mas a classificação anteriormente analisada nos remete, de certo modo, à formatação da assunção de dívida em outros ordenamentos jurídicos, porque figuras que representam uma subcategoria jurídica no Brasil, em outros países detém considerável autonomia. Na Itália, por exemplo, optou-se por distribuir as hipóteses de cabimento entre a delegazione, a espromissione e o accollo34. Assim, a existência de uma relação jurídica

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E explica Almeida Costa que “na simples promessa de liberação, também chamada de assunção de cumprimento, a convenção produz, em princípio, apenas efeitos entre o devedor e terceiro, é puramente interna; quer dizer, o terceiro promitente não fica devedor do credor, mas tão-só obrigado para com o devedor a pagar a dívida deste. Pelo contrário, concluindo-se que as partes celebram um contrato em benefício do credor, configurado como contrato a favor de terceiro, já o credor adquirirá um direito contra o promitente, podendo exigir-lhe o cumprimento. Observe-se que o n. 3 do art. 444.º do Cód. Civ. estabelece a presunção de que, na promessa de exonerar o promissário de uma dívida para com terceiro, só àquele é lícito exigir o cumprimento da promessa, podendo, todavia, essa presunção ser ilidida pela prova de que foi outra a vontade das partes, isto é, de que quiseram celebrar um contrato a favor de terceiro”. COSTA, Mário Júlio de Almeida. Ob. cit., p. 830. 34 Na doutrina portuguesa, Antunes Varela é quem melhor expõe as diferenças do modelo alemão, italino e português, além de traçar as características das figuras da delegazione, expromissione e acollo. VARELA, João de Matos Antunes. Ob. cit., pp. 371-372. 10

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subjacente ou a espontaneidade da intervenção do terceiro constituem elementos fundamentais para a subsunção em uma ou outra fattispecie35. A delegazione de pagamento e a delegazione promissória/cumulativa consubstanciam uma relação jurídica decorrente de uma ordem emanada do devedor originário, chamado delegante, a um terceiro, o delegado, de executar o pagamento ou de obrigar-se pela dívida perante o credor, o delegatário36. Parte da doutrina italiana considera a delegação um negócio jurídico trilateral. A delegação cumulativa/promissória difere da delegação de pagamento em razão de o credor não liberar o devedor originário, a despeito da subsistência do ônus de primeiro requerer o adimplemento ao terceiro/delegado e, apenas subsidiariamente, ao devedor originário-delegante37, tal como um benefício de ordem. A espromissione, por sua vez, é a assunção de uma obrigação alheia sem prévia ordem ou delegação38. Diferencia-se do adimplemento de terceiro por não envolver um pagamento imediato. Ao contrário da delegação, na expromissão o devedor originário permanece responsável solidário juntamente com o terceiro. Já o accollo reveste-se de estrutura próxima a de um contrato a favor de terceiro e se consuma por meio de um acordo entre devedor e assuntor39, com o intuito de que este promova a extinção da obrigação em face do credor. A doutrina italiana atribui ao accollo a natureza de um negócio jurídico trilateral que, a partir do momento da aceitação do credor, torna-se irrevogável, além de assegurar ao devedor originário a possibilidade de exigir o seu cumprimento40. Em regra, o accollo não gera a liberação automática do devedor originário, se tal aspecto não foi objeto de específica deliberação do credor. Em qualquer circunstância de delegação promissória liberatória, de expromissão e accollo liberatório a superveniente ineficácia ou invalidade da nova obrigação determina a continuidade da relação jurídica originária. 35

GAZZONI, Francesco. Ob. cit., p. 627. Art. 1268 - Delegazione cumulativa - Se il debitore assegna al creditore un nuovo debitore, il quale si obbliga verso il creditore, il debitore originario non è liberato dalla sua obbligazione, salvo che il creditore dichiari espressamente di liberarlo. Art. 1269 - Delegazione di pagamento - Se il debitore per eseguire il pagamento ha delegato un terzo, questi può obbligarsi verso il creditore, salvo che il debitore l'abbia vietato. 37 A responsabilidade subsidiária do devedor originário na delegação cumulativa é um traço distintivo do tratamento legislativo recebido pela assunção de dívida cumulativa no Brasil. 38 Art. 1272 – Espromissione - Il terzo che, senza delegazione del debitore, ne assume verso il creditore il debito, è obbligato in solido col debitore originario, se il creditore non dichiara espressamente di liberare quest'ultimo. 39 Art. 1273 – Accollo - Se il debitore e un terzo convengono che questi assuma il debito dell'altro, il creditore può aderire alla convenzione, rendendo irrevocabile la stipulazione a suo favore. 40 Para Perlingieri, “tale assunzione si perfeziona senza il consenso del creditore. L’eventuale adesione del creditore ha la funzione di rendere irrevocabile la dichiarazione di”. PERLINGIERI, Pietro. Ob. cit., p. 276. 36

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A distinção básica entre a delegação e a expromissão se situa na espontaneidade que deriva da iniciativa do terceiro em assumir a obrigação ou realizar o pagamento. Na expromissão são indiferentes as razões que conduzem o terceiro a assumir o débito, ao passo que na delegação invariavelmente existe uma relação jurídica básica, isto é, o delegado é devedor do delegante/devedor originário em outra relação jurídica41. O modelo português, sobremaneira próximo da codificação alemã42, disciplinou a assunção de dívida de forma mais concisa e técnica ao se limitar a explicitar que a transmissão pode decorrer de um negócio entre o antigo e o novo devedor (assunção interna) ou entre o novo devedor e o credor (assunção externa)43. Tal como a Itália, a concepção portuguesa se afasta do sistema brasileiro, porque a liberação do devedor alhures não é um efeito automático da assunção; deverá ser objeto de declaração expressa do credor, sob pena de o antigo devedor permanecer vinculado de forma solidária44. De se observar que o PL 6.960/2002, de autoria do Deputado Federal Ricardo Fiúza, cujo objetivo era sanar uma série de deficiências técnico-legislativas do CC 2002, incontestavelmente se limitou a reproduzir a redação do Código Civil português45.

4. REQUISITOS Basicamente três são os requisitos da assunção de dívida: o consentimento do credor, a validade do negócio jurídico transmissivo da obrigação e a solvência do novo devedor ao tempo da assunção da dívida. 41

GAZZONI, Francesco. Ob. cit., pp. 626 e 629. Vide §414 a §417. WESTERMANN, Harm Peter. Ob. cit., p. 183. 43 Antunes Varela ressalta que a “o Código Civil português reduziu, porém, a um só categoria (a assunção de dívida) o fenômeno da transmissão singular das obrigações. Abstraiu para isso da diversidade de estrutura das várias operações negociais atrás das quais a sucessão se processa, para atender ao resultado comum a que elas conduzem. Mas o facto de ter cunhado para todas essas espécies o mesmo conceito legal não significa que o Código tenha ignorado a diversidade do seu recorte estrutural”. VARELA, João de Matos Antunes. Ob. cit., p. 371. 44 Art. 595º - Assunção de dívida - 1. A transmissão a título singular de uma dívida pode verificar-se: a) Por contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor (interna); b) Por contrato entre o novo devedor e o credor (externa), com ou sem consentimento do antigo devedor. 2. Em qualquer dos casos a transmissão só exonera o antigo devedor havendo declaração expressa do credor; de contrário, o antigo devedor responde solidariamente com o novo obrigado. 45 “Art. 299. É facultado a terceiro assumir a obrigação do devedor, podendo a assunção verificar-se: I. Por contrato com o credor, independentemente do assentimento do devedor; II. Por contrato com o devedor, com o consentimento expresso do credor. § 1º Em qualquer das hipóteses referidas neste artigo, a assunção só exonera o devedor primitivo se houver declaração expressa do credor. Do contrário, novo devedor responderá solidariamente com o antigo; § 2º Mesmo havendo declaração expressa do credor, tem-se como insubsistente a exoneração do primitivo devedor sempre que o novo devedor, ao tempo da assunção, era insolvente e o credor o ignorava, salvo previsão em contrário no instrumento contratual ; § 3º Qualquer das partes pode assinar prazo ao credor para que consinta na assunção da dívida, interpretando-se o seu silêncio como recusa; § 4º Enquanto não for ratificado pelo credor, podem as partes livremente distratar o contrato a que se refere o inciso II deste artigo”. 42

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No que se refere à manifestação do credor, cabe salientar que se impõe como elemento fundamental em qualquer assunção de dívida. Conforme aludido anteriormente, a ratificação representa um direito potestativo do credor e, como tal, insuscetível de contradita46. A única exceção à regra da manifestação expressa do credor se identifica no art. 303 do CC, ou seja, nos casos de assunção de dívida decorrente da aquisição de imóvel hipotecado. E por uma explicação notoriamente singela se dispensa a aceitação expressa: a aquisição de imóvel hipotecado por terceiro não envolve qualquer risco para o credor, cuja garantia real sobre o bem assegurará o direito de seqüela, ou seja, o poder de perseguir a coisa na posse de quem estiver. Não se olvide, contudo, que, mesmo gravado com a garantia hipotecária, os imóveis objeto de financiamento por meio do Sistema Financeiro da Habitação-SFH demandam, por força da Lei Federal 8.004/90, a aceitação expressa do credor. Malgrado o CC 2002 e a legislação de regência imponham a manifestação de vontade qualificada por parte do credor47, o Superior Tribunal de Justiça, de forma indevida, data venia, tem se pronunciado no sentido de que “a aceitação dos pagamentos por parte da Caixa Econômica Federal revela verdadeira aceitação tácita”48. Ora, aqui se denota que o legislador claramente almejou coibir a configuração de uma surrectio49 ou mesmo de um comportamento concludente. O segundo requisito, concernente à validade do negócio jurídico transmissivo da obrigação, reúne um fator de ordem lógica, a saber, somente se operará a assunção, com a alteração do pólo passivo e conservação da relação originária, se o negócio jurídico for hábil a tanto. Entretanto, ao tratar do tema, o art. 301 do CC 2002 apresenta uma série de imprecisões. A primeira delas, oriunda do termo substituição “anulada”, faz supor que a substituição nula não estaria abrangida. Decerto, mais apropriado seria o emprego da expressão substituição “invalidada”, de tal sorte a compreender tanto as nulas quanto as anuláveis. Pecou ainda o art. 301 do CC 2002 ao valer-se da palavra “restaura-se”, visto que o seu sentido etimológico no vernáculo se aproxima ao de reavivar, restabelecer, revigorar algo não mais existente. A invalidade importa no retorno das partes ao status quo ante, e não propriamente na restauração do débito, em especial porque, enquanto modalidade de transmissão das obrigações, nunca deixou de existir. 46

GAZZONI, Francesco. Ob. cit., p. 626. Enunciado 353 das IV Jornadas de Direito Civil – Art. 303. A recusa do credor, quando notificado pelo adquirente de imóvel hipotecado, comunicando-lhe o interesse em assumir a obrigação, deve ser justificada. 48 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 627.424. Relator: Ministro Luiz Fux, DJ 6.3.2007. 49 À semelhança, com as devidas particularidades, do art. 330 do CC 2002. 47

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Seguindo este desate, como forma de propiciar o debate em torno da lídima aplicação do instituto, aprovou-se nas V Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal um enunciado de nossa autoria, segundo o qual: Enunciado V Jornadas de Direito Civil – Art. 301. O art. 301 do CC deve ser interpretado de forma a também abranger os negócios jurídicos nulos, e no sentido da continuidade da relação obrigacional originária, em vez da sua ‘restauração’, pois, por envolver hipótese de transmissão, esta nunca deixou de existir.

O último dos requisitos da assunção liberatória demanda que, ao tempo da assunção, o assuntor seja solvente para que se verifique a exoneração do devedor originário. Se ao tempo da assunção for o novo devedor insolvente, sem que tal fato fosse do conhecimento do credor, será o devedor primitivo sancionado com a manutenção de sua responsabilidade pelo pagamento, independentemente de ter agido com boa-fé50. Cumpre esclarecer, todavia, que, se o credor tinha conhecimento do estado de insolvência do assuntor ao tempo da celebração do negócio presume-se que aceitou o risco em um típico negócio jurídico aleatório51. Em sentido contrário ao regramento da cessão de crédito e em função da omissão normativa – art. 295 do CC 2002 - , parte da doutrina admite na assunção de dívida a aposição de cláusula exoneratória da responsabilidade contratual do devedor originário, mesmo quando o novo devedor seja insolvente ao tempo do contrato.

5. EFEITOS Como decorrência da premissa básica do instituto, o efeito primário da assunção de dívida é a transmissão subjetiva do débito; exonera-se o devedor originário enquanto o assuntor assume sua posição. Por força deste aspecto, um efeito reflexo é a extinção das garantias oferecidas pelo devedor primitivo - outra diferença em relação à cessão de crédito - , salvo a sua opção pela continuidade. Eis mais uma imprecisão no tratamento da assunção de dívida: não compete ao devedor originário exonerado deliberar a subsistência das garantias, mas aos próprios garantidores52. A alteração subjetiva do pólo passivo, com o ingresso de um novo devedor, ocasionalmente desconhecido do garantidor, poderá motivar o razoável desejo de não 50

PERLINGIERI, Pietro. Ob. cit., p. 277. O Código Civil português atribui tratamento similar à matéria: Art. 600º - Insolvência do novo devedor - O credor que tiver exonerado o antigo devedor fica impedido de exercer contra ele o seu direito de crédito ou qualquer direito de garantia, se o novo devedor se mostrar insolvente, a não ser que expressamente haja ressalvado a responsabilidade do primitivo obrigado. 52 GAZZONI, Francesco. Ob. cit., p. 631. 51

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prorrogação das garantias53. Aliás, este o propósito do enunciado 352 das IV Jornadas de Direito Civil: Enunciado 352 das IV Jornadas de Direito Civil – Art. 300. Salvo expressa concordância dos terceiros, as garantias por eles prestadas se extinguem com a assunção de dívida; já as garantias prestadas pelo devedor primitivo somente são mantidas no caso em que este concorde com a assunção.

Ao que se infere, os portugueses não se submetem a dificuldades do mesmo jaez, afinal o Código Civil expressamente relaciona a permanência das garantias ao asssentimento dos garantidores54: ARTIGO 599º - Transmissão de garantias e acessórios 1. Com a dívida transmitem-se para o novo devedor, salvo convenção em contrário, as obrigações acessórias do antigo devedor que não sejam inseparáveis da pessoa deste. 2. Mantêm-se nos mesmos termos as garantias do crédito, com excepção das que tiverem sido constituídas por terceiro ou pelo antigo devedor, que não haja consentido na transmissão da dívida.

Outro equívoco de redação do art. 300 do CC 2002 relaciona-se à expressão “garantias especiais”, na medida em que não se conhecem garantias diversas das fidejussórias e reais. O ponto fomentou considerável debate doutrinário, de sorte que para fielmente delimitar o âmbito de aplicação do art. 300 foi aprovado o enunciado 69 nas V Jornadas de Direito Civil: Enunciado 69 da V Jornadas de Direito Civil - Art. 300. A expressão ‘garantias especiais’ constante do art. 300 do CC/2002 refere-se a todas as garantias, quaisquer delas, reais ou fidejussórias, que tenham sido prestadas voluntária e originariamente pelo devedor primitivo ou por terceiro, vale dizer, aquelas que dependeram da vontade do garantidor, devedor ou terceiro, para se constituírem.

Ainda que intrinsecamente vinculada a um dos requisitos da assunção, a continuidade da relação jurídica originária se manifesta como um dos seus efeitos imediatos, em caso de invalidade da substituição.

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Ad argumentandum tantum e guardadas as devidas particularidades, o argumento contempla algumas semelhanças à perspectiva que conduziu a elaboração do enunciado 214 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça: “o fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu”. Cf. COSTA, Mário Júlio de Almeida. Ob. cit., p. 833. 54 Também neste ponto o PL 6.960/2002 recebeu substancial influência do Código Civil português. “Art. 300. Com a assunção da dívida transmitem-se ao novo devedor, todas as garantias e acessórios do débito, com exceção das garantias especiais originariamente dadas ao credor pelo primitivo devedor e inseparáveis da pessoa deste. Parágrafo Único. As garantias do crédito que tiverem sido prestadas por terceiro só subsistirão com o assentimento deste”. 15

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A terceira e última categoria de efeitos naturais da assunção de dívida aproxima-se das matérias de defesa. Por envolver um negócio jurídico abstrato, o assuntor não poderá opor ao credor as exceções pessoais que incumbiam ao devedor originário, outra especificidade em relação à cessão de crédito, a teor do art. 294 do CC 2002. A se considerar novamente a premissa relacionada à conservação do negócio jurídico originário, inevitavelmente ao assuntor será concedida a faculdade de invocar as exceções anteriores à pactuação da assunção, salvo se houver renunciado inequivocamente ou se amparadas em fatores pessoais existentes entre o devedor primitivo e o credor55. Por se conectar à essência do vínculo obrigacional, a exceção do contrato não cumprido e a prescrição, por exemplo, serão exceções suscetíveis de serem argüidas pelo assuntor; o que, por outro lado, não ocorre com a exceção de compensação entre créditos do devedor originário e débito do credor, à luz do art. 376 do CC 2002. Pontes de Miranda esclarece, no entanto, que se o assuntor não recebeu do devedor anterior a contraprestação a que tinha direito, cabe-lhe a exceção do contrato não cumprido contra aquele, porém jamais contra o credor.

6. DISTINÇÕES Entre a assunção de dívida e alguns institutos é possível identificar uma linha tênue de semelhanças, embora existam consideráveis traços diferenciadores. Com a cessão de crédito se aproxima a assunção de dívida quando tenha natureza expromissória, ou seja, se estabeleça uma relação entre credor e assuntor, sem a participação do devedor originário56. Não obstante uma envolver a alteração no pólo passivo e, a outra, no pólo ativo, é cediço que na cessão de crédito ocorre uma operação de substituição do antigo pelo novo credor, sem a intervenção do devedor, cuja cientificação será mero requisito de eficácia. No tocante à cessão da posição contratual ou cessão de contrato diferencia-se pelo fato de nesta modalidade ocorrer a cessão de um complexo unitário de direitos e obrigações,

55

COSTA, Mário Júlio de Almeida. Ob. cit., p. 833. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n. 9068133-97.2007.8.26.0000. Relator: Des. Luiz Antonio de Godoy, DJ 31.5.2011. “CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO - Cessão sucessiva de direitos hereditários - Instrumento em que restou consignado que a prestação original já teria sido adimplida - Realidade fática, todavia, que remete o negócio firmado à qualidade de verdadeira assunção de dívida - Herdeiros figurantes do contrato primitivo que não foram notificados da nova cessão (art. 290, CC) ou a ela anuíram expressamente (art. 299, CC) - Ineficácia do negócio perante os herdeiros - Cessionário que, como terceiro não interessado, não poderá, em seu próprio nome, efetuar o pagamento da dívida contra a vontade dos credores Recusa dos réus em receber o valor consignado que se reputa justa - Recurso desprovido”. 56

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enquanto na assunção se transfere apenas a posição passiva do devedor, sem qualquer alteração em seu conteúdo. Aproxima-se de certo modo da novação subjetiva passiva. Em comum, tão somente a substituição no pólo passivo. Na novação subjetiva verifica-se a destruição de uma relação jurídica e o surgimento de outra, na assunção de dívida a relação obrigacional é enviada diretamente ao assuntor a título singular. Uma é modalidade de extinção, a outra de transmissão. Em relação à fiança, a assunção de dívida se dissocia pelo fato de o fiador ser responsável por débito alheio, enquanto o assuntor atua como devedor principal juntamente com o devedor originário. O fiador é garantidor, e não devedor, tecnicamente. O fiador se sub-roga de forma automática caso pague a dívida do afiançado, o que não ocorre com o assuntor, na assunção liberatória, que somente terá direito à sub-rogação de natureza negocial57. Por fim, se afasta da figura do terceiro interessado, definido como alguém que pode sofrer as conseqüências da inexecução obrigacional, e, por conseguinte, tem legitimidade para efetuar o pagamento de dívida da qual é responsável, em nome próprio. Isso sem mencionar que a assunção de dívida, enquanto modalidade de transmissão das obrigações, opera em plano e momento diversos do adimplemento de terceiro, entendido como uma forma de extinção da obrigação58. E Antunes Varela bem aponta os caminhos de delimitação da interpretação no caso concreto: “A jurisprudência e a doutrina dominantes na Alemanha entendem que, na dúvida, só deve aceitar-se a existência duma assunção de dívida quando o terceiro tiver um interesse real (objectivo) próprio na relação obrigacional, e não apenas um interesse pessoal em ajudar o devedor”59

Algumas semelhanças ainda podem ser percebidas entre a assunção liberatória externa e o adimplemento feito pelo terceiro não interessado, quando paga em nome próprio. Por mais que em última análise a intervenção de um terceiro consubstancie o fator necessário, é oportuno observar que nem toda assunção acarretará de imediato o adimplemento, tal como no pagamento feito pelo terceiro. Isso sem mencionar que da assunção liberatória externa não

57

VARELA, João de Matos Antunes. Ob. cit., p. 365. Posição também sufragada por Perlingieri, “benché l’iniziativa provenga dal terzo e il debitore originario sai straneo al contratto, l’espromissione si distingue dall’adempimento del terzo perché l’espromittente, promettendo di adempiere, non estingue immediatamente l’obbligazione originaria”. PERLINGIERI, Pietro. Ob. cit., p. 276. 59 VARELA, João de Matos Antunes. Ob. cit., p. 366. 58

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participa o devedor, ao passo que, no adimplemento de terceiro não interessado, em nome próprio, a oposição ou desconhecimento impede o reembolso do que se pagou.

7. BIBLIOGRAFIA BDINE JR., Hamid Charaf. Cessão da posição contratual. São Paulo: Saraiva, 2007. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 356.383/SP. Relator: Ministra. Nancy Andrighi. DJ 06.05.2002. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 627.424. Relator: Ministro Luiz Fux, DJ 6.3.2007. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AREsp 17.210/PI. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, DJ 9.9.2011. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n. 9204680-47.2007.8.26.0000. Relator: Des. Paulo Pastore Filho. DJ 19.10.2011. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n. 9068133-97.2007.8.26.0000. Relator: Des. Luiz Antonio de Godoy, DJ 31.5.2011. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n. 9270939-87.2008.8.26.0000, DJ 18.5.2011. CORDEIRO, António Manuel Menezes. Direito das obrigações. 2º vol. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1986. COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações. 11. ed. Coimbra: Almedina, 2008. GAZZONI, Francesco. Manuale di diritto privato. 14. ed. Nápoles: Edizioni Scientifiche Italiane, 2009. GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Da assunção de dívida e sua estrutura negocial. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998. GOMES, Orlando. Obrigações. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. ITÁLIA. Código Civil. 1948. Disponível em: http://www.nuevocodigocivil.com/. Acesso em: 20 de março de 2015. JOSSERAND, Louis. Derecho civil – teoría general de las obligaciones. Tomo II, vol. I. Buenos Aires: Boschi y Cia Editores, 1950. PERLINGIERI, Pietro. Manuale di diritto civile. 6. ed. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2007. PORTUGAL. Código Civil. 1966. Disponível em: http://www.stj.pt/ficheiros/fpstjptlp/portugal_codigocivil.pdf. Acesso em: 25 de março de 2015. SOMBRA, Thiago Luís Santos. Adimplemento contratual e cooperação do credor. Saraiva: São Paulo, 2011. VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. Vol. II. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2006. WESTERMANN, Harm Peter. Código civil alemão: direito das obrigações. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1983.

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